A Folha de S. Paulo recentemente lançou uma nova edição da famosa e
importante coleção “Os pensadores”. É uma coleção bonita, bem acabada, com
volumes extremamente bem produzidos: papel de qualidade, capa dura, artes agradáveis
nas capas. Muitos dos volumes são sumamente interessantes e informativos; entre os 30 volumes dessa nova edição figura, como segundo
publicado, uma obra de Augusto Comte, o seu Discurso
sobre o espírito positivo. A inclusão de Comte e, em particular, desse
volume específico, suscitam algumas reflexões; mas, para tratarmos disso, temos
antes que considerar o conjunto da nova coleção.
1. Sobre o viés identitário-crítico-militante da nova coleção
“Os pensadores”
A coleção foi lançada em 24 de
outubro de 2021, em 30 volumes, com os números 1 e 2 lançados promocionalmente
juntos, como é habitual; são os volumes dedicados respectivamente a Platão (A República) e a Augusto Comte (Discurso sobre o espírito positivo).
Na página eletrônica promocional (https://pensadores.folha.com.br/index.html)
não há indicação de quem seria o seu organizador (está na moda falar-se em
“curadoria”); na página dos volumes impressos dedicada aos dados bibliográficos
há apenas a menção às responsáveis pela “Organização geral do projeto”: Ana
Paula Duarte, Letícia Carvalho e Mariana Dalmaso, as três do jornal Folha de S. Paulo. Sobre Letícia
Carvalho e Ana Paula Duarte obtemos informações apenas na matéria
propagandística de outra coleção do jornal, lançada no início de 2021 e
dedicada a fotografias (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/02/colecao-de-livros-da-folha-revisita-fotos-memoraveis-do-jornal-dos-ultimos-100-anos.shtml):
Carvalho é “gerente geral de marketing” e Duarte é analista de
projetos. A partir de seu perfil na rede Linkedin (https://br.linkedin.com › in
› mariana-dalmaso-603471133), descobrimos que Mariana Dalmaso é “analista de marketing sênior”. Como é difícil ver de
que maneira especialistas em propaganda teriam qualificações para decidir
questões de filosofia, o resultado é que simplesmente não é possível saber quem
de fato organizou a coleção; todavia, na absoluta ausência de indicações de
quem de fato selecionou os volumes da presente coleção e com quais critérios,
resta a essas três profissionais os ônus das escolhas efetivamente feitas.
Vale a pena prestarmos atenção
ao nome da coleção: é “coleção Folha Os Pensadores”. Bem vistas as coisas, não
se trata de uma edição nova de “Os pensadores”, anteriormente publicada pela
editora Abril e subsidiárias; de fato, é uma coleção inteiramente nova. Assim, o que a Folha de S. Paulo fez foi valer-se de um nome já consagrado para
lançar e divulgar o seu próprio projeto comercial-editorial (e político).
Dito isso, a nova coleção
distingue-se bastante das edições anteriores, seja pela quantidade de volumes,
seja pelos títulos incluídos.
Em relação à quantidade de
volumes, ela é bastante limitada: pelo menos em uma primeira leva, são apenas 30, o que a distingue muito das edições anteriores, em particular da primeira e
da segunda, que tiveram mais de 60 volumes, alguns com obras de vários autores
encartados em um único livro.
Em relação aos títulos
incluídos, eles chamam a atenção por serem inovadores em vários aspectos: por
um lado, em vez de os volumes publicarem excertos de várias obras (às vezes
artigos isolados), com ou sem traduções de obras completas, a nova edição
publica um único título de cada autor. Por outro lado, autores que
anteriormente já haviam sido publicados receberam traduções de novos títulos,
como nos casos de Augusto Comte – que, por exemplo, recebeu uma nova tradução
do Discurso sobre o espírito positivo
(de 1844, até então publicado apenas pela Martins Fontes), em vez de dos dois
primeiros capítulos do Sistema de
filosofia positiva (de 1830-1842, vulgarmente chamado de Curso de filosofia positiva), dos 2/3
iniciais do capítulo 1 do Discurso sobre
o conjunto do Positivismo (de 1848) e da integralidade do Catecismo positivista (de 1853). Por fim
– e isto é o mais importante –, vários “novos” autores foram incluídos,
resultando em que, embora o conjunto da seleta de título não seja muito
coerente, o viés geral é bastante claro: trata-se de uma coleção organizada
para ser “crítica” e militante, com um certo pendor identitário.
