19 maio 2025

Marcos Lanna: relações culturais e assimetria

Revendo algumas anotações antigas, encontrei citações de um antropólogo brasileiro a respeito das relações culturais entre diferentes povos (ou diferentes "culturas"). Tais citações foram tiradas de um artigo publicado há já um certo tempo - ele é de 1999 -, mas elas valem a pena de qualquer maneira; embora o autor baseie-se principalmente em Claude Lévi-Strauss e, secundariamente, em Rousseau e Marx, o fato é que os trechos abaixo dialogam diretamente com o Positivismo - daí o nosso interesse.

Entre citações que devem, todas elas, ser objeto de reflexão, a frase final que selecionamos chamou-nos em particular a atenção: "Vimos que é politicamente mais ingênuo desistir da busca de universais do que perseguir este objetivo".

O texto é de Marcos P. D. Lanna, professor de Antropologia da Universidade Federal de São Carlos (em São Paulo). As referências são estas: "Sobre a comunicação entre diferentes antropologias", Revista de Antropologia, São Paulo, v. 42, n. 1-2, 1999. O original pode ser lido aqui: https://doi.org/10.1590/S0034-77011999000100013.

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“Tais estudos deveriam refletir sobre a ingenuidade política do projeto interpretativista e de alguns que o sucederam, inclusive os chamados cultural studies. Isto é, a presença de um diálogo com o outro não garante o fim da ‘autoridade etnográfica’. Entendo aqui este termo num duplo sentido: o primeiro é aquele, já convencional, da perspectiva de uma análise da retórica e da relação entre etnógrafo e seus leitores, como um estilo de escrita etnográfica. O segundo é o que entende a autoridade etnográfica como fato sociológico tout court, tomando-a como um momento da relação entre o etnógrafo (e sua sociedade) e os povos por ele visitados. Em ambos os casos, se a etnografia realmente é uma relação política, muitos de seus mistérios ainda devem ser desvendados. Ora, o diálogo não exclui mas pressupõe a diferença. Ele implica reciprocidade, mas esta relação, por sua vez, não pode ser associada à simples simetria: implica, necessariamente, também assimetria [...]. A relação entre hóspede e anfitrião é um exemplo de reciprocidade assimétrica ou hieráquica. O hóspede não pode, por definição, sentir-se em casa, seja qual for o discurso do anfitrião, independente do fato desse discurso apelar à simetria ou, ao contrário, assumir relações de controle. Se diálogo e reciprocidade não excluem assimetria e diferença, a superação da diferença só pode ser alcançada pela ausência de diálogo. Mais ainda, se a prática antropológica é dialógica, não podemos supor a priori o interesse do outro. Como diz Freire da Costa, ‘o outro é imprevisível (...) não obstante todo cálculo racional que eu faça’ [...]. O conteúdo das trocas que fundamentam o contato não é dado de antemão. Se o trabalho de campo é um trabalho cooperativo, nada garante que aqueles que recebem o antropólogo queiram, como este, ‘rejeitar distinções fundamentais’ entre nós e eles, ou ainda, que o próprio trabalho de campo não recrie essas distinções. Essas distinções variam em cada caso; elas não devem ser reificadas. Alguns [...] chegam a tomá-las como relações entre ‘espertos e leigos’ — o antropólogo sendo o esperto, bem entendido.

[...]

Aqueles que reduzem a antropologia a um registro de ‘múltiplas vozes’ não podem deixar de perceber que ‘o diálogo não é feito pela justaposição de muitas vozes, mas de sua interação’ [...]. Em qualquer situação etnográfica, esta interação implica assimetrias entre essas vozes. No caso analisado por Benedict, uma delas tinha a bomba atômica. A bomba aliada a uma certa ‘capacidade perspectiva’ definia um nós, uma ‘civilização mecânica’ e ‘hiperativa’ [...]. Assim, ao contrário do que sugere Todorov [...], não é apenas a ausência de perspectivismo que se liga a uma história de guerras. Vê-se, porém, haver coerência e honestidade na posição anti-antropológica (como a de Kevin Dwyer, mencionada acima), pois ela se funda no reconhecimento da relação entre uma noção de alteridade específica e uma história de guerras e crimes.

