Ele é a segunda versão, reduzida, de um texto intitulado "Aplicando Comte atualmente, ou sobre a relevância contemporânea do Positivismo": esse texto maior não foi publicado porque ultrapassava os limites de tamanho da revista.
Assim, como o texto original tinha algumas observações que não foram publicadas, pode ser interessante publicá-las; por esse motivo, ele está disponível abaixo.
* * *
Aplicando
Comte atualmente,
ou
sobre a relevância contemporânea do positivismo[1]
Gustavo
Biscaia de Lacerda
1) Introdução
Filosofia,
política e até religião criada no século XIX, designado por uma palavra cujo
sentido tornou-se amplamente polissêmico (embora atualmente com um forte viés
negativo), pode parecer pelo menos curioso falar-se nesta segunda década do
século XXI em “relevância contemporânea do positivismo”. Afinal de contas, sem
muito rigor costuma-se associar-se a ele as mais variadas idéias, muitas delas
consideradas datadas ou que se gostaria que o fossem: higienismo,
cientificismo, evolucionismo, eurocentrismo, racionalismo, empirismo,
iluminismo etc. Além disso, integram o senso comum acadêmico na forma de
anedotas algumas particularidades da vida e da obra de Augusto Comte, o
fundador do positivismo: o casamento com uma prostituta, a crise mental, a
paixão platônica, a fundação de uma nova religião; tais anedotas, também com
freqüência, soem constituir o grosso do que se “conhece” a respeito do tema.
Para
piorar, embora o uso das palavras “positivismo” e “positivista” sejam de uso
recorrente na academia, a par das suas intensas polissemias o sentido
específico atribuído a elas não é claro, ou seja, elas designam ou podem
designar muitas coisas mas não se tem clareza a seu respeito. Por exemplo: é
perfeitamente possível (embora incorreto) em uma discussão historiográfica
falar-se em “positivismo” e indicar que um dos seus precursores ou principais
autores teria sido A. Comte, sem ter clareza de que o positivismo na história
refere-se mais a Leopold von Ranke e que a obra de Comte aproxima-se mais da
Escola dos Anais (REIS, 2006).
Tratar
da “relevância contemporânea do positivismo” exige, portanto, um sério esforço
preliminar de esclarecimento dos termos empregados, ou seja, de uma “limpeza do
campo” e distinções conceituais. Esse exercício não é propriamente simples,
pois, embora seja mais ou menos fácil distinguir (digamos) o positivismo
comtiano do positivismo historiográfico, a delimitação do que a Sociologia e a
Ciência Política praticadas nos Estados Unidos chamam de “positivismo” é muito
mais problemática: enquanto as idéias de Comte e de Ranke estão explicitadas em
suas obras, sendo possível consultá-las diretamente na fonte e determinar com
precisão o que eles disseram – ainda que sempre haja espaço para problemas de
interpretação –, o positivismo sociológico estadunidense é o resultado da
confluência de pelo menos três tradições
(a das pesquisas empíricas de Chicago, a do empirismo lógico e a do
evolucionismo europeu) que deram origem, por sua vez, a uma quarta tradição, ou
seja, a um modo de pensar mais ou menos difuso, mais ou menos
institucionalizado, mas a que apenas com dificuldade pode-se atribuir nomes
específicos (cf. BRYANT, 1985; 1989)[2].
Da
mesma forma, outras correntes e tradições apresentam vagamente o positivismo a
fim de definirem suas próprias posições a
contrario: os exemplos mais fáceis são o da Escola de Frankfurt e o
autodenominado “pós-positivismo” na disciplina acadêmica das Relações
Internacionais. No que se refere aos frankfurtianos, a participação de T.
Adorno e J. Habermas na célebre “disputa sobre o positivismo na Sociologia
alemã”, ocorrida ao longo da década de 1960 (cf. ADORNO, 1976), ilustra com
clareza esse aspecto: ambos os autores elaboraram um conceito de positivismo
que não correspondia a nenhuma das suas variedades até então conhecidas e
praticadas, mas, bem ao contrário, a uma idéia que eles tinham do que seria o positivismo: o objetivo não era dialogar
com um ou outro autor, vivo ou morto àquela época[3],
mas expor, na melhor das hipóteses, um modelo por eles definido e, na pior das
hipóteses, uma caricatura a ser mobilizada no sofisma do espantalho[4].
No
caso do chamado “pós-positivismo” a situação é um pouco distinta, pois ele
refere-se a uma pluralidade de perspectivas, que se entendem como desde fortemente discordantes até contrárias ao “positivismo”. Em todo
caso, a definição de positivismo é igualmente problemática, ora aproximando-se
do que a Sociologia estadunidense entende por tal palavra, ora aproximando-se
de outras concepções (como a da Escola de Frankfurt).
De
modo mais amplo, é fácil concordar com a observação de Loïc Wacquant (1996),
segundo a qual o “positivismo” passou de uma palavra com sentido fortemente
positivo (entre o século XIX e meados do século XX) para uma com sentido
fortemente negativo (aproximadamente a partir da década de 1960), chegando a
ser uma espécie de xingamento acadêmico e intelectual.
Não
importa, neste momento, fazer as distinções sugeridas acima; de nossa parte, em
outro lugar já as propusemos para alguns casos (LACERDA, 2009a), bem como
alguns outros autores também já o fizeram a respeito de outras áreas (Norberto
Bobbio (1995) para o Direito, José Carlos Reis (2006) para a História). O que
importa indicar é a necessidade de tais distinções para tratar do “positivismo”,
por mais cansativo e aborrecido que seja tal exercício intelectual (e por mais
cansativo e aborrecido que seja sua reafirmação e sua recapitulação em discussões
como a presente).
Feitas
essas observações iniciais, convém afirmar algo que está implícito até aqui: ao
tratarmos do “positivismo”, consideraremo-lo equivalente à filosofia, à
política e à religião elaborados por Augusto Comte – seja para afirmar-se o
parâmetro utilizado aqui, seja porque a palavra “positivismo” foi criada por A.
Comte para referir-se ao próprio sistema.
Por
outro lado, também convém refletirmos sobre o que significa, ou significaria, a
sua “relevância contemporânea”. Os profissionais ligados às elaborações mais
recentes da área acadêmica da História das Idéias (ligados à Escola de
Cambridge, à História dos Conceitos, à História Conceitual do Político) soem
afirmar que toda elaboração intelectual é historicamente localizada, com isso
querendo dizer que só é possível entender uma idéia se ela for devidamente
contextualizada em termos políticos, sociais e intelectuais – embora a idéia de
“contexto” possa sofrer maiores ou menores ampliações em termos de seu escopo,
isto é, de sua duração cronológica. Essa idéia, simples e importante em si
mesma, pode conduzir a exageros como o de aceitar idéias apenas estritamente
nos contextos específicos em que foram elaboradas, rejeitando, inversamente, a
sua transposição para outros períodos
ou, o que é até certo ponto equivalente, a sua adoção por outros períodos: esse exagero poderia, quem sabe, ser
denominado de “hipercontextualismo” e impede in limine que idéias antigas sejam adotadas em períodos posteriores[5]
(embora isso não venha ao caso).
É
claro que esse exagero não nos pode impedir de reconhecer a validade e a
necessidade teórica e metodológica da contextualização: situar uma obra no
período em que foi escrita permite compreender quais os desafios políticos,
sociais e intelectuais com que ela deparava-se no momento em que era escrita e,
assim, a que procurava responder e/ou solucionar; os autores e atores com que a
obra dialogava, quem criticava, em quem apoiava-se e assim por diante. Nesse
sentido, parece claro que a contextualização permite entender melhor – alguns
diriam “adequadamente” – a própria obra.
