30 maio 2024

Instintos e genética não são fatalidades

Instintos e genética não são fatalidades

Os trechos abaixo são particularmente impressionantes. Escritos originalmente em 1838, no volume III do Sistema de filosofia positiva, eles integram o capítulo dedicado ao exame das investigações sobre o cérebro, especificamente sobre as funções e os órgãos do cérebro[1]. Naquele momento do desenvolvimento da carreira filosófica de Augusto Comte, esse exame constituía a última etapa lógica e teórica no exame das ciências antes de avançar para a fundação direta e imediata da Sociologia (que, por sua vez, realizar-se-ia nos três volumes seguintes da Filosofia positiva, da Lição 46 à Lição 60).

Nesses dois trechos, após passar em revista as concepções teológicas e metafísicas sobre a natureza humana, Augusto Comte examina as investigações mais positivas à sua época e que, em sua opinião, eram as de Joseph Gall e seu assistente e colaborador Johann Spurtzheim; esse exame, também vale notar, era elogioso, o que não equivale a dizer “desprovido de críticas” e/ou de retificações mais ou menos importantes.

Os teológicos e os metafísicos partiam da noção de “alma”, que seria uma graça concedida pela divindade para animar os corpos dos seres humanos e dotá-los de inteligência. Com isso, eles consideravam que a inteligência seria um atributo exclusivo do ser humano, da mesma forma que o ser humano teria uma sempre e necessária unidade subjetiva, um núcleo duro e profundo de si mesmo irredutível de um ser humano para outro. Daí se seguia, como se segue, que haveria uma divisão radical, profunda e intransponível entre o ser humano e os “animais”; que o ser humano seria um ser principalmente raciocinante; que cada ser humano é um mundo radicalmente à parte dos demais. Essas concepções, embora tenham sido criticadas pelas mais elementares pesquisas da “neurociência” e da filosofia desde o final do século XVIII, ainda hoje impregnam os debates e as reflexões científicos, filosóficos, morais, políticos – e até midiáticos (como se vê nos filmes e seriados estadunidenses).

Além dessas concepções evidentemente de origem teológica, Augusto Comte também comenta concepções mais claramente metafísicas, que chamaríamos hoje em dia de “mecanicistas”, ou “fatalistas”, ou – como são popularmente denominadas, mesmo no âmbito acadêmico – “deterministas”. Essas outras concepções postulam que os animais (e, às vezes, o ser humano) possuem “instintos” e que esses instintos conduzem sempre, necessariamente, a comportamentos específicos automáticos. Isso corresponde às noções de que somente o ser humano é “racional” (ou seja, que somente ele controlaria seu comportamento) e que, portanto, os animais agem sempre sem nenhum autocontrole.

A concepção mecanicista-fatalista do instinto, quando transposta para o ser humano, conduz igualmente à noção de que o ser humano, como seria um “animal”, seria incapaz de controlar-se, de aprender, de modificar seu comportamento conforme as circunstâncias, as conveniências, os valores. A esse respeito, o comentário específico de Augusto Comte, nesse caso, consiste em uma nota de rodapé em sua apreciação da obra de Joseph Gall e de Johann Spurtzheim, valorizando uma retificação, ou uma correção, feita por este último às concepções do primeiro: a existência de órgãos específicos não conduz a comportamentos específicos (além de que, de qualquer maneira, não há órgãos para o roubo, para o assassinato etc.).

Novamente: esses comentários foram feitos há quase 200 anos, em 1838, como preparatórios para a Sociologia. Talvez pareçam meras curiosidades filosóficas – afinal, sendo tão antigos, não teriam valor “científico” –; talvez pareçam curiosidades históricas – afinal, sendo tão antigos, seriam “peças de museu”. De fato, muito da mentalidade contemporânea aponta para essas maneiras de ver, tanto a partir da ciência quanto do frenesi tecnológico atual, ambos cultores de um degradante “presentismo”, de um culto ao presente, ao que é “atual” (e que, por ser “atual”, seria “moderno”, “melhor”).

Mas, deixando de lado esses preconceitos presentistas, academicistas, cientificistas e tecnologistas, o fato é que esses comentários são profundamente, são radicalmente atuais. Em apenas dois parágrafos, a partir das pesquisas científicas anteriores (não somente biológicos e/ou de “neurociência”, mas do conjunto da produção científica) e de sua reflexão autônoma, Augusto Comte faz o seguinte:

1)      Define (e reafirma) o que é instinto e inteligência

2)      Define (e reafirma) que os instintos e a inteligência são comuns aos seres humanos e aos animais

a.       Define (e reafirma) que, portanto, os animais também são inteligentes e que, assim, não faz nenhum sentido estabelecer uma divisão radical, profunda e intransponível entre seres humanos e animais

3)      Define (e reafirma) que a inteligência é um atributo relacional, dos animais em relação ao ambiente que os cerca

a.       Define (e reafirma) que a inteligência – e a razão – é a capacidade de mudar o comportamento, conforme as circunstâncias

4)      Define (e reafirma) que os instintos são apenas disposições inatas que buscam alguma satisfação

a.       Define (e reafirma), portanto, que os instintos não correspondem a fatalismos comportamentais

5)      Define (e reafirma) que a presença de determinados órgãos não implica necessariamente determinados comportamentos

a.       Define (e reafirma) que os comportamentos concretos dependem das disposições internas aos seres vivos (o que inclui, evidentemente, a inteligência), e das circunstâncias ambientais (ou seja, do “contexto”), incluindo-se aí também os variados processos de educação

Todos esses aspectos têm que afirmados e reafirmados constantemente; eles têm influências profundas sobre as concepções sobre os animais e sobre o ser humano (e este em termos coletivos e individuais).