O viés
identitário-crítico-militante salta aos olhos com os seguintes autores e
títulos:
- bell hooks – Ensinando
a transgredir (v. 3)
- Voltaire – O
preço da justiça (v. 6)
- Michel Foucault – A sociedade punitiva (v. 9)
- Mary Wollstonecraft – Reivindicação dos direitos das mulheres (v. 10)
- Jean-Jacques Rousseau – Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens (v. 11)
- Karl Marx – Manuscritos
econômico-filosóficos (v. 14)
- Carter G. Woodson – A (des)educação do negro (v. 16)
- Luiz Gama – Humor
e crítica: armas do pioneiro abolicionista (v. 20)
- Étienne de la Boétie – Discurso sobre a servidão voluntária (v. 21)
- John Stuart Mill – Sobre a liberdade (v. 24)
- Arthur Schopenhauer – A arte de ter razão (v. 25)
- Edison Carneiro – Ladinos e crioulos (v. 27)
- Ludwig Feuerbach – A essência do cristianismo (v. 28)
A seqüência de títulos não segue
a ordem cronológica, nem de nascimento dos autores nem, portanto, de publicação
das obras; na verdade, não parece haver nenhum critério de lançamento. Enfim,
dos 30 volumes inicialmente propostos, podemos considerar que 13, ou seja, 43,33%,
têm o perfil aproximado de identitário-crítico-militantes. Essa classificação,
não há dúvida, pode ser discutida, como nos casos de Boétie e de Stuart Mill: o
primeiro por ser medieval e o segundo por ser comum ao liberalismo; mas, ainda
assim, salta à vista as editoras terem escolhido logo esses autores e esses
títulos em meio a centenas de outros possíveis. Por outro lado, as escolhas de
Bell Hooks, Michel Foucault, Mary Wollstonescraft, Jean-Jacques Rousseau e Karl
Marx, além das novidades na coleção Carter Woodson, Luiz Gama e Edison Carneiro
dão o inequívoco tom crítico-militante e identitário. Voltaire era claramente
um polemista e podemos considerar que Schopenhauer integra a relação por ser
seu livro um manual de manipulação da verdade e do discurso, ou seja, é um manual
de produção de desinformação. (O que dissemos sobre Schopenhauer pode ser
aplicado, mutatis mutandis, ao volume
escolhido de Sto. Agostinho.)
Há alguns autores cuja inclusão
é discutível ou estranha: Lévi-Strauss é bem-vindo, mas o seu Antropologia estrutural 1 é um livro
estritamente técnico e acadêmico, não sendo passível de consumo pelo grande
público; melhor seria incluir o Antropologia
estrutural dois, o Antropologia
estrutural 3, algum dos vários volumes das Mitológicas, o Pensamento
selvagem, o Totemismo hoje ou até
os Tristes trópicos. O mesmo pode ser
dito, a fortiori, de Aristóteles: sua
Política ou sua Ética nicomaquéia, quem sabe mesmo sua Constituição de Atenas, seria
muito mais adequado ao perfil da coleção (e tanto a Política quanto a Ética
nicomaquéia são infinitamente superiores à República de Platão, ou melhor, a qualquer coisa de Platão). De
Maquiavel escolheram A arte da guerra:
entretanto, essa é uma obra menor (de um autor também menor): dele poderia ser
publicado, com muito mais proveito, os seus Discursos
sobre a primeira década de Tito Lívio. De Sto. Agostinho, suas Confissões
seriam uma escolha mais interessante que a estranha escolha feita de Sobre a mentira.
