05 outubro 2014

Relevância contemporânea do Positivismo II

Em seu n. 66, de julho-setembro de 2014, a revista Insight Inteligência publicou um artigo de minha autoria, intitulado "O Positivismo ontem como hoje" (disponível aqui). 

Ele é a segunda versão, reduzida, de um texto intitulado "Aplicando Comte atualmente, ou sobre a relevância contemporânea do Positivismo": esse texto maior não foi publicado porque ultrapassava os limites de tamanho da revista. 

Assim, como o texto original tinha algumas observações que não foram publicadas, pode ser interessante publicá-las; por esse motivo, ele está disponível abaixo.


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Aplicando Comte atualmente,

ou sobre a relevância contemporânea do positivismo[1]


Gustavo Biscaia de Lacerda

1) Introdução

Filosofia, política e até religião criada no século XIX, designado por uma palavra cujo sentido tornou-se amplamente polissêmico (embora atualmente com um forte viés negativo), pode parecer pelo menos curioso falar-se nesta segunda década do século XXI em “relevância contemporânea do positivismo”. Afinal de contas, sem muito rigor costuma-se associar-se a ele as mais variadas idéias, muitas delas consideradas datadas ou que se gostaria que o fossem: higienismo, cientificismo, evolucionismo, eurocentrismo, racionalismo, empirismo, iluminismo etc. Além disso, integram o senso comum acadêmico na forma de anedotas algumas particularidades da vida e da obra de Augusto Comte, o fundador do positivismo: o casamento com uma prostituta, a crise mental, a paixão platônica, a fundação de uma nova religião; tais anedotas, também com freqüência, soem constituir o grosso do que se “conhece” a respeito do tema.
Para piorar, embora o uso das palavras “positivismo” e “positivista” sejam de uso recorrente na academia, a par das suas intensas polissemias o sentido específico atribuído a elas não é claro, ou seja, elas designam ou podem designar muitas coisas mas não se tem clareza a seu respeito. Por exemplo: é perfeitamente possível (embora incorreto) em uma discussão historiográfica falar-se em “positivismo” e indicar que um dos seus precursores ou principais autores teria sido A. Comte, sem ter clareza de que o positivismo na história refere-se mais a Leopold von Ranke e que a obra de Comte aproxima-se mais da Escola dos Anais (REIS, 2006).
Tratar da “relevância contemporânea do positivismo” exige, portanto, um sério esforço preliminar de esclarecimento dos termos empregados, ou seja, de uma “limpeza do campo” e distinções conceituais. Esse exercício não é propriamente simples, pois, embora seja mais ou menos fácil distinguir (digamos) o positivismo comtiano do positivismo historiográfico, a delimitação do que a Sociologia e a Ciência Política praticadas nos Estados Unidos chamam de “positivismo” é muito mais problemática: enquanto as idéias de Comte e de Ranke estão explicitadas em suas obras, sendo possível consultá-las diretamente na fonte e determinar com precisão o que eles disseram – ainda que sempre haja espaço para problemas de interpretação –, o positivismo sociológico estadunidense é o resultado da confluência de pelo menos três tradições (a das pesquisas empíricas de Chicago, a do empirismo lógico e a do evolucionismo europeu) que deram origem, por sua vez, a uma quarta tradição, ou seja, a um modo de pensar mais ou menos difuso, mais ou menos institucionalizado, mas a que apenas com dificuldade pode-se atribuir nomes específicos (cf. BRYANT, 1985; 1989)[2].
Da mesma forma, outras correntes e tradições apresentam vagamente o positivismo a fim de definirem suas próprias posições a contrario: os exemplos mais fáceis são o da Escola de Frankfurt e o autodenominado “pós-positivismo” na disciplina acadêmica das Relações Internacionais. No que se refere aos frankfurtianos, a participação de T. Adorno e J. Habermas na célebre “disputa sobre o positivismo na Sociologia alemã”, ocorrida ao longo da década de 1960 (cf. ADORNO, 1976), ilustra com clareza esse aspecto: ambos os autores elaboraram um conceito de positivismo que não correspondia a nenhuma das suas variedades até então conhecidas e praticadas, mas, bem ao contrário, a uma idéia que eles tinham do que seria o positivismo: o objetivo não era dialogar com um ou outro autor, vivo ou morto àquela época[3], mas expor, na melhor das hipóteses, um modelo por eles definido e, na pior das hipóteses, uma caricatura a ser mobilizada no sofisma do espantalho[4].
No caso do chamado “pós-positivismo” a situação é um pouco distinta, pois ele refere-se a uma pluralidade de perspectivas, que se entendem como desde fortemente discordantes até contrárias ao “positivismo”. Em todo caso, a definição de positivismo é igualmente problemática, ora aproximando-se do que a Sociologia estadunidense entende por tal palavra, ora aproximando-se de outras concepções (como a da Escola de Frankfurt).
De modo mais amplo, é fácil concordar com a observação de Loïc Wacquant (1996), segundo a qual o “positivismo” passou de uma palavra com sentido fortemente positivo (entre o século XIX e meados do século XX) para uma com sentido fortemente negativo (aproximadamente a partir da década de 1960), chegando a ser uma espécie de xingamento acadêmico e intelectual.
Não importa, neste momento, fazer as distinções sugeridas acima; de nossa parte, em outro lugar já as propusemos para alguns casos (LACERDA, 2009a), bem como alguns outros autores também já o fizeram a respeito de outras áreas (Norberto Bobbio (1995) para o Direito, José Carlos Reis (2006) para a História). O que importa indicar é a necessidade de tais distinções para tratar do “positivismo”, por mais cansativo e aborrecido que seja tal exercício intelectual (e por mais cansativo e aborrecido que seja sua reafirmação e sua recapitulação em discussões como a presente).
Feitas essas observações iniciais, convém afirmar algo que está implícito até aqui: ao tratarmos do “positivismo”, consideraremo-lo equivalente à filosofia, à política e à religião elaborados por Augusto Comte – seja para afirmar-se o parâmetro utilizado aqui, seja porque a palavra “positivismo” foi criada por A. Comte para referir-se ao próprio sistema.
Por outro lado, também convém refletirmos sobre o que significa, ou significaria, a sua “relevância contemporânea”. Os profissionais ligados às elaborações mais recentes da área acadêmica da História das Idéias (ligados à Escola de Cambridge, à História dos Conceitos, à História Conceitual do Político) soem afirmar que toda elaboração intelectual é historicamente localizada, com isso querendo dizer que só é possível entender uma idéia se ela for devidamente contextualizada em termos políticos, sociais e intelectuais – embora a idéia de “contexto” possa sofrer maiores ou menores ampliações em termos de seu escopo, isto é, de sua duração cronológica. Essa idéia, simples e importante em si mesma, pode conduzir a exageros como o de aceitar idéias apenas estritamente nos contextos específicos em que foram elaboradas, rejeitando, inversamente, a sua transposição para outros períodos ou, o que é até certo ponto equivalente, a sua adoção por outros períodos: esse exagero poderia, quem sabe, ser denominado de “hipercontextualismo” e impede in limine que idéias antigas sejam adotadas em períodos posteriores[5] (embora isso não venha ao caso).
É claro que esse exagero não nos pode impedir de reconhecer a validade e a necessidade teórica e metodológica da contextualização: situar uma obra no período em que foi escrita permite compreender quais os desafios políticos, sociais e intelectuais com que ela deparava-se no momento em que era escrita e, assim, a que procurava responder e/ou solucionar; os autores e atores com que a obra dialogava, quem criticava, em quem apoiava-se e assim por diante. Nesse sentido, parece claro que a contextualização permite entender melhor – alguns diriam “adequadamente” – a própria obra.
Entretanto, falar em “atualidade” de uma obra implica dar um passo além da contextualização: implica transportá-la para os dias atuais e fazer um esforço teórico para adaptá-la às condições sociais, políticas e intelectuais presentes. Ou melhor: procurar adaptá-la para o momento presente naquilo que ela é mais “datada” ou mais “enraizada” no contexto em que foi produzida, assim como aplicar, na medida do possível, aqueles elementos que são mais atemporais ou cujos contextos abrangem períodos mais amplos[6]. Considerando que a investigação, ou proposição, da “atualidade” de uma obra envolve um exercício de imaginação, isto é, corresponde por si só a um esforço de teorização (social, política, estética, científica), talvez seja mais fácil de compreender a restrição que apresentamos há pouco a respeito da “hipercontextualização”: se aferrarmo-nos a um determinado contexto e ao enraizamento de uma obra nesse contexto, será impossível transportar para outro momento no tempo e outro lugar no espaço as idéias contidas na obra – e, portanto, a sua utilidade será diminuída e, como sugeriu P. Rosanvallon, essa experiência histórica pode ser desperdiçada.
Em que pese o aspecto mais puramente acadêmico dos comentários acima – no sentido bourdieusiano de referência cerimonial aos maîtres à penser do momento (BOURDIEU, 2011) –, eles têm uma importância lógica para a presente discussão: afinal de contas, não se pode, isto é, não seria aceitável falar-se pura e simplesmente, de maneira impune, em “atualidade do positivismo”. Como lembramos anteriormente, é o antigo colaborador do próprio Bourdieu (WACQUANT, 1996) quem observou que o positivismo atualmente é um termo intelectualmente pejorativo, a ser utilizado em disputas intelectuais contra os adversários; ele é o “outro teórico”, a ser negado, desprezado, rejeitado (cf. LACERDA, 2009a), ainda que devendo sempre estar sub-repticiamente presente: como seria possível, nesses termos, que houvesse alguma outra atualidade para o positivismo além da sua completa negação?
Ao contrário das perspectivas que apodam ao positivismo uma função negativa a priori, um exame cuidadoso da obra de Comte sugere que, talvez, seja possível falar-se em sua “atualidade”. Para isso, reafirmemos, a limpeza preliminar do campo (intelectual, semântico, institucional) é condição sine qua non; em seguida, importa delimitar o que se entende por positivismo de Augusto Comte: por um lado, a integralidade de sua obra, incluindo aí também, e principalmente, o que se chama de sua obra religiosa, isto é, os livros, os documentos e as cartas escritas após 1846, após o encontro com Clotilde de Vaux e o que se chamou de “l'année sans pareille”, “o ano sem par”, até a morte do fundador da Sociologia, ocorrida em 1857. O grosso da produção comtiana encontra-se nesse lapso temporal: o Discours sur l'ensemble du positivisme (1848), o Système de politique positive (1851-1854), o Catechisme positiviste (1852), o Appel aux conservateurs (1855), a Synthèse subjective (1856), centenas de cartas, várias obras menores e os projetos políticos e sociais elaborados pela Sociedade Positivista durante a breve existência da II República francesa (1848-1851). Assim, por outro lado, incluímos na rubrica de “positivistas” os discípulos e seguidores chamados de “ortodoxos”, isto é, que aceitavam a obra religiosa, em contraposição aos que aceitavam apenas a obra científica (ou seja, o Système de philosophie positive, 1830-1842) e que eram chamados de “heterodoxos”[7]: entre estes estão John Stuart Mill e Émile Littré e, entre aqueles, Pierre Laffitte e os brasileiros Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes[8]. As diferenças, dissensões e disputas entre os sub-ramos dos ortodoxos eram inúmeras e variadas; por exemplo, tornou-se famosa a ruptura ocorrida em 1883 entre os brasileiros e Laffitte: mas, ainda assim, sem entrar no mérito de tal separação, é bastante útil aceitarmos a produção intelectual de ambos esses subgrupos ortodoxos, especialmente para os fins que nos interessam – isto é, para tratar-se da atualidade de Comte[9].
Uma última observação preliminar, que já se constitui também em uma sugestão da atualidade do positivismo, é a respeito do “caleidoscópio epistemológico” comtiano, conforme a feliz expressão de Angèle Kremer-Marietti (2007). Para os conhecedores de Comte é mais ou menos lugar-comum a idéia de que sua obra é ao mesmo tempo sistêmica e sistemática, ou seja, Comte desenvolve em seus escritos progressivamente as suas concepções, ampliando os conceitos e relacionando-os uns aos outros. A visão de conjunto predomina, no duplo sentido de que (1) a perspectiva geral dá o tom e orienta as perspectivas particulares e (2) de que um elemento relaciona-se de várias maneiras a outros elementos. Ora, o caleidoscópio é um aparelho com uma quantidade limitada de pedras coloridas, que, movimentado, revela sempre outras e novas configurações; da mesma forma, cada um dos capítulos dos livros comtianos sugere sempre outras perspectivas, outras possibilidades a serem desenvolvidas com outros elementos já expostos ou a expor, dependendo do capítulo e do livro que se leia. Da mesma forma, como notou Ângelo Torres (1997), uma das características da redação de Comte é a sua ambigüidade – não em um sentido negativo, de frases ou palavras com duplo sentido (ou sentido triplo, quádruplo etc.) e cujo sentido específico não seja possível determinar, mas uma ambigüidade positiva, constituída pela incorporação progressiva de vários sentidos e, assim, pela ampliação do campo semântico das palavras e dos conceitos empregados. Esses dois aspectos (o “caleidoscópio epistemológico” e a ambigüidade estilística) sugerem um caráter intelectualmente “aberto” do pensamento comtiano – aliás, em contraposição às interpretações usuais, que o percebem como fechado, devido a ele constituir-se como um “sistema”.
Todos esses comentários preliminares são necessários para termos clareza a respeito do que estamos tratando. Dito isso, podemos passar a examinar a atualidade do positivismo, ou seja, quais os seus aspectos que, de maneira mais ou menos evidente, têm aplicação ou utilidade no século XXI, seja no Brasil, seja no mundo. Esses aspectos terão um viés razoavelmente claro, vinculados à nossa área de trabalho e de formação acadêmica: as sugestões abaixo tendem a referir-se a problemas políticos, a questões sociológicas ou, ainda, em menor escala, a temas epistemológicos. É claro que se fôssemos engenheiros, músicos, psicólogos, literatos, médicos ou outros profissionais, proporíamos ainda outras possibilidades; nesse sentido, o rol abaixo não tem a menor pretensão de esgotar o assunto.
Em um texto de alguns anos atrás (LACERDA, 2009b) elaboramos uma relação preliminar de 12 elementos do positivismo que, parece-nos, apresentam grande atualidade; pretendíamos seguir aqui tal relação, acrescentando vários outros itens, que seriam expostos mais ou menos em ordem alfabética. Todavia, à medida que redigíamos este artigo, vimos ser impossível seguir tal procedimento ­– não porque as sugestões não se revelassem frutíferas ou porque a ordem alfabética não fosse adequada, mas, justamente ao contrário, os itens que propusemos desenvolveram-se tanto que exigiriam um texto bem maior que um texto de tamanho regular para serem expostas. Assim, decidimos limitar a exposição aos seguintes itens, que correspondem às demais seções deste artigo: sentidos da palavra “positivo”; reencantamento do mundo; afirmação da sociedade civil; defesa de relações sociais pacíficas. Convém notar, de qualquer maneira, que o estilo das próximas seções será expositivo – no sentido específico de que as idéias comtianas serão expostas, mas não haverá contraposição com autores, teorias, concepções contemporâneas (pelo menos, não haverá contraposições sistemáticas); isso se deve à extensão do texto e requererá, da parte do leitor, um pouco do exercício de sua erudição.