Por exemplo: a Biologia, a Sociologia e a Moral (chamada contemporaneamente de “Psicologia”), a partir das concepções teológico-metafísicas criticadas em 1838 por Augusto Comte, hoje em dia mantêm acirradas polêmicas sobre as relações entre a “natureza” e a “cultura”, discutindo se a herança genética é ou não um fatalismo, ou seja a educação serve ou não para mudar as disposições genéticas, ou se a educação (no caso do ser humano) não tem que se preocupar em absoluto com as disposições genéticas.

Para facilitar a identificação e o entendimento das passagens citadas, incluí pequenos títulos descritivos antes de cada uma delas.

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Definições de “instintos”, “inteligência” e “razão”

“Conquanto, pelos motivos precedentemente indicados, as diversas escolas psicológicas ou ideológicas tenham estado de acordo em descurar essencialmente o estudo intelectual e moral dos animais, felizmente abandonado, desde a origem imediata da filosofia moderna, aos puros naturalistas, importa assinalar aqui a influência funesta que as concepções metafísicas exerceram todavia também, a este respeito, de uma maneira indireta, pela sua vaga e obscura distinção entre a inteligência e o instinto, estabelecendo, da natureza humana para a natureza animal, uma ideal separação, da qual os zoologistas não se libertaram ainda suficientemente, mesmo hoje. A palavra instinto não tem, em si mesma, outra acepção fundamental senão de designar todo impulso espontâneo para uma direção determinada, independentemente de alguma influência estranha. Nesse sentido primitivo, tal termo aplica-se evidentemente à atividade peculiar e direta de qualquer faculdade, tanto das faculdades intelectuais quanto das faculdades afetivas; ele não contrasta então de modo algum com o nome de inteligência, como se vê tantas vezes quando se fala daqueles que, sem nenhuma educação, manifestam um talento pronunciado para a musica, para a pintura, para as matemáticas etc. Sob esse ponto de vista, há certamente instinto, ou antes instintos, tanto ou mesmo mais no homem do que nos animais. Caracterizando, por outro lado, a inteligência mediante a aptidão de modificar a sua conduta conforme as circunstância de cada caso, o que constitui, com efeito, o principal atributo prático da razão propriamente dita, é ainda evidente que, a esse respeito, como pelo motivo precedente, não há lugar de estabelecer realmente, entre a humanidade e a animalidade, nenhuma outra diferença essencial senão a do grau mais ou menos pronunciado de que é suscetível o desenvolvimento de uma faculdade, necessariamente comum, pela sua natureza, a toda vida animal, e sem a qual não se pode mesmo conceber a existência desta”.

(Augusto Comte, Sistema de filosofia positiva, v. 3, lição 45, apud Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 5-6[2]; itálicos do próprio Augusto Comte.)

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Os instintos e a presença de órgãos não implicam fatalmente comportamentos

 “Aqueles dos meus leitores que não considerarem esta teoria senão na sua fonte mais pura, isto é, na grande obra de Gall, não devem esquecer um indispensável aperfeiçoamento geral introduzido por Spurtzheim, conquanto, penetrando-se o fundo do pensamento de Gall, se deva achar talvez que tal progresso concerne antes as simples denominações do que as próprias idéias. Seja como for, esse melhoramento consiste em reconhecer que as diversas faculdades fundamentais não conduzem a atos, e sobretudo a modos e graus de ação, necessariamente determinados, como Gall parecia estabelecer a princípio; mas que os atos efetivos dependem, em geral, da associação de certas faculdades, e do conjunto das circunstâncias correspondentes. É assim que não pode existir, propriamente falando, nenhum órgão do roubo, pois que tal ato não é senão uma aberração do sentimento da propriedade, quando o seu exagero não é suficientemente contido pela moral e pela reflexão; o mesmo dá-se com o pretenso órgão do assassinato, comparado com o instinto geral da destruição. Igual consideração aplica-se, com mais forte razão, às faculdades intelectuais, que, por si mesmas, só determinam tendências, e de modo algum resultados acabados”.

(Augusto Comte, Sistema de filosofia positiva, v. 3, lição 45, apud Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 9, nota de rodapé[3].)



[1] Deve-se ter claro, então, que o cérebro é um órgão composto, ou seja, na verdade ele é um verdadeiro aparelho, composto por uma pluralidade de órgãos, cada um responsável por diferentes funções. O capítulo em questão é o último capítulo do v. III da Filosofia positiva, ou seja, é a Lição 45.

[2] Nesta versão eletrônica – facsimilar da primeira edição do livro –, pode-se ler a passagem acima nas páginas 783 a 785: https://archive.org/details/bub_gb_i-cx5K6kWVMC/page/783/mode/2up?view=theater.

