Como se verá, o texto é um pouco longo para um artigo de jornal. Todavia, essa extensão foi necessária para que eu pudesse tratar com um mínimo de cuidado do tema abordado - tão cheio de dificuldades conceituais e, ao mesmo tempo, tão repleto de conseqüências.
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Intelectuais no Brasil, mais uma
“traição dos clérigos”
Em 1927 o francês Julien Benda publicou
um livro com um intrigante título: La
trahison des clercs, cuja tradução para português é A traição dos clérigos. Esse intrigante nome apresentava uma não
menos provocativa idéia: a de que os intelectuais (os “clérigos”) estavam
traindo a sua missão e a sociedade ao vincularem-se demais, e de modo
inadequado, à política. Essa tese é polêmica em si mesma; a forma como Benda
expressou-se não ajudou muito em sua compreensão, ainda que o livro tenha
obtido um grande sucesso.
A tese do autor é que o papel dos
intelectuais é o de serem a consciência crítica da sociedade, elaborando
princípios morais e intelectuais que servem de guia e parâmetro de avaliação da
atividade política. Isso significa que os intelectuais podem, e até devem,
interessar-se pela política, mas não devem sacrificar a sua autonomia pela
política. É importante notar que os intelectuais devem ser os guias em todas as
áreas da vida, incluindo aí as artes, as ciências, as relações familiares etc.,
estabelecendo os ideais mais elevados; como intelectuais, sua atividade
consiste precisamente nisso e, inversamente, aqueles que elaboram os parâmetros
são os intelectuais (ou os clercs,
“clérigos”), independentemente do nome específico que adotem. Mas o âmbito
político tem algumas particularidades, em particular o risco de que ele pode
conduzir à perdição, ou melhor, à “traição”.
O problema dessa tese está no
significado de “autonomia” dos intelectuais: afinal, eles podem ou não
participar da vida política? Nesse caso, Benda foi um pouco ambíguo; para ele,
como os intelectuais devem ser os guias morais da sociedade e como, de qualquer
maneira, os intelectuais são tão cidadãos quanto qualquer outro indivíduo,
tratar da política é algo normal e necessário.
Esse “tratar da política” pode consistir
em (1) propor parâmetros de ação e ideais a serem perseguidos; também pode
consistir em (2) manifestar-se sobre temas políticos correntes (como, por
exemplo, campanhas eleitorais); também pode significar (3) lançar-se candidato
em pleitos e/ou assumir cargos públicos; por último, pode significar (4) sacrificar
a missão de guiar a sociedade para, ao contrário, justificar projetos
políticos. Uma outra forma de distinguir os âmbitos de atuação é por meio das
palavras que a língua inglesa adota para tratar da política: a discussão moral,
institucional e técnica dos arranjos constitucional-legal-institucionais consiste
nos debates sobre a polity; as considerações
morais, institucionais e técnicas sobre as políticas públicas ocorrem no âmbito
das policies; por fim, a política
prática do dia-a-dia, incluindo as eleições e os arranjos governativos, ocorrem
na politics.
A “traição dos intelectuais” consiste
justamente quando os intelectuais pretendem atuar na possibilidade (4) –
sacrificar a missão intelectual-moral-técnica em nome dos projetos políticos
práticos – ou quando os intelectuais abandonam os debates próprios à polity, às policies ou à fiscalização
da politics para, eles próprios,
engajarem-se como intelectuais na arena da politics.
A traição ocorre quando os pensadores abrem mão justamente do seu papel de
elaboradores de idéias, valores e juízos para aderirem ao que outros – que não são intelectuais – elaboram. Os
intelectuais “traidores”, portanto, abdicam de seu papel de intelectuais, mas
mantêm o título de “intelectuais” (ou a fama
de pensadores – não faz diferença).
A explicação que apresentamos acima
simplifica e esquematiza muito o argumento de Benda; ele mesmo não foi tão
claro, nem tão sistemático, em sua própria exposição. A tese da “traição dos
intelectuais” é polêmica por si mesma e permite com enorme facilidade más
interpretações, confusões e equívocos, com boa fé ou má fé; além disso, o autor
vazou-a em termos que eram ambíguos e bastante idealistas, quase platônicos. De
qualquer maneira, tendo elaborado a tese em 1927, Julien Benda escrevia movido
por um espírito ainda do século XIX, marcado pelo generoso racionalismo
progressista que se iniciou no Iluminismo e consagrou-se na III República
francesa (1870-1940). Entretanto, Benda tinha os olhos no século XX e, não por
acaso, foram as violentas paixões políticas dos 1900 que ilustraram à perfeição
a trahison des clercs: pensemos nos
nazistas Carl Schmitt e Martin Heidegger ou nos comunistas Trofim Lysenko ou
György Lukács ou o inclassificável (e confuso) Jean-Paul Sartre – todos eles submeteram
seguidamente suas idéias às diretrizes políticas de governantes autoritários.