2) Sentidos da palavra “positivo”

Comecemos com a palavra “positivo”, que por derivação dá nome ao sistema comtiano e que é empregado amiúde em seus livros. Tratar dessa palavra permite ao mesmo tempo entender algumas idéias do sistema comtiano e expor elementos cuja atualidade é mais manifesta.
A palavra “positivo” foi utilizada inicialmente (como em Comte (1972)) tendo como referência os “conhecimentos positivos”, definidos em contraposição às idéias teológicas e metafísicas, ou seja, sendo sinônimos de conhecimentos científicos, isto é, de conhecimentos que sejam de alguma forma ao mesmo tempo racionais e empíricos (e/ou passíveis de verificação)[10]. Nesse sentido inicial, o “positivo” e, de maneira mais ampla, cada um dos “estágios” da lei dos três estágios refere-se a uma forma de conceber a realidade, o que, no vocabulário atual, pode ser lido aproximadamente como um parâmetro de “interpretação” (em um sentido próximo ao weberiano), ou uma “episteme”, ou um “paradigma”[11]. A esse sentido amplo soma-se a exigência de base empírica das teorias, com isso se indicando que os verdadeiros conhecimentos referem-se àquilo que existe de fato – embora evidentemente seja sempre possível teorizarmos coisas que não existem. Na afirmação comtiana do conhecimento positivo não há nenhuma restrição à teorização em si, nem à formulação de hipóteses explicativas. Por outro lado, não há aí nenhuma exigência de que a todo instante seja necessária a referência a objetos empíricos e, de modo mais importante, o pensamento comtiano rejeita a concepção de que o conhecimento seja a mera coleção de dados empíricos (eventualmente com a adição de alguma inferência generalizante, mais ou menos rasteira). Como explicitado no Discurso sobre o espírito positivo (COMTE, 1992), para Comte o conhecimento positivo é acima de tudo teórico, constituído pelas leis naturais: a base empírica é requisito necessário para elas, mas não elas não se resumem à empiria. Além disso, considerando em termos mais amplos as necessidades intelectuais do ser humano – ou seja, suas necessidades de ter uma compreensão geral e coerente do próprio ser humano, da sociedade e do mundo –, a base empírica é necessária, mas não é suficiente: nesse sentido, Comte considera aceitável o uso de ficções ao mesmo tempo racionais e afetivas para coordenação das idéias e dos sentimentos (e, daí, das ações), desde que se assuma e tenha-se clareza tanto o caráter subjetivo de tais idéias quanto os conhecimentos objetivos de base. Evidentemente, há uma grande distância entre o que é “positivo” em oposição à teologia e à metafísica e o que é “positivo” como sendo, também, o recurso teórico para coordenação teórica e mental: tal distância foi percorrida paulatinamente por A. Comte, dos Opúsculos de filosofia social (1815-1826) e do Système de philosophie positive (1830-1842) ao Système de politique positive (1851-1854); não por acaso, tal passagem corresponde também ao trânsito das reflexões mais científicas para as religiosas.
De qualquer maneira, a distinção entre o conhecimento positivo e o mero empirismo evidencia a inadequação da identidade, com freqüência afirmada, entre positivismo e empirismo: essa identidade é muitas vezes defendida com o fito de afirmar-se a relevância de perspectivas ditas teorizantes, “subjetivistas” e mesmo “metafísicas”[12], associando-se implícita ou explicitamente ao positivismo uma postura antiteórica[13].
Mas como o próprio desenvolvimento da obra comtiana sugere, é possível e mesmo necessário dar um passo além e perceber que o conhecimento positivo permite um regime intelectual, social e político mais amplo, caracterizado pela positividade; esta, por sua vez, seria definida pelos seguintes atributos: real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático. A compreensão de cada uma dessas características é facilitada pela contraposição a seus opostos: real vs. irreal (ou fictício); útil vs. inútil; certo vs. incerto; preciso vs. vago; relativo vs. absoluto; orgânico vs. crítico (ou destruidor); simpático vs. antipático (ou egoísta).
Não é possível aqui comentar cada uma das características da palavra positivo, pois tal exercício ocuparia muito espaço[14]; o que importa notar é que para Comte todas essas características participam de maneira integral da positividade e do “espírito positivo”. Na verdade, lendo-se as obras da sua fase “religiosa”, o que se evidencia é que, tomando-se como pressupostos os quatro primeiros elementos – real, útil, certo e preciso, que têm um aspecto por assim dizer mais epistemológico –, os outros três atributos – relativo, orgânico, simpático, cujo aspecto social é mais evidente – assumem grande importância: não por acaso, é nessa fase que Comte desenvolve cuidadosamente suas reflexões políticas.
Expor tão rapidamente a palavra positivo pode parecer insuficiente – e nossa tendência é concordarmos. Ainda assim, é possível extrair duas ou três conclusões parciais a partir dos elementos apresentados acima. Em primeiro lugar, há um aspecto de desmistificação do positivismo, ao indicar-se como a palavra que resume muito do pensamento comtiano é mais complexa do que se costuma considerar: na intensa ambigüidade da palavra “positivo” é difícil perceber uma concepção simplista, seja da realidade humana, seja da ciência. Em segundo lugar, os elementos reunidos estabelecem parâmetros lógicos, morais e políticos para avaliação dos conhecimentos produzidos, em um sentido que não é apenas epistemológico (“o que e como podemos conhecer?”), mas também prático: “para quê (e para quem) devemos conhecer?”. Como lembrou há alguns anos Michel Bourdeau (2011), o conceito comtiano de “utilidade” está longe de ser meramente técnico ou de sugerir a aplicação imediata e material dos conhecimentos – o que se aplica também e em particular às teorias: afinal, as idéias orientam a realidade humana e estimulam diferentes padrões de comportamentos e de sentimentos; nesse sentido, para Comte o conhecimento deve servir para o aperfeiçoamento humano, que é antes de tudo moral[15]. Em terceiro lugar, a consideração integral da palavra “positivo” permite o estabelecimento de um quadro de referência transdisciplinar, em que não apenas as disciplinas científicas são integradas e vistas em conjunto, como também os mais variados aspectos da existência humana (sentimentos, inteligência, ação prática; artes, filosofia, ciências, indústria, política; educação) são integrados[16].