[3] Pode-se ler a passagem acima nas páginas 796 e 797 desta versão eletrônica: https://archive.org/details/bub_gb_i-cx5K6kWVMC/page/797/mode/2up?view=theater.

Da divindade à Humanidade

No dia 9 de São Paulo de 170 (28.5.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando seguimento à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

Na parte do sermão tratei do culto à Humanidade e da passagem da noção e do culto à divindade monoteísta para a noção e o culto à Humanidade.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/3Laee) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/XaHXi).

O sermão começou em 1 h 03 min 02 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

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 Da divindade à Humanidade

-        O sermão de hoje foi sugerido por fontes variadas: textos em periódicos nacionais, dúvidas de neófitos

o   O que queremos comentar são alguns aspectos da passagem da divindade à Humanidade, em termos intelectuais e morais

-        Nos manuais de Filosofia, de História e de Sociologia, as referências contemporâneas a Augusto Comte costumam ser superficiais e limitadas a observações mecânicas e desconexas sobre a lei dos três estados

o   O enunciado final da lei intelectual dos três estado é o seguinte: “Cada entendimento oferece a sucessão dos três estados, fictício, abstrato e positivo, em relação às nossas concepções quaisquer, mas com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes (VII)”

§  Essa lei é a sétima da Filosofia Primeira, integrando o “Segundo grupo, essencialmente subjetivo” e, então, a “2ª série: leis dinâmicas do entendimento”

-        Além disso, em uma carta ao dr. Audiffrent, de 15 de Homero de 69 (12.2.1857), Augusto Comte afirma que a positividade não se limita nem se reduz à mera ciência; além disso, em virtude de seu caráter analítico e, daí, da falta de vista de gerais, bem como dos vícios próprios ao academicismo, a ciência pode descambar para um absolutismo: o resultado disso tudo é que a verdadeira positividade constitui-se em um quarto estágio, que seria o da positividade sintética, necessariamente filosófica

o   Na minha opinião, essa observação de Augusto Comte resume-se na idéia de que devemos passar das concepções absolutas (e egoístas) para as relativas (e altruístas)

§  Assim, é necessário passar das concepções e do culto absolutos, à divindade, para a concepção e o culto relativos, à Humanidade

-        Passar da divindade à Humanidade é então uma questão inicialmente intelectual que tem conseqüências morais muito claras, muito grandes e muito imediatas

o   Seguindo o espírito metafísico da nossa época, quando alguém se emancipa intelectualmente, ou seja, quando alguém deixa de lado as ficções teológicas, o impulso básico é o de adotar um comportamento destruidor e negador

§  Isso significa, na prática, que a tendência, após a emancipação, é desprezar o culto e adotar uma perspectiva individualista, “isolacionista” e intelectualista

o   Mas é necessário agir contra essa tendência e assumir com clareza, sinceridade e altruísmo o culto à Humanidade

§  O culto à Humanidade consiste em amarmos essa figura bela e carinhosa, que nos conforta e prepara para a vida, bem como nos prepara para a transformação para a subjetividade

§  O culto à Humanidade, assim como, de modo geral, as orações positivistas, não é nunca interesseiro: buscamos reconhecer e agradecer àqueles (e àquelas!) que nos são e que nos foram importantes, por mais próximas ou mais distantes que estejam de nós; esse reconhecimento é a demonstração de gratidão e um esforço para ficarmos no nível dessas pessoas e da Humanidade

·         “Aqueles que estão mais próximos de nós”: pai, mãe, irmãos, irmãs, filhos, filhas, sobrinhos, sobrinhas, netos, netas, amigos

·          “Aqueles que estão mais distantes de nós”: desde pessoas que moram longe de nós até pessoas que morreram muito tempo atrás (Aristóteles, César, São Paulo, Dante – Augusto Comte, Clotilde, Miguel Lemos e Teixeira Mendes!) até aqueles que ainda não nasceram

·         Sem deixar de mencionar, é claro, os animais domésticos

-        Para dar continuidade à exposição, farei uma digressão baseada em um texto jornalístico – um texto em si degradante, mas que pode ajudar-nos a entender o culto à Humanidade

o   Em 8 de Moisés de 170 (8.1.2024), a Folha de S. Paulo publicou um artigo desprezível de um dito filósofo, o sr. Luís Felipe Pondé, intitulado “A ciência evoluiu a humanidade, mas você se reconhece nessa crença?”