[...]

Em todo caso, fica evidente que, desde pelo menos 1950, quando a ‘Introdução à obra de Marcel Mauss’ foi escrita, Lévi-Strauss entendia de maneira profunda o fato de que a antropologia constrói seu objeto. Cinco anos depois, em Tristes trópicos, Lévi-Strauss tenta demonstrar mais detalhadamente como essa construção ocorreria. A ‘Introdução à obra de Marcel Mauss’ demonstra ainda que não há um momento final em que a dicotomia sujeito/objeto é totalmente superada. Mesmo assim, nós devemos sempre e continuamente buscar superá-la. É isto o que nos define como antropólogos. Não há nada de utópico nesse projeto. Podemos ser bem sucedidos, mas apenas momentaneamente, em micro encontros. Se algumas correntes da antropologia contemporânea pretendem não distinguir ‘o Ocidente do resto’, nem todas se revelam cientes da extrema ambição e das dificuldades, a meu ver insuperáveis, dessa proposta, assim como do simples fato de que há diferença entre superar e suprimir essa e outras dicotomias. A supressão dessa dicotomia traria trágicas conseqüências. Estaríamos então ignorando quem somos nós, antropólogos ocidentais. Por isso propus aqui o reconhecimento da civilização ocidental como uma civilização industrial e pós-industrial. Esta proposta não é nova. Ela havia sido feita por Lévi-Strauss, em Raça e História, baseada na crítica de Rousseau à hiper atividade da civilização mecânica, mas também na obra de Marx, entendida como uma monumental descrição dos aspectos distintivos dessa civilização. Não podemos assim negar a responsabilidade da antropologia em criticar ingênuas pretensões à universalidade. Vimos que é politicamente mais ingênuo desistir da busca de universais do que perseguir este objetivo”.

15 maio 2025

Novos documentos positivistas no Internet Archive

Graças à colaboração de simpatizantes e adeptos do Positivismo (respectivamente Fernando Pita e Gabriel de Henrique), há pouco tivemos acesso a documentos digitalizados que foram em seguida inseridos no portal Internet Archive.

O total de documentos que carregamos desta vez é de onze, dos quais dez são publicações da Igreja e Apostolado Positivista do Brasil (com autoria de Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes). Os temas abordados são os mais variados: papel das mulheres, respeito aos trabalhadores, direito de greve, direito de ociosidade (ou melhor, de mendicância), anarquismo, Benjamin Constant e muitos outros. Todos esses temas são abordados conforme a Religião da Humanidade, com vistas à organização social e política republicana, nos termos da sociocracia.

Já o o último documento (na verdade, o primeiro da relação) é um livro de Mecânica Geral, escrito por José Eulálio da Silva Oliveira para cursos oficiais conforme a filosofia das ciências de Augusto Comte.



A relação de arquivos e de endereços é a seguinte:

-        José Eulálio da Silva Oliveira - Mecânica geral (1895): disponível aqui: https://archive.org/details/jose-eulalio-da-silva-oliveira-mecanica-geral

-        N. 54: Miguel Lemos e Teixeira Mendes – Liberdade espiritual e organização do trabalho (1888): disponível aqui: https://archive.org/details/n.-54-liberdade-espiritual-e-organizacao-do-trabalho-2a-ed.-fp

-        N. 57: Miguel Lemos – Repressão legal da ociosidade (1888): disponível aqui: https://archive.org/details/n.-57-repressao-legal-da-ociosidade-2a-ed.-fp

-        N. 83: Teixeira Mendes – Liberdade de profissões e serviço doméstico (1890): disponível aqui: https://archive.org/details/n.-83-liberdade-de-profissoes-e-servico-domestico-2a-ed.-fp