Essa pequena coleção apresenta
alguns títulos que satisfarão também os liberais: Bastiat, Mises, Léo Strauss
e, novamente, Stuart Mill; quem sabe Weber e Adam Smith. Além disso, há volumes
mais claramente morais, como os de Descartes, Sto. Agostinho, Adam Smith. Por
fim, os volumes de Lévi-Strauss, Ruth Benedict, Durkheim e Hobbes servem,
talvez, para indicar que a verdade e a mentira, a justiça e a injustiça têm que
ser entendidos de maneira relativa e nos quadros de sociedades estruturadas em
termos de culturas e de estados e, nesse sentido, integram o viés
crítico-militante da coleção. Se adicionarmos aos 13 volumes inicialmente
relacionados como “identitário-crítico-militantes” os quatro volumes
sociológicos, teremos 17 volumes; se somarmos a esses os volumes liberais –
cuja inclusão pode ser entendida também como uma forma de a militância
crítico-identitária conhecer os argumentos de seus adversários –, teremos um
total de 22 volumes, correspondentes a 73,33%, isto é, cerca de 3/4 do total.
(Esse valor é subestimado, pois deixamos de lado Sto. Agostinho, Maquiavel e
Augusto Comte: com esses três volumes adicionais, teríamos 25 livros
crítico-militantes, ou 83,33%.)
Em suma, a relação de títulos
selecionados para a nova edição da coleção “Os pensadores” é variada e
incoerente a respeito de vários títulos; essa incoerência talvez tenha o
objetivo de satisfazer a diversos públicos. Ainda assim, o conjunto da coleção exibe
uma orientação bastante clara; seu objetivo não é meramente informar, ilustrar
e fornecer elementos intelectuais e morais para a edificação dos leitores e a
sua ampliação do entendimento do mundo. Em vez disso, o objetivo da coleção é
fornecer elementos intelectuais para a militância política e social, com um
sentido “crítico” e identitário – em outras palavras, em favor do combate da
metafísica esquerdista contra a metafísica direitista.
Feitas essas considerações
iniciais, podemos avaliar a inclusão do volume Discurso sobre o espírito positivo, de Augusto Comte.
2. Sobre a inclusão de Augusto Comte na atual coleção “Os
pensadores”
Em face do viés caracterizado
acima, torna-se legítima perguntar: por que incluíram Augusto Comte nessa nova
edição de “Os pensadores”? De modo mais específico: por que incluíram uma nova
tradução do Discurso sobre o espírito
positivo?
Na matéria propagandística que
anunciava o lançamento da coleção (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/10/colecao-folha-os-pensadores-reune-escritos-essenciais-do-pensamento-ocidental.shtml),
somos informados que Durkheim é o “‘fundador’” da Sociologia – a palavra
“fundador” posta entre aspas na matéria acima: “Isso para não falar no
"fundador" da sociologia como ciência, Émile Durkheim, em As regras do método sociológico”.
Augusto Comte é considerado apenas “filósofo” (como se não tivesse fundado a
Sociologia) e fundador do Positivismo. A explicação dada pela matéria para a
inclusão de Augusto Comte é esta: “O segundo [volume] é o Discurso sobre o espírito positivo, em que o francês Auguste Comte
formulou a doutrina do positivismo – inspiradora do lema inscrito na bandeira
do Brasil”.
As matérias propagandísticas
servem apenas para divulgar para o grande público um determinado produto; como
se sabe, elas combinam informação, desinformação, omissões e exageros; no caso
de uma coleção de livros de filosofia, essas características acentuam-se, na
medida em que se torna muito difícil vender conceitos filosóficos. Ainda assim,
as propagandas em questão têm algo de sugestivo.
Parece-nos que Augusto Comte foi
incluído pelo menos por dois motivos, ambos vinculados ao atual contexto
político brasileiro. O primeiro motivo é que, devido à renovada militarização
promovida por Bolsonaro no governo federal, fala-se muito em “Positivismo” – embora
de maneira extremamente errada e mentirosa –;
esse motivo é o que se depreende da propaganda indicada acima. Apesar de o
motivo anterior poder vincular-se ao viés crítico-militante da nova coleção “Os
pensadores”, o fato é que podemos conceber outro motivo, mais diretamente
crítico-militante, para a inclusão de Augusto Comte nessa coleção: trata-se de
uma afirmação do valor social, político e moral da ciência e – é importante
dizê-lo com clareza: a despeito das
idéias e das intenções do próprio Comte – também é a busca de um
cientificismo anticlericalista. Senão, vejamos.
As três obras presentes nas
versões anteriores da coleção “Os pensadores” oferecem dificuldades
intransponíveis para os objetivos crítico-militantes e editoriais da coleção.