§  O texto apresenta a idéia de que o progresso da ciência ajudou a humanidade e que, com isso e ao mesmo tempo, serviu para a emancipação mental, contra a teologia

§  O texto conclui afirmando que as mudanças indicadas acima tiveram desenvolvimento no Positivismo e na Religião da Humanidade – sendo que esta última consiste em “masturbação filosófica” (Pondé)

o   O sr. Luís Felipe Pondé esposa concepções teológicas agostinianas, preferindo a irracionalidade da fé absoluta e um pessimismo sobre o ser humano à racionalidade e ao otimismo humanista; ao mesmo tempo, seu comportamento indica que ele tem vergonha de assumir essas concepções, preferindo manifestar um desprezo generalizado pelos progressos do ser humano e uma atitude cínica a respeito dos seus problemas

§  O fato de que tanto o governo do estado de São Paulo, por meio da TV Cultura, quanto a Folha de S. Paulo dêem espaço privilegiado (e pago) para alguém como o sr. Luís Felipe Pondé dá a medida da degradação moral e intelectual do país – o que confirma um pouco o comportamento desprezível desse senhor, embora ele jamais vá assumir que é um representante perfeito do que ele mesmo despreza

§  Vale lembrar que o desprezo cínico pelos problemas humanos e a concepção, igualmente cínica, de que o ser humano é sempre ruim, é uma postura moral, intelectual e prática muito cômoda, em que a pessoa que a adota não ajuda nada nem ninguém, exime-se antecipadamente de qualquer problema e de qualquer responsabilidade mas goza do superficial prestígio da “criticidade”

o   A vulgar observação de Pondé repete, sob uma forma extremamente degradante, uma antiga crítica dos católicos (e dos monoteístas) ao culto da Humanidade: a de que o adorador celebra a si mesmo

§  Isso é falso desde o início, seja em relação à Humanidade, seja em relação à teologia

o   Augusto Comte foi sempre muito cuidadoso com essa concepção e elaborou tanto o dogma quanto o culto (e o regime) da Humanidade de modo que o adorador não se adore a si mesmo

§  Em primeiro lugar, temos que ter clareza desde o início de que, de fato há, sim, uma identidade de natureza entre a Humanidade e cada um dos seres humanos

·         Na seqüência veremos em que consiste essa “identidade de natureza”

§  Por outro lado, a Humanidade é um ser coletivo e é realmente superior a cada ser humano individual

§  A concepção da Humanidade é abstrata, mas sua atuação sobre nós é bastante concreta: ela existe desde muito tempo antes de nós e continuará existindo muito tempo depois; mesmo enquanto somos vivos, o conjunto dos seres humanos ainda é (cada vez) maior que nós mesmos

§  A concepção de Humanidade é a do “conjunto dos seres humanos convergentes, passados, futuros e presentes”

·         O aspecto da convergência já retira várias pessoas desse conjunto

·         O aspecto do passado e do futuro evidencia que se trata de uma concepção subjetiva e que o elemento objetivo é apenas um liame passageiro entre as duas massas subjetivas

·         Sempre é importante lembrar que também na Humanidade estão os animais úteis e/ou domésticos, que nos fazem companhia e que com freqüência se sacrificam em benefício do ser humano

§  De qualquer maneira, em relação aos seres humanos vivos, em relação à parte do “presente”, cada um não é integrante da Humanidade: enquanto vivemos objetivamente somos apenas servidores da Humanidade

·         A Humanidade não é todo-poderosa nem é unitária; ela precisa dos seres humanos vivos para manter-se e desenvolver-se; em outras palavras, ela precisa de nós

§  Como um conjunto, a Humanidade é um ser à parte de nós: o “viver para os outros” torna-se plenamente coerente nesse sentido, pois vivemos para melhorar as condições da Humanidade, isto é, de um ser que depende de nós mas que não somos nós

§  Somente após a transformação (isto é, após nossas mortes) é que poderemos, subjetivamente, integrar a Humanidade

·         Essa integração dá-se por meio do sacramento da incorporação: nesse processo, deixamos de ser servidores da Humanidade para passarmos a ser integrantes da Humanidade

o   A incorporação ocorre sete anos após a transformação e baseia-se em um exame cuidadoso da vida do falecido

·         A incorporação à Humanidade é uma recompensa adicional para cada digno servidor da Humanidade e sinal de que cada servidor foi, realmente, digno; mas a dedicação contínua como servidor (vivo) da Humanidade é uma satisfação e um objetivo por si só, além de indicar a dignidade de cada um e estabelecer se cada um merece ou não a incorporação à Humanidade

·         Em outras palavras, a incorporação à Humanidade é uma justa recompensa a vida digna e bem vivida, que, todavia, está bem longe de esgotar todo o valor de um ser humano individual

§  A identidade de natureza que indicamos antes, de cada ser humano individual com a Humanidade, esclarece-se plenamente agora: essa natureza idêntica é em relação às três partes do ser humano (afetividade, inteligência e atividade prática); mas isso não equivale a dizer que a Humanidade é igual a cada ser humano individual

·         Novamente: a Humanidade é maior, é anterior e posterior a nós e precisa de cada um de nós para existir, manter-se e desenvolver-se

o   A crítica teológica (“o adorador que adora a si mesmo”) só seria aceitável se a perspectiva individualista e egoísta, própria à teologia, mantivesse-se no Positivismo

§  Na teologia há indivíduos que se relacionam diretamente com a divindade e que se preocupam com o destino de suas próprias almas; o cuidado com os outros é mais ou menos acidental em relação à salvação da própria alma

·         A salvação da própria alma, além disso, é um capricho da divindade teológica, ou o resultado de uma barganha, ou o resultado de uma chantagem