3) “Reencantamento do mundo”

É interessante notar que, embora afirmasse a racionalidade científica como instrumento para conhecer a realidade, Comte não a estabelecia em princípio e fim da existência humana: tal papel duplo de início e fim seria ocupado pelos sentimentos, isto é, pelos diversos tipos de afetos, dos quais se deveria estimular os altruístas e comprimir (mas não erradicar) os egoístas. O estímulo ao altruísmo ocorreria por meio das relações humanas diretas e também por meio de ações práticas as mais variadas, em que se pode incluir desde, por exemplo, a cooperação com vistas ao bem comum até o que poderíamos chamar de “práticas de memória”, como os cultos individual e doméstico aos antepassados familiares, a recordação dos grandes tipos da história da Humanidade e de cada país etc.
Comte também a prece positivista, cuja função é estimular o altruísmo por meio da veneração, do apego e da bondade, bem como da compressão do orgulho, da vaidade, do instinto destrutivo etc.; ela serve ao mesmo tempo como um instrumento de exame de consciência e como um exercício de preservação da memória dos entes queridos, além de ser um exercício poético individual. De maneira complementar, a posse de objetos, o reconhecimento de caminhos e procedimentos, a lembrança de situações compartilhadas etc. dos entes queridos são outras tantas formas de manter-lhes viva a memória e estimular o altruísmo (cf. p. ex. COMTE, 1996, 4ª conferência). Nesse sentido, L. Fedi (2008, p. 174-175) notou o quanto o apelo comtiano aos cultos individual e doméstico aproxima-se das práticas de judeus contra o esquecimento e a destruição sistemática de vidas que ocorreram no século XX.
Mas, de maneira mais radical, é possível adotar uma certa interpretação da expressão “reencantamento do mundo” para o universo comtiano, por meio do que vários autores chamaram de “neofetichismo”. A idéia do neofetichismo foi proposta pelo próprio Comte e consiste em assimilar o fetichismo ao positivismo, ou seja, em considerar que o planeta Terra e o meio ambiente têm vida, caracterizada pelos sentimentos, mas não pela inteligência: para Comte, essa hipótese deve ser assumida como subjetiva, ou seja, como uma ficção útil, cujo fim é desenvolver o afeto humano e ligá-lo ao ambiente em que vive, ao mesmo tempo permitindo e limitando a ação humana sobre o planeta (no sentido de evitar exageros e desvios). Além disso, o “neofetichismo” é a base para um sistema mais amplo de abstrações destinadas a coordenar, regular e guiar sentimentos, inteligência e atividade humanas: esse sistema é o que A. Comte chamou de “trindade positiva”, composta pelo “Grão-Ser”, pelo “Grão-Meio” e pelo “Grão-Fetiche” (respectivamente a Humanidade, o Espaço e a Terra) (cf. COMTE, 1856; 1929, v. IV). Esses conceitos foram elaborados tendo em vista que o ser humano possa perceber-se como integrando um lugar no espaço e também na história, ao mesmo tempo que respeitando ambos à medida que age e modifica o espaço terrestre e a sociedade em que vive (cf. GRANGE, 1996).
Como observou Pierucci (2003), a expressão “desencantamento do mundo” foi popularizada pela obra de Weber e refere-se mais propriamente ao processo de “desmagificação” da realidade, promovida por inúmeras concepções racionalizantes do universo, entre as quais se incluem mesmo algumas teologias: nesse sentido, não é adequado afirmar que o positivismo busca “reencantar” o mundo, pois ele não visa a reinstituir nenhum aspecto “mágico”; nesse sentido, J. Grange (1996, p. 360) está correta ao afirmar que o positivismo não “reencanta” o mundo. Mas, por outro lado, a valorização subjetiva – assumidamente fictícia e com intenções racionais e afetivas – do planeta Terra e do espaço, bem como a incorporação dos animais e das plantas domesticados no conceito de Humanidade, tornam pleno de sentido e afetivamente importante o mundo em que vive o ser humano. Ampliado e adensado nos termos propostos por A. Comte, o conceito de “(meio) ambiente”, embora seja o lócus da ação humana, não é o local frio em que se pode agir e dispor ao bel-prazer[17].
Seja pela relação com a memória, seja pela proposta do “neofetichismo”, o positivismo promove uma profunda valorização da existência humana, naquilo que ela tem e pode ter de positivo. O que importa notar é que essa valorização vai na direção contrária da progressiva perda de sentido que a ação corrosiva da ciência sobre a teologia acarreta – ao mesmo tempo em que também vai na direção contrária de inúmeras filosofias contemporâneas (niilistas, pós-modernas e/ou ultracontextualistas), que afirmam orgulhosas a inexistência e a impossibilidade de sentido na vida humana.

