O original também pode ser lido a partir da página do OLÉ, aqui.
Da mesma forma, é possível assistir às apresentações aqui.
Não é demais lembrar que nessa audiência houve, arbitrariamente, uma super-representação de entidades teológicas, assim como de entidades jurídicas. A Igreja Positivista de Porto Alegre, bem como eu mesmo, solicitamos sermos ouvidos e, sem nenhuma justificativa, tivemos os pedidos recusados.
* * *
Excelentíssimo
Sr. Ministro Luís Roberto Barroso,
O Centro de Estudos Educação e Sociedade,
criado em 1979 por iniciativa de professores da UNICAMP, e o Observatório da Laicidade na Educação,
criado em 2003 por iniciativa de professores da UFRJ entendem que a existência
da disciplina Ensino Religioso nas escolas públicas é um retrocesso na
construção da República em nosso país. Nesse ponto, a Constituição de 1988 é
pior do que a de 1891.
No tempo de Saldanha
Marinho, Benjamin Constant e Rui Barbosa, a laicidade era reivindicada sobretudo
pelas elites intelectuais. Hoje, além delas, importantes setores do Estado e
dos movimentos sociais inserem nas suas pautas a laicidade, inclusive na educação
pública. Na culminância de um processo que, em dois anos, teve a participação
de mais de um milhão de pessoas, o documento final da Conferência Nacional de
Educação, aprovado em dezembro de 2014, preconizou a reforma da Constituição
para suprimir dela o Ensino Religioso. A curto prazo, defendeu o fim da
apropriação privada dos espaços educativos públicos por pessoas ou grupos
vinculados às instituições confessionais. A finalidade é garantir aos alunos o
direito à liberdade religiosa e o de não professar religião alguma. Ou seja, o
fim do proselitismo religioso ostensivo ou dissimulado nas escolas públicas.
Deixemos para
outra hora pleitear o fim do Ensino Religioso na escola pública. A Constituição
determina sua oferta como disciplina no Ensino Fundamental, na forma
facultativa, e este será o limite de nosso depoimento. Eis a contribuição que queremos
oferecer a este Tribunal: um panorama da situação
objetiva do ensino religioso nas escolas públicas, ou seja, fatos, não
doutrinas.
O lugar de
que falamos é interior ao campo educacional, especificamente o dos sistemas públicos
de educação, cuja finalidade é propiciar o acesso de todos à cultura erudita e
à ciência. Isso só a escola pública pode fazer. A não ser pessoas raras, em
situações excepcionais, quem não teve acesso à cultura erudita e à ciência na
escola para todos, não as alcançará na empresa, na igreja nem em outro lugar
qualquer. E a escola pública vai mal. Precisa usar judiciosamente cada grão de
tempo, de recursos materiais e humanos para a consecução de seus objetivos
próprios, sem ser instrumentalizada como força auxiliar dos mercados, sejam
econômicos, profissionais ou religiosos. Daí que uma disciplina especificada na
Constituição como facultativa não pode ser tratada, na prática, como obrigatória.
Os dados da
Prova Brasil são eloquentes quanto à obrigatoriedade
de fato do Ensino Religioso. Os questionários respondidos pelos diretores
em 2013 foram computados pela Profa. Mariane Koslinski, do Grupo de Estudos dos
Sistemas Educacionais da UFRJ, que dimensionou para todo o país o que pesquisas
pontuais já haviam sinalizado: 70% das escolas públicas de Ensino Fundamental ministravam
aulas de Ensino Religioso. Dentre as que o faziam, 54% confessaram exigir
presença obrigatória; e 75% não ofereciam atividades para os alunos que não
queriam assistir a essas aulas. É preciso prova mais contundente da obrigatoriedade de fato para uma
disciplina facultativa de direito?
Dir-se-á que
os alunos e seus pais são indagados sobre o desejo de Ensino Religioso. Ora, as
perguntas que lhes chegam, quando chegam, não permitem boas respostas. A
propósito, em meados do século XIX, Pierre Joseph Proudhon
criticava o sufrágio universal, para ele um artifício para levar o povo a dizer
não o que pensava, mas o que os dominantes queriam que ele dissesse. E foi
ainda mais categórico ao afirmar que o sufrágio universal era o meio mais
seguro para levar o povo a mentir. Passado século e meio, mudou o mundo, mudou o
povo e mudou o sufrágio universal, de modo que o pessimismo de Proudhon já não
encontra o mesmo respaldo na realidade.