§  Em total oposição à teologia (monoteísta), na Religião da Humanidade há seres humanos que atuam sempre em benefício dos demais e que vêem (isto é, que sentem e entendem) que atuar em benefício dos demais é uma satisfação por si só e que a incorporação póstuma e subjetiva à Humanidade é apenas o complemento e o reconhecimento dos méritos objetivos

o   Em suma: a crítica teológica ao culto da Humanidade mantém profundamente as concepções teológicas, não entendendo as motivações reais e profundas do culto à Humanidade

§  O sr. Luís Felipe Pondé, ao retomar essa crítica, nem foi intelectualmente original nela nem se preocupou em ser moralmente digno: ao retomá-la, o “filósofo” oficial de São Paulo foi apenas vulgar, mesquinho e superficial

-        Um aspecto importante para o culto à Humanidade: a Humanidade não é uma alegoria

o   Uma alegoria é um modo de falar, é apenas um símbolo

§  Se a Humanidade fosse apenas uma alegoria, isto é, um jeito de falar, o culto à Humanidade seria também apenas um jeito de falar

o   Mas a Humanidade é uma abstração que serve de verdade para o culto: ela estimula o altruísmo, estabelece o caráter histórico e subjetivo-objetivo do ser humano e concentra nossa atenção e nossos esforços afetivos, intelectuais e práticos

§  Assim, assumidamente a Humanidade é uma idealização e um ideal: é uma idealização porque é uma concepção abstrata (baseada em uma realidade concreta); é um ideal porque é um valor, u’a meta a ser perseguida

o   Além disso, sendo um ser superior, a adoração à Humanidade permite a digna submissão (que, por ser digna, não é degradante) – e, afinal, a submissão é a base do aperfeiçoamento

o   Assim, a Humanidade é realmente a nossa deusa positiva, isto é, a nossa deusa relativa, altruísta, subjetiva-altruísta

29 maio 2024

Portal eletrônico da Fundação Juán Enrique Lagarrigue



O Chile teve a honra e o orgulho de ter os irmãos Lagarrigues (Jorge, Juán Enrique, Luís, Federico) como apóstolos da Humanidade. Sua atuação foi variada nos temas - divulgação da Religião da Humanidade, reforma social, legislação social e trabalhista, propostas econômicas etc. - e também no espaço - em Santiago do Chile, em Paris e mesmo a Humanidade. A sua atuação foi tão grande e importante que Luís Lagarrigue foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz, em 1929!

Além disso, o seu legado foi tão grande que chegou a inspirar a fundação do Partido Socialista do Chile.

Desde 1933 a atuação dos Lagarrigues foi corporificada na Fundação Juán Enrique Lagarrigue; essa bela fundação acabou de inaugurar o seu portal eletrônico, disponível aqui:  


Reproduzimos abaixo o texto da seção "Reseña histórica" desse portal:

En los más de ochenta años de historia de la institución cabe reconocer cuatro períodos.

Entre 1933 y 1949 la corporación realizó múltiples actividades (conferencias, coloquios, publicaciones periódicas y de libros impulsadas por las Ediciones de la Fundación Juan Enrique Lagarrigue) animadas fundamentalmente por don Luis Lagarrigue, quien iniciara, entre otros programas, la publicación continua y periódica del Boletín Sociocrático (extinguida en 1967).

Entre 1950 y 1973 la corporación prosiguió desarrollando sus actividades habituales (conferencias y algunas publicaciones), impulsadas principalmente por don Federico Lagarrigue y su esposa doña Ida Colombo, quienes fueron, por lo demás, importantes sostenedores de la institución desde sus inicios.

Tras el fallecimiento de don Federico (en 1967), tras los acontecimientos de 1973 en Chile y el fallecimiento de doña Ida Colombo (en 1977), luego de la desaparición de otros miembros del directorio de la institución en la década de 1970, la corporación entró en una fase de mera preservación y mantenimiento, y prácticamente dejó de desarrollar actividades públicas.

A partir de mediados de la década de 1980 y más marcadamente desde el retorno de la democracia en 1990, la corporación inició un nuevo período que se extiende hasta el presente. Entre las actividades realizadas desde entonces cabe destacar la Exposición de Libros, Folletos e Iconografía conservados en la Biblioteca y Archivos de la Fundación, realizada en el Instituto Francés de Cultura de Santiago en 1991, no menos que la comunicación de conferencias de académicos invitados (José Echeverría, Patrice Vermeren, StéphaneDouailler, Patrick Cingolini, entre otros) y la puesta en marcha de diversos talleres, la celebración de coloquios y lecturas de poesía, la formación de grupos de estudio. Relevante es igualmente en este período la reanudación de las actividades de las Ediciones de la Fundación Juan Enrique Lagarrigue, merced a la publicación de dos obras de Pedro Godoy Lagarrigue: Antología de Filosofía Moral (Santiago, Ediciones de la Fundación Juan Enrique Lagarrigue, 2002) y La Conjunción Ético-política (Santiago, Ediciones de la Fundación Juan Enrique Lagarrigue, 2006).