Aliás, convém notar que, lamentavelmente, com exceção de Lysenko, todos esses
autores continuam sendo lidos e – pior! – respeitados. Não deixa de ser grande
motivo de lamento o fato de que o próprio Benda, no final de sua vida, na
década de 1950 tornou-se ele próprio um “intelectual traidor”, ao justificar os
crimes perpetrados por Stálin e pelo regime comunista na União Soviética:
embora tenha escrito com um espírito do século XIX, Benda não resistiu aos
terríveis impulsos do século XX.
A melhor forma de entender as idéias de
Benda é adotarmos com clareza como parâmetro as idéias de um dos autores que
melhor representa o que o século XIX produziu de melhor, o francês Augusto
Comte. Este autor, fundador da Sociologia, propôs uma divisão entre o “poder
Temporal” e o “poder Espiritual”. O poder Temporal é responsável pela ordem
material das sociedades; ele é o governo, ou o Estado, e baseia-se em última
análise força física (em um sentido que foi, depois, popularizado pelo alemão
Max Weber): ele faz e impõe as leis; assim, ele modifica “objetivamente” as
condutas dos cidadãos. Já o poder Espiritual é o responsável pelas idéias e
pelos valores das pessoas; em vez de modificar o comportamento das pessoas pela
força, ele baseia-se no aconselhamento, ou seja, seu funcionamento é subjetivo.
Ora, além da distinção entre essas duas
potências, o interessante é que A. Comte recomendava que os integrantes de cada
uma delas mantivessem-se cuidadosamente separados da outra. Não é que os
membros do poder Temporal – de modo específico: os políticos, os juízes, os
procuradores – não possam ter valores e idéias; é claro que eles têm valores e
idéias e é necessário que eles tenham: o que importa é que eles não defendam em
caráter oficial idéias e valores; em particular, eles não podem estabelecer doutrinas
oficiais. As “doutrinas oficiais” são as crenças impostas pelo Estado como
necessárias para a cidadania, no sentido de que, sem aderir oficialmente, o
indivíduo não é cidadão nem goza de cidadania. Exemplos fáceis de “doutrinas
oficiais”: no Brasil Império, no século XIX, todos os políticos tinham que ser
católicos; na Inglaterra de hoje (e desde o século XVI), somente anglicanos
podem ser primeiros-ministros; na União Soviética, somente os comunistas tinham
direitos e, aliás, somente o comunismo era aceito como “verdade”.
Mas, de maneira mais fundamental, no
esquema comtiano os membros do poder Espiritual – os intelectuais – não podem
aspirar ao poder Temporal. Essa vedação foi proposta por A. Comte para garantir
a completa autonomia dos intelectuais, no sentido indicado antes: não é que não
possam ou não devam ocupar-se da política; bem ao contrário, eles devem estar
bastante atentos aos rumos dos destinos comuns; mas “preocuparem-se com a
política” é diferente de “ocuparem-se diretamente com política”. Quando os
intelectuais assumem cargos políticos e, ao mesmo tempo, querem manter-se
atuando como intelectuais, eles misturam as lógicas de cada um dos dois
poderes: suas decisões como políticos práticos são implementadas em última
análise pela força, mas não se sabe se as idéias e os valores devem aconselhar
ou se devem ser impostos. O importante a notar aqui é que essa dúvida – os
valores e as idéias propalados pelos intelectuais que desempenham ao mesmo
tempo atividades de políticos práticos são aconselhamentos ou são imposições? –
permanece mesmo que se afirme, em caráter oficial, que as idéias e os valores
não são oficiais. Nos termos comtianos, quando os intelectuais deixam de lado a
sua autonomia, eles deixam de subordinar a política ao crivo moral e põem em
prática a ação inversa, subordinando a moral à política. A única forma garantir
a plena autonomia e evitar de qualquer maneira essa ambigüidade é os
intelectuais retirarem-se de maneira clara e formal da política prática: uma
aplicação simples e poderosa desse princípio seria a vedação de candidaturas (a
vereadores, deputados, governadores, senadores, presidente) a sacerdotes. No
final das contas, não se trata de os intelectuais terem o “direito” de
manifestarem-se politicamente: eles têm o dever
de manterem-se nas condições morais e institucionais adequadas e necessárias à
boa consecução das suas responsabilidades – responsabilidades que, diga-se de
passagem, os intelectuais escolhem por livre e espontânea vontade.
