28 junho 2015

Depoimento de Luís Antônio Cunha sobre ensino religioso laico

Reproduzo abaixo o depoimento do Prof. Dr. Luís Antônio Cunha, Professor da Universidade Federal Fluminense e diretor do Observatório da Laicidade na Educação (OLÉ), apresentado na audiência pública convocada pelo Ministro Luís Roberto Barroso, a respeito do caráter laico ou confessional do ensino religioso público obrigatório, que ocorreu no dia 15.6.2015

O original também pode ser lido a partir da página do OLÉ, aqui.

Da mesma forma, é possível assistir às apresentações aqui.

Não é demais lembrar que nessa audiência houve, arbitrariamente, uma super-representação de entidades teológicas, assim como de entidades jurídicas. A Igreja Positivista de Porto Alegre, bem como eu mesmo, solicitamos sermos ouvidos e, sem nenhuma justificativa, tivemos os pedidos recusados.

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Excelentíssimo Sr. Ministro Luís Roberto Barroso,

O Centro de Estudos Educação e Sociedade, criado em 1979 por iniciativa de professores da UNICAMP, e o Observatório da Laicidade na Educação, criado em 2003 por iniciativa de professores da UFRJ entendem que a existência da disciplina Ensino Religioso nas escolas públicas é um retrocesso na construção da República em nosso país. Nesse ponto, a Constituição de 1988 é pior do que a de 1891.

No tempo de Saldanha Marinho, Benjamin Constant e Rui Barbosa, a laicidade era reivindicada sobretudo pelas elites intelectuais. Hoje, além delas, importantes setores do Estado e dos movimentos sociais inserem nas suas pautas a laicidade, inclusive na educação pública. Na culminância de um processo que, em dois anos, teve a participação de mais de um milhão de pessoas, o documento final da Conferência Nacional de Educação, aprovado em dezembro de 2014, preconizou a reforma da Constituição para suprimir dela o Ensino Religioso. A curto prazo, defendeu o fim da apropriação privada dos espaços educativos públicos por pessoas ou grupos vinculados às instituições confessionais. A finalidade é garantir aos alunos o direito à liberdade religiosa e o de não professar religião alguma. Ou seja, o fim do proselitismo religioso ostensivo ou dissimulado nas escolas públicas.

Deixemos para outra hora pleitear o fim do Ensino Religioso na escola pública. A Constituição determina sua oferta como disciplina no Ensino Fundamental, na forma facultativa, e este será o limite de nosso depoimento. Eis a contribuição que queremos oferecer a este Tribunal: um panorama da situação objetiva do ensino religioso nas escolas públicas, ou seja, fatos, não doutrinas.

O lugar de que falamos é interior ao campo educacional, especificamente o dos sistemas públicos de educação, cuja finalidade é propiciar o acesso de todos à cultura erudita e à ciência. Isso só a escola pública pode fazer. A não ser pessoas raras, em situações excepcionais, quem não teve acesso à cultura erudita e à ciência na escola para todos, não as alcançará na empresa, na igreja nem em outro lugar qualquer. E a escola pública vai mal. Precisa usar judiciosamente cada grão de tempo, de recursos materiais e humanos para a consecução de seus objetivos próprios, sem ser instrumentalizada como força auxiliar dos mercados, sejam econômicos, profissionais ou religiosos. Daí que uma disciplina especificada na Constituição como facultativa não pode ser tratada, na prática, como obrigatória.

Os dados da Prova Brasil são eloquentes quanto à obrigatoriedade de fato do Ensino Religioso. Os questionários respondidos pelos diretores em 2013 foram computados pela Profa. Mariane Koslinski, do Grupo de Estudos dos Sistemas Educacionais da UFRJ, que dimensionou para todo o país o que pesquisas pontuais já haviam sinalizado: 70% das escolas públicas de Ensino Fundamental ministravam aulas de Ensino Religioso. Dentre as que o faziam, 54% confessaram exigir presença obrigatória; e 75% não ofereciam atividades para os alunos que não queriam assistir a essas aulas. É preciso prova mais contundente da obrigatoriedade de fato para uma disciplina facultativa de direito?