4) Afirmação da sociedade civil

As idéias políticas de Augusto Comte são usualmente resumidas na sua proposta de “ditadura republicana”, em que o destaque é concedido à palavra “ditadura”, entendida como governo forte e autoritário – de preferência mantido por militares – e em caráter permanente. Entretanto, a proposta política positivista afirma precisamente o contrário desse senso comum: a “ditadura republicana” é um governo civil temporário (porque estritamente transitório) caracterizado pelas liberdades públicas, das quais as mais básicas e importantes são as liberdades de pensamento, de expressão e de associação: em vez de basear-se no autoritarismo e na violência, a “ditadura republicana” deve estimular as relações sociais pacíficas[18].
Na verdade, o regime político ideal para Comte deve corresponder a uma sociedade ideal, ambos sendo caracterizados pela expressão “sociocracia” (nome dado de maneira paralela à teocracia, que, grosso modo, seria o regime da teologia). Tanto o regime político quanto a sociedade ideais, no pensamento comtiano, correspondem à conjugação de dois elementos: um histórico-científico e outro utópico. A parte histórico-científica baseia-se no estudo do ser humano, em termos individuais e coletivos, bem como em suas relações com o mundo de que faz parte: esse estudo permite que se conheça as suas características, suas possibilidades e seus limites, ou, nos termos comtianos, ele revela as leis naturais sociológicas (que aliás têm um caráter histórico), morais e naturais. A partir desse conhecimento, é possível elaborar um futuro ideal e idealizado, com isso se querendo referir tanto ao quadro que a história pretérita indica de maneira concreta quanto à realidade que essa história sugere ser possível ao ser humano alcançar. Em outras palavras, com base na história é possível sugerir a sociedade mais adequada ao ser humano positivo, com base na “descrição” é possível sugerir prescrições: é dessa forma que, no Système de politique positive, o “quadro do futuro humano” (v. IV) é possível e proposto após os exames preliminares da situação cósmica (v. I), da “estática social” (v. II) e da evolução histórica (v. III).
Assim, na sociocracia a “sociedade industrial” e o “espírito positivo” andam de braços dados, resultando e produzindo relações sociais pacíficas. Como vimos antes, o espírito positivo caracteriza-se, entre outros elementos, pelo relativismo, o que, nesse caso específico, equivale a perceber que a organização sócio-política humana corresponde às necessidades humanas e que varia ao longo da história e do espaço; além disso, tais variações permitem o desenvolvimento de atributos humanos, que vão acumulando-se variadamente com o passar do tempo. Da mesma forma, o relativismo implica a possibilidade de discussão e de reflexão sobre os fundamentos e os procedimentos adotados: tais discussão e reflexão não são fins em si próprios, ou seja, não se discute por discutir, mas para que se compreenda a organização social, para que busque seu aperfeiçoamento e, claro, para que a estrutura social tenha a adesão dos cidadãos.
De maneira correlata, em inúmeras passagens do Système de politique positive, Comte nota que o absolutismo filosófico, com sua busca de causas primeiras e finais e de perspectivas que independam da situação do ser humano no mundo, tende a rejeitar o debate e a reflexão; suas respostas para os problemas que investiga e as suas propostas sociais são “reveladas” e, nesse sentido, devem ser pura e simplesmente aceitas. Em termos sócio-políticos, portanto, o absolutismo tende a gerar a aceitação passiva e irracional da ordem social; nos casos em que convive com o pluralismo, tal convivência decorre ou da tolerância condescendente que uma revelação mantém para com as demais, ou de uma solução de compromisso entre as várias revelações, ou de uma situação em que ele perde espaço para outras concepções da realidade. O resultado sócio-político do absolutismo, portanto, é que ele tende a beneficiar regimes políticos que não aceitam o debate, nem a reflexão, nem a crítica.
Na proposta comtiana, a “sociedade industrial” consiste por seu turno na organização racional e na divisão sistemática do trabalho. De maneira mais ampla, para Comte a “indústria” consiste na ação humana sobre o planeta e, em termos histórico-conceituais, ela opõe-se às “sociedades guerreiras”. As sociedades guerreiras, como o próprio nome indica, são sociedades organizadas em função da guerra, isto é, dos conflitos armados entre grupos sociais; na análise histórica comtiana, após deixarem o extermínio mútuo, tais conflitos passam da busca da conquista de outros povos (como ocorria na Antigüidade), ou seja, ofensivos, para os conflitos defensivos (como nas Cruzadas); por fim, os hábitos e valores guerreiros são substituídos pela valorização da vida, da preservação dos bens e das propriedades e pela consideração de que se vive melhor com a indústria e o comércio que com a guerra – e, inversamente, de que a guerra destrói vidas e bens e diminui a riqueza e o bem-estar. A passagem das sociedades guerreiras para as sociedades industriais implica, evidentemente, a mudança de valores sociais – da glória e da honra para o conforto e o bem-estar –, assim como a decadência e mesmo extinção de alguns grupos sociais, juntamente com a ascensão de outros grupos sociais.
Na sociedade industrial a interdependência dos grupos sociais (resultantes da divisão do trabalho) torna-se mais evidente e, daí, a noção de dever ganha mais força: todos os grupos devem cooperar entre si, cumprindo seus deveres, em vez de buscarem privilégios e sua satisfação por meio dos “direitos”. Diferentes posições na sociedade implicam diferentes deveres: quanto maiores os deveres, maiores devem ser os meios para satisfazê-los e, ao mesmo tempo, maiores devem ser as cobranças para tais satisfações. Em outras palavras, os ricos e poderosos têm riqueza e poder não para usarem e abusarem a seu bel-prazer de tais recursos, mas para empregarem-nos em benefício da sociedade. Os conflitos, decorrentes das diferentes perspectivas e posições na sociedade, devem ser solucionados pacificamente, tendo em mente o bem comum e os deveres mútuos.
Pois bem: o conceito de sociocracia, diferentemente de grande parte da teoria política existente até o século XIX, incorpora com clareza a noção de “sociedade civil”, sendo que Comte usa precisamente essa expressão para referir-se ao espaço público não-estatal[19]. A sociedade civil para Comte não se define de maneira apenas negativa (como aquilo que não é estatal nem privado): ela tem um status social e político próprio, correspondendo ao conjunto dos cidadãos, que trabalham, discutem, fiscalizam o Estado e mantêm a opinião pública. Embora a distinção entre Estado e sociedade civil evidencie por si só que A. Comte estabelece uma clara separação entre os que detêm o poder político e os que não o detém – entendendo-se por “poder político”, neste contexto específico, a capacidade de elaborar leis e de, em último caso, apelar à violência física –, isso não equivale a dizer que a sociedade civil esteja alienada de qualquer participação política e, portanto, incapaz de exercer pressão e ter poder: o que é característico da sociedade civil, como indicado há pouco, é a opinião pública, ou seja, a possibilidade de a todo instante avaliar e, daí, referendar ou rejeitar a organização social e também as políticas levadas a cabo pelo Estado – o que conduz, portanto, ao conceito de legitimidade de um governo.
Em outras palavras, na teoria comtiana a sociedade civil é um dos dois pólos principais da vida política; embora não seja o pólo por definição ativo, não é possível qualificá-la propriamente de “pólo passivo” – exceto, é claro, se considerar-se que a atividade política consiste apenas e tão-somente na possibilidade de emitir as leis e de mobilizar as agências da violência (a polícia, em particular). Assim, é mais adequado caracterizar a sociedade civil comtiana como “pólo menos ativo” da política – ou ainda, de maneira mais precisa, ela seria um pólo diferentemente ativo, ao consistir na sede da opinião pública e também no conjunto da sociedade[20]. A efetiva atividade da sociedade civil na sociocracia pode ser avaliada pela consideração de Comte de que o que se opõe e “equilibra” de fato ao poder do Estado não é a fragmentação do Estado em dois, três, quatro, n “poderes”, mas é a própria sociedade civil[21].
A teoria histórica de Comte, com seus relatos sobre as conseqüências políticas e sociais dos pensamentos absoluto e relativo, assim como sobre as sociedades guerreiras e industrial, ganha mais relevância ao notar-se que a sociocracia só pode viger em uma sociedade caracterizada ao mesmo tempo pelo espírito positivo (relativo) e em uma sociedade industrial, seja porque em sociedades militares a existência autônoma da sociedade civil não é tão clara, seja porque o pensamento absoluto considera a crítica um ato de traição e/ou uma heresia, seja porque sem o pensamento relativo as críticas podem ser motivadas pelo puro espírito destrutivo.
De modo mais específico, a opinião pública é organizada e mobilizada pelo Augusto Comte chamada de “poder Espiritual”, ou seja, pelos pensadores que têm uma perspectiva de conjunto da vida humana, no que se refere à sua história, à situação do ser humano no mundo, às relações entre os vários grupos sociais (incluindo aí os vários países), aos vários elementos da existência humana (artes, ciência, filosofia, indústria, política, educação). O poder Espiritual exerce funções de intérprete, de guia e de educador; devido à importância de tais atribuições e em paralelo aos grupos que em séculos anteriores desempenharam-nas, Comte chama o conjunto do poder Espiritual de “sacerdócio”. Os sacerdotes têm que ser uma combinação de filósofos, sociólogos, pedagogos e conselheiros espirituais, realizando desde uma “Sociologia pública” (como proposto por Michael Burawoy) até o aconselhamento individual: nesse sentido, é interessante notar que suas responsabilidades afastam do sacerdócio os meros cientistas (sejam os cientistas naturais, sejam os cientistas sociais), devido à visão fragmentária da realidade, bem como ao aspecto intelectualista da ciência[22].
Pois bem: seja porque o poder Espiritual baseia sua influência no aconselhamento (e, portanto, no respeito voluntário e pacífico que lhe é dedicado por seus aderentes ou ouvintes), seja porque a possibilidade de fiscalização sobre o poder político só pode ser feito por órgãos e agentes autônomos, seja porque o uso do poder político pelos órgãos de aconselhamento degrada tais órgãos, seja finalmente porque o poder político investido da capacidade de impor crenças gera hipocrisia e cinismo, Augusto Comte afirma que tanto o poder Espiritual quanto o “poder Temporal” (isto é, o Estado) têm que se manter estritamente separados. Uma das conseqüências de tal separação é o que se chama vulgarmente de “laicidade do Estado”, em que o Estado não professa, não protege nem persegue nenhuma doutrina. Outra conseqüência é que na sociocracia os formadores de opinião não podem deter o poder, seja o poder político, seja o poder econômico: para Comte, a situação ideal é que eles sejam pobres (mas, evidentemente, não miseráveis), a fim de manterem sua autonomia face aos poderes (políticos e econômicos).