-        N. 232: Teixeira Mendes – Greves, ordem republicana e organização social (1906): disponível aqui: https://archive.org/details/n.-232-greves-ordem-republicana-e-organizacao-social-2a-ed.-fp

-        N. 269: Teixeira Mendes – Mais uma vez greves, ordem republicana e organização social (1908): disponível aqui: https://archive.org/details/n.-269-mais-uma-vez-greves-ordem-republicana-e-reorganizacao-social-2a-ed.-fp

-        N. 383: Teixeira Mendes – Positivismo, questão social e anarquismo (1915): disponível aqui: https://archive.org/details/n.-383-positivismo-questao-social-e-anarquismo-2a-ed.-fp

-        N. 392: Teixeira Mendes – Respeito necessário aos descendentes de indígenas e africanos (1915): disponível aqui: https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-descendentes-dos-indigenas-e-africanos-n.-392

-        N. 412: Teixeira Mendes – Despotismo médico, dignidade humana e as mulheres (1917): disponível aqui: https://archive.org/details/n.-412-despotismo-medico-dignidade-e-mulheres-2a-ed.-fp

-        N. 417: Teixeira Mendes – República, proletariado e situação da mulher (1917): disponível aqui: https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-republica-proletariado-e-mulher-n.-417

-        N. 532: Teixeira Mendes – Celebração de Benjamin Constant (1944, originalmente 1917): disponível aqui: https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-celebracao-de-benjamin-constant-n.-532

14 maio 2025

Diálogo sobre visões no Positivismo


O texto abaixo corresponde a uma versão editada de um diálogo que ocorreu entre os dias 12 e 14 de maio de 2025, em um grupo do Whattsapp que trata do Positivismo e da Religião da Humanidade. Esse diálogo foi motivado por um participante do grupo, um jovem estudante interessado no Positivismo, que, em meio às conversas do grupo, teve uma dúvida sobre as visões religiosas. As respostas foram dadas inicialmente por Hernani Gomes da Costa e depois por Gustavo Biscaia de Lacerda.

O diálogo sofreu algumas edições – com dois objetivos principais: por um lado, adequar a conversa a uma versão publicada; por outro lado, preservar a privacidade do estudante. 


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Estudante ***

Amigos positivos, boa tarde a todos. Tenho mais um tema/pergunta que me parece muito interessante e que com certeza tem muito a ser dito.

Como interpretar positivamente visões religiosas (como as aparições de santos e espíritos, sonhos religiosos e demais experiências místicas)? Como o Positivismo iria lidar se, por exemplo, durante uma oração eu tivesse uma visão mística da Deusa Humanidade e de Comte? (Uma situação hipotética.)

 

Hernani

Bom dia, ***!

Um dos propósitos do culto positivo, e o seu resultado interior mais expressivo, consiste justamente nisso: reavivar, pela imaginação, os nossos mortos queridos até o ponto de eles apresentarem-se diante de nós com uma intensidade próxima àquela das nossas contemplações objetivas usuais.

A chamada visão mística só é mística segundo a interpretação teológica que dela se faz.

Para nós, positivistas, trata-se ao contrário de um fenômeno alucinatório, subjetivo, normal, desejável e mesmo frequente, se considerarmos os sonhos e as imagens hipnagógicas e hipnopômpicas que nos surgem no limiar da vigília ou do sono.

Frequentes na criação artística e mesmo científica, essas imagens subjetivas avivadas e exaltadas pelo exercício regular do culto, sobretudo íntimo, são para nós o equivalente subjetivo daquilo que os místicos creem vir de fora, segundo o espírito objetivista e absoluto de sua fé.

Essa deve ser, aliás, segundo Augusto Comte, a única diferença essencial entre as nossas visões e a dos místicos: nossos mortos chegam-nos de dentro, a partir de nós, por evocação, ao passo que para os místicos eles chegam de fora, por invocação.