Dir-se-á que os alunos e seus pais são indagados sobre o desejo de Ensino Religioso. Ora, as perguntas que lhes chegam, quando chegam, não permitem boas respostas. A propósito, em meados do século XIX, Pierre Joseph Proudhon criticava o sufrágio universal, para ele um artifício para levar o povo a dizer não o que pensava, mas o que os dominantes queriam que ele dissesse. E foi ainda mais categórico ao afirmar que o sufrágio universal era o meio mais seguro para levar o povo a mentir. Passado século e meio, mudou o mundo, mudou o povo e mudou o sufrágio universal, de modo que o pessimismo de Proudhon já não encontra o mesmo respaldo na realidade.

Mas, o artifício manipulador persiste ativo, mesmo inconsciente. É o caso da indagação – O Sr ou a Sra quer que seu filho tenha aula de Ensino Religioso? A pergunta correta seria: O Sr ou a Sra prefere que seu filho tenha aula de Ensino Religioso ou de (por exemplo) uma língua estrangeira ou reforço de Matemática? Esta, sim, seria uma pergunta propiciadora de escolha inteligente e pedagogicamente significativa para o aluno, não aquela indagação abstrata, que daria razão à crítica do político francês. Os pais não têm como saber que, para o filho ter aula de Ensino Religioso algum conteúdo ou alguma atividade foi suprimida ou reduzida, ou, então, se o tempo puder ser estendido, como fazê-lo melhor aproveitado? Para enxertar uma aula de Ensino Religioso ou para ampliar e reforçar o que somente na escola se aprende?

A correta gestão da educação pública precisa usar bem todos os recursos a sua disposição, que estão longe do mínimo necessário e do adequado emprego. Como, então, ter o Ensino Religioso professores formados em licenciatura específica, se a disciplina é para ser mesmo facultativa? Os alunos optantes podem ser muitos hoje, menos amanhã, novamente muitos mais tarde, pouquíssimos em outro momento. A necessidade de professores será estimada para o mínimo? O médio? O máximo? Impossível prevê-la com objetividade e responsabilidade. A única solução inteligente, nessa condição, é a empregada pelo sistema estadual paulista, de destinar à docência do Ensino Religioso os professores do quadro licenciados em História, Filosofia e Ciências Sociais, como prescreveu a Deliberação nº 16/2001 do seu Conselho Estadual de Educação. Como os professores de Filosofia e de Ciências Sociais somente são generalizadamente requeridos no Ensino Médio, endossamos o emprego dos licenciados em História no Ensino Fundamental. O emprego deles na disciplina correspondente e no Ensino Religioso propiciaria alguma flexibilidade.

A rigidez da licenciatura específica criaria uma espécie de reserva de mercado perdulária em termos econômicos e funcionais, além de servir de força indutora para a compulsoriedade de fato da disciplina em foco. Atenção para a lei dos mercados de Jean-Baptiste Say: a oferta cria sua própria demanda. Essa lei empírica vale também para o mercado de trabalho, até mesmo para o de professores, inclusive os de Ensino Religioso. Professores com licenciatura específica e a inclusão dessa disciplina nas 800 horas mínimas do Ensino Fundamental constituem ardilosos artifícios indutores de sua obrigatoriedade de fato, contrariando o disposto na Constituição. Aliás, dez unidades da Federação já definiram que a carga horária dessa disciplina não integrará o mínimo das 800 horas: Amapá, Bahia, Sergipe, Espírito Santo, Goiás, Pará, Pernambuco, Piauí, Rondônia e São Paulo.

A extensão do mercado para o Ensino Religioso prossegue nos sistemas educacionais de estados e municípios, favorecida pela anomia jurídica em torno da matéria, apenas dependente das correlações de forças político-eleitorais. O que a Constituição Federal determinou apenas para o Ensino Fundamental há estados que estenderam para toda a Educação Básica (Educação Infantil + Ensino Fundamental + Ensino Médio). Outros prescreveram que o Ensino Religioso seja ministrado como tema transversal, o que o torna obrigatório, tanto para os alunos quanto para os professores. Ao fazer do Ensino Religioso tema transversal para os alunos das séries iniciais do Ensino Fundamental, a mesma Resolução nº 16/2001 do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, evocada há pouco, cometeu um duplo erro – de caráter legal e pedagógico –, que não foi compensado pelo realismo mostrado pela Resolução nº 21/2002 da Secretaria Estadual de Educação ao destinar a disciplina apenas para os alunos do último ano do Ensino Fundamental.