- Cada um dos volumes publicados nesta nova edição
apresenta a obra completa: ora, o Sistema
de filosofia positiva foi originalmente publicado em seis volumes e 60
capítulos, dos quais apenas os dois primeiros capítulos foram publicados nos
“Pensadores” anteriores. É possível crer que a extensão dessa obra completa
inviabilizou a sua inclusão na presente edição dos “Pensadores”.
- Já o Discurso
sobre o conjunto do Positivismo é menor, com seis capítulos (grandes),
oferecendo a vantagem – supostamente desejada pela edição nova dos “Pensadores”
– de expor as idéias centrais do Positivismo. Entretanto, contrariando o viés
crítico-militante da coleção, Augusto Comte afirma com todas as letras em
Religião da Humanidade nessa obra. Além disso, os 2/3 iniciais do capítulo 1
desse livro expõem as características principais do espírito positivo e
criticam o espírito teológico; mas o 1/3 final desse mesmo capítulo 1 critica o
espírito metafísico, que é justamente o espírito que informa o materialismo
marxista e, de modo mais amplo, o viés crítico-militante da atual “Pensadores”.
(Não por acaso, o tradutor desse trecho foi o marxista José Artur Gianotti, que
omitiu o 1/3 final do capítulo 1 para não fornecer instrumentos para a crítica
ao seu próprio marxismo.)
- O Catecismo
positivista foi a única obra comtiana publicada na íntegra nas edições
anteriores dos “Pensadores”; entretanto, esse livro oferece o evidente problema
de que se trata de um “catecismo”, isto é, da exposição sistemática de uma
“religião”. Isso vai de encontro à militância crítica da edição atual dos
“Pensadores” e, em particular, à projetada perspectiva
cientificisto-anticlericalista desejada em Comte.
Outras obras de Comte, aliás
também já traduzidas para o português, poderiam ter sido publicadas (talvez
retraduzidas): os seus Opúsculos de
juventude (1819-1828) e o Apelo aos
conservadores (1855). O primeiro desses volumes – cuja segunda tradução é
da autoria dos positivistas Ivan Lins e João Francisco de Souza e foi publicada
em 1972 pela Universidade de São Paulo – é muito interessante e apresenta em
germe inúmeras das perspectivas de Comte; entretanto, essas perspectivas estão
presentes apenas em germe e há o emprego de expressões que produzem equívocos,
como no caso da “física social” (equívocos que, claro, são amplamente explorados
pela desinformação inspirada em preocupações políticas). Em todo caso, não
consigo identificar o motivo para as organizadoras da atual coleção “Os
pensadores” terem preferido o Discurso
sobre o espírito positivo e não os Opúsculos
de juventude – ainda que essa escolha pareça-me acertada, pela maturidade
maior do Discurso em relação aos Opúsculos. Já o Apelo aos conservadores é também uma obra pequena e de divulgação,
com a vantagem de ser eminentemente política; sua tradução para o português
data de 1899 e foi feita por Miguel Lemos (fundador e diretor da Igreja
Positivista do Brasil). Se o objetivo da atual coleção “Os pensadores” fosse
expor as perspectivas filosóficas do Positivismo tendo em vista apenas a
conjuntura política atual, esse livro seria ideal; mas, como estamos
argumentando, o objetivo da inclusão de Comte na coleção foi um pouco
diferente.
Augusto Comte, fundador do
Positivismo e da Religião da Humanidade, também fundador da Sociologia, da
Moral Positiva e da História das Ciências, era radicalmente contrário ao
anticlericalismo e ao cientificismo. Sua oposição ao anticlericalismo e ao
cientificismo baseava-se em motivos históricos, sociológicos, filosóficos e
morais: essas duas perspectivas são absolutistas e antirrelativistas; elas negam
a historicidade e desviam o ser humano da fraternidade, do altruísmo, do
conhecimento e da atividade positiva; elas estimulam a arrogância, a vaidade, o
orgulho, a violência, o intelectualismo. Em suma, são contra o amor, a ordem e
o progresso.