Entretanto,
falar em “atualidade” de uma obra implica dar um passo além da
contextualização: implica transportá-la para os dias atuais e fazer um esforço
teórico para adaptá-la às condições sociais, políticas e intelectuais
presentes. Ou melhor: procurar adaptá-la para o momento presente naquilo que
ela é mais “datada” ou mais “enraizada” no contexto em que foi produzida, assim
como aplicar, na medida do possível, aqueles elementos que são mais atemporais
ou cujos contextos abrangem períodos mais amplos[6]. Considerando
que a investigação, ou proposição, da “atualidade” de uma obra envolve um
exercício de imaginação, isto é, corresponde por si só a um esforço de
teorização (social, política, estética, científica), talvez seja mais fácil de
compreender a restrição que apresentamos há pouco a respeito da “hipercontextualização”:
se aferrarmo-nos a um determinado contexto e ao enraizamento de uma obra nesse
contexto, será impossível transportar para outro momento no tempo e outro lugar
no espaço as idéias contidas na obra – e, portanto, a sua utilidade será
diminuída e, como sugeriu P. Rosanvallon, essa experiência histórica pode ser
desperdiçada.
Em
que pese o aspecto mais puramente acadêmico dos comentários acima – no sentido
bourdieusiano de referência cerimonial aos maîtres
à penser do momento (BOURDIEU, 2011) –, eles têm uma importância lógica
para a presente discussão: afinal de contas, não se pode, isto é, não seria
aceitável falar-se pura e simplesmente, de maneira impune, em “atualidade do positivismo”.
Como lembramos anteriormente, é o antigo colaborador do próprio Bourdieu (WACQUANT,
1996) quem observou que o positivismo atualmente é um termo intelectualmente
pejorativo, a ser utilizado em disputas intelectuais contra os adversários; ele
é o “outro teórico”, a ser negado, desprezado, rejeitado (cf. LACERDA, 2009a),
ainda que devendo sempre estar sub-repticiamente presente: como seria possível,
nesses termos, que houvesse alguma outra atualidade para o positivismo além da
sua completa negação?
Ao
contrário das perspectivas que apodam ao positivismo uma função negativa a priori, um exame cuidadoso da obra de
Comte sugere que, talvez, seja possível falar-se em sua “atualidade”. Para isso,
reafirmemos, a limpeza preliminar do campo (intelectual, semântico,
institucional) é condição sine qua non;
em seguida, importa delimitar o que se entende por positivismo de Augusto
Comte: por um lado, a integralidade de sua obra, incluindo aí também, e principalmente,
o que se chama de sua obra religiosa,
isto é, os livros, os documentos e as cartas escritas após 1846, após o
encontro com Clotilde de Vaux e o que se chamou de “l'année sans pareille”, “o ano sem par”, até a morte do fundador da
Sociologia, ocorrida em 1857. O grosso da produção comtiana encontra-se nesse
lapso temporal: o Discours sur l'ensemble
du positivisme (1848), o Système de
politique positive (1851-1854), o Catechisme
positiviste (1852), o Appel aux
conservateurs (1855), a Synthèse
subjective (1856), centenas de cartas, várias obras menores e os projetos
políticos e sociais elaborados pela Sociedade Positivista durante a breve
existência da II República francesa (1848-1851). Assim, por outro lado,
incluímos na rubrica de “positivistas” os discípulos e seguidores chamados de “ortodoxos”,
isto é, que aceitavam a obra religiosa, em contraposição aos que aceitavam
apenas a obra científica (ou seja, o Système
de philosophie positive, 1830-1842) e que eram chamados de “heterodoxos”[7]:
entre estes estão John Stuart Mill e Émile Littré e, entre aqueles, Pierre
Laffitte e os brasileiros Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes[8].
As diferenças, dissensões e disputas entre os sub-ramos dos ortodoxos eram
inúmeras e variadas; por exemplo, tornou-se famosa a ruptura ocorrida em 1883
entre os brasileiros e Laffitte: mas, ainda assim, sem entrar no mérito de tal
separação, é bastante útil aceitarmos a produção intelectual de ambos esses
subgrupos ortodoxos, especialmente para os fins que nos interessam – isto é,
para tratar-se da atualidade de Comte[9].
Uma
última observação preliminar, que já se constitui também em uma sugestão da
atualidade do positivismo, é a respeito do “caleidoscópio epistemológico”
comtiano, conforme a feliz expressão de Angèle Kremer-Marietti (2007). Para os
conhecedores de Comte é mais ou menos lugar-comum a idéia de que sua obra é ao
mesmo tempo sistêmica e sistemática, ou seja, Comte desenvolve em seus escritos
progressivamente as suas concepções, ampliando os conceitos e relacionando-os
uns aos outros. A visão de conjunto predomina, no duplo sentido de que (1) a
perspectiva geral dá o tom e orienta as perspectivas particulares e (2) de que
um elemento relaciona-se de várias maneiras a outros elementos. Ora, o
caleidoscópio é um aparelho com uma quantidade limitada de pedras coloridas, que,
movimentado, revela sempre outras e novas configurações; da mesma forma, cada
um dos capítulos dos livros comtianos sugere sempre outras perspectivas, outras
possibilidades a serem desenvolvidas com outros elementos já expostos ou a
expor, dependendo do capítulo e do livro que se leia. Da mesma forma, como
notou Ângelo Torres (1997), uma das características da redação de Comte é a sua
ambigüidade – não em um sentido
negativo, de frases ou palavras com duplo sentido (ou sentido triplo, quádruplo
etc.) e cujo sentido específico não seja possível determinar, mas uma ambigüidade positiva, constituída pela
incorporação progressiva de vários sentidos e, assim, pela ampliação do campo
semântico das palavras e dos conceitos empregados. Esses dois aspectos (o “caleidoscópio
epistemológico” e a ambigüidade estilística) sugerem um caráter
intelectualmente “aberto” do pensamento comtiano – aliás, em contraposição às
interpretações usuais, que o percebem como fechado, devido a ele constituir-se
como um “sistema”.
Todos
esses comentários preliminares são necessários para termos clareza a respeito
do que estamos tratando. Dito isso, podemos passar a examinar a atualidade do positivismo,
ou seja, quais os seus aspectos que, de maneira mais ou menos evidente, têm
aplicação ou utilidade no século XXI, seja no Brasil, seja no mundo. Esses
aspectos terão um viés razoavelmente claro, vinculados à nossa área de trabalho
e de formação acadêmica: as sugestões abaixo tendem a referir-se a problemas
políticos, a questões sociológicas ou, ainda, em menor escala, a temas
epistemológicos. É claro que se fôssemos engenheiros, músicos, psicólogos,
literatos, médicos ou outros profissionais, proporíamos ainda outras
possibilidades; nesse sentido, o rol abaixo não tem a menor pretensão de esgotar
o assunto.
Em
um texto de alguns anos atrás (LACERDA, 2009b) elaboramos uma relação
preliminar de 12 elementos do positivismo que, parece-nos, apresentam grande
atualidade; pretendíamos seguir aqui tal relação, acrescentando vários outros
itens, que seriam expostos mais ou menos em ordem alfabética. Todavia, à medida
que redigíamos este artigo, vimos ser impossível seguir tal procedimento – não
porque as sugestões não se revelassem frutíferas ou porque a ordem alfabética
não fosse adequada, mas, justamente ao contrário, os itens que propusemos
desenvolveram-se tanto que exigiriam um texto bem maior que um texto de tamanho
regular para serem expostas. Assim, decidimos limitar a exposição aos seguintes
itens, que correspondem às demais seções deste artigo: sentidos da palavra “positivo”;
reencantamento do mundo; afirmação da sociedade civil; defesa de relações
sociais pacíficas. Convém notar, de qualquer maneira, que o estilo das próximas
seções será expositivo – no sentido específico de que as idéias comtianas serão
expostas, mas não haverá contraposição com autores, teorias, concepções
contemporâneas (pelo menos, não haverá contraposições sistemáticas); isso se
deve à extensão do texto e requererá, da parte do leitor, um pouco do exercício
de sua erudição.