A anomia jurídica chegou a ponto de a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, reformada em 1997, qualificar o Ensino Religioso nas escolas públicas de integrante da formação básica do cidadão. A recusa admitida pela Constituição implicaria uma formação incompleta? ou defeituosa? Em direção bem diferente, Ética e Cidadania foi reivindicada pela Conferência Nacional de Educação para todos, não só para os alunos das escolas públicas. E menos ainda como alternativa para os não optantes do Ensino Religioso, como pretendem certos projetos de lei em tramitação no Congresso. Correto foi o Parecer nº 1/2012, do Pleno do Conselho Nacional de Educação, ao instituir as Diretrizes Nacionais para a correlata Educação em Direitos Humanos, esta sim, como tema transversal, não como disciplina; e para todos, em todos os níveis e modalidades dos estabelecimentos de ensino públicos e privados; e tendo a laicidade como um dos princípios orientadores.

Na disposição sobre a alternativa aos alunos não optantes pelo Ensino Religioso, o Estado de Goiás apontou o caminho. A Resolução nº 285/2005 do Conselho Estadual de Educação goiano ordenou que aos não optantes pelo Ensino Religioso fossem oferecidos “outros conteúdos de educação geral”. A despeito da imprecisão dos termos, a direção é correta.

Sem embargo de outras medidas pertinentes, as sugestões que trazemos para a interpretação pedida pela ADI 4.439 podem ser sintetizadas em nove pontos:

(i) A obrigatoriedade de fato do Ensino Religioso nas escolas públicas, mediante a indução dos alunos e seus pais a aceitarem tal disciplina como se fosse compulsória, deverá ser severamente coibida. Tal indução deverá ser tipificada como crime contra a liberdade de consciência – esta sim, cláusula pétrea da Constituição.

(ii) Enquanto o Ensino Religioso estiver previsto na Constituição, que ele seja ministrado apenas no Ensino Fundamental, como ela manda, abstendo-se os sistemas estaduais e municipais de estendê-lo para a Educação Infantil e o Ensino Médio. As constituições e leis que projetaram tais extensões deverão ser corrigidas.

(iii) A Constituição determina que o Ensino Religioso seja ministrado como disciplina, portanto ele não poderá ser ofertado como tema transversal.

(iv) Como essa disciplina não pode ser proselitista, que ela seja ministrada apenas aos alunos de mais idade, os do último ano do Ensino Fundamental, mais capazes do que os mais jovens de evitar intentos doutrinadores remanescentes.

(v) Pela óbvia conotação proselitista, a modalidade confessional do Ensino Religioso deverá ser proibida e, consequentemente, suprimido o artigo 11 da concordata Brasil-Vaticano.

(vi) A possibilidade concreta de opção pelo Ensino Religioso somente poderá se materializar pela oferta de alternativas pedagogicamente significativas a essa disciplina, que o Conselho Nacional de Educação saberá definir. Se não existirem tais alternativas, o Ensino Religioso não poderá ser oferecido.

(vii) A disciplina Ensino Religioso não deverá ser incluída no cômputo das 800 horas mínimas do Ensino Fundamental.

(viii) O magistério dessa disciplina deverá ser exercido por professores licenciados em História, sem exigência de curso adicional ou credenciamento de instituição religiosa. Não tem cabimento a substituição destes por licenciados em Ensino Religioso, Ciências da Religião ou Teologia.

(ix) A qualificação do Ensino Religioso nas escolas públicas como integrante da formação básica do cidadão deverá ser suprimida do artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Esse o nosso entendimento, estas as nossas sugestões a V. Excia.

Muito obrigado.
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Depoimento de Luiz Antônio Cunha, em nome do CEDES e do OLÉ, em Brasília, em 15/6/2015, na Audiência Pública sobre o Ensino Religioso nas escolas públicas, no Supremo Tribunal Federal, promovida pelo ministro Luís Roberto Barroso, relator da ADI 4.439.

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