As organizadoras da atual
coleção “Os pensadores” com toda a certeza ignoram todas as afirmações e
concepções indicadas no parágrafo acima, provavelmente porque se limitam a ser
crítico-militantes.O Discurso sobre o
espírito positivo consiste na verdade no discurso de abertura do curso
público ministrado por Augusto Comte durante algumas décadas, intitulado “Curso
filosófico de Astronomia popular”. Esse curso era dedicado à instrução
científica dos proletários parisienses e oferece de maneira exemplar uma forma
filosófica de estudo das ciências, em termos de seus métodos, de seus
principais resultados específicos e de suas importâncias filosóficas. Nesse
curso, o discurso inicial expunha os princípios filosóficos que orientavam a
apresentação e o entendimento subseqüentes da Astronomia; mas não se trata de
mera exposição epistemológica e metodológica do curso. São várias idéias
concatenadas aí; senão, vejamos.
A ciência é o resultado da busca
humana de entendimento da realidade conjugada com a busca de soluções para os
problemas práticos; satisfazendo necessidades gerais da natureza humana (que se
desenvolve ao longo do tempo, em face das realidades sociais e ambientais), a
ciência é o resultado de um longo processo de desenvolvimento de modos de
satisfazer essas necessidades – desenvolvimento que passou antes pelos
absolutos teológico-metafísicos e que agora entre na positividade científica.
Todavia, apesar da importância dos resultados próprios a cada ciência, cada uma
delas tende a fechar-se em si mesma, a ignorar as demais e desconsiderar
totalmente as necessidades humanas profundas, ou seja, as ciências entregues a
si mesmas tendem a ser incoerentes e a tornarem-se absolutas: a única solução
possível é elaborar uma filosofia que organize os vários resultados das ciências,
de modo a permitir que elas relacionem-se entre si de maneira permanente e
sistemática; que elas mantenham-se sempre no âmbito do relativismo; que – e
isto é o principal – elas atenham-se à satisfação das necessidades humanas.
Essa filosofia não é uma “filosofia científica”, pois não se trata da aplicação
dos métodos da ciência à filosofia; ao contrário, é a reflexão filosófica sistematizando,
organizando e orientando a prática e a reflexão científicas. Com isso, fica
evidente que há diferenças entre o “espírito científico” (próprio à atividade
cotidiana dos cientistas) e o “espírito positivo” (mais amplo, generalizante,
coordenador e orientador). As conseqüências práticas disso eram evidentes para
Augusto Comte desde o início, seja em termos políticos e sociais, seja em
termos morais e intelectuais; o desenvolvimento e a sistematização dessas
concepções levaram o fundador do Positivismo a fundar também a Religião da
Humanidade nos anos seguintes, em parte graças à poderosa ação moral e
intelectual exercida sobre ele por Clotilde de Vaux.
O Discurso sobre o espírito positivo, assim como todas as demais
obras de Comte, apresenta um forte espírito histórico: por si só isso já
rejeita o anticlericalismo, isto é, o combate sistemático às religiões teológicas,
predecessoras da religião positiva que afirma o ser humano. Da mesma forma, a
cuidadosa distinção entre a prática científica e a avaliação filosófica dos
resultados das ciências rejeita o que se chama atualmente de cientificismo. Nas
obras posteriores de Comte essas duas perspectivas estarão ainda mais claras,
como no Sistema de política positiva
e na Síntese subjetiva. Mas, de
qualquer maneira, publicado em 1844, o Discurso
sobre o espírito positivo é a derradeira obra pré-religiosa de Augusto
Comte – não por acaso, posterior ao Sistema
de filosofia positiva (1830-1842) mas um pouco anterior ao seu intenso,
breve e respeitoso relacionamento com Clotide de Vaux (no “ano sem par” –
1845-1846). A próxima obra escrita e publicada por A. Comte já evidenciaria a
Religião da Humanidade e também o viés marcadamente político e social do
Positivismo, como efeitos tanto de Clotilde quanto da II República Francesa
(1848-1851): o Discurso sobre o conjunto
do Positivismo, de 1848.