2) Sentidos
da palavra “positivo”
Comecemos
com a palavra “positivo”, que por derivação dá nome ao sistema comtiano e que é
empregado amiúde em seus livros. Tratar dessa palavra permite ao mesmo tempo entender
algumas idéias do sistema comtiano e expor elementos cuja atualidade é mais
manifesta.
A
palavra “positivo” foi utilizada inicialmente (como em Comte (1972)) tendo como
referência os “conhecimentos positivos”, definidos em contraposição às idéias teológicas
e metafísicas, ou seja, sendo sinônimos de conhecimentos científicos, isto é,
de conhecimentos que sejam de alguma forma ao mesmo tempo racionais e empíricos
(e/ou passíveis de verificação)[10].
Nesse sentido inicial, o “positivo” e, de maneira mais ampla, cada um dos
“estágios” da lei dos três estágios refere-se a uma forma de conceber a realidade, o que, no vocabulário atual, pode
ser lido aproximadamente como um parâmetro de “interpretação” (em um sentido
próximo ao weberiano), ou uma “episteme”, ou um “paradigma”[11].
A esse sentido amplo soma-se a exigência de base empírica das teorias, com isso
se indicando que os verdadeiros conhecimentos referem-se àquilo que existe de
fato – embora evidentemente seja sempre possível teorizarmos coisas que não existem.
Na afirmação comtiana do conhecimento positivo não há nenhuma restrição à
teorização em si, nem à formulação de hipóteses explicativas. Por outro lado, não
há aí nenhuma exigência de que a todo instante seja necessária a referência a
objetos empíricos e, de modo mais importante, o pensamento comtiano rejeita a
concepção de que o conhecimento seja a mera coleção de dados empíricos
(eventualmente com a adição de alguma inferência generalizante, mais ou menos
rasteira). Como explicitado no Discurso
sobre o espírito positivo (COMTE, 1992), para Comte o conhecimento positivo
é acima de tudo teórico, constituído
pelas leis naturais: a base empírica é requisito necessário para elas, mas não
elas não se resumem à empiria. Além disso, considerando em termos mais amplos
as necessidades intelectuais do ser humano – ou seja, suas necessidades de ter
uma compreensão geral e coerente do próprio ser humano, da sociedade e do mundo
–, a base empírica é necessária, mas não é suficiente: nesse sentido, Comte
considera aceitável o uso de ficções ao mesmo tempo racionais e afetivas para
coordenação das idéias e dos sentimentos (e, daí, das ações), desde que se assuma
e tenha-se clareza tanto o caráter subjetivo de tais idéias quanto os
conhecimentos objetivos de base. Evidentemente, há uma grande distância entre o
que é “positivo” em oposição à teologia e à metafísica e o que é “positivo”
como sendo, também, o recurso teórico para coordenação teórica e mental: tal
distância foi percorrida paulatinamente por A. Comte, dos Opúsculos de filosofia social (1815-1826) e do Système de philosophie positive (1830-1842) ao Système de politique positive (1851-1854); não por acaso, tal
passagem corresponde também ao trânsito das reflexões mais científicas para as
religiosas.
De
qualquer maneira, a distinção entre o conhecimento positivo e o mero empirismo
evidencia a inadequação da identidade, com freqüência afirmada, entre positivismo
e empirismo: essa identidade é muitas vezes defendida com o fito de afirmar-se
a relevância de perspectivas ditas teorizantes, “subjetivistas” e mesmo “metafísicas”[12],
associando-se implícita ou explicitamente ao positivismo uma postura
antiteórica[13].
Mas
como o próprio desenvolvimento da obra comtiana sugere, é possível e mesmo necessário
dar um passo além e perceber que o conhecimento positivo permite um regime
intelectual, social e político mais amplo, caracterizado pela positividade; esta, por sua vez, seria
definida pelos seguintes atributos: real, útil, certo, preciso, relativo,
orgânico e simpático. A compreensão de cada uma dessas características é
facilitada pela contraposição a seus opostos: real vs. irreal (ou fictício); útil vs.
inútil; certo vs. incerto; preciso vs. vago; relativo vs. absoluto; orgânico vs.
crítico (ou destruidor); simpático vs.
antipático (ou egoísta).
Não
é possível aqui comentar cada uma das características da palavra positivo, pois
tal exercício ocuparia muito espaço[14];
o que importa notar é que para Comte todas essas características participam de
maneira integral da positividade e do “espírito positivo”. Na verdade, lendo-se
as obras da sua fase “religiosa”, o que se evidencia é que, tomando-se como
pressupostos os quatro primeiros elementos – real, útil, certo e preciso, que
têm um aspecto por assim dizer mais epistemológico –, os outros três atributos
– relativo, orgânico, simpático, cujo aspecto social é mais evidente – assumem
grande importância: não por acaso, é nessa fase que Comte desenvolve
cuidadosamente suas reflexões políticas.
Expor
tão rapidamente a palavra positivo pode parecer insuficiente – e nossa
tendência é concordarmos. Ainda assim, é possível extrair duas ou três conclusões
parciais a partir dos elementos apresentados acima. Em primeiro lugar, há um
aspecto de desmistificação do positivismo,
ao indicar-se como a palavra que resume muito do pensamento comtiano é mais
complexa do que se costuma considerar: na intensa ambigüidade da palavra
“positivo” é difícil perceber uma concepção simplista, seja da realidade
humana, seja da ciência. Em segundo lugar, os elementos reunidos estabelecem
parâmetros lógicos, morais e políticos para avaliação dos conhecimentos
produzidos, em um sentido que não é apenas epistemológico (“o que e como
podemos conhecer?”), mas também prático: “para quê (e para quem) devemos
conhecer?”. Como lembrou há alguns anos Michel Bourdeau (2011), o conceito
comtiano de “utilidade” está longe de ser meramente técnico ou de sugerir a
aplicação imediata e material dos conhecimentos – o que se aplica também e em
particular às teorias: afinal, as idéias orientam a realidade humana e
estimulam diferentes padrões de comportamentos e de sentimentos; nesse sentido,
para Comte o conhecimento deve servir para o aperfeiçoamento humano, que é
antes de tudo moral[15].
Em terceiro lugar, a consideração integral da palavra “positivo” permite o
estabelecimento de um quadro de referência transdisciplinar, em que não apenas
as disciplinas científicas são integradas e vistas em conjunto, como também os
mais variados aspectos da existência humana (sentimentos, inteligência, ação
prática; artes, filosofia, ciências, indústria, política; educação) são
integrados[16].
3) “Reencantamento
do mundo”
É
interessante notar que, embora afirmasse a racionalidade científica como
instrumento para conhecer a realidade, Comte não a estabelecia em princípio e
fim da existência humana: tal papel duplo de início e fim seria ocupado pelos
sentimentos, isto é, pelos diversos tipos de afetos, dos quais se deveria
estimular os altruístas e comprimir (mas não erradicar) os egoístas. O estímulo
ao altruísmo ocorreria por meio das relações humanas diretas e também por meio
de ações práticas as mais variadas, em que se pode incluir desde, por exemplo,
a cooperação com vistas ao bem comum até o que poderíamos chamar de “práticas
de memória”, como os cultos individual e doméstico aos antepassados familiares,
a recordação dos grandes tipos da história da Humanidade e de cada país etc.
