“Tais estudos
deveriam refletir sobre a ingenuidade política do projeto interpretativista e
de alguns que o sucederam, inclusive os chamados cultural studies. Isto
é, a presença de um diálogo com o outro não garante o fim da ‘autoridade
etnográfica’. Entendo aqui este termo num duplo sentido: o primeiro é aquele,
já convencional, da perspectiva de uma análise da retórica e da relação entre
etnógrafo e seus leitores, como um estilo de escrita etnográfica. O segundo é o
que entende a autoridade etnográfica como fato sociológico tout court, tomando-a
como um momento da relação entre o etnógrafo (e sua sociedade) e os povos por
ele visitados. Em ambos os casos, se a etnografia realmente é uma relação
política, muitos de seus mistérios ainda devem ser desvendados. Ora, o diálogo
não exclui mas pressupõe a diferença. Ele implica reciprocidade, mas esta
relação, por sua vez, não pode ser associada à simples simetria: implica,
necessariamente, também assimetria [...]. A relação entre hóspede e anfitrião é
um exemplo de reciprocidade assimétrica ou hieráquica. O hóspede não pode, por
definição, sentir-se em casa, seja qual for o discurso do anfitrião,
independente do fato desse discurso apelar à simetria ou, ao contrário, assumir
relações de controle. Se diálogo e reciprocidade não excluem assimetria e
diferença, a superação da diferença só pode ser alcançada pela ausência de
diálogo. Mais ainda, se a prática antropológica é dialógica, não podemos supor a
priori o interesse do outro. Como diz Freire da Costa, ‘o outro é
imprevisível (...) não obstante todo cálculo racional que eu faça’ [...]. O
conteúdo das trocas que fundamentam o contato não é dado de antemão. Se o
trabalho de campo é um trabalho cooperativo, nada garante que aqueles que
recebem o antropólogo queiram, como este, ‘rejeitar distinções fundamentais’
entre nós e eles, ou ainda, que o próprio trabalho de campo não recrie essas
distinções. Essas distinções variam em cada caso; elas não devem ser reificadas.
Alguns [...] chegam a tomá-las como relações entre ‘espertos e leigos’ — o
antropólogo sendo o esperto, bem entendido.
[...]
Aqueles que reduzem a
antropologia a um registro de ‘múltiplas vozes’ não podem deixar de perceber
que ‘o diálogo não é feito pela justaposição de muitas vozes, mas de sua
interação’ [...]. Em qualquer situação etnográfica, esta interação implica
assimetrias entre essas vozes. No caso analisado por Benedict, uma delas tinha
a bomba atômica. A bomba aliada a uma certa ‘capacidade perspectiva’ definia um
nós, uma ‘civilização mecânica’ e ‘hiperativa’ [...]. Assim, ao contrário do
que sugere Todorov [...], não é apenas a ausência de perspectivismo que se liga
a uma história de guerras. Vê-se, porém, haver coerência e honestidade na posição
anti-antropológica (como a de Kevin Dwyer, mencionada acima), pois ela se funda
no reconhecimento da relação entre uma noção de alteridade específica e uma
história de guerras e crimes.
[...]
Em todo caso, fica evidente que, desde pelo menos 1950, quando a ‘Introdução à obra de Marcel Mauss’ foi escrita, Lévi-Strauss entendia de maneira profunda o fato de que a antropologia constrói seu objeto. Cinco anos depois, em Tristes trópicos, Lévi-Strauss tenta demonstrar mais detalhadamente como essa construção ocorreria. A ‘Introdução à obra de Marcel Mauss’ demonstra ainda que não há um momento final em que a dicotomia sujeito/objeto é totalmente superada. Mesmo assim, nós devemos sempre e continuamente buscar superá-la. É isto o que nos define como antropólogos. Não há nada de utópico nesse projeto. Podemos ser bem sucedidos, mas apenas momentaneamente, em micro encontros. Se algumas correntes da antropologia contemporânea pretendem não distinguir ‘o Ocidente do resto’, nem todas se revelam cientes da extrema ambição e das dificuldades, a meu ver insuperáveis, dessa proposta, assim como do simples fato de que há diferença entre superar e suprimir essa e outras dicotomias. A supressão dessa dicotomia traria trágicas conseqüências. Estaríamos então ignorando quem somos nós, antropólogos ocidentais. Por isso propus aqui o reconhecimento da civilização ocidental como uma civilização industrial e pós-industrial. Esta proposta não é nova. Ela havia sido feita por Lévi-Strauss, em Raça e História, baseada na crítica de Rousseau à hiper atividade da civilização mecânica, mas também na obra de Marx, entendida como uma monumental descrição dos aspectos distintivos dessa civilização. Não podemos assim negar a responsabilidade da antropologia em criticar ingênuas pretensões à universalidade. Vimos que é politicamente mais ingênuo desistir da busca de universais do que perseguir este objetivo”.