Augusto Comte, por exemplo, via Clotilde de Vaux e dirigia-se a ela em suas orações e visões – que, aliás, ficavam, com a prática, cada vez mais vivas e nítidas sem que jamais fossem temidas ou confundidas com algo externo.

Nossos mortos habitam subjetivamente nossa imaginação, constituindo dessa forma realidades íntimas tão existentes a seu próprio modo quanto pode ser a mais bem constatada existência corpórea.

 

Estudante ***

Há algum material onde eu posso ler mais sobre essas experiências subjetivas no Positivismo? E onde possa ler mais sobre as visões de Comte?

 

Hernani

***, a parte do Catecismo positivista referente ao culto íntimo contém as indicações fundamentais sobre esse assunto (são a terceira e, principalmente, a quarta conferência do Catecismo).

 

Gustavo

***: bom dia. Sobre as visões de Comte, uma outra indicação é a belíssima obra de Teixeira Mendes, O ano sem par[1].

Complementando a resposta do Hernani: um outro aspecto que diferencia as visões positivistas das dos místicos é que nós reconhecemos que as visões são subjetivas (o que, como o Hernani indicou, não é ruim, mas algo a ser valorizado), ao passo que para os místicos as visões são objetivas; isso equivale aos termos usados pelo Hernani, respectivamente de visões “internas” e “externas”.

Além disso, é importante notar que todos nós, seja ao longo da vida, seja ao longo do dia, variamos nossas contemplações e nossas reflexões entre maior objetividade e maior subjetividade; é um fluxo constante e necessário, sem que possamos fixar-nos em apenas um polo. “Sem que possamos”: isso significa que não podemos, sob risco de loucura (seja a loucura propriamente dita, no caso do excesso de subjetividade, seja a idiotia, no caso de excesso de objetividade). Nessas variações, Augusto Comte recomendava que nos concentremos na imagem média, que deve ser entendida como a imagem normal; essa imagem normal, resultante da contemplação objetiva, deve ser preponderante sobre as imagens puramente subjetivas. Essa noção da imagem normal é a garantia da sanidade; mas, como comentamos antes, isso não equivale a negar o fluxo entre os polos objetivo e subjetivo nem a negar as visões positivas.

A noção de imagem normal está “codificada” na Filosofia Primeira[2] (que pode ser consultada no Catecismo positivista, na sexta conferência, dedicada ao dogma, na parte das ciências inferiores[3]); ela é explicada longamente e com o cuidado habitual por Teixeira Mendes no As últimas concepções de Augusto Comte[4].

Eis as leis da Filosofia Primeira que tratam do assunto:

SEGUNDO GRUPO, essencialmente subjetivo

1ª série: leis estáticas do entendimento

1ª Subordinar as construções subjetivas aos materiais objetivos (Aristóteles, Leibnitz, Kant) (IV)

2ª As imagens interiores são sempre menos vivas e menos nítidas que as impressões exteriores (V)

3ª A imagem normal deve ser preponderante sobre as que a agitação cerebral faz simultaneamente surgir (VI)





[1] As referências desse livro são estas: Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900.

Ele está disponível em PDF aqui: https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-o-ano-sem-par-portug./Raimundo%20Teixeira%20Mendes%20-%20O%20ano%20sem%20par%20%28Portug.%29/.

[2] O nome completo é “Quadro das quinze leis de filosofia primeira, ou princípios universais sobre os quais assenta o dogma positivo”.

[3] Fonte: Augusto Comte. 1934. Catecismo positivista ou sumária exposição da Religião da Humanidade. 4ª ed. Rio de Janeiro: Apostolado Positivista do Brasil, p. 479.