Comte
também a prece positivista, cuja função é estimular o altruísmo por meio da
veneração, do apego e da bondade, bem como da compressão do orgulho, da
vaidade, do instinto destrutivo etc.; ela serve ao mesmo tempo como um
instrumento de exame de consciência e como um exercício de preservação da
memória dos entes queridos, além de ser um exercício poético individual. De
maneira complementar, a posse de objetos, o reconhecimento de caminhos e
procedimentos, a lembrança de situações compartilhadas etc. dos entes queridos
são outras tantas formas de manter-lhes viva a memória e estimular o altruísmo
(cf. p. ex. COMTE, 1996, 4ª conferência). Nesse sentido, L. Fedi (2008, p.
174-175) notou o quanto o apelo comtiano aos cultos individual e doméstico aproxima-se
das práticas de judeus contra o esquecimento e a destruição sistemática de
vidas que ocorreram no século XX.
Mas,
de maneira mais radical, é possível adotar uma certa interpretação da expressão
“reencantamento do mundo” para o universo comtiano, por meio do que vários
autores chamaram de “neofetichismo”. A idéia do neofetichismo foi proposta pelo
próprio Comte e consiste em assimilar o fetichismo ao positivismo, ou seja, em considerar
que o planeta Terra e o meio ambiente têm vida, caracterizada pelos sentimentos,
mas não pela inteligência: para Comte, essa hipótese deve ser assumida como subjetiva, ou seja, como uma ficção útil, cujo fim é desenvolver o
afeto humano e ligá-lo ao ambiente em que vive, ao mesmo tempo permitindo e
limitando a ação humana sobre o planeta (no sentido de evitar exageros e
desvios). Além disso, o “neofetichismo” é a base para um sistema mais amplo de
abstrações destinadas a coordenar, regular e guiar sentimentos, inteligência e
atividade humanas: esse sistema é o que A. Comte chamou de “trindade positiva”,
composta pelo “Grão-Ser”, pelo “Grão-Meio” e pelo “Grão-Fetiche” (respectivamente
a Humanidade, o Espaço e a Terra) (cf. COMTE, 1856; 1929, v. IV). Esses
conceitos foram elaborados tendo em vista que o ser humano possa perceber-se
como integrando um lugar no espaço e também na história, ao mesmo tempo que
respeitando ambos à medida que age e modifica o espaço terrestre e a sociedade
em que vive (cf. GRANGE, 1996).
Como
observou Pierucci (2003), a expressão “desencantamento do mundo” foi
popularizada pela obra de Weber e refere-se mais propriamente ao processo de “desmagificação”
da realidade, promovida por inúmeras concepções racionalizantes do universo, entre
as quais se incluem mesmo algumas teologias: nesse sentido, não é adequado
afirmar que o positivismo busca “reencantar” o mundo, pois ele não visa a
reinstituir nenhum aspecto “mágico”; nesse sentido, J. Grange (1996, p. 360)
está correta ao afirmar que o positivismo não “reencanta” o mundo. Mas, por
outro lado, a valorização subjetiva – assumidamente fictícia e com intenções
racionais e afetivas – do planeta Terra e do espaço, bem como a incorporação
dos animais e das plantas domesticados no conceito de Humanidade, tornam pleno
de sentido e afetivamente importante o mundo em que vive o ser humano. Ampliado
e adensado nos termos propostos por A. Comte, o conceito de “(meio) ambiente”, embora
seja o lócus da ação humana, não é o local frio em que se pode agir e dispor ao
bel-prazer[17].
Seja
pela relação com a memória, seja pela proposta do “neofetichismo”, o positivismo
promove uma profunda valorização da existência humana, naquilo que ela tem e
pode ter de positivo. O que importa notar é que essa valorização vai na direção
contrária da progressiva perda de sentido que a ação corrosiva da ciência sobre
a teologia acarreta – ao mesmo tempo em que também vai na direção contrária de
inúmeras filosofias contemporâneas (niilistas, pós-modernas e/ou
ultracontextualistas), que afirmam orgulhosas a inexistência e a
impossibilidade de sentido na vida humana.
4) Afirmação
da sociedade civil
As
idéias políticas de Augusto Comte são usualmente resumidas na sua proposta de “ditadura
republicana”, em que o destaque é concedido à palavra “ditadura”, entendida
como governo forte e autoritário – de preferência mantido por militares – e em
caráter permanente. Entretanto, a proposta política positivista afirma
precisamente o contrário desse senso
comum: a “ditadura republicana” é um governo civil temporário (porque
estritamente transitório) caracterizado pelas liberdades públicas, das quais as
mais básicas e importantes são as liberdades de pensamento, de expressão e de
associação: em vez de basear-se no autoritarismo e na violência, a “ditadura
republicana” deve estimular as relações sociais pacíficas[18].
Na
verdade, o regime político ideal para
Comte deve corresponder a uma sociedade
ideal, ambos sendo caracterizados pela expressão “sociocracia” (nome dado de
maneira paralela à teocracia, que, grosso
modo, seria o regime da teologia). Tanto o regime político quanto a
sociedade ideais, no pensamento comtiano, correspondem à conjugação de dois
elementos: um histórico-científico e outro utópico. A parte
histórico-científica baseia-se no estudo do ser humano, em termos individuais e
coletivos, bem como em suas relações com o mundo de que faz parte: esse estudo
permite que se conheça as suas características, suas possibilidades e seus
limites, ou, nos termos comtianos, ele revela as leis naturais sociológicas
(que aliás têm um caráter histórico), morais e naturais. A partir desse
conhecimento, é possível elaborar um futuro ideal e idealizado, com isso se
querendo referir tanto ao quadro que a história pretérita indica de maneira
concreta quanto à realidade que essa história sugere ser possível ao ser humano
alcançar. Em outras palavras, com base na história é possível sugerir a
sociedade mais adequada ao ser humano positivo, com base na “descrição” é
possível sugerir prescrições: é dessa forma que, no Système de politique positive, o “quadro do futuro humano” (v. IV)
é possível e proposto após os exames preliminares da situação cósmica (v. I),
da “estática social” (v. II) e da evolução histórica (v. III).
Assim,
na sociocracia a “sociedade industrial” e o “espírito positivo” andam de braços
dados, resultando e produzindo relações sociais pacíficas. Como vimos antes, o
espírito positivo caracteriza-se, entre outros elementos, pelo relativismo, o
que, nesse caso específico, equivale a perceber que a organização
sócio-política humana corresponde às necessidades humanas e que varia ao longo
da história e do espaço; além disso, tais variações permitem o desenvolvimento
de atributos humanos, que vão acumulando-se variadamente com o passar do tempo.
Da mesma forma, o relativismo implica a possibilidade de discussão e de
reflexão sobre os fundamentos e os procedimentos adotados: tais discussão e
reflexão não são fins em si próprios, ou seja, não se discute por discutir, mas
para que se compreenda a organização social, para que busque seu
aperfeiçoamento e, claro, para que a estrutura social tenha a adesão dos
cidadãos.
De
maneira correlata, em inúmeras passagens do Système
de politique positive, Comte nota que o absolutismo filosófico, com sua
busca de causas primeiras e finais e de perspectivas que independam da situação
do ser humano no mundo, tende a rejeitar o debate e a reflexão; suas respostas
para os problemas que investiga e as suas propostas sociais são “reveladas” e,
nesse sentido, devem ser pura e simplesmente aceitas. Em termos
sócio-políticos, portanto, o absolutismo tende a gerar a aceitação passiva e
irracional da ordem social; nos casos em que convive com o pluralismo, tal
convivência decorre ou da tolerância condescendente que uma revelação mantém
para com as demais, ou de uma solução de compromisso entre as várias
revelações, ou de uma situação em que ele perde espaço para outras concepções
da realidade. O resultado sócio-político do absolutismo, portanto, é que ele
tende a beneficiar regimes políticos que não aceitam o debate, nem a reflexão,
nem a crítica.