A inclusão do Discurso sobre o espírito positivo na
versão nova da coleção “Os pensadores” apresenta, portanto, um caráter bastante
ambígüo. A publicação em si desse volume tem quer comemorada; o fato de ele ser
vendido promocionalmente em conjunto com o v. 1 certamente o disseminará de uma
forma que os demais volumes não conseguirão. Entretanto, os motivos profundos
que levaram à sua inclusão baseiam-se em preconceitos; enquanto Augusto Comte
desejava superar a oposição suicida entre a ordem e o progresso, as
organizadoras da versão nova dos “Pensadores” insistem nessa oposição,
transformando e mantendo, por um lado, a ordem em uma ordem retrógrada e o
progresso em um progresso anárquico.
3. Sobre a edição e a tradução do Discurso na atual coleção “Os pensadores”
Para concluir, convém fazermos
alguns comentários sobre as presentes edição e tradução do Discurso.
Como dissemos logo no início
deste texto, os livros da nova coleção “Os pensadores” estão bastante bem
cuidados em termos editoriais: papel de qualidade (Chambril Avena 80 g/cm2,
agradável ao tato), tamanho aceitável (16,3 x 23,8 cm), capa dura, arte da capa
agradável. A edição é boa e, além do sumário no início do livro, há também uma
tabela sinóptica no final, indicando os temas de cada um dos parágrafos do
livro.
Fonte: https://pensadores.folha.com.br/index.html.
Todavia, essa edição apresenta
uma série de pequenos erros que incomodam e que podem atrapalhar um pouco a
leitura; todos esses erros são devidos às decisões editoriais, mas alguns deles
poderiam ter sido sanados antes da publicação caso a editora tivesse tomado a
decisão simples – e, aliás, muito razoável – de consultar positivistas para
rever a tradução e/ou a edição; por outro lado, alguns outros erros foram impostos
pelo lamentável acordo ortográfico de 1990 (cujo objetivo, no fundo, era
aumentar o mercado editorial brasileiro nos países lusófonos, especialmente
africanos).
Comecemos pelo nome do autor:
Augusto Comte. Desde que o Positivismo passou a ser difundido no Brasil, em
meados do século XIX, a versão em português do nome francês “Auguste” era
corrente; assim, em todos os bem mais de 500 títulos da Igreja Positivista do
Brasil, publicadas entre c. 1880 e c. 1930, o nome do filósofo está devidamente
em português: Augusto. Esse hábito saudável, de verter para a língua pátria os
prenomes estrangeiros, manteve-se até bem depois, como se pode ver na capa da
tradução de Ivan Lins para os Opúsculos
de filosofia social, de 1972. Esse hábito de traduzir para a língua pátria
é comum também nos países de línguas espanhola, inglesa, francesa e alemã.
Fonte: https://www.estantevirtual.com.br/sebotraca/augusto-comte-biblioteca-dos-seculos-opusculos-de-filosofia-social-2615776725?show_suggestion=0
Entretanto, em meados dos anos
1980, talvez já na década de 1970, passou a constituir-se no Brasil um estranho
consenso, no sentido de que os prenomes não seriam traduzíveis. É verdade que
há nomes que são, de fato, intraduzíveis, na medida em que não há versões em
português para eles: nomes em japonês ou em mandarim apresentam em particular
essa dificuldade. Acessoriamente, pode-se considerar o respeito aos países de origem e,
portanto às suas culturas. Mas o fato é que nenhuma dessas considerações
obriga-nos a rejeitar a tradução dos prenomes. É evidente que “Pierre”,
“Pietro” e “Peter” são as versões em francês, italiano e inglês para “Pedro” e,
como sabem por exemplo os hispanofalantes, não há nenhum problema, nem há
nenhuma ofensa, em ler no original “Pierre”, “Pietro” ou “Peter” e passar para
“Pedro” na tradução. Adicione-se a isso o fato de que o nome “Augusto” já estava
consagrado no Brasil (e, convém notar, também em Portugal), com um uso
extremamente difundido e, acima de tudo, mais que centenário.
Um outro problema derivado do nome do autor, mas
agora relativo ao seu sobrenome, é o adjetivo derivado de “Comte”. Mais uma
vez: tradicionalmente, por um hábito mais
que centenário, sempre se usou no Brasil o adjetivo “comtiano”. O “i”
surgiu da pronúncia carioca dessa palavra, o que não é problema nenhum. Mas,
contrariando a forma consagrada, o malogrado acordo ortográfico de 1990, entre
suas inúmeras e equívocas previsões estipulou que o nome de origem deve ser
rigorosamente seguido para que se forme o respectivo adjetivo. Dito de outra
maneira: devido ao acordo, literalmente por decreto deixou-se de lado o
“comtiano” e passou-se ao “comteano”, a partir do nome “Comte”.