[4] As referências desse livro são estas: Raimundo Teixeira Mendes, As últimas concepções de Augusto Comte, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898. Ele está disponível em PDF, em duas partes, aqui:

- Parte 1: https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-ultimas-concepcoes-de-augusto-comte-i

- Parte 2: https://archive.org/details/raimundo-teixeira-mendes-ultimas-concepcoes-de-augusto-comte-ii

13 maio 2025

13 de Maio: Abolição da Escravidão; Toussaint Louverture e Zumbi

Augusto Comte, o fundador da Sociologia, do Positivismo e da Religião da Humanidade, incluiu Toussaint no Calendário Positivista concreto. Da mesma forma, os positivistas ortodoxos brasileiros incluíram Toussaint em sua campanha abolicionista desde 1875 e, após o 1888, também em suas celebrações anuais; na verdade, a memória de Toussaint foi mantida no Brasil graças aos positivistas.



12 maio 2025

Monitor Mercantil: "Carreiras típicas de Estado" e estabilidade

O jornal carioca Monitor Mercantil publicou no dia 12.5.2025 um artigo de minha autoria intitulado "'Carreiras típicas de Estado' e estabilidade". 

Reproduzimos abaixo o texto. A versão eletrônica está disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/carreiras-tipicas-de-estado-e-estabilidade/.

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“Carreiras típicas de Estado” e estabilidade 

Há algumas semanas fiz uma visita técnica à Biblioteca Pública do Paraná, em sua bela e imponente sede atual, inaugurada em 1954. Aprendi que tal sede foi construída para que a Biblioteca seja um centro cultural – o que de fato é, com grande competência –; mas, para o que nos interessa aqui, também descobri que o seu quadro técnico permanente, desde os anos 1980-1990, foi reduzido para cerca de 20% atualmente. Esse dado estarrecedor levou-me às reflexões abaixo.

Nos anos 1990, o então Ministro da Administração e Reforma do Estado, Luís Carlos Bresser Pereira, em seu projeto de reforma do Estado propôs a noção de “carreiras típicas de Estado”. Em dezenas de publicações, ele jamais indicou quais seriam de fato essas carreiras; entre percalços, sua proposta de reforma foi implementada pela metade, mas no final das contas a expressão “carreiras típicas de Estado” deitou raízes na administração pública, expandindo-se do nível federal para, principalmente, os níveis estadual e municipal.

Abstratamente, a concepção de “carreiras típicas de Estado” até faz sentido: são carreiras de serviços que só se podem realizar pelo Estado; assim, essas carreiras precisam ter servidores públicos com estabilidade (ou seja, enquadrarem-se no Regime Jurídico Único, o RJU, como “estatutários”). O conceito subjacente a isso é que as carreiras “não típicas” não precisam ter estabilidade, podendo ser celetistas (enquadrados na Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT); na verdade, as carreiras não típicas não precisam nem se constituir em “carreiras”. A diferença de enquadramento jurídico é profunda: a estabilidade dos estatutários é obtida após três anos de serviço efetivo, durante os quais são continuamente avaliados (e, diga-se de passagem, também são avaliados das mais diferentes maneiras após esse prazo); essa estabilidade também os torna impermeáveis às pressões políticas e, dessa forma, eles podem desenvolver de fato carreiras profissionais, elaboradas considerando o longo prazo, paralelamente a projetos públicos de longo prazo. Não há dúvida de que a estabilidade também beneficia o aumento dos salários.

Em contraposição, os servidores celetistas podem ser demitidos a qualquer momento (ad nutum). Isso impede todos os benefícios trazidos pela estabilidade: os servidores não têm perspectivas efetivas de longo prazo, não consideram a possibilidade de carreiras e, portanto, não incorporam em suas práticas profissionais a realização de projetos públicos de longo prazo. E, ao contrário do que o senso comum privatista argumenta, a demissão ad nutum é usada como arma contra os trabalhadores, a fim de manter os salários mais baixos.

Além disso, embora Bresser tenha sido ambíguo a respeito, falando em reforma “republicana”, os defensores da substituição dos estatutários pelos celetistas não por acaso falam em seguir os parâmetros da “iniciativa privada”. Ao fazerem-no, repetem o mito da eficiência privada – esquecendo-se das sucessivas mancadas da Enel em São Paulo, da Light no Rio de Janeiro, da Vale em Minas Gerais e da Oi no país inteiro, além de dezenas de outros exemplos cotidianos –, buscam sujeitar os servidores às conveniências políticas de plantão, desmobilizar os trabalhadores, baixar os salários e impedir projetos públicos de longo prazo.