Na
proposta comtiana, a “sociedade industrial” consiste por seu turno na
organização racional e na divisão sistemática do trabalho. De maneira mais
ampla, para Comte a “indústria” consiste na ação humana sobre o planeta e, em
termos histórico-conceituais, ela opõe-se às “sociedades guerreiras”. As
sociedades guerreiras, como o próprio nome indica, são sociedades organizadas
em função da guerra, isto é, dos conflitos armados entre grupos sociais; na
análise histórica comtiana, após deixarem o extermínio mútuo, tais conflitos
passam da busca da conquista de outros povos (como ocorria na Antigüidade), ou
seja, ofensivos, para os conflitos defensivos (como nas Cruzadas); por fim, os
hábitos e valores guerreiros são substituídos pela valorização da vida, da
preservação dos bens e das propriedades e pela consideração de que se vive
melhor com a indústria e o comércio que com a guerra – e, inversamente, de que
a guerra destrói vidas e bens e diminui a riqueza e o bem-estar. A passagem das
sociedades guerreiras para as sociedades industriais implica, evidentemente, a
mudança de valores sociais – da glória e da honra para o conforto e o bem-estar
–, assim como a decadência e mesmo extinção de alguns grupos sociais,
juntamente com a ascensão de outros grupos sociais.
Na
sociedade industrial a interdependência dos grupos sociais (resultantes da
divisão do trabalho) torna-se mais evidente e, daí, a noção de dever ganha mais
força: todos os grupos devem cooperar entre si, cumprindo seus deveres, em vez
de buscarem privilégios e sua satisfação por meio dos “direitos”. Diferentes
posições na sociedade implicam diferentes deveres: quanto maiores os deveres,
maiores devem ser os meios para satisfazê-los e, ao mesmo tempo, maiores devem
ser as cobranças para tais satisfações. Em outras palavras, os ricos e
poderosos têm riqueza e poder não para usarem e abusarem a seu bel-prazer de
tais recursos, mas para empregarem-nos em benefício da sociedade. Os conflitos,
decorrentes das diferentes perspectivas e posições na sociedade, devem ser
solucionados pacificamente, tendo em mente o bem comum e os deveres mútuos.
Pois
bem: o conceito de sociocracia, diferentemente de grande parte da teoria
política existente até o século XIX, incorpora com clareza a noção de “sociedade
civil”, sendo que Comte usa precisamente essa expressão para referir-se ao
espaço público não-estatal[19].
A sociedade civil para Comte não se define de maneira apenas negativa (como
aquilo que não é estatal nem privado): ela tem um status social e político próprio,
correspondendo ao conjunto dos cidadãos, que trabalham, discutem, fiscalizam o
Estado e mantêm a opinião pública. Embora a distinção entre Estado e sociedade
civil evidencie por si só que A. Comte estabelece uma clara separação entre os
que detêm o poder político e os que não o detém – entendendo-se por “poder
político”, neste contexto específico, a capacidade de elaborar leis e de, em
último caso, apelar à violência física –, isso não equivale a dizer que a
sociedade civil esteja alienada de qualquer participação política e, portanto,
incapaz de exercer pressão e ter poder: o que é característico da sociedade
civil, como indicado há pouco, é a opinião
pública, ou seja, a possibilidade de a todo instante avaliar e, daí,
referendar ou rejeitar a organização social e também as políticas levadas a
cabo pelo Estado – o que conduz, portanto, ao conceito de legitimidade de um
governo.
Em
outras palavras, na teoria comtiana a sociedade civil é um dos dois pólos
principais da vida política; embora não seja o pólo por definição ativo, não é
possível qualificá-la propriamente de “pólo passivo” – exceto, é claro, se
considerar-se que a atividade política consiste apenas e tão-somente na
possibilidade de emitir as leis e de mobilizar as agências da violência (a
polícia, em particular). Assim, é mais adequado caracterizar a sociedade civil comtiana
como “pólo menos ativo” da política – ou ainda, de maneira mais precisa, ela
seria um pólo diferentemente ativo,
ao consistir na sede da opinião pública e também no conjunto da sociedade[20].
A efetiva atividade da sociedade civil na sociocracia pode ser avaliada pela
consideração de Comte de que o que se opõe e “equilibra” de fato ao poder do
Estado não é a fragmentação do Estado em dois, três, quatro, n “poderes”, mas é a própria sociedade
civil[21].
A
teoria histórica de Comte, com seus relatos sobre as conseqüências políticas e
sociais dos pensamentos absoluto e relativo, assim como sobre as sociedades
guerreiras e industrial, ganha mais relevância ao notar-se que a sociocracia só
pode viger em uma sociedade caracterizada ao mesmo tempo pelo espírito positivo
(relativo) e em uma sociedade industrial, seja porque em sociedades militares a
existência autônoma da sociedade civil não é tão clara, seja porque o
pensamento absoluto considera a crítica um ato de traição e/ou uma heresia,
seja porque sem o pensamento relativo as críticas podem ser motivadas pelo puro
espírito destrutivo.
De
modo mais específico, a opinião pública é organizada e mobilizada pelo Augusto
Comte chamada de “poder Espiritual”, ou seja, pelos pensadores que têm uma
perspectiva de conjunto da vida humana, no que se refere à sua história, à
situação do ser humano no mundo, às relações entre os vários grupos sociais (incluindo
aí os vários países), aos vários elementos da existência humana (artes,
ciência, filosofia, indústria, política, educação). O poder Espiritual exerce
funções de intérprete, de guia e de educador; devido à importância de tais atribuições e em paralelo
aos grupos que em séculos anteriores desempenharam-nas, Comte chama o conjunto
do poder Espiritual de “sacerdócio”. Os sacerdotes têm que ser uma combinação
de filósofos, sociólogos, pedagogos e conselheiros espirituais, realizando
desde uma “Sociologia pública” (como proposto por Michael Burawoy) até o
aconselhamento individual: nesse sentido, é interessante notar que suas
responsabilidades afastam do sacerdócio os meros cientistas (sejam os
cientistas naturais, sejam os cientistas sociais), devido à visão fragmentária
da realidade, bem como ao aspecto intelectualista da ciência[22].
Pois
bem: seja porque o poder Espiritual baseia sua influência no aconselhamento (e,
portanto, no respeito voluntário e pacífico que lhe é dedicado por seus
aderentes ou ouvintes), seja porque a possibilidade de fiscalização sobre o
poder político só pode ser feito por órgãos e agentes autônomos, seja porque o
uso do poder político pelos órgãos de aconselhamento degrada tais órgãos, seja
finalmente porque o poder político investido da capacidade de impor crenças
gera hipocrisia e cinismo, Augusto Comte afirma que tanto o poder Espiritual
quanto o “poder Temporal” (isto é, o Estado) têm que se manter estritamente separados.
Uma das conseqüências de tal separação é o que se chama vulgarmente de “laicidade
do Estado”, em que o Estado não professa, não protege nem persegue nenhuma
doutrina. Outra conseqüência é que na sociocracia os formadores de opinião não
podem deter o poder, seja o poder político, seja o poder econômico: para Comte,
a situação ideal é que eles sejam pobres (mas, evidentemente, não miseráveis), a fim de manterem sua
autonomia face aos poderes (políticos e econômicos).