Ora, Comte reconhecia já no século XIX
que muitos intelectuais têm impulsos (secretos ou não) pelo poder; esses
impulsos revelam na verdade que tais “intelectuais” desejam de fato ser
políticos práticos, mas devido a um sem-número de motivos – incapacidade moral,
incapacidade prática, falta de oportunidades, vaidade etc. – eles acabam
mantendo-se como “intelectuais”. Dessa forma, não seriam pensadores que, como
pensadores, contribuem para a vida política, mantendo-se afastados da política
cotidiana mas que fiscalizam as práticas, sugerem políticas públicas, propõem
idéias e valores; em seu lugar, seriam políticos práticos frustados que usam o espaço social próprio aos intelectuais para
fazerem política prática. Essa ação político-prática dos intelectuais não
apenas indica deficiências morais da parte desses supostos pensadores; ela tem
conseqüências sociais mais amplas, na medida em que degradam a reflexão
intelectual mais ampla e põe sistematicamente sob suspeita as reflexões morais
e intelectuais sobre a política. Em outras palavras, a traição dos intelectuais
é uma prática profundamente tóxica,
para os intelectuais, para os políticos práticos e, assim, para o conjunto da
sociedade.
Como indicamos há pouco – e como é
amplamente sabido –, o século XX assistiu a inúmeros intelectuais que sacrificaram
suas posições como intelectuais em benefício de projetos políticos; aliás, em
muitos casos esses sacrifícios deram-se na forma de subordinações e humilhações
sistemáticas, de que basta citarmos o caso de Lukács como caso exemplar.
Todavia, temos que dar um passo além na presente discussão: não basta termos
clareza de que os pensadores como pensadores têm que se manter cuidadosamente
afastados da arena política; também não basta sabermos que a traição dos
intelectuais acarreta os problemas morais, intelectuais e práticos ligados às
traições: é importante notarmos que o século XX sistematizou intelectualmente a
traição dos intelectuais como prática “legítima”.
O autor que sistematizou a traição dos
intelectuais foi o italiano Antônio Gramsci, com a figura do “intelectual
orgânico”. Esse intelectual orgânico é o pensador que é também membro do
partido político (no caso teorizado por Gramsci, do partido comunista) e está a serviço do partido. Não é um um mero
intelectual filiado a um partido; é um “intelectual” que atua como braço
filosofante do partido político. No esquema gramsciano, esse pensador teria por
missão realizar a “hegemonia cultural”, isto é, criar idéias, valores, teorias
próprios à classe proletária e que substituam as idéias, os valores e as
teorias próprios à classe burguesa; realizando essa substituição no âmbito da
cultura, a tomada do poder político ocorreria naturalmente, sem maiores
dificuldades.
Talvez seja possível argumentar que o
“intelectual orgânico” mantém uma autonomia e que, portanto, não realiza por si
só a “traição dos intelectuais”: mas, nesse caso, qual seria a particularidade
desse intelectual face a qualquer outro intelectual “crítico”, dito “burguês”?
De qualquer maneira, como garantir a
priori que os intelectuais orgânicos não incorrerão na traição dos
intelectuais? Mas, deixando de lado essas questão, surge antes uma outra, mais
importante, mais central: será que a preocupação com a “traição dos
intelectuais” está no âmbito dos “intelectuais orgânicos”? A resposta é
claramente “não”: para os “intelectuais orgânicos”, a “traição dos
intelectuais” no sentido esboçado por Julien Benda e advertido antes por
Augusto Comte não é um problema. Na
verdade, se há uma traição que os intelectuais orgânicos evitam realizar é a traição
a propósito dos ideais políticos e partidários, buscando serem “politicamente
corretos”.