Vejamos o título do livro. Na capa aparece apenas
“Discurso sobre o espírito positivo”; até aí, tudo bem: está conforme o título
original. Mas na folha de rosto percebemos um estranho subtítulo: “ordem e
progresso” – e, pior, em caixa baixa (isto é, em letras minúsculas). Mas o
original não possui esse tal subtítulo, ainda que o “Ordem e Progresso” seja
uma das máximas do Positivismo.
Essa estranha inclusão de subtítulo poderia ter sido
decidida arbitrariamente pela editora, como se achasse bonito, ou conveniente,
ou sagaz (em uma “sacada” comercial). Mas há algumas referências no texto que
nos informam que o texto de base seria uma “segunda edição”, publicada em 1908,
sendo que a “primeira edição” seria de 1898. Uma busca rápida pelo portal
Internet Archive logo nos fornece o resultado que esclarece a situação; veja-se
a imagem abaixo, que corresponde à folha de rosto da edição francesa usada na
tradução do volume ora publicado na coleção “Os pensadores”.
Fonte: https://archive.org/details/discourssurlesp00parigoog/page/n11/mode/2up.
O “Ordem e Progresso”, que o
tradutor (Walter Sólon) entendeu ser um subtítulo, atua na folha de rosto do
original precisamente como o que é: u’a máxima política; se quiserem, pode ser
entendida como uma epígrafe, mas de maneira nenhuma como um subtítulo. Vejamos
a capa de um opúsculo da Igreja Positivista do Brasil escolhido um pouco ao
acaso e que ilustra o que argumentamos.
Fonte:
arquivo pessoal.
Esse opúsculo, que é uma
prestação pública de contas (financeiras mas, acima de tudo, políticas) de
1892, apresenta uma grande quantidade de elementos informativos; alguns são
elementos de instituição, data e lugar, outros referem-se ao tema (o título, o
subtítulo, a epígrafe) e outros referem-se aos valores religiosos e políticos
mobilizados: neste último caso, as máximas positivistas encontram-se entre a
instituição promotora (“Relijião da Humanidade”, com a ortografia simplificada
proposto por Miguel Lemos) e o título do opúsculo. Deve-se notar que, mesmo em
meio à profusão de informações, não há a menor dúvida de que as frases “O Amor
por Princípio i a Ordem por Baze; o Progresso por Fim”, “Viver para outrem” e
“Viver às claras” não integram o título ou o subtítulo e que poderiam, em certo
sentido, ser entendidas como epígrafes do documento.
Certo: podemos admitir, sem
dificuldade, que o erro de inserir o “Ordem e Progresso” como subtítulo acaba
sendo fácil de cometer. Mas é exatamente essa a questão: sendo fácil de
cometer, bastaria às organizadoras da coleção e/ou ao tradutor do livro que
fizessem uma simples consulta aos positivistas brasileiros para dirimir a
dúvida.
Ao longo deste texto comentamos
em vários momentos que o Discurso é
de 1844; entretanto, a informação dada logo no início da tradução é que a
“primeira edição” seria de 1898 e a “segunda”, de 1908. Esses dois erros são
bem menos escusáveis e são bem mais devidos às decisões das organizadoras da
coleção e/ou do tradutor. A decisão que eles tomaram, juntamente com a inclusão de um suposto subtítulo, foi a exclusão às referências de que a edição
que empregaram para traduzir o livro era a edição comemorativa do centenário de
nascimento de Augusto Comte. No alto da folha de rosto do original está escrito
com todas as letras, de maneira muito clara e em caixa alta: “Edição do
centenário de Augusto Comte”. Mais do que isso: na suposta “primeira edição”,
há apenas um “Aviso do editor”; no final desse “Aviso” há uma nota adicional,
cujo início é o seguinte: “Nesta segunda edição...”. Embora haja aí uma
ambigüidade a respeito da “segunda” edição, o fato é que não há nenhum título,
como aparece na atual versão brasileira (“Nota do editor à 2ª edição”) e, de
qualquer maneira, deveria ser evidente que se trata de uma segunda edição em relação à versão comemorativa
anteriormente publicada. Nada disso está claro na atual versão da coleção
“Os pensadores”; mas, como já indicamos, uma simples consulta aos positivistas
brasileiros resolveria tudo isso com rapidez e facilidade.