23 maio 2024

Cidadania, confiança, responsabilidade

As citações abaixo, extraídas da undécima conferência do Catecismo positivista, dedicada ao regime público, apresentam toda uma densa filosofia política que impressiona por seu realismo, seu respeito à dignidade humana e sua antecipação radical dos mais profundos desejos políticos atuais. Não por acaso, Augusto Comte soube ver através das disputas políticas e sociais tão tristemente características da nossa época e que opõem direita e esquerda, retrógrados e revolucionários, tradicionalistas, ultraliberais, comunistas e democráticos.

Alguns esclarecimentos. O Catecismo positivista foi escrito por Augusto Comte em 1852 como um livro de explicação e divulgação do Positivismo, ou melhor, da Religião da Humanidade; ele foi escrito na forma de diálogos entre um sacerdote e u’a mulher. Os textos abaixo foram extraídos da quarta edição, de 1934, da tradução brasileira, originalmente de 1895, feita por Miguel Lemos, fundador da Igreja e Apostolado Positivista do Brasil. Na estrutura do Catecismo subjaz a concepção da tríplice natureza humana, em que o ser humano organiza-se em sentimentos, em idéias e em atividade prática: para regular e estimular cada uma dessas partes, a religião organiza-se por sua vez, respectivamente, em culto, em dogma e em regime. O culto e o regime, por sua vez, organizam-se em privados e públicos: os privados são individuais e domésticos, ao passo que os públicos referem-se à vida coletiva “nacional” (ou extradoméstica).

Para facilitar o entendimento de cada uma das citações abaixo, incluímos títulos; esses títulos não devem ser entendidos como esgotando as idéias presentes em cada uma das citações. São estes os três títulos: (1) “Dedicação dos fortes pelos fracos; veneração dos fortes pelos fracos”; (2) “Confiança e responsabilidade”; (3) “Todos os cidadãos são funcionários sociais”.

Embora os trechos sejam mais ou menos autoexplicativos, alguns esclarecimentos e observações adicionais podem ser úteis.

Antes de mais nada, deve-se notar que os nossos hábitos contemporâneos – amplamente metafísicos – consagram o entendimento de que não se deve confiar nos governantes, ou seja, que os governantes são por definição irresponsáveis, egoístas, mesquinhos. É claro que isso pode acontecer concretamente e que, de fato, infelizmente ocorre com freqüência. Todavia, não se pode assumir por princípio que os governantes terão esse comportamento reprovável e desprezível; é o contrário o que deve ser pressuposto: deve-se pressupor que os governantes merecem a nossa confiança. O pressuposto de que os governantes terão um comportamento reprovável serve para cinicamente legitimar e justificar esse comportamento reprovável, ou seja, esse pressuposto acaba atuando no sentido contrário do que supostamente denuncia; além disso, é bastante claro que pressupor que os governantes não merecem confiança torna sem sentido qualquer reclamação de que os governantes, por qualquer motivo, não merecem confiança. Também se deve notar que não é porque algum ideal é freqüentemente desrespeitado que ele deixa de ser válido por si só. Por fim, esse ideal não é somente moralmente correto: ele também se baseia na natureza das coisas, ou seja, ele baseia-se na realidade sociológica.

Essas considerações todas aplicam-se tanto à realidade política quanto à realidade econômica. Quando Augusto Comte fala em “superiores” e “inferiores”, ele não se refere à qualidade moral das pessoas, mas à sua situação social; em outras palavras, os superiores são aqueles que estão em cima e têm poder, ao passo que os inferiores são os que estão embaixo e não têm (ou têm menos) poder.

Em segundo lugar, a referência aos “dois poderes” e à sua separação considera o poder que muda o comportamento a partir do aconselhamento, da opinião e dos valores, ou seja, subjetivamente, que é o poder Espiritual, e o poder que modifica o comportamento impondo essa modificação, ou seja, objetivamente, que é o poder Temporal. De maneira mais simples, eles correspondem respectivamente ao sacerdócio e ao governo propriamente dito. A teoria política e social do Positivismo consagra a separação entre ambos como um dos fundamentos da política moderna.

Em terceiro lugar, a idéia de que todos são “funcionários sociais” não deve ser confundida com a concepção comunista e liberal de que todos seriam “funcionários públicos” (ou, por outra, funcionários do Estado). A preocupação de Augusto Comte é em valorizar o altruísmo e as preocupações de todos para com todos; ao contrário do que a mentalidade moderna e burguesa propõe, as atividades individuais não são estritamente pessoais, no sentido de servirem apenas para satisfazer necessidades pessoais e egoísticas. Todas as atividades têm um objetivo coletivo e são as necessidades sociais que devem ser atendidas. É por isso que a riqueza tem origem social e é por isso que a riqueza tem que ter uma destinação social. Assim, sem negar a existência do âmbito privado e doméstico, o Positivismo rejeita a concepção moderno-burguesa que opõe de maneira sistemática e rígida o público e o privado: eles não são âmbitos duros, estanques e antinômicos, mas são acima de tudo complementares: a vida individual e doméstica prepara-nos para a vida pública e esta corrige os defeitos daquela.

