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Véu, liberdade e República
A questão “quais as liberdades mais básicas?” tem várias respostas, duas das quais seriam: (1) isso não faz sentido, pois (2) não há liberdades “mais básicas”. Discordamos dessas respostas: há, sim, liberdades mais básicas, que constituem os fundamentos de todas as outras. Quais seriam elas? Liberdades de pensamento, de expressão, de associação e de ir e vir. Não que outras liberdades não sejam importantes, mas essas quatro, que garantem aos indivíduos e aos grupos as condições mínimas para terem e exercerem a autonomia decisória, permitem que todas as demais sejam discutidas e estabelecidas, além de terem valor em si mesmas como valores políticos e sociais.
Pois bem: há algumas semanas aprovou-se na França uma lei que veda aos muçulmanos, em especial às muçulmanas, o uso de véus, burcas e adereços que cubram parcial ou totalmente seus rostos e que sejam a manifestação de suas crenças religiosas. O ar gu mento oficial apresentado é que tais adereços consistem em instrumentos, implícitos ou explícitos, da dominação social e masculina sobre as mulheres, subjugando-as e relegando-as a uma posição social não inferior, mas secundária; em outras palavras, tais adereços seriam instrumentos e símbolos da degradação das muçulmanas como cidadãs e como seres humanos.
Essa justificativa merece, sem dúvida, a mais profunda reflexão, pois enfatiza aspectos centrais para o projeto republicano perfilhado pelo Ocidente des de há pelo menos 200 anos, começando pela própria França: respeito universal aos seres humanos, capacidade de manifestação individual e coletiva, integração à vida coletiva de todos como cidadãos.
Todavia, essa mesma justificativa resulta na negação da autonomia individual para escolher as crenças; em nome do respeito ao pluralismo religioso, ataca-se os fundamentos desse pluralismo. É uma situação contraditória, cuja solução passa necessariamente pelo reafirmar do respeito ao pluralismo, ou melhor, do insistir em que as liberdades de pensamento e de expressão de fato são fundamentais e como tais devem ser tratadas.
No caso específico das muçulmanas francesas, é evidente que seu status social e político não pode ser o mesmo que o de muçulmanas de outros países: o uso dos adereços deve corresponder à manifestação externa de valores e escolhas íntimas, isto é, pessoais; dessa forma, elas são antes cidadãs (francesas) e depois, ou como que “por acaso”, muçulmanas e não o contrário (ou seja, antes muçulmanas e depois, “por acaso”, francesas). Dessa forma, respeitam-se os valores pessoais das muçulmanas (e, de modo geral, dos muçulmanos) tanto quanto respeitam-se os valores pessoais e as manifestações exteriores das crenças de judeus, cristãos, ateus, agnósticos, budistas etc. – além de reafirmar-se o republicanismo francês, que de maneira correta estipula o universalismo jurídico no lugar do comunitarismo.
Voltemos à justificativa oficial: o repúdio à expressão pública do que seria a submissão e a degradação das mulheres muçulmanas dirige-se, como se percebe com facilidade, a apenas um único grupo. Assim, embora o argumento em si seja moral e politicamente digno de consideração, ele é particularista e dirigido contra uma fé específica. Dessa forma, ele consiste mais em uma renovada expressão de islamofobia que na defesa do republicanismo. O argumento tem um inequívoco caráter ad hoc, elaborado de maneira casuística, para dar um lustro intelectual a uma forma de intolerância.
Para concluir: o que isso tem a ver com o Brasil? Ora, tudo. Não apenas porque os laços políticos, sociais e econômicos entre Brasil, de um lado, e França e países islâmicos, de outro lado, têm crescido, como porque os valores políticos e sociais brasileiros são muito próximos dos da França – de modo que o problema criado e enfrentado pela França refere-se também a dilemas brasileiros.
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