Mas, o artifício manipulador persiste ativo, mesmo
inconsciente. É o caso da indagação – O
Sr ou a Sra quer que seu filho tenha aula de Ensino Religioso? A pergunta
correta seria: O Sr ou a Sra prefere que
seu filho tenha aula de Ensino Religioso ou de (por exemplo) uma língua
estrangeira ou reforço de Matemática? Esta, sim, seria uma pergunta
propiciadora de escolha inteligente e pedagogicamente significativa para o
aluno, não aquela indagação abstrata, que daria razão à crítica do político
francês. Os pais não têm como saber que, para o filho ter aula de Ensino
Religioso algum conteúdo ou alguma atividade foi suprimida ou reduzida, ou,
então, se o tempo puder ser estendido, como fazê-lo melhor aproveitado? Para
enxertar uma aula de Ensino Religioso ou para ampliar e reforçar o que somente
na escola se aprende?
A correta
gestão da educação pública precisa usar bem todos os recursos a sua disposição,
que estão longe do mínimo necessário e do adequado emprego. Como, então, ter o Ensino
Religioso professores formados em licenciatura específica, se a disciplina é
para ser mesmo facultativa? Os alunos optantes podem ser muitos hoje, menos
amanhã, novamente muitos mais tarde, pouquíssimos em outro momento. A
necessidade de professores será estimada para o mínimo? O médio? O máximo?
Impossível prevê-la com objetividade e responsabilidade. A única solução inteligente,
nessa condição, é a empregada pelo sistema estadual paulista, de destinar à
docência do Ensino Religioso os professores do quadro licenciados em História, Filosofia
e Ciências Sociais, como prescreveu a Deliberação nº 16/2001 do seu Conselho
Estadual de Educação. Como os professores de Filosofia e de Ciências Sociais
somente são generalizadamente requeridos no Ensino Médio, endossamos o emprego
dos licenciados em História no Ensino Fundamental. O emprego deles na
disciplina correspondente e no Ensino Religioso propiciaria alguma
flexibilidade.
A rigidez da
licenciatura específica criaria uma espécie de reserva de mercado perdulária em
termos econômicos e funcionais, além de servir de força indutora para a compulsoriedade de fato da disciplina em
foco. Atenção para a lei dos mercados de Jean-Baptiste Say: a oferta cria sua própria demanda. Essa
lei empírica vale também para o mercado de trabalho, até mesmo para o de
professores, inclusive os de Ensino Religioso. Professores com licenciatura
específica e a inclusão dessa disciplina nas 800 horas mínimas do Ensino Fundamental
constituem ardilosos artifícios indutores de sua obrigatoriedade de fato, contrariando o disposto na Constituição. Aliás,
dez unidades da Federação já definiram que a carga horária dessa disciplina não
integrará o mínimo das 800 horas: Amapá, Bahia, Sergipe, Espírito Santo, Goiás,
Pará, Pernambuco, Piauí, Rondônia e São Paulo.
A extensão do
mercado para o Ensino Religioso prossegue nos sistemas educacionais de estados
e municípios, favorecida pela anomia jurídica em torno da matéria, apenas
dependente das correlações de forças político-eleitorais. O que a Constituição
Federal determinou apenas para o Ensino Fundamental há estados que estenderam
para toda a Educação Básica (Educação Infantil + Ensino Fundamental + Ensino Médio).
Outros prescreveram que o Ensino Religioso seja ministrado como tema
transversal, o que o torna obrigatório, tanto para os alunos quanto para os
professores. Ao fazer do Ensino Religioso tema transversal para os alunos das
séries iniciais do Ensino Fundamental, a mesma Resolução nº 16/2001 do Conselho
Estadual de Educação de São Paulo, evocada há pouco, cometeu um duplo erro – de
caráter legal e pedagógico –, que não foi compensado pelo realismo mostrado
pela Resolução nº 21/2002 da Secretaria Estadual de Educação ao destinar a
disciplina apenas para os alunos do último ano do Ensino Fundamental.