5) Defesa de relações sociais pacíficas

Nas seções anteriores afirmamos várias vezes que para Comte as relações sociais têm que ser pacíficas; é interessante nesta seção reafirmá-lo, desenvolvendo essa concepção e indicando como ela relaciona-se com um ideal de bem viver, desenvolvido em particular no v. IV do Système de politique positive (1854) e no Appel aux conservateurs (1855).
Na sociocracia, como em qualquer regime, o Estado tem uma importante função social, que consiste em organizar a vida material da sociedade e em manter as relações com outros países: nisso não há novidade. Mas o Estado fundamenta-se na força física: essa observação, que A. Comte adota de Hobbes, indica que quanto mais as pessoas agem apenas em virtude do respeito às leis e apenas na medida em que o Estado obriga, mais as pessoas submetem-se a relações sociais baseadas na força. Para alterar tal quadro, é necessário que cada qual aja de maneira correta porque está intimamente convencido de que precisa agir de determinada forma, sem se ver obrigado a tanto pelo Estado. Isso, evidentemente, implica que os cidadãos ajam cada vez mais a partir do aconselhamento e da opinião, ao mesmo tempo que existam valores comuns amplamente compartilhados pela sociedade, que indiquem quais são as responsabilidades mútuas a partir do que se considera bom, correto, justo etc. Em outras palavras, relações sociais (mais) pacíficas requerem o fortalecimento da sociedade civil, da opinião pública e, em última análise, do poder Espiritual; em outras palavras, requerem o fortalecimento da noção de “dever” (às expensas da idéia de “direitos”).
O ideal, portanto, é que as relações sociais sejam voluntariamente pacificadas; todavia, diferenças de perspectivas e de interesses persistem, gerando conflitos, que podem ser desde desacordos e disputas até greves ou rebeliões. Todos esses movimentos podem ser mais ou menos legítimos (dependendo do contexto específico), embora quanto mais extremos mais excepcionais eles devam ser. Dessa forma, no pensamento positivista os chamados conflitos sociais são aceitos e reconhecidos e, em determinadas condições, são até mesmo valorizados: tal valorização é instrumental, como no caso da luta de classes, em que as disputas entre patrões e empregados deve realçar a necessidade de instituição do poder Espiritual positivo, a par da afirmação da visão de conjunto, dos valores do pacifismo, da interdependência, das responsabilidades sociais mútuas, do altruísmo.
Assim, de modo geral, Comte reconhece a existência dos conflitos sociais e, ao contrário do marxismo, que valoriza a violência e vê nos conflitos o “motor da história”, para o positivismo os conflitos são historicamente datáveis e datados. Como exposto acima, as sociedades militares já não têm vez e as guerras só trazem destruição e desolação. Entretanto, como observamos há pouco, perspectivas e situações particulares conduzem a diferentes interesses, que eventualmente podem transformar-se em interesses conflitantes com os de outros grupos: pacificamente, há que ocorrer a negociação entre as partes interessadas, com ou sem mediação. Uma das partes em conflito pode sentir-se continuamente prejudicada: apelos à opinião pública podem ser utilizados, assim como manifestações públicas, campanhas etc., chegando mesmo à interrupção temporária das atividades, ou seja, às greves: a negociação impõe-se, aí. Em outras palavras, os conflitos devem ser solucionados tendo por parâmetro o valor da fraternidade universal e, de qualquer maneira, rejeitando-se qualquer instrumento violento.
Em relação às atividades materiais, o Estado tem que manter uma visão de conjunto para a sociedade; a despeito disso, ele pode desviar-se de suas funções, seja por menosprezar aspectos da realidade social, seja por privilegiar um grupo às expensas de outro(s), seja por egoísmo e/ou ignorância. Para Comte, a visão de conjunto específica do governo é a que considera o tempo presente – é o que ele chamava de “solidariedade”. De maneira complementar, a verdadeira visão de conjunto, ou melhor, a visão de conjunto mais completa incorpora tanto o aspecto histórico do ser humano (a “continuidade”, no linguajar comtiano) quanto os aspectos não-materiais: por todos esses motivos o poder Espiritual é mais apto a organizar a opinião pública. Dito isso, é claro que pode surgir um conflito entre o Estado e o conjunto da sociedade civil: nesse caso, os vários meios sugeridos acima para solução de conflitos apresentam-se da mesma forma; mas, no limite, Comte reconhece que pode ser necessária mesmo uma rebelião popular para persuadir-se o governo de alterar de conduta. Esse é um aspecto interessante de sua sociocracia, pois nela as forças armadas deveriam ser extintas, mantendo-se organizações de imposição da força apenas com funções policiais, isto é, de manutenção da ordem – e mesmo estas deveriam ser em número suficiente apenas para a estrita manutenção da ordem, mas insuficientes para evitarem rebeliões populares[23].
Um outro âmbito em que as relações sociais devem ser pacíficas é aquele em que a idéia de “pacifismo” é diretamente compreensível, ou seja, o das relações interestatais. Do que já se expôs antes, vários traços da política internacional proposta por A. Comte são discerníveis: proscrição da guerra, relações habitualmente pacíficas, conflitos mediados, extinção das forças armadas, abandono dos hábitos e das práticas militaristas, colonialistas e imperialistas. Por si sós tais propostas apresentam grande relevância contemporânea, seja por serem desafiadoras, seja porque paulatinamente estão incorporando-se à realidade internacional. Mas há alguns elementos adicionais que são interessantes de serem mencionados.
O primeiro deles refere-se à pluralidade de países: para Comte a idéia de um “supergoverno”, isto é, de uma autoridade soberana cujo território cubra todo o planeta Terra é impensável. “Impensável” não porque eventualmente não seja factível – por hipótese ele pode ocorrer –, mas porque um governo com tais dimensões seria despótico. Por que despótico? Devido a duas séries de motivos. Por um lado, um governo desse tamanho não teria condições de efetivamente conhecer e, portanto, regular as realidades locais; a partir de critérios gerais, possivelmente hauridos da experiência da capital mundial, seriam impostos às mais diferentes e distantes partes do mundo parâmetros inadequados para tais partes do mundo. Por outro lado, opondo-se aos anarquistas, comunistas e igualitaristas de modo geral, Comte afirma que tanto o poder quanto a riqueza devem concentrar-se; todavia, o princípio que ao mesmo tempo justifica e regula tais concentrações é o da responsabilidade social: nesse sentido, deve haver poderosos e ricos, mas tais poderosos e ricos devem lançar mão de seus recursos para o benefício da sociedade, respeitando-se todos os elementos apresentados acima, assim como inúmeros outros. Ora, para Comte, o escrutínio público do uso de tais recursos, levado a cabo pela sociedade civil, exige a proximidade física e moral entre gestores e beneficiários: a conseqüência disso é que as unidades políticas têm que ser de pequena extensão. Em outras palavras, responsabilidade social, accountability, valorização da política de base e mesmo um esboço do chamado orçamento participativo[24].
O fundador do positivismo sugeria que as pátrias do futuro – a serem chamadas de mátrias – deveriam ter extensões que ficassem entre as da Bélgica (30,2 mil km2) e de Portugal (92,4 mil km2). Em termos do Brasil, essas extensões corresponderiam a repúblicas que variariam entre o Espírito Santo (46,1 mil km2) e Pernambuco (98,3 mil km2): as menores fundir-se-iam, as maiores desmembrar-se-iam. Considerando essas extensões, Comte sugeria a existência futura de cerca de 500 repúblicas sociocráticas[25].

6) Comentários finais

Desenvolvemos neste texto alguns poucos elementos do positivismo que nos parecem atuais – não porque haja apenas alguns elementos atuais, mas porque a exposição de vários deles exigiria uma quantidade de páginas incompatível com as limitações do artigo. Conforme notamos na seção 1, os aspectos comentados aqui foram anteriormente sugeridos em Lacerda (2009b): rearrumando e ampliando essa lista anterior, poderíamos sugerir ainda, pelo menos, os seguintes tópicos para tratarmos da “atualidade do positivismo”: afirmação da importância social, intelectual e afetiva da mulher; afirmação da importância social, intelectual e afetiva das artes; afirmação da visão de conjunto sincrônica e diacrônica da sociedade e do ser humano; concepção relacional das ciências, de suas teorias e de seus métodos; crítica ao academicismo; crítica ao individualismo ético e metodológico; crítica aos extremos opostos do liberalismo laissez-faire e do comunismo; defesa da fraternidade universal e rejeição do racismo, da xenofobia, do colonialismo etc.; defesa da noção de deveres sociais e crítica à noção de direitos; ética global; método subjetivo como epistemologia superadora de dicotomias (objetivo-subjetivo, “explicação”-“compreensão”); metodologia sociológica histórica e comparativa; perspectiva que conjuga universal e particular, agente e estrutura, ordem e progresso; proposição de parâmetros do bem viver; proposta de justiça social; proposta pedagógica ao mesmo tempo humanista e científica; responsabilidade social, incluindo incorporação e dignificação do proletariado.
Sem querer esgotar os aspectos do positivismo que também poderiam ser explorados, no fundo a lista acima busca apenas estimular a curiosidade a seu respeito. Em todo caso, cremos que as sugestões feitas apresentam grande ressonância com os debates e as questões contemporâneas: nesse sentido, pode-se falar em “atualidade” do positivismo. Por outro lado, a capacidade que os pesquisadores atuais têm de explorar esses aspectos todos, bem como o desejo de levarem a sério o pensamento positivista – em vez de, como observou mas também praticou Wacquant (1996), adotá-lo como o “outro” teórico e como xingamento intelectual – são aspectos fundamentais para que essa atualidade realize-se. Do contrário, continuaremos confirmando a ocorrência do diagnóstico feito em Lacerda (2011a) sobre a impossibilidade institucional de estudos comtianos no Brasil, em que não se estuda Comte porque não se gosta dele e não se gosta dele porque não se o estuda.

Gustavo Biscaia de Lacerda (GBLacerda@gmail.com) é doutor e “pós-doutor” em Teoria Política (UFSC) e Sociólogo (UFPR).