A posição dos “intelectuais orgânicos”
permite entendermos a traição dos intelectuais de uma outra forma: não são os
intelectuais que têm que se subordinar aos partidos políticos e aos chefes
partidários, mas, bem ao contrário, são os chefes e os partidos que têm que se
subordinar aos intelectuais. É claro que essa subordinação é moral e
intelectual: os pensadores elaboram as idéias e os valores, enquanto os partidos
e seus chefes põem-nos em prática nas disputas políticas, tendo, para isso, a
liberdade própria à atividade prática que escolheram.
No Brasil contemporâneo a traição dos
intelectuais (conforme Benda), a subordinação da reflexão intelectual autônoma
sobre a política à prática política cotidiana (ou, o que dá no mesmo, a
projetos estritamente políticos, ou seja, de poder) (conforme Comte) ou a
realização dos intelectuais orgânicos (segundo Gramsci) é algo que ocorre
largamente, em particular no espaço institucional que consagra os
“intelectuais”, ou seja, as universidades, mormente as universidades públicas
(federais ou estaduais) e, secundariamente, algumas PUCs (pontifícias
universidades católicas). Aliás, isso é (mais) notável nas universidades
públicas devido a um único e simples motivo: como as públicas têm estabilidade
no serviço, garante-se a liberdade de cátedra; como as universidades
particulares são empresas particulares, que visam ao lucro, suas preocupações
são bastante diversas (e, embora isso não seja algo necessariamente ruim,
também não é necessariamente bom).
Assim, muitos professores universitários
valem-se da liberdade de cátedra para fazerem propaganda política e política
partidária; evidentemente, isso ocorre mais e com maior facilidade nas Ciências
Humanas. Antes de continuarmos, para evitar que se difunda a idéia
estapafúrdia, burra e irracionalista de que isso justifica a extinção dos
cursos de Ciências Humanas (pelo menos nas universidades públicas), é
importante notar que esse problema “ocorrer largamente”
não é o mesmo que “ocorrer sempre” ou “ocorrer em todos os lugares” ou “ocorrer com todos os professores”; entretanto, ele é
difundido o suficiente para que seja notado, para que incomode e para que
suscite justas reclamações sistemáticas. Assim, sem desprezar o aspecto
quantitativo, é acima de tudo um problema qualitativo
– como, aliás, a noção de “traição” já sugere.
De qualquer maneira, a afirmação de que
nas universidades ocorre a traição dos intelectuais é um problema, em mais de
um sentido. O primeiro deles é que mesmo os intelectuais, com boa ou má fé,
costumam confundir(-se) a respeito de qual seria o âmbito adequado de suas
atuações políticas: a primeira e mais imediata reação dos intelectuais, mesmo
aqueles que não cometem a trahison des
clercs, é a de questionar uma suposta impossibilidade de manifestar-se
politicamente, seja como cidadãos, seja como intelectuais que se dedicam à
política. Isso revela ao mesmo tempo a extensão com que a idéia de “intelectual
orgânico” difundiu-se nas universidades e a falta, ou ausência completa, de
conhecimento das reflexões de Comte sobre a “separação dos dois poderes”.
O segundo problema consiste em que uma
reação quase imediata de muitos intelectuais – e é necessário reconhecer que,
não por acaso, a vários desses professores é merecida a acusação de “traição
dos intelectuais” – é atribuir ou filiar a denúncia desse comportamento ao
movimento “Escola Sem Partido”. Associar a denúncia da “traição dos
intelectuais” ao “Escola Sem Partido” é uma tática bastante eficiente para tirar
a legitimidade da denúncia; em alguns casos é equivalente a dizer que a
denúncia tem um caráter “fascista”. Não há dúvida de que há intelectuais e
professores que sugerem tal associação com boa fé; isso não impede, todavia, de
que sejam freqüentes os casos de má fé.
Mas o que importa notar a respeito do
Escola Sem Partido é o seguinte. Atualmente, de maneira clara, ele é um
movimento ao mesmo tempo irracionalista e anti-intelectualista, clericalista e
autoritário; seus grandes defensores, em particular os parlamentares em
Brasília, são indivíduos ligados a igrejas (notadamente as evangélicas) e a
movimentos mais à “direita”, que buscam combater a “esquerda” utilizando essa
plataforma como arma, mas que, ao mesmo tempo, não têm pudor em propor seja a teologia
de Estado, sejam medidas anti-intelectualistas (como a fantástica supressão dos
cursos de Ciências Humanas das universidades públicas). Ora, se é assim
atualmente, o fato é que a primeira inspiração do Escola Sem Partido foi como
um movimento da sociedade civil que reagia contra evidentes abusos de
professores universitários, que realizavam a traição dos intelectuais à “esquerda”:
não por acaso, era escola sem partido mas também sem igreja. Nesse sentido, é
motivo de profundo lamento o seqüestro que o movimento, ou, pelo menos, a
bandeira do Escola Sem Partido pelos grupos indicados acima; em vez de ser uma
reação contra a trahison des clercs,
ele acabou sendo, ele mesmo, uma nova modalidade dessa traição.