5)
Defesa de relações sociais pacíficas
Nas
seções anteriores afirmamos várias vezes que para Comte as relações sociais têm
que ser pacíficas; é interessante nesta seção reafirmá-lo, desenvolvendo essa
concepção e indicando como ela relaciona-se com um ideal de bem viver,
desenvolvido em particular no v. IV do Système
de politique positive (1854) e no Appel
aux conservateurs (1855).
Na
sociocracia, como em qualquer regime, o Estado tem uma importante função
social, que consiste em organizar a vida material da sociedade e em manter as
relações com outros países: nisso não há novidade. Mas o Estado fundamenta-se
na força física: essa observação, que A. Comte adota de Hobbes, indica que
quanto mais as pessoas agem apenas em virtude do respeito às leis e apenas na
medida em que o Estado obriga, mais as pessoas submetem-se a relações sociais
baseadas na força. Para alterar tal quadro, é necessário que cada qual aja de
maneira correta porque está intimamente convencido de que precisa agir de
determinada forma, sem se ver obrigado a tanto pelo Estado. Isso,
evidentemente, implica que os cidadãos ajam cada vez mais a partir do
aconselhamento e da opinião, ao mesmo tempo que existam valores comuns
amplamente compartilhados pela sociedade, que indiquem quais são as
responsabilidades mútuas a partir do que se considera bom, correto, justo etc.
Em outras palavras, relações sociais (mais) pacíficas requerem o fortalecimento
da sociedade civil, da opinião pública e, em última análise, do poder
Espiritual; em outras palavras, requerem o fortalecimento da noção de “dever”
(às expensas da idéia de “direitos”).
O
ideal, portanto, é que as relações sociais sejam voluntariamente pacificadas;
todavia, diferenças de perspectivas e de interesses persistem, gerando
conflitos, que podem ser desde desacordos e disputas até greves ou rebeliões.
Todos esses movimentos podem ser mais ou menos legítimos (dependendo do
contexto específico), embora quanto mais extremos mais excepcionais eles devam
ser. Dessa forma, no pensamento positivista os chamados conflitos sociais são
aceitos e reconhecidos e, em determinadas condições, são até mesmo valorizados:
tal valorização é instrumental, como no caso da luta de classes, em que as
disputas entre patrões e empregados deve realçar a necessidade de instituição
do poder Espiritual positivo, a par da afirmação da visão de conjunto, dos valores
do pacifismo, da interdependência, das responsabilidades sociais mútuas, do
altruísmo.
Assim,
de modo geral, Comte reconhece a existência dos conflitos sociais e, ao
contrário do marxismo, que valoriza a violência e vê nos conflitos o “motor da
história”, para o positivismo os conflitos são historicamente datáveis e
datados. Como exposto acima, as sociedades militares já não têm vez e as
guerras só trazem destruição e desolação. Entretanto, como observamos há pouco,
perspectivas e situações particulares conduzem a diferentes interesses, que
eventualmente podem transformar-se em interesses conflitantes com os de outros
grupos: pacificamente, há que ocorrer a negociação entre as partes
interessadas, com ou sem mediação. Uma das partes em conflito pode sentir-se
continuamente prejudicada: apelos à opinião pública podem ser utilizados, assim
como manifestações públicas, campanhas etc., chegando mesmo à interrupção
temporária das atividades, ou seja, às greves: a negociação impõe-se, aí. Em
outras palavras, os conflitos devem ser solucionados tendo por parâmetro o
valor da fraternidade universal e, de qualquer maneira, rejeitando-se qualquer
instrumento violento.
Em
relação às atividades materiais, o Estado tem que manter uma visão de conjunto
para a sociedade; a despeito disso, ele pode desviar-se de suas funções, seja
por menosprezar aspectos da realidade social, seja por privilegiar um grupo às
expensas de outro(s), seja por egoísmo e/ou ignorância. Para Comte, a visão de
conjunto específica do governo é a que considera o tempo presente – é o que ele
chamava de “solidariedade”. De maneira complementar, a verdadeira visão de
conjunto, ou melhor, a visão de conjunto mais
completa incorpora tanto o aspecto histórico do ser humano (a “continuidade”,
no linguajar comtiano) quanto os aspectos não-materiais: por todos esses
motivos o poder Espiritual é mais apto a organizar a opinião pública. Dito
isso, é claro que pode surgir um conflito entre o Estado e o conjunto da
sociedade civil: nesse caso, os vários meios sugeridos acima para solução de
conflitos apresentam-se da mesma forma; mas, no limite, Comte reconhece que
pode ser necessária mesmo uma rebelião popular para persuadir-se o governo de
alterar de conduta. Esse é um aspecto interessante de sua sociocracia, pois
nela as forças armadas deveriam ser extintas, mantendo-se organizações de
imposição da força apenas com funções policiais, isto é, de manutenção da ordem
– e mesmo estas deveriam ser em número suficiente apenas para a estrita
manutenção da ordem, mas insuficientes para evitarem rebeliões populares[23].
Um
outro âmbito em que as relações sociais devem ser pacíficas é aquele em que a
idéia de “pacifismo” é diretamente compreensível, ou seja, o das relações interestatais.
Do que já se expôs antes, vários traços da política internacional proposta por
A. Comte são discerníveis: proscrição da guerra, relações habitualmente pacíficas,
conflitos mediados, extinção das forças armadas, abandono dos hábitos e das práticas
militaristas, colonialistas e imperialistas. Por si sós tais propostas
apresentam grande relevância contemporânea, seja por serem desafiadoras, seja
porque paulatinamente estão incorporando-se à realidade internacional. Mas há
alguns elementos adicionais que são interessantes de serem mencionados.
O
primeiro deles refere-se à pluralidade de países: para Comte a idéia de um “supergoverno”,
isto é, de uma autoridade soberana cujo território cubra todo o planeta Terra é
impensável. “Impensável” não porque eventualmente não seja factível – por
hipótese ele pode ocorrer –, mas porque um governo com tais dimensões seria
despótico. Por que despótico? Devido a duas séries de motivos. Por um lado, um
governo desse tamanho não teria condições de efetivamente conhecer e, portanto,
regular as realidades locais; a partir de critérios gerais, possivelmente
hauridos da experiência da capital mundial, seriam impostos às mais diferentes
e distantes partes do mundo parâmetros inadequados para tais partes do mundo.
Por outro lado, opondo-se aos anarquistas, comunistas e igualitaristas de modo
geral, Comte afirma que tanto o poder quanto a riqueza devem concentrar-se;
todavia, o princípio que ao mesmo tempo justifica e regula tais concentrações é
o da responsabilidade social: nesse
sentido, deve haver poderosos e ricos, mas tais poderosos e ricos devem lançar
mão de seus recursos para o benefício da sociedade, respeitando-se todos os
elementos apresentados acima, assim como inúmeros outros. Ora, para Comte, o
escrutínio público do uso de tais recursos, levado a cabo pela sociedade civil,
exige a proximidade física e moral entre gestores e beneficiários: a
conseqüência disso é que as unidades políticas têm que ser de pequena extensão.
Em outras palavras, responsabilidade social, accountability, valorização da política de base e mesmo um esboço
do chamado orçamento participativo[24].
O
fundador do positivismo sugeria que as pátrias do futuro – a serem chamadas de mátrias – deveriam ter extensões que
ficassem entre as da Bélgica (30,2 mil km2) e de Portugal (92,4 mil
km2). Em termos do Brasil, essas extensões corresponderiam a repúblicas
que variariam entre o Espírito Santo (46,1 mil km2) e Pernambuco
(98,3 mil km2): as menores fundir-se-iam, as maiores
desmembrar-se-iam. Considerando essas extensões, Comte sugeria a existência
futura de cerca de 500 repúblicas sociocráticas[25].