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[1] Agradeço bastante o apoio e a paciência de Christian Lynch para a redação deste artigo.
[2] Exemplar a respeito dessas dificuldades é a produção teórica de Jeffrey Alexander. Esse autor notabilizou-se nas décadas de 1980 e 1990 ao rever as bases conceituais da Sociologia dos EUA; mesmo embora tenha afirmado a importância do estudo e da (eterna) recuperação dos “clássicos” (cf. ALEXANDER, 1999), foi igualmente insensível (ou incapaz) de distinguir as várias correntes que originaram tal Sociologia e, de qualquer maneira, de perceber com clareza os traços específicos do positivismo de Comte em relação ao “positivismo sociológico” dos EUA, como se pode ver em Alexander (1982).
[3] Popper (2004) – que, aliás, rejeitava a alcunha de “positivista”, fosse entendida no sentido comtiano, fosse no sentido do empirismo lógico, em que ele poderia, discutivelmente, ser inserido – observou exatamente esse aspecto em sua tréplica à “réplica” de Adorno: Adorno teria ignorado todos os comentários de Popper no evento inicial da “disputa sobre a Sociologia alemã” (o Congresso da Sociedade de Sociologia Alemã de 1961), tratando de outras questões e considerando aspectos que pura e simplesmente não tinham sido tratados por Popper. O caráter genérico das críticas dos frankfurtianos ao “positivismo” são mantidos também nos textos de Habermas, sejam os presentes na “disputa sobre a Sociologia” (cf. ADORNO (1976)), seja em trabalhos individuais posteriores (HABERMAS, 1968).
[4] O sofisma do espantalho consiste em apresentar, com ou sem dolo, uma versão distorcida ou errada – em todo caso (super)simplificada – do argumento que se deseja criticar para que a crítica recaia sobre a versão distorcida em vez de sobre o argumento inicial.
[5] Essa postura apresenta ainda outras conseqüências, entre as quais podemos citar a recusa de comparações históricas (afinal, se cada contexto só faz sentido em relação a si próprio, a comparação entre dois contextos revelará apenas a particularidade de cada um, em vez de conduzir a eventuais generalizações) e a também recusa de filosofias da história (no sentido de concepções do desenvolvimento humano macro-histórico).
[6] Esse parece-nos ser um dos elementos distintivos centrais entre a História das Idéias e a Teoria Política. A necessária e correta ênfase da História das Idéias nos enraizamentos contextuais das obras e das ações humanas, por mais importante que seja, é insuficiente para exercícios teóricos, sejam eles “normativos”, sejam eles “empíricos”. Inversamente, é claro que isso não equivale a afirmar que as teorizações “normativas” e “empíricas” possam dispensar o conhecimento da história e a perspectiva diacrônica; longe disso: significa “somente” que história e teoria política são momentos intelectualmente diferentes, logicamente sucessivos um em relação ao outro. Sem dúvida que tais observações são objeto de discussões, algumas mais intelectuais, outras mais corporativas: a perspectiva que adotamos aqui se baseia em Comte e, nesse sentido, tem um viés sociológico em vez de historiográfico. Cf. Comte (1972).
[7] Alguns analistas afirmam que tal clivagem, entre “ortodoxos” e “heterodoxos”, é insuficiente para entender todas as relações entre os vários positivistas, adeptos explícitos ou não da obra de Comte; tal insuficiência seria particularmente clara no caso brasileiro. Ainda que tal observação tenha lá seus méritos, ela não apresenta grande importância para este artigo, visto que não se trata aqui de indicar as possíveis configurações concretas dos adeptos do positivismo; além disso, a oposição ortodoxos-heterodoxos – aliás proposta pelo próprio Comte, já na década de 1840 – é suficientemente instrumental para os nossos presentes objetivos.
[8] As diferenças entre os ortodoxos e os heterodoxos não podem ser diminuídas, especialmente porque, grosso modo, a elas correspondem diferenças nacionais, no sentido de que, em traços amplos, pode-se dizer que os ingleses eram heterodoxos e os franceses, ortodoxos, com as correspondentes narrativas a respeito da obra de Comte. Assim, os ingleses tendem a seguir a narrativa de John Stuart Mill, para quem deve-se dividir a obra de Augusto Comte em duas fases, das quais a primeira, “científica”, é aceitável e a segunda é fruto do enlouquecimento do autor: Bevir (1993) e Giddens (2000) repetem esses argumentos (quase diríamos “estereótipos”). Juliette Grange (2008) observa com clareza o quanto Stuart Mill originou mitos a respeito de Comte, seja no que se refere à unidade de sua obra ou à tese da loucura, seja no que se refere à epistemologia dita “positivista” (que seria mais milliana que comtiana).
[9] As dissensões foram realmente variadas, em termos de grupos que se formaram e também ao longo do tempo. Citamos especificamente Laffitte e Lemos-Teixeira Mendes por motivos puramente instrumentais: enquanto a produção intelectual de Laffitte foi enorme, a atuação intelectual, política e social dos brasileiros foi igualmente grande; tanto em um caso quanto em outro é possível entender em termos práticos e detalhados elementos mais abstratos da obra de Comte, o que, em outras palavras, significa ter subsídios para sugerir sua atualidade (ou ainda para propor como ela pode ser atualizada). Poderíamos, é claro, considerar outros nomes e de outras nacionalidades, mas com um rendimento intelectual menor.
[10] Como observou Larry Laudan (1971; 2010), muito do “método positivo” tem que ser entendido em função de combinações variadas, adequadas a cada caso, entre teorização e observação empírica.
[11] Fedi (2008) indicou essa mesma aproximação, reconhecendo, de qualquer maneira, as várias e evidentes diferenças entre cada um dos conceitos específicos.
[12] O conceito de “metafísica” exigiria toda uma discussão à parte. Embora para Comte ele seja secundário, em particular em comparação com o conceito de “teologia” e, ainda mais, com o de “absoluto filosófico”, alguns dos debates filosóficos e epistemológicos do século XX deram-lhe grande centralidade, bem como realçaram a tendência ordinária a considerar-se que “metafísica” e “filosofia” são sinônimas (assim como seriam sinônimas entre si “religião” e “teologia”). Expusemos alguns apontamentos a esse respeito em Lacerda (2011b). Kremer-Marietti (1983, cap. 3-4) e Gane (2006) também comentam um pouco essas questões.
[13] A idéia corrente de que o sistema comtiano vincula-se a uma postura antiteórica poderia originar-se de uma concepção muito empirista seja da ciência, seja das idéias de Comte, ou então de uma identificação das idéias de Comte com as do Círculo de Viena. Como vemos, Comte rejeita o puro empirismo (cf. p. ex. COMTE, 1975, lição 58; 1992); no que se refere ao Círculo de Viena, Halfpenny (1982) e Kremer-Marietti (1983), entre outros, indicam a impropriedade dessa aproximação.
[14] Explicações pormenorizadas podem ser lidas na própria obra de Comte (1899, p. 25-28; 1990, p. 42-44), em Arbousse-Bastide (1990, p. XIX) e também em Lacerda (2010, p. 83ss.).
[15] Resumidamente, o “aperfeiçoamento moral” consiste, para Comte, no estímulo do altruísmo, da cooperação e das atividades pacíficas, em contraposição ao egoísmo (seja individual, seja coletivo), às disputas incessantes e daninhas e às relações sociais violentas e agressivas (cf. COMTE, 1899; 1929; 1996).
[16] Para realizar esse movimento intelectual, Comte define um procedimento geral, o “método subjetivo”, exposto ao longo do Système de politique positive e da Synthèse subjective (1856). É digno de nota e sugestivo que a acusação corrente de doença mental, feita contra Comte por pensadores como Littré e Stuart Mill (no século XIX) e Giddens (atualmente), inclua a proposição do “método subjetivo”.
[17] Grange (1996, p. 357-368) expõe em detalhes o conceito de “neofetichismo” de Comte – na verdade, é ela quem sugere o nome “neofetichismo” para a proposta comtiana de “incorporação do fetichismo”. A exposição feita é detalhada e cuidadosa, mas formulada em linguagem um pouco rebuscada (é a característica francesa de conferir um aspecto literário aos textos filosóficos) e apresenta o grave defeito de ver nas ficções afetivas e lógicas de Comte uma forma tortuosa de buscar a divindade. O livro de L. Fedi (2002), inteiramente dedicado ao conceito de fetichismo, na seção dedicada a Comte não comete esse erro de Grange, ao mesmo tempo em que expõe os principais argumentos e fases do pensamento comtiano a respeito do fetichismo.
[18] Algumas exposições e discussões detalhadas do conceito de “ditadura republicana” podem ser lidas, além de na obra do próprio Comte (1899; 1929, v. II, IV), em Virmond (2003) e Lacerda (2010, seção 7.1; 2013a). Convém notar que o mito da ditadura republicana autoritária é tão arraigado e difundido que, recentemente, por ocasião da efeméride da Proclamação da República em 2013, a revista de divulgação História Viva, em seu número 121, repetiu ponto por ponto os erros e problemas elencados acima, com o agravante de também se apoiar para isso em alguns famosos pesquisadores: uma discussão cerrada mas não exaustiva desses problemas pode ser lida em Lacerda (2013b).
[19] É digno de nota que A. Comte inclui Adam Ferguson – autor do pioneiro livro An Essay on the History of Civil Society, de 1767 – no seu “Calendário positivista concreto”. Ferguson encontra-se no mês de Descartes (11º mês do calendário), dedicado à filosofia moderna, na semana de David Hume, correspondente às filosofias da história, como adjunto de Condorcet.
[20] Conforme nota Pierre Laffitte (1889), a associação dos conceitos de sociedade civil e de governo compõe a noção positiva de “soberania”, que já não é mais a concepção teológica, do direito divino dos reis (p. ex., Bossuet), ou a metafísica, da todo-poderosa, onisciente e inquestionável “soberania do povo” (p. ex., Rousseau).
[21] Comte trata da sociedade civil quando considera o Estado, ou, em segundo sua terminologia, o “governo” ou mesmo o “poder Temporal”. A sociedade civil surge seja como instituição (ou lócus) própria, seja como integrante do “poder Espiritual” (cf. LAFFITTE, 1889; COMTE, 1899; 1929, v. II; LACERDA, 2010, cap. 7).
[22] Na verdade, ao longo de sua carreira Comte muda progressivamente sua opinião a respeito dos cientistas: começando por valorizá-los ao extremo em sua juventude, passa no início de sua vida adulta a fazer-lhes restrições até que, na plena madureza, condena-os francamente, seja por seu corporativismo, seja pela sua irresponsabilidade social, seja pela persistência de hábitos mentais absolutos (dispersão das pesquisas, viés anti-histórico, anti-relativismo) (cf. PETIT, 1998; PICKERING, 2007). Do século XIX para cá evidentemente muita coisa mudou (embora não tudo nem em todos os aspectos), mas é necessário notar que as Ciências Sociais e, de maneira mais ampla, as chamadas Ciências Humanas incorporaram vários dos elementos que mereceram as ácidas críticas de Comte (como a fragmentação, o irracionalismo, o amoralismo, o viés anti-histórico).
[23] Convém insistir em uma idéia sugerida antes: evidentemente, para que essa proposta sociocrática tenha lugar é necessário que as teorias sócio-políticas de caráter metafísico percam sua influência na sociedade e que, em particular, deixe-se de perceber-se nas rebeliões o instrumento básico e/ou essencial de protesto.
[24] O “esboço” de orçamento participativo pode ser visto no projeto de constituição política elaborado pela Sociedade Positivista durante o agitado ano de 1848, em que foi proclamada a II República francesa (cf. SOCIÉTÉ POSITIVISTE, 1981, p. 302-304; LACERDA, 2010, p. 484-492).
[25] Se lembrarmos que a Organização das Nações Unidas foi fundada em 1946 por 51 estados, que ela conta atualmente com 193 membros (mais alguns observadores) e que a maior parte dessa enorme ampliação em 60 anos deveu-se à fragmentação de unidades políticas maiores, a proposta de Comte não parece tão estranha ou ousada.

(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)

Insight Inteligência: "O Positivismo ontem como hoje"

A revista Insight Inteligência, n. 66, publicou um artigo de minha autoria, que ficou intitulado "O Positivismo ontem como hoje".

Ele está disponível aquihttp://www.insightinteligencia.com.br/66/PDFs/pdf4.pdf

O n. 66 da Insight Inteligência encontra-se disponível aquihttp://www.insightinteligencia.com.br/66/


19 setembro 2014

Artigo "Sobre as relações entre igreja e Estado: conceituando a laicidade"

O Conselho Nacional do Ministério Público lançou o livro "Ministério Público em defesa do Estado laico". No seu v. 1 ("Coletânea de artigos"), a partir da página 179 encontra-se o artigo de minha autoria "Sobre as relações entre igreja e Estado: conceituando a laicidade".