Esses raciocínios são repetidos por políticos de direita (não por acaso, é o programa do novo partido do Centrão, o “União Progressista”) e mesmo por institutos de pesquisa que se dizem “republicanos”: ambos compartilham não saberem o que é o republicanismo nem o que é o bem comum.

Dito isso, voltemos a Bresser Pereira e à sua proposta. Como Bresser jamais definiu quais seriam as carreiras típicas de Estado, todo governo decide qual é a carreira típica. Há algumas funções, especialmente no nível federal, que por definição só podem ser executadas pelo Estado: militares, polícias federais, Casa da Moeda, Tesouro Nacional, Receita Federal, diplomatas. Não são muitas carreiras e, no fim das contas, não é muita gente. (Entretanto, eles, sim, fazem questão de terem salários e privilégios nababescos.)

O problema é que o grosso do serviço público prestado pelo Estado para a sociedade – isto é, pelo poder Executivo civil, que é de fato o governo e que se sujeita a controles públicos efetivos, ao contrário do poder Judiciário, do Ministério Público, do poder Legislativo e dos militares – não se enquadra nas “carreiras típicas de Estado”. São médicos, enfermeiros, assistentes sociais, sociólogos, museólogos, bibliotecários, economistas, pesquisadores, agrônomos, arquitetos, engenheiros, físicos, químicos, historiadores e até professores e dezenas de outras profissões de nível superior, além de uma gama gigantesca de servidores enquadrados em denominações mais genéricas e em cargos de nível médio e fundamental.

É essa quantidade enorme de servidores que presta de verdade os serviços para a população. Todos esses servidores, que respondem pela grande maioria dos serviços públicos, entram na categoria de “carreiras não típicas de Estado”; ou seja, cada vez mais eles podem ser passíveis de demissão com facilidade. Ou melhor, cada vez mais eles podem ser e são substituídos por celetistas e, ainda mais (e pior), por estagiários.

A substituição dos servidores permanentes, estatutários, por servidores não permanentes, celetistas, ocorre com mais facilidade nos níveis estadual e municipal que no federal: é o que se vê no dramático exemplo da Biblioteca Pública do Paraná. Mas a substituição dos estatutários por celetistas e estagiários não se dá pelos procedimentos ultraliberais, por decreto, como proposto durante os anos 1990 e novamente durante os anos do fascista; os meios adotados são mais insidiosos: simplesmente não há a reposição do pessoal que se aposenta. Em nome da mítica eficiência do setor privado – eficiência que busca o lucro e não o bem público – joga-se fora todo o conhecimento técnico acumulado pelos servidores com estabilidade.

O bem público é mantido e gerido pelo Estado com seus servidores, de carreiras “típicas” ou “não típicas”. Essa divisão, embora abstratamente pareça sensata, na prática serviu – e serve – apenas como instrumento para degradar o serviço público e piorar a qualidade dos serviços prestados. No dia a dia, quem serve a população na ponta, no nível da rua, são as carreiras “não típicas”; são esses servidores que justificam a existência e os custos do Estado.

Ora, se a noção de “carreiras típicas do Estado” não se sustenta e serve apenas para degradar os serviços públicos, parece claro que já passou da hora de abandonarmo-la e de pararmos de repetir essa lenga-lenga criminosa e antirrepublicana.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é Sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.


11 maio 2025

11 de Maio - fundação da Igreja Positivista do Brasil



Dia das mães (2025)


Diálogo sobre o sincretismo no Positivismo 2

Dando continuidade à postagem do dia 7 de maio (“Diálogo sobre o sincretismo no Positivismo 1“), apresentamos uma outra resposta sobre o mesmo tema, de nossa autoria e de caráter mais filosófico-intelectual e dada no dia 11.5.2025. 