A anomia jurídica
chegou a ponto de a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, reformada
em 1997, qualificar o Ensino Religioso nas escolas públicas de integrante da
formação básica do cidadão. A recusa admitida pela Constituição implicaria
uma formação incompleta? ou defeituosa? Em direção bem diferente, Ética e Cidadania foi reivindicada pela
Conferência Nacional de Educação para todos, não só para os alunos das escolas
públicas. E menos ainda como alternativa para os não optantes do Ensino
Religioso, como pretendem certos projetos de lei em tramitação no Congresso.
Correto foi o Parecer nº 1/2012, do Pleno do Conselho Nacional de Educação, ao
instituir as Diretrizes Nacionais para a correlata Educação em Direitos Humanos, esta sim, como tema transversal, não
como disciplina; e para todos, em todos os níveis e modalidades dos
estabelecimentos de ensino públicos e privados; e tendo a laicidade como um dos
princípios orientadores.
Na disposição
sobre a alternativa aos alunos não optantes pelo Ensino Religioso, o Estado de
Goiás apontou o caminho. A Resolução nº 285/2005 do Conselho Estadual de
Educação goiano ordenou que aos não optantes pelo Ensino Religioso fossem
oferecidos “outros conteúdos de educação geral”. A despeito da imprecisão dos
termos, a direção é correta.
Sem embargo
de outras medidas pertinentes, as sugestões que trazemos para a interpretação
pedida pela ADI 4.439 podem ser sintetizadas em nove pontos:
(i) A obrigatoriedade de fato do Ensino
Religioso nas escolas públicas, mediante a indução dos alunos e seus pais a aceitarem
tal disciplina como se fosse compulsória, deverá ser severamente coibida. Tal
indução deverá ser tipificada como crime contra a liberdade de consciência – esta
sim, cláusula pétrea da Constituição.
(ii) Enquanto
o Ensino Religioso estiver previsto na Constituição, que ele seja ministrado
apenas no Ensino Fundamental, como ela manda, abstendo-se os sistemas estaduais
e municipais de estendê-lo para a Educação Infantil e o Ensino Médio. As
constituições e leis que projetaram tais extensões deverão ser corrigidas.
(iii) A
Constituição determina que o Ensino Religioso seja ministrado como disciplina,
portanto ele não poderá ser ofertado como tema transversal.
(iv) Como essa
disciplina não pode ser proselitista, que ela seja ministrada apenas aos alunos
de mais idade, os do último ano do Ensino Fundamental, mais capazes do que os
mais jovens de evitar intentos doutrinadores remanescentes.
(v) Pela óbvia
conotação proselitista, a modalidade confessional do Ensino Religioso deverá
ser proibida e, consequentemente, suprimido o artigo 11 da concordata Brasil-Vaticano.
(vi) A
possibilidade concreta de opção pelo Ensino Religioso somente poderá se
materializar pela oferta de alternativas
pedagogicamente significativas a essa disciplina, que o Conselho Nacional
de Educação saberá definir. Se não existirem tais alternativas, o Ensino
Religioso não poderá ser oferecido.
(vii) A
disciplina Ensino Religioso não deverá ser incluída no cômputo das 800 horas
mínimas do Ensino Fundamental.
(viii) O
magistério dessa disciplina deverá ser exercido por professores licenciados em
História, sem exigência de curso adicional ou credenciamento de instituição
religiosa. Não tem cabimento a substituição destes por licenciados em Ensino
Religioso, Ciências da Religião ou Teologia.
(ix) A
qualificação do Ensino Religioso nas escolas públicas como integrante da
formação básica do cidadão deverá
ser suprimida do artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Esse o nosso entendimento, estas as nossas
sugestões a V. Excia.
Muito obrigado.
*
Depoimento de Luiz Antônio Cunha,
em nome do CEDES e do OLÉ, em Brasília, em 15/6/2015, na Audiência Pública
sobre o Ensino Religioso nas escolas públicas, no Supremo Tribunal Federal,
promovida pelo ministro Luís Roberto Barroso, relator da ADI 4.439.
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