O artigo pode ser lido aqui

17 setembro 2014

Falecimento do dr. Paulo de Tarso Monte Serrat



O que é, o que é?

Paulo de Tarso Monte Serrat
Publicado em 16/09/2014 | ALINE PERES ALINEP@GAZETADOPOVO.COM.BR

A trajetória do médico psiquiatra Paulo de Tarso Monte Serrat pode ser traduzida em uma simples música, cantada pelo compositor Gonzaguinha, que mostra em prosa e verso a dinâmica da vida. “O que é, o que é?” reproduz tantas e tantas perguntas que o médico e professor usou para guiar suas relações ao longo de nove décadas. Era um filósofo. Quando lhe perguntavam como estava, afirmava categoricamente: “vivendo com alegria”.
Todas as experiências adquiridas desde o momento em que deixou a cidade de Sorocoba (SP), com pouco mais de 18 anos, para aventurar-se na capital paranaense em busca de estudo, estão de certa forma entremeadas em seu livro, ainda não editado, Psicanálise: o 14 Bis de Freud. A obra pretende discutir os conflitos humanos e a relação com o masculino e feminino. A filha Laura conta que o livro era um projeto incentivado pela esposa, Isis; Paulo começou a trabalhar nele depois que ficou viúvo, em março de 2010.
O primeiro emprego foi como fiscal de cinema, depois de passar em um concurso público. Paulo ficava à noite para fazer a contagem das entradas – além de ser uma espécie de “lanterninha”. Enquanto se preparava para o curso de Medicina, mantinha a atividade que o aproximava da Sétima Arte. Após a formação na UFPR, especializou-se em Psiquiatria no Rio de Janeiro, quando já tinha três das nove filhas. Como bom orador, fez palestras, apresentou-se em programas de televisão como Encontros e Desencontros, trazendo orientações para casais; e no programa Linda, de Linda Saparolli, da Rede CNT, com entrevistas semanais.
Com extenso currículo, trabalhou no atendimento de pronto-socorro e ambulatório do extinto Serviço de Assistência Médica Domiciliar Urgente (Samdu), médico dos hospitais Cajuru e Evangélico, diretor do Manicômio Judiciário, nas décadas de 60 e 70, e diretor do Instituto dos Cegos. Contribuiu consideravelmente como membro do distrito Curitiba Oeste do Rotary Club.
Dinâmico, Paulo mantinha ainda o atendimento em consultório. Até a quinta-feira passada, recebeu seus pacientes. Tinha o trabalho como missão. Como um bom conselheiro, estava sempre disposto a ouvir e falar. Não cansava de dizer que as pessoas viviam uma crise moral com tanta violência e descontrole. “Assim, ele trabalhava para tentar amenizar os conflitos humanos”, conta Laura, ao lembrar do que o pai repetia ao falar sobre o seu trabalho. Paulo baseou sua vida nas máximas da Igreja Positivista do Brasil e da Igreja de Curitiba, como a que lembrava que “a morte era uma passagem da vida objetiva para a vida subjetiva porque quem constrói durante a vida continua vivo na lembrança daqueles que o conheceram”. Deixa nove filhas, 23 netos – e seus pares, que considerava como tal – e 19 bisnetos.
Dia 16, aos 91 anos.

Evento: "Força, lei e dominação"

http://www.humanas.ufpr.br/portal/cienciapolitica/files/2014/09/2014_9_divulga_ExtensaoForcaLeiDominacao.png

08 setembro 2014

Conselho Nacional do Ministério Público e laicidade

Reproduzo abaixo notícia publicada na página do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP); o original encontra-se disponível aqui.

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CNMP promove Encontro Nacional em Defesa do Estado Laico

 MG 4485
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), por meio de suas comissões de Defesa dos Direitos Fundamentais e de Planejamento Estratégico, realiza, nos dias 18 e 19 de setembro, na sede, em Brasília, o Encontro Nacional: Em Defesa do Estado Laico. O evento tem como objetivo promover articulação entre os ramos do MP com órgãos ligados a defesa da laicidade, a fim de combater a violação de diversos direitos humanos fundamentais, como liberdade de expressão, liberdade de crença e de não-crença e direitos sexuais e reprodutivos.

O encontro é dirigido aos membros do Ministério Público com atuação e/ou distinto conhecimento pertinente aos direitos humanos, em especial no que se refere à liberdade religiosa e à defesa do Estado laico. As inscrições estão abertas à todos os membros do Ministério Público até o dia 12 de setembro, pelo e-mail: estadolaico@cnmp.mp.br. O custeio da participação será de responsabilidade do órgão de origem.

Durante o encontro será lançada a publicação “Ministério Público em Defesa do Estado Laico”, com versão impressa e eletrônica em dois volumes, produzida pelo grupo de trabalho de combate à violência doméstica e defesa dos direitos sexuais e reprodutivos da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do CNMP.


Ação Nacional em Defesa dos Direitos Fundamentais

A publicação “Ministério Público em Defesa do Estado Laico” é produto do Projeto Nacional "Defesa do Estado Laico e dos Direitos do LGTB", que integra a Ação Nacional em Defesa dos Direitos Fundamentais. Iniciativa do CNMP, por meio da CDDF, a ação tem como objetivos fortalecer a unidade nacional do MP na defesa dos direitos fundamentais, além de contribuir para a concretização dos resultados institucionais e o retorno para a sociedade afirmados pela Ação Nacional do Ministério Público – 2011/2015.

A programação será publicada em breve. Informações adicionais podem ser esclarecidas pelo telefone (61) 3366-9272 ou pelo e-mail direitosfundamentais@cnmp.mp.br

Foto: Sérgio Almeida (Ascom/CNMP)



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7 de setembro – Comemoração de José Bonifácio

7 de setembro – Comemoração de José Bonifácio

Gustavo Biscaia de Lacerda

(José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência do Brasil, pintado por Benedito Calixto; fonte: Wikipédia.)