6) Comentários
finais
Desenvolvemos
neste texto alguns poucos elementos do positivismo que nos parecem atuais – não
porque haja apenas alguns elementos
atuais, mas porque a exposição de vários deles exigiria uma quantidade de
páginas incompatível com as limitações do artigo. Conforme notamos na seção 1, os
aspectos comentados aqui foram anteriormente sugeridos em Lacerda (2009b):
rearrumando e ampliando essa lista anterior, poderíamos sugerir ainda, pelo menos, os seguintes tópicos para
tratarmos da “atualidade do positivismo”: afirmação da importância social,
intelectual e afetiva da mulher; afirmação da importância social, intelectual e
afetiva das artes; afirmação da visão
de conjunto sincrônica e diacrônica da sociedade e do ser humano; concepção
relacional das ciências, de suas teorias e de seus métodos; crítica ao
academicismo; crítica ao individualismo
ético e metodológico; crítica aos extremos opostos do liberalismo laissez-faire e do comunismo; defesa da
fraternidade universal e rejeição do racismo, da xenofobia, do colonialismo
etc.; defesa da noção de deveres sociais e crítica à noção de direitos; ética
global; método subjetivo como epistemologia superadora de dicotomias
(objetivo-subjetivo, “explicação”-“compreensão”); metodologia sociológica
histórica e comparativa; perspectiva
que conjuga universal e particular, agente e estrutura, ordem e
progresso; proposição de parâmetros do bem viver; proposta de justiça social; proposta pedagógica ao mesmo tempo
humanista e científica; responsabilidade social, incluindo incorporação e
dignificação do proletariado.
Sem
querer esgotar os aspectos do positivismo que também poderiam ser explorados, no
fundo a lista acima busca apenas estimular a curiosidade a seu respeito. Em
todo caso, cremos que as sugestões feitas apresentam grande ressonância com os
debates e as questões contemporâneas: nesse sentido, pode-se falar em “atualidade”
do positivismo. Por outro lado, a capacidade que os pesquisadores atuais têm de
explorar esses aspectos todos, bem como o desejo
de levarem a sério o pensamento positivista – em vez de, como observou mas
também praticou Wacquant (1996), adotá-lo como o “outro” teórico e como
xingamento intelectual – são aspectos fundamentais para que essa atualidade
realize-se. Do contrário, continuaremos confirmando a ocorrência do diagnóstico
feito em Lacerda (2011a) sobre a impossibilidade institucional de estudos
comtianos no Brasil, em que não se estuda Comte porque não se gosta dele e não
se gosta dele porque não se o estuda.
Gustavo Biscaia de
Lacerda (GBLacerda@gmail.com) é doutor e “pós-doutor”
em Teoria Política (UFSC) e Sociólogo (UFPR).
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[1] Agradeço bastante o apoio
e a paciência de Christian Lynch para a redação deste artigo.
[2] Exemplar a respeito dessas
dificuldades é a produção teórica de Jeffrey Alexander. Esse autor notabilizou-se
nas décadas de 1980 e 1990 ao rever as bases conceituais da Sociologia dos EUA;
mesmo embora tenha afirmado a importância do estudo e da (eterna) recuperação
dos “clássicos” (cf. ALEXANDER, 1999), foi igualmente insensível (ou incapaz)
de distinguir as várias correntes que originaram tal Sociologia e, de qualquer
maneira, de perceber com clareza os traços específicos do positivismo de Comte
em relação ao “positivismo sociológico” dos EUA, como se pode ver em Alexander
(1982).
[3] Popper (2004) – que, aliás,
rejeitava a alcunha de “positivista”, fosse entendida no sentido comtiano,
fosse no sentido do empirismo lógico, em que ele poderia, discutivelmente, ser
inserido – observou exatamente esse aspecto em sua tréplica à “réplica” de
Adorno: Adorno teria ignorado todos os comentários de Popper no evento inicial
da “disputa sobre a Sociologia alemã” (o Congresso da Sociedade de Sociologia
Alemã de 1961), tratando de outras questões e considerando aspectos que pura e
simplesmente não tinham sido tratados por Popper. O caráter genérico das
críticas dos frankfurtianos ao “positivismo” são mantidos também nos textos de
Habermas, sejam os presentes na “disputa sobre a Sociologia” (cf. ADORNO
(1976)), seja em trabalhos individuais posteriores (HABERMAS, 1968).
[4] O sofisma do espantalho
consiste em apresentar, com ou sem dolo, uma versão distorcida ou errada – em
todo caso (super)simplificada – do argumento que se deseja criticar para que a
crítica recaia sobre a versão distorcida em vez de sobre o argumento inicial.
[5] Essa postura apresenta
ainda outras conseqüências, entre as quais podemos citar a recusa de
comparações históricas (afinal, se cada contexto só faz sentido em relação a si
próprio, a comparação entre dois contextos revelará apenas a particularidade de
cada um, em vez de conduzir a eventuais generalizações) e a também recusa de
filosofias da história (no sentido de concepções do desenvolvimento humano
macro-histórico).
[6] Esse parece-nos ser um dos
elementos distintivos centrais entre a História das Idéias e a Teoria Política.
A necessária e correta ênfase da História das Idéias nos enraizamentos
contextuais das obras e das ações humanas, por mais importante que seja, é
insuficiente para exercícios teóricos, sejam eles “normativos”, sejam eles
“empíricos”. Inversamente, é claro que isso não equivale a afirmar que as
teorizações “normativas” e “empíricas” possam dispensar o conhecimento da
história e a perspectiva diacrônica; longe disso: significa “somente” que
história e teoria política são momentos intelectualmente diferentes,
logicamente sucessivos um em relação ao outro. Sem dúvida que tais observações
são objeto de discussões, algumas mais intelectuais, outras mais corporativas:
a perspectiva que adotamos aqui se baseia em Comte e, nesse sentido, tem um viés
sociológico em vez de historiográfico. Cf. Comte (1972).
[7] Alguns analistas afirmam
que tal clivagem, entre “ortodoxos” e “heterodoxos”, é insuficiente para
entender todas as relações entre os vários positivistas, adeptos explícitos ou
não da obra de Comte; tal insuficiência seria particularmente clara no caso
brasileiro. Ainda que tal observação tenha lá seus méritos, ela não apresenta
grande importância para este artigo, visto que não se trata aqui de indicar as
possíveis configurações concretas dos adeptos do positivismo; além disso, a
oposição ortodoxos-heterodoxos – aliás proposta pelo próprio Comte, já na
década de 1840 – é suficientemente instrumental para os nossos presentes
objetivos.
[8] As diferenças entre os
ortodoxos e os heterodoxos não podem ser diminuídas, especialmente porque, grosso modo, a elas correspondem
diferenças nacionais, no sentido de que, em traços amplos, pode-se dizer que os
ingleses eram heterodoxos e os franceses, ortodoxos, com as correspondentes
narrativas a respeito da obra de Comte. Assim, os ingleses tendem a seguir a
narrativa de John Stuart Mill, para quem deve-se dividir a obra de Augusto
Comte em duas fases, das quais a primeira, “científica”, é aceitável e a
segunda é fruto do enlouquecimento do autor: Bevir (1993) e Giddens (2000)
repetem esses argumentos (quase diríamos “estereótipos”). Juliette Grange
(2008) observa com clareza o quanto Stuart Mill originou mitos a respeito de
Comte, seja no que se refere à unidade de sua obra ou à tese da loucura, seja
no que se refere à epistemologia dita “positivista” (que seria mais milliana que comtiana).