Para concluir: todas essas concepções baseiam-se em um exame detido da realidade sociológica, histórica e antropológica do ser humano. Ao mesmo tempo em que elas baseiam-se em estudos sociológicos, elas têm em mira objetivos sociais, políticos e morais bastante claros, em particular, como já indicamos, ultrapassar as disputas entre reacionários e revolucionários, entre direita e esquerda, entre ordem e progresso – disputas tão tristemente próprias ao Ocidente dos últimos vários séculos. A teoria política ocidental, profundamente marcada (e consciente e intencionalmente marcada) pelas disputas oscilatórias dos últimos séculos, com grande dificuldade, com grande esforço, apenas atualmente consegue elevar-se um pouco da superficialidade dessas disputas e, por meio da noção de “cidadania”, aproximar-se de concepções mais amplas, mais profundas e mais saudáveis como as que Augusto Comte apresentou, com assombrosa antecipação, cerca de 170 anos atrás. 

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(1) “Dedicação dos fortes pelos fracos; veneração dos fortes pelos fracos”

“O SACERDOTE – O regime público consiste todo ele, minha filha, em realizar dignamente esta dupla máxima: Dedicação dos fortes pelos fracos; veneração dos fortes pelos fracos. Nenhuma sociedade pode perdurar se os inferiores não respeitarem os superiores. Nada confirma melhor semelhante lei do que a degradação atual, em que, por falta de amor, cada um não obedece senão à força; se bem que o orgulho revolucionário deplore o pretendido servilismo de nossos antepassados, que sabiam amar seus chefes. A segunda parte dupla condição social é, pois, comum a todos os tempos. Mas a primeira não foi realmente introduzida senão na Idade Média; pois que toda a Antigüidade, salvo felizes exceções pessoais, pensava de modo diverso, como o atesta seu aforisma predileto: Paucis nascitur humanum genus[1]. Assim, a harmonia pública repousa sobre a atividade dos dois melhores instintos altruístas, respectivamente apropriados aos inferiores [veneração] e aos superiores [bondade] em suas mútuas relações. Todavia, este concurso só pode surgir e persistir nas almas assaz preparadas por um hábito suficiente da mais enérgica, conquanto a menos eminente [apego], das três inclinações simpáticas mediante um justo surto dos afetos domésticos.

Tal solução reside inteiramente na separação fundamental entre os dois poderes espiritual e temporal. Não é possível assegurar a dedicação dos fortes aos fracos senão pelo advento de uma classe de fortes que só possa obter ascendente social devotando-se aos fracos, em virtude da livre veneração destes. É assim que o sacerdócio se torna a alma da verdadeira sociocracia. Mas isto supõe que ele se cinja sempre a aconselhar, sem nunca poder mandar” (Comte, 1934, p. 358-359)

 

(2) “Confiança e responsabilidade”

“O SACERDOTE – [...] Todas as complicações sociais inspiradas pela desconfiança não conduzem realmente senão à irresponsabilidade. Confiança inteira e plena responsabilidade, tal é o duplo caráter do regime positivo” (Comte, 1934, p. 363)

 

(3) “Todos os cidadãos são funcionários sociais”

“A MULHER – [...] Erigindo todos os cidadãos em funcionários sociais, em virtude da utilidade real de seus ofícios respectivos, o positivismo nobilita a obediência e consolida o comando. Em vez de ter um simples destino privado, cada atividade sente-se honrada pela sua digna participação no bem público. Ora, para obter esta salutar transformação, o sacerdócio nunca precisará suscitar um entusiasmo excepcional. Bastar-lhe-á sempre fazer prevalecer por toda parte uma exata apreciação das realidades habituais” (Comte, 1934, p. 366)

 



[1] Nota de Miguel Lemos: “Paucis nascitur humanum genus” (Lucano, Farsália, livro 5º, v. 343): “O gênero humano vive para um pequeno número de homens”. 

22 maio 2024

Que seria um "positivismo leninista"?

No dia 2 de São Paulo de 170 (21.5.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos uma deriva do Positivismo, ou seja, uma tendência possível e negativa que, assim, não corresponde aos impulsos profundos e verdadeiros do Positivismo: trata-se do "positivismo leninista".

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui (versão interrompida): https://encr.pw/qMIpB e aqui (versão completa): https://acesse.dev/tLYLY) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/7vequ). O sermão começou aos 54 min 45 s.

Tivemos problemas na transmissão da prédica: o Facebook travou em diversos momentos e, por algum  motivo desconhecido, o Youtube encerrou a transmissão pouco antes de 47 min.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *

O que seria um “positivismo leninista”? 