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Estudante

Uma pergunta, que pode parecer bobagem. Nas religiões afro-brasileiras é comum o sincretismo dos santos católicos com os orixás (São Jorge = Ogum etc.) por questões históricas. No Positivismo em algum momento houve o sincretismo da Humanidade com a Virgem Maria? Os positivistas podem associar os dois símbolos (Humanidade e Maria) nos cultos? Seja em particular, seja em público – por exemplo, fazendo um altar positivista com a imagem de Maria.

Gustavo

Caro ***: tudo bem? Bom dia.

A sua pergunta dá o que pensar. Eu estava redigindo uma resposta mas, à medida que escrevia, dava-me conta de outros aspectos, em particular em termos do significado do “sincretismo”.

Veja só: o sincretismo significa a mistura de cultos e dogmas distantes, na verdade incompatíveis entre si: os cultos afro-brasileiros, por exemplo, misturam cultos fetichistas e politeístas (de origem africana e mesmo indígena) com cultos monoteístas (o mais das vezes católico, mas também islâmicos). No final das contas, o monoteísmo é absorvido pelo politeísmo; de outra maneira, não seria possível essa incorporação; além disso, para empregar a expressão que você usou, trata-se mesmo de uma “ressignificação” do monoteísmo nos termos do politeísmo.

A incompatibilidade dos dogmas – na verdade, trata-se disso, mais que de incompatibilidade dos cultos –, no caso dos cultos afro-brasileiros, resolve-se pela absorção dos monoteísmos pelos politeísmos. Isso é próprio à natureza dos politeísmos, em que, no sincretismo, as grandes divindades monoteístas simplesmente passam a integrar o panteão; já os monoteísmos até aceitam integrar a si os politeísmos, na forma de seres inferiores à deidade principal (anjos, dervixes, demônios e até santos).

Insisto na noção de sincretismo como incorporação de um dogma a outro porque, no fundo, o problema consiste muito mais em problemas de dogma que de culto; trata-se de incorporar a lógica de um sistema à do outro, embora sejam práticas cultuais. Mas enquanto na teologia os dogmas submetem-se a partir da modificação de sua própria lógica, no Positivismo nós aplicamos o relativismo e, ao mesmo tempo, (1) positivamos o que há de positivável nos demais dogmas e, de qualquer maneira, (2) reconhecemos a origem histórica (no caso, teológica) desses demais dogmas. Assim, se for o caso de compartilharmos um determinado culto (e é claro que nem todos os cultos podem nem devem ser compartilhados), ele será positivado e sua origem será reconhecida e valorizada. O exemplo dado antes pelo Hernani, de Prometeu, é realmente um ótimo exemplo, assim como os demais tipos mitológicos (ou míticos) do mês de Moisés, incluindo aí o próprio Moisés.

O relativismo positivista permite, então, a incorporação de todos os cultos (o que, insisto, não significa a incorporação da totalidade de todos os cultos), mas sempre com a condição de sua positivação, isto é, de sua relativização. Esse procedimento, que é o sincretismo em ação – pelo menos, uma concepção positiva do sincretismo –, é a única forma possível de ao mesmo tempo respeitar todos os cultos e de incorporá-los à vida religiosa da Humanidade, sem injustiça para os cultos anteriores e sem incoerência para conosco. Sendo mais direto e mais claro: o sincretismo positivo é a única forma de praticar um verdadeiro universalismo religioso; todas as outras formas incorrem nos defeitos moral, intelectual e prático (1) de exclusão, ou (2) de deturpação, ou (3) de incoerência (ou uma combinação deles).

Se minha pretensão é aceitável, estes meus comentários são uma formulação mais intelectual e filosófica e, espero, equivalente, das reflexões mais cultuais e religiosas feitas anteriormente pelo Hernani.