[9] As dissensões foram
realmente variadas, em termos de grupos que se formaram e também ao longo do
tempo. Citamos especificamente Laffitte e Lemos-Teixeira Mendes por motivos puramente
instrumentais: enquanto a produção intelectual de Laffitte foi enorme, a
atuação intelectual, política e social dos brasileiros foi igualmente grande;
tanto em um caso quanto em outro é possível entender em termos práticos e
detalhados elementos mais abstratos da obra de Comte, o que, em outras
palavras, significa ter subsídios para sugerir sua atualidade (ou ainda para
propor como ela pode ser atualizada). Poderíamos, é claro, considerar outros
nomes e de outras nacionalidades, mas com um rendimento intelectual menor.
[10] Como observou Larry
Laudan (1971; 2010), muito do “método positivo” tem que ser entendido em função
de combinações variadas, adequadas a cada caso, entre teorização e observação
empírica.
[11] Fedi (2008) indicou essa
mesma aproximação, reconhecendo, de qualquer maneira, as várias e evidentes
diferenças entre cada um dos conceitos específicos.
[12] O conceito de
“metafísica” exigiria toda uma discussão à parte. Embora para Comte ele seja
secundário, em particular em comparação com o conceito de “teologia” e, ainda
mais, com o de “absoluto filosófico”, alguns dos debates filosóficos e
epistemológicos do século XX deram-lhe grande centralidade, bem como realçaram
a tendência ordinária a considerar-se que “metafísica” e “filosofia” são sinônimas
(assim como seriam sinônimas entre si “religião” e “teologia”). Expusemos
alguns apontamentos a esse respeito em Lacerda (2011b). Kremer-Marietti (1983,
cap. 3-4) e Gane (2006) também comentam um pouco essas questões.
[13] A idéia corrente de que o
sistema comtiano vincula-se a uma postura antiteórica poderia originar-se de
uma concepção muito empirista seja da ciência, seja das idéias de Comte, ou
então de uma identificação das idéias de Comte com as do Círculo de Viena. Como
vemos, Comte rejeita o puro empirismo (cf. p. ex. COMTE, 1975, lição 58; 1992);
no que se refere ao Círculo de Viena, Halfpenny (1982) e Kremer-Marietti
(1983), entre outros, indicam a impropriedade dessa aproximação.
[14] Explicações
pormenorizadas podem ser lidas na própria obra de Comte (1899, p. 25-28; 1990,
p. 42-44), em Arbousse-Bastide (1990, p. XIX) e também em Lacerda (2010, p.
83ss.).
[15] Resumidamente, o “aperfeiçoamento
moral” consiste, para Comte, no estímulo do altruísmo, da cooperação e das
atividades pacíficas, em contraposição ao egoísmo (seja individual, seja
coletivo), às disputas incessantes e daninhas e às relações sociais violentas e
agressivas (cf. COMTE, 1899; 1929; 1996).
[16] Para realizar esse movimento
intelectual, Comte define um procedimento geral, o “método subjetivo”, exposto
ao longo do Système de politique positive
e da Synthèse subjective (1856). É
digno de nota e sugestivo que a acusação corrente de doença mental, feita
contra Comte por pensadores como Littré e Stuart Mill (no século XIX) e Giddens
(atualmente), inclua a proposição do “método subjetivo”.
[17] Grange (1996, p. 357-368)
expõe em detalhes o conceito de “neofetichismo” de Comte – na verdade, é ela
quem sugere o nome “neofetichismo” para a proposta comtiana de “incorporação do
fetichismo”. A exposição feita é detalhada e cuidadosa, mas formulada em
linguagem um pouco rebuscada (é a característica francesa de conferir um
aspecto literário aos textos filosóficos) e apresenta o grave defeito de ver
nas ficções afetivas e lógicas de Comte uma forma tortuosa de buscar a
divindade. O livro de L. Fedi (2002), inteiramente dedicado ao conceito de
fetichismo, na seção dedicada a Comte não comete esse erro de Grange, ao mesmo
tempo em que expõe os principais argumentos e fases do pensamento comtiano a
respeito do fetichismo.
[18] Algumas exposições e
discussões detalhadas do conceito de “ditadura republicana” podem ser lidas,
além de na obra do próprio Comte (1899; 1929, v. II, IV), em Virmond (2003) e
Lacerda (2010, seção 7.1; 2013a). Convém notar que o mito da ditadura
republicana autoritária é tão arraigado e difundido que, recentemente, por
ocasião da efeméride da Proclamação da República em 2013, a revista de
divulgação História Viva, em seu
número 121, repetiu ponto por ponto os erros e problemas elencados acima, com o
agravante de também se apoiar para isso em alguns famosos pesquisadores: uma
discussão cerrada mas não exaustiva desses problemas pode ser lida em Lacerda
(2013b).
[19] É digno de nota que A.
Comte inclui Adam Ferguson – autor do pioneiro livro An Essay on the History of Civil Society, de 1767 – no seu “Calendário
positivista concreto”. Ferguson encontra-se no mês de Descartes (11º mês
do calendário), dedicado à filosofia moderna, na semana de David Hume,
correspondente às filosofias da história, como adjunto de Condorcet.
[20] Conforme nota Pierre
Laffitte (1889), a associação dos conceitos de sociedade civil e de governo
compõe a noção positiva de “soberania”, que já não é mais a concepção
teológica, do direito divino dos reis (p. ex., Bossuet), ou a metafísica, da todo-poderosa,
onisciente e inquestionável “soberania do povo” (p. ex., Rousseau).
[21] Comte trata da sociedade
civil quando considera o Estado, ou, em segundo sua terminologia, o “governo”
ou mesmo o “poder Temporal”. A sociedade civil surge seja como instituição (ou
lócus) própria, seja como integrante do “poder Espiritual” (cf. LAFFITTE, 1889;
COMTE, 1899; 1929, v. II; LACERDA, 2010, cap. 7).
[22] Na verdade, ao longo de
sua carreira Comte muda progressivamente sua opinião a respeito dos cientistas:
começando por valorizá-los ao extremo em sua juventude, passa no início de sua
vida adulta a fazer-lhes restrições até que, na plena madureza, condena-os
francamente, seja por seu corporativismo, seja pela sua irresponsabilidade
social, seja pela persistência de hábitos mentais absolutos (dispersão das
pesquisas, viés anti-histórico, anti-relativismo) (cf. PETIT, 1998; PICKERING,
2007). Do século XIX para cá evidentemente muita coisa mudou (embora não tudo
nem em todos os aspectos), mas é necessário notar que as Ciências Sociais e, de
maneira mais ampla, as chamadas Ciências Humanas incorporaram vários dos
elementos que mereceram as ácidas críticas de Comte (como a fragmentação, o
irracionalismo, o amoralismo, o viés anti-histórico).
[23] Convém insistir em uma
idéia sugerida antes: evidentemente, para que essa proposta sociocrática tenha
lugar é necessário que as teorias sócio-políticas de caráter metafísico
percam sua influência na sociedade e que, em particular, deixe-se de
perceber-se nas rebeliões o instrumento básico e/ou essencial de protesto.
[24] O “esboço” de orçamento
participativo pode ser visto no projeto de constituição política elaborado pela
Sociedade Positivista durante o agitado ano de 1848, em que foi proclamada a II
República francesa (cf. SOCIÉTÉ POSITIVISTE, 1981, p. 302-304; LACERDA, 2010,
p. 484-492).
[25] Se lembrarmos que a Organização
das Nações Unidas foi fundada em 1946 por 51 estados, que ela conta atualmente
com 193 membros (mais alguns observadores) e que a maior parte dessa enorme
ampliação em 60 anos deveu-se à fragmentação de unidades políticas maiores, a
proposta de Comte não parece tão estranha ou ousada.
(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)
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