-        O tema desta semana é um pouco inusitado: queremos comentar o que seria um “positivismo leninista”

o   Antes de mais nada: por que tratar disso?

o   Por vezes alguns aderentes do Positivismo – sejam neófitos (novos na doutrina), sejam mais conhecedores da doutrina com mais tempo – tendem a apresentar alguns traços de comportamento que podemos chamar de “leninista”

§  Esse comportamento apresenta-se com freqüência de maneira irrefletida, ingênua, de boa fé

§  Ainda assim, embora possa surgir de boa fé, esse comportamento é problemático, seja porque não segue o Positivismo em termos morais, intelectuais e práticos (ao propor interpretações não positivas e/ou sentimentos não altruístas), seja porque suas conseqüências efetivas são daninhas (em particular, ao produzir sistematicamente atritos)

§  Esse é um perigo que muitos podem correr

o   Em outras palavras, este sermão é menos uma admoestação e mais um alerta

-        A referência inicial aqui é a Vladimir Ilich Ulianov (1870-1924), vulgarmente conhecido por “Lênin”

o   Lênin foi um teórico político mas, acima de tudo, foi um “revolucionário profissional” e um líder político prático

§  Sua capacidade de trabalho era realmente espantosa e ele, bem ou mal, dedicou sua vida inteira à consecução dos seus projetos sociais e políticos

§  Ele dedicou sua vida a realizar a revolução comunista na Rússia; seus esforços intelectuais foram sempre envidados nesse sentido e subordinados à atividade prática

o   Nascido na Rússia, suas atividades políticas tornaram-no objeto de perseguição oficial do Estado, o que o levou a exilar-se na Suíça; isso, contudo, não diminuiu suas atividades; durante a I Guerra Mundial, durante o ano de 1917, que foi de exaustão de todos os exércitos europeus (e, a bem da verdade, de exaustão dos países beligerantes e das respectivas sociedades civis), ele aproveitou-se do colapso do exército russo, da liderança russa e também do apoio alemão para voltar à Rússia e, em outubro, dar um golpe de Estado na república russa que fora pouco antes proclamada (em fevereiro)

o   Com isso, ele tornou-se líder da nova Rússia comunista e, a partir de 1922, também da União Soviética

-        Sobre as características do que chamamos aqui de “positivismo leninista”:

o   Para evitar querelas desnecessárias: as características que indicaremos baseiam-se em uma idealização, ou seja, baseando-se na realidade (do comportamento efetivo de Lênin), identificamos alguns traços salientes que, em seu conjunto, podem (e devem) ser identificados como próprios ao revolucionário russo

o   As características que veremos e que nos interessam são negativas e devem, portanto, ser evitadas ou até combatidas

-        Eis os traços que podemos indicar como integrando o “positivismo leninista”:

o   (Tendência à) intolerância

o   (Tendência ao) dogmatismo

o   Cientificismo (donde: intelectualismo)

o   Tecnocratismo

o   Rigidez política

o   (Tendência ao) autoritarismo/concepção hierárquica das organizações

o   Organizações entendidas como tropas

-        Como se percebe com facilidade, as características do “positivismo leninista” giram em torno de uma dureza mental e prática e da falta de ternura (ou seja, uma falta de altruísmo)

o   Em suma: o “positivismo leninista” consiste na tendência a ignorar, em termos morais, intelectuais e práticos, a Religião da Humanidade

-        Devemos notar que as características do “positivismo leninista” são muito próprias ao marxismo

o   O marxismo tem uma concepção dura e agressiva da vida

§  Como já indicamos inúmeras vezes, a idéia da “luta de classes”, por exemplo, é bastante literal: trata-se afinal de guerra de classes

o   Mas esses traços não são apenas próprios ao marxismo e ao leninismo; eles integram algumas concepções muito disseminadas sobre as relações sociais: são as concepções que cinicamente reduzem a vida em sociedade a meras disputas incessantes de poder

§  Essas concepções cínicas, autodenominadas de “realistas”, não por acaso chamam concepções como a Positivista de “ingênuas”, “idealistas”, até mesmo “românticas”

§  É claro que, no final das contas, deve-se determinar qual concepção respeita e valoriza mais o ser humano; qual concepção reconhece o que o ser humano faz com, além e/ou apesar das disputas de poder; qual concepção evita mais as guerras; qual concepção valoriza a dignidade humana e a justiça social etc.: certamente é o Positivismo e não esse cínico “realismo” (marxista ou não)

-        Todas as características indicadas do “positivismo leninista” são evitadas ou impedidas no Positivismo de maneira muito clara; de modo geral, os remédios são estes:

o   Afirmação clara do altruísmo, em particular da ternura

o   Relativismo filosófico

o   Separação dos dois poderes

o   Respeito à dignidade humana, ou seja, à autonomia individual

o   Compreensão da tríplice natureza humana e das relações entre sentimentos, idéias e atividade prática

o   Em suma: deve-se levar a sério a Religião da Humanidade

-        Além das características acima, que constituem o que chamamos de “positivismo leninista”, é claro que também podemos identificar inúmeras outras características de Lênin:

o   Essas outras características – mais uma vez: em particular as negativas – não nos parecem corresponder ao “positivismo leninista”

§  Evidentemente, o problema está com os traços negativos; considerando o relativismo positivista, os traços positivos até podem ser motivo de admiração e emulação

o   Negativas:

§  Crueldade

§  Maquiavelismo (“os fins justificam os meios”)

§  Amoralismo/imoralismo

§  Ódio mortal à burguesia e ao feudalismo, chegando ao ponto de não temer matar sumariamente burgueses e senhores feudais

§  Golpismo político profissional

o   Positivas:

§  Pragmatismo político

§  Habilidade intelectual

§  Capacidade organizativa

§  Intensa dedicação ao trabalho

§  Abnegação profunda pela causa esposada

§  Subordinação da inteligência à atividade prática