07 maio 2025

Diálogo sobre o sincretismo no Positivismo 1

 


O texto abaixo corresponde a uma versão editada de um diálogo que ocorreu no dia 6 de maio de 2025, em um grupo do Whattsapp que trata do Positivismo e da Religião da Humanidade. Esse diálogo foi motivado por um participante do grupo, um jovem estudante interessado no Positivismo, que, em meio às conversas do grupo, teve uma dúvida sobre o sincretismo religioso. As respostas foram dadas por Hernani Gomes da Costa. Esse diálogo foi tão esclarecedor que julgamos valer a pena publicá-lo.

O diálogo foi editado com dois objetivos principais: por um lado, adequar a conversa a uma versão publicada; por outro lado, preservar a privacidade do estudante.

 

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Estudante

Uma pergunta, que pode parecer bobagem. Nas religiões afro-brasileiras é comum o sincretismo dos santos católicos com os orixás (São Jorge = Ogum etc.) por questões históricas. No Positivismo em algum momento houve o sincretismo da Humanidade com a Virgem Maria? Os positivistas podem associar os dois símbolos (Humanidade e Maria) nos cultos? Seja em particular, seja em público – por exemplo, fazendo um altar positivista com a imagem de Maria.

 

Hernani

Excelente pergunta! O Positivismo procura antes de tudo compreender qual foi o processo de construção dos símbolos, bem como as razões pelas quais eles se tornam populares durante um tempo e são em seguida substituídos por outros.

Nesse sentido, interpretamos a Virgem Mãe como representando o ideal humano que consiste no máximo de pureza e de ternura juntos. A pureza significa a compressão do egoísmo e é representada pela idéia da Virgem; a ternura é a expansão do altruísmo, representada, no caso, pela idéia da mãe. A necessidade sociológica e moral que criou esse símbolo obedeceu inconscientemente a uma tentativa de conjugar a pureza e a ternura numa só imagem.

O sincretismo operou-se em todas as religiões de modo inconsciente e espontâneo, mediante as associações formadas entre as idéias de vários deuses que se assemelhavam em seus papéis e personalidade. A proposta do Positivismo é a de tornar esse processo sincrético algo consciente e deliberado, de modo a assim sistematizá-lo.

Augusto Comte manifestou o desejo de que as futuras representações de imagens da Humanidade tivessem os traços de Clotilde de Vaux. Mas ele também elegeu uma imagem católica de sua preferência.

Tudo quanto importa no caso, portanto, é que não haja confusão entre as crenças. Qualquer símbolo que estimule o amor pode integrar o altar. Seja de que religião for. Mas esse culto se tornará de fato sobrenatural se os símbolos que adotarmos ainda se referirem às crenças originais correspondentes aos mitos, tais como eles foram a princípio imaginados.

 

Estudante

Compreendo. Então o sincretismo dentro do positivismo pode ser benéfico se não misturamos os significados. É necessário ressignificar o símbolo.

 

Hernani

Sim! O símbolo pode ser ressignificado de pelo menos duas formas. Mantendo sua identidade original e mudando seu modo de sua existência; de objetiva para subjetiva. Ou então cultuando-o segundo uma interpretação nova. Vejamos um exemplo. Podemos historicamente cultuar Prometeu na qualidade de uma criação mítica da Humanidade que veio a compor certa religião. Nesse caso mantivemos o conteúdo original da idéia de Prometeu, e apenas mudamos sua existência, de objetiva para subjetiva. Mas podemos também ver Prometeu como símbolo que representa o primeiro ser humano a obter fogo através de fricção. Nesse último caso o símbolo de Prometeu sofreu uma mudança de significado, passando a representar uma outra idéia. (Citei Prometeu pelo fato de ele representar o primeiro dia do ano no Calendário Positivista concreto).

01 maio 2025

1º de Maio: Dia do Trabalhador

Homenagem da Igreja Positivista Virtual ao Proletariado - providência geral da Humanidade - no Dia do Trabalhador.