Fonte: https://archive.org/details/discourssurlesp00parigoog/page/n21/mode/2up.
Por fim: limitando-nos à “Nota
do editor da 1ª edição” (cuja tradução correta seria “Aviso do editor”),
notamos que na edição brasileira o ano de 1851 – em que o v. 1 do Sistema de política positiva foi
publicado – aparece como sendo 1951. Mais uma vez, um erro que poderia ser
muito facilmente sanado com uma consulta simples aos positivistas brasileiros.
Para concluir estes comentários,
vale a pena lembrarmos que não é só a atual versão dos “Pensadores” que trata
mal o volume dedicado a Augusto Comte: as edições anteriores cometeram também erros
mais ou menos graves no volume dedicado a Augusto Comte; esses erros foram
deliberados desde o início e sua perpetuação, ao longo das várias edições da
coleção, foi igualmente deliberada. Sem nos deter em pormenores, podemos de pronto indicar
quatro problemas:
1) o
emprego da forma francesa para o prenome do pensador, contra o uso consagrado
no Brasil;
2) o
uso de “h” minúsculo para escrever “Humanidade” – que, tanto nos originais de
Comte quanto nos escritos da Igreja Positivista do Brasil e dos positivistas
brasileiros de modo geral, sempre foram escritos com “h” maiúsculo –;
3) a
inclusão de um parágrafo presente no “Prefácio” da primeira edição francesa do Catecismo positivista, em que A. Comte
refere-se ao czar Nicolau I: esse parágrafo Comte decidiu suprimir das edições
seguintes, o que foi feito na tradução brasileira desse volume, da lavra de
Miguel Lemos, mas que a editora Abril Cultural, por obra de J. A. Gianotti,
decidiu incluir novamente – sem que essa inclusão indevida fosse explicada ou
justificada e ainda menos afirmada com clareza para os leitores –;
4) um
erro tipográfico presente no título do Calendário positivista concreto, o
famoso “Calendário histórico” positivista. O título correto é “Calendário
positivista para um ano qualquer ou quadro concreto da preparação humana”;
entretanto, na palavra “preparação” faltou o “p” inicial, convertendo a palavra
em “reparação”. O sentido de cada uma das duas palavras é muito diferente e,
sem sombra de dúvida, gera equívocos.
- Platão – A República
- Auguste Comte – Discurso sobre o espírito positivo
- bell hooks – Ensinando a transgredir
- René Descartes – Regras para a orientação do espírito
- Max Weber – Ciência e política: duas vocações
- Voltaire – O preço da justiça
- Claude
Lévi-Strauss – Antropologia estrutural
- Santo Agostinho –
Sobre a mentira
- Michel Foucault –
A sociedade punitiva
- Mary
Wollstonecraft – Reivindicação dos
direitos das mulheres
- Jean-Jacques
Rousseau – Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens
- Nicolau Maquiavel
– A arte da guerra
- Adam Smith – Teoria dos sentimentos morais
- Karl Marx – Manuscritos econômico-filosóficos
- Frédéric Bastiat
– A lei
- Carter G. Woodson
– A (des)educação do negro
- Aristóteles – Sobre a alma
- Ludwig von Mises
– As seis lições
- Immanuel Kant – Crítica da razão pura
- Luiz Gama – Humor e crítica: armas do pioneiro
abolicionista
- Étienne de la
Boétie – Discurso sobre a servidão
voluntária
- Ruth Benedict – Padrões de cultura
- Émile Durkheim – As regras do método sociológico
- John Stuart Mill
– Sobre a liberdade
- Arthur
Schopenhauer – A arte de ter razão
- Friedrich Hayek –
O caminho da servidão
- Edison Carneiro –
Ladinos e crioulos
- Ludwig Feuerbach
– A essência do cristianismo
- Thomas Hobbes – Leviatã
- Leo Strauss – Direito natural e história