Em terceiro lugar, é importante
indicarmos que a traição dos intelectuais no Brasil está ocorrendo à “esquerda”
– como é, por assim dizer, “tradicional” –, mas também e cada vez mais à
“direita”. Desde pelo menos a década de 1960 as esquerdas têm forte peso nas
universidades brasileiras; a instalação do regime militar, em 1964, aumentou
essa presença. As décadas de 1980 e 1990 foram de verdadeira hegemonia
esquerdista (ainda que a esquerda não fosse unânime nem nunca tenha sido um
bloco homogêneo); mas desde os anos 2000 a direita tem crescido nas
universidades. Em si mesmo esse crescimento poderia ser considerado algo “bom”,
na medida em que se poderia considerar uma pluralização intelectual. O problema
é que muitos integrantes dessa direita assumem uma postura militante, ou
melhor, agressiva e partidariamente militante, de tal sorte que a traição dos
intelectuais no Brasil tem-se tornado um problema à direita e à esquerda. A
crise do governo Dilma Rousseff e seu subseqüente fim abrupto exacerbou essas
tendências: a virulenta militância contra o Partido dos Trabalhadores (PT) e a
igualmente virulenta militância de reação dos petistas, com sua retórica do
“golpe” e da prisão de Lula como sendo uma prisão política, intensificaram
muito o gênero de comportamento característico da “traição dos intelectuais”:
na verdade, bem vistas as coisas, a presente traição dos intelectuais dá-se
justamente a respeito do PT e de Lula, seja a favor deles, seja contra eles.
Para concluir estas observações, é
importante notar que a trahison des
clercs não é um problema apenas universitário; aliás, ele não é nem mesmo
um problema de destinação de verbas públicas e de subvenção de atividades
partidárias travestidas de atividade universitária. No âmbito acadêmico, vale
lembrar que os primeiros prejudicados são os alunos, que se vêem obrigados a
aceitar a opinião dos professores imposta sobre eles, sem condições efetivas de
discussão; muitos alunos, além disso, acabam deixando-se seduzir por essa falsa
atividade intelectual e passam a considerar que a legítima, verdadeira e única
possibilidade de ação nas universidades é a que caracterizamos aqui como a trahison des clercs.
Mas, de maneira mais ampla, quem perde
com a traição dos intelectuais é toda a sociedade, que vê importantes recursos
desperdiçados. Não nos referimos aqui aos recursos materiais (salários, salas,
pessoal técnico-administrativo): consideramos as idéias e os valores que acabam
deixando de serem respeitados. A traição dos intelectuais produz uma espécie de
“inflação discursiva”: assim como na inflação monetária o dinheiro perde cada
vez mais o seu valor, em que cada vez mais moeda vale menos, nessa “inflação
discursiva” as palavras e os discursos cada vez valem menos. Associado a isso,
as atividades que os intelectuais teriam legitimamente para exercer no âmbito
político também perdem valor: a fiscalização do Estado, a manutenção da legitimidade
das instituições, a pesquisa sobre a dinâmica institucional e a sugestão de
alternativas etc. Aliás, exacerbando muito uma tendência própria às
universidades, a traição dos intelectuais transforma os “debates” em brigas de
torcida e os intelectuais que lideram a traição em chefes dessas torcidas:
nessas horas, os líderes das pedantocracias acadêmicas viram também juízes e
executores. Acima de tudo, os verdadeiros problemas sociais, políticos,
culturais, morais acabam sendo ocultados, rejeitados, ignorados ou
mistificados: com isso, suas soluções não são discutidas nem enfrentadas e o
grande público não é esclarecido. Como diria Comte, a característica central da política
moderna e da política republicana – a subordinação da política à moral – deixa
de ser possível.
Gustavo Biscaia de
Lacerda é Doutor em Sociologia Política (UFSC) e Sociólogo da UFPR.