No dia 7 de setembro, como se sabe, comemoramos no Brasil a Independência nacional; assim, é uma data importante, na medida em que celebra a constituição do país como unidade política autônoma. Para os positivistas, essa data – como todas as demais que comemoramos – tem um duplo aspecto, abstrato e concreto: abstrato em relação ao aspecto histórico-sociológico em pauta, concreto a respeito dos tipos humanos envolvidos na questão. Os indivíduos que agiram concretamente em 1822, nos anteriores e nos subseqüentes, resumem em si as dificuldades, as possibilidades e as soluções para os problemas envolvidos; lembrando o método histórico de Augusto Comte, suas ações foram preparadas pelas conjunturas anteriores – ou seja, pelas ações daqueles que vieram antes – e, por sua vez, prepararam as conjunturas posteriores.
Assim, embora tenha sido d. Pedro de Alcântara – futuro d. Pedro I – quem proclamou a Independência nacional brasileira em 7 de setembro de 1822, a ação do descendente dos reis de Portugal só foi possível porque foi preparada por seu conselheiro, o cientista e estadista nascido na cidade paulista de Santos, José Bonifácio de Andrada e Silva: por esse motivo, os positivistas comemoramos em 7 de setembro a figura desse grande brasileiro.
Passemos, então, a apresentar alguns dos elementos da teoria positivista da independência nacional brasileira, conforme exposta por Raimundo Teixeira Mendes, exposta principalmente na biografia que ele escreveu de Benjamin Constant Botelho de Magalhães (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892])[1].
Seguindo a teoria comtiana, Teixeira Mendes observa alguns aspectos a respeito da expansão territorial européia desde o século XV e os processos de independência dos séculos XVIII e XIX. De acordo com A. Comte, as grandes nações modernas surgiram devido à decadência do ascendente religioso existente na Idade Média, seja porque os reis passaram a manter o controle territorial via força das armas, sem reguladores morais, seja porque a própria ausência da regulação moral deixou os reis entregues a si próprios, preocupados apenas com a expansão territorial: em outras palavras, prolongando a política guerreira em termos internacionais (ainda que desenvolvendo a política pacífica internamente). Ao mesmo tempo, a expansão marítima e comercial levou os europeus a procurarem novos territórios fora da Europa, conduzindo aos ciclos das grandes navegações e da colonização das Américas.
Por outro lado, para Comte as pátrias da sociedade pacífico-industrial devem ser pequenas, com áreas variando entre as dos Países Baixos (41,5 mil km2) e de Portugal (92,4 mil km2). Essa pequena extensão corresponderia a um vínculo político forte, que deve basear-se na associação livre dos cidadãos irmanados pela atividade pacífica e por história e valores comuns; além disso, e de modo mais importante, a pequena extensão territorial permite um conhecimento mais direto dos cidadãos entre si, o que aumenta a confiança mútua e também a responsabilidade dos gestores públicos e privados dos diversos tipos de capital.
No que se refere ao continente americano, os europeus realizaram a colonização da América desde o século XVI de diferentes maneiras e com variados objetivos, mas no fim do século XVIII as antigas colônias já se encontravam relativamente estruturadas e conscientes de si. Nesse período, as metrópoles passaram a cobrar cada vez mais tributos das colônias, ao mesmo tempo que a impor mais e mais restrições às suas vidas autônomas: controle das alfândegas, restrições às liberdades de pensamento e discussão etc. Aliás, em parte o aumento das exigências metropolitanas deveu-se exatamente à estruturação e à riqueza das colônias, sem que, em contrapartida às taxações adicionais, as metrópoles preocupassem-se com o desenvolvimento das terras d’além-mar: para Londres, Lisboa e Madri, a América era fonte de riquezas e eventualmente foco de conflitos, mas não parceira na vida nacional da Europa.
A despeito dos esforços de muitos dos habitantes das colônias americanas com vistas a manterem a unidade política, as ações metropolitanas eram claramente no sentido de aumentarem as restrições e as taxações, resultando em tirania. Como se sabe, a primeira colônia da América a declarar-se e a fazer-se independente, nesse quadro, foram os Estados Unidos[2]; nesse período, as idéias críticas de A. Sidney, J. Locke e de outros pensadores contratualistas – metafísicos, de acordo com as concepções comtianas – foram instrumentais para a crítica ao governo metropolitano. A luta pela independência estadunidense, bem como o seu sucesso, influenciaram bastante tanto os outros países europeus quanto as demais colônias americanas.
No que se refere aos colonos portugueses na América, Teixeira Mendes caracteriza-os como sendo populares que buscavam em terras d’além-mar o melhoramento de suas condições. Além disso, como a igreja era subordinada ao rei, a maior fonte de prestígio estava, precisamente, no rei: essas duas circunstâncias uniram-se para que “[...] a nação brasileira se formou na ausência quase total de qualquer das classes dirigentes do regime católico-feudal e, portanto, livre das enérgicas tendências retrógradas de tais classes” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 3).
Nesse quadro, o exemplo das colônias inglesas na América do Norte e o garroteamento imposto por Portugal ao Brasil tiveram como primeira conseqüência a Inconfidência Mineira e a conseqüente morte solitária do Tiradentes. No caso de Tiradentes, Teixeira Mendes comenta que ele não era o líder da insurgência nem se destacava por suas habilidades políticas, mas a coragem e o desprendimento que exibiu no processo criminal e na sua execução tornaram-no um símbolo da independência do país. Por outro lado, observa Teixeira Mendes que, no ano em que a Inconfidência foi tornada pública, iniciava-se também a Revolução Francesa, passando a França a influenciar mais diretamente os rumos do Brasil doravante: fosse com o Positivismo a partir de meados do século XIX, fosse mais diretamente no início do século XIX, quando Napoleão Bonaparte invadiu a Península Ibérica, acarretando a migração forçada da família real portuguesa para o Brasil.
A vinda da família real e da corte para a América trouxeram consigo várias medidas que equipararam os dois países em termos políticos e que aliviaram as pressões sofridas pela antiga colônia. Mesmo assim, problemas de longa data acarretaram em Pernambuco, em 1817, sublevações republicanas, o “[...] que veio identificar ainda mais o sentimento popular da independência com as aspirações republicanas da parte mais avançada da nação” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 6).
Assim, as medidas tomadas ao longo da década de 1810 resultaram em que “A separação política das duas porções da raça portuguesa parecia conjurada pela satisfação dada às aspirações nacionais, quer do povo, quer da massa dirigente. Quebradas as opressões mais intoleráveis, a monarquia lusitana apresentava o aspecto de uma livre federação sob a presidência de uma realeza tradicionalmente venerada” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 6-7).
A revolução do Porto, de 1820, reverteu esse quadro, trazendo consigo o retorno do Brasil ao statu quo ante, na condição de colônia estreitamente controlada: com isso, o movimento independentista reapresentou-se.
Para Teixeira Mendes, face às condições sociais e políticas vividas pelo Brasil desde meados do século XVIII, a independência do Brasil era questão de encontrar-se um líder capaz de empolgar a nação e realizar o movimento. Após a inconfidência mineira, a vinda da família real tornou aceitáveis as condições em que vivia o Brasil, mas o retorno do rei a Portugal reverteu o quadro: nesse momento apresenta-se a figura de José Bonifácio. “José Bonifácio, o tipo mais eminente da raça portuguesa naquele tempo, reconhecendo a gravidade da situação, pôs-se à testa dos patriotas. Um pensamento o domina. Frustrada a união política dos portugueses de ambos os hemisférios, o velho cidadão preocupa-se com salvar pelo menos a unidade da América portuguesa. Essa unidade se lhe oferece no seu duplo aspecto: manutenção da integridade política das pátrias brasileiras e fusão completa das três raças que as constituem, de modo a formar com elas uma nação homogênea” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 7).
No que se refere à unidade política do Brasil, Teixeira Mendes nota que a colonização do Brasil foi “empírica” e “não-sistemática”, ou seja, foi feita de maneira irregular, de acordo com as possibilidades, as necessidades e as oportunidades; com isso, os vários núcleos de povoamento tinham poucos contatos entre si e nenhum deles centralizava e coordenava, de fato, todos eles[3]; muitas províncias comunicavam-se mais repetida e facilmente com a Europa que com o Rio; finalmente, algumas províncias eram suspicazes em relação a outras, como no caso de Pernambuco em relação à Corte (devido ao movimento republicano de 1817); por fim, em todo o território havia tropas militares de origem européia. O problema de José Bonifácio, nesse sentido, era tornar o Brasil independente e ao mesmo tempo manter todas as províncias unidas, a despeito dos poucos e frágeis laços que as uniam entre si.
No que se refere à unidade étnica, Teixeira Mendes define assim o problema: “Examinada na sua composição, a população incorporada à civilização ocidental, dividia-se em duas castas: uma de senhores, outra de escravos. E a população indígena, que escapara às devastações, vagava errante pelo interior em tribos mais ou menos desmoralizadas pelos contatos ocidentais” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 7).
Nesses termos, as dificuldades estavam em acabar com a divisão entre senhores e escravos, que, econômica e jurídica, perpetuava-se no tempo e era consagrada pelo catolicismo, chegando a constituir duas diferentes castas sociais. Da mesma forma, era necessário incorporar os índios à sociedade nacional sem os erradicar fisicamente nem os degradar moral e culturalmente, ou seja, permitindo ao mesmo tempo as trocas culturais e a digna autonomia das tribos indígenas.
Para Teixeira Mendes, a solução obtida por José Bonifácio para esses dois problemas foi a instalação da monarquia constitucional no Brasil. Essa monarquia seria encabeçada pelo príncipe regente, herdeiro presuntivo do rei: o respeito tradicional à monarquia bragantina garantiria de um lado a unidade política e, por outro lado, a reprodução no país da doutrina constitucionalista européia seria a forma por que as liberdades públicas seriam consagradas. Ainda assim, a essa proposta a resistência pernambucana tanto à monarquia quanto à centralização no Rio de Janeiro seria uma dificuldade.
A monarquia constitucional também permitiu “solucionar”, ou melhor, encaminhar o outro problema, qual seja, o da unidade étnica. Teixeira Mendes faz duas observações sobre José Bonifácio a esse respeito: por um lado, o político santista não concebia uma república com escravos; por outro lado, ele tinha projetado a emancipação gradual mas rápida dos escravos brasileiros; da mesma forma, ele projetara a incorporação dos índios com base na ciência, em vez de com base na catequese teológica. Uma república não poderia ser escravista (mesmo que por pouco tempo): a monarquia podia. Dessa forma, sem poder de fato acabar (pelo menos imediatamente) com o tráfico negreiro e com a escravidão, a monarquia serviu para manter ambas as práticas[4].
Mesmo com essas importantes limitações, Teixeira Mendes julga que José Bonifácio merece o título de estadista – na verdade, o único estadista brasileiro até 1891-1892 –, em virtude de ele ter compreendido os problemas brasileiros mais profundos: “Foi assim que José Bonifácio patenteou ter sido até hoje o único estadista de nossa pátria. Depois dele se procura em vão quem tenha apanhado em toda a sua plenitude o conjunto do problema brasileiro. As suas soluções foram empíricas e por isso quiméricas ou insuficientes; mas é força convir que as luzes de então dificilmente comportavam outras. Infelizmente só poude o patriota realizar a parte mais secundária de seus projetos, instituindo a unidade política das pátrias brasileiras” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 8).
Na biografia de Benjamin Constant, a narrativa de Teixeira Mendes segue tratando das vicissitudes da política imperial – isto é, expondo-as e avaliando-as –, nos seus três grandes períodos (o I Império, o interregno regencial e o II Império). Ela é interessante, seja devido à exposição factual, seja devido aos comentários avaliativos sobre cada um desses momentos; todavia, não trataremos deles, na medida em que desejávamos apresentar, nesta seção, a interpretação que fez Teixeira Mendes da teoria comtiana da história e sua aplicação na história brasileira, a respeito do contexto e dos problemas enfrentados no período da independência nacional.
De qualquer forma, cabem ainda alguns comentários a respeito da “teoria das pátrias brasileiras”, conforme proposta por Teixeira Mendes. Nas exposições acima, aqui e ali usou-se essa expressão – “pátrias brasileiras” –; o plural aí não é acidente: o vice-Diretor da Igreja Positivista, ao empregá-la, considera duas acepções, pelo menos. A primeira é histórico e descritivo, correspondente à pluralidade de províncias brasileiras, surgidas ao longo da colonização: essas várias províncias, como indicamos há pouco, surgiram e desenvolveram-se de maneira “empírica” e “não sistemática”, conforme a avaliação de T. Mendes, mantendo entre si e entre elas e as capitais (fosse metropolitana, no caso de Lisboa, fosse colonial, nos casos de Salvador e, depois, do Rio de Janeiro) vínculos bastante frouxos: em vez de ligações verdadeiramente orgânicas entre as províncias e entre elas e a capital, o que existiria no Brasil seria mais uma “colcha de retalhos” política.
A segunda acepção é de caráter normativo e baseia-se na definição comtiana das “pátrias”, conforme visto acima: devem ser unidades políticas de tamanho reduzido, em que a cooperação material (isto é, política e econômica) seja pacífica e plenamente voluntária e em que seja possível o contato pessoal entre os líderes políticos e o corpo de cidadãos, entre os chefes industriais e o proletariado e, portanto, seja efetivamente possível cumprir as responsabilidades sociais do poder, da riqueza e do controle social dos recursos públicos.
Ao referir-se a “pátrias brasileiras” em meio às suas narrativas a respeito da formação territorial e étnica do Brasil, bem como do processo de independência nacional, Teixeira Mendes evidencia que reconhece a pluralidade das formações sociais e políticas brasileiras – incluindo aí as tribos indígenas – e que, rejeitando o unitarismo político, advoga o federalismo ou o confederalismo[5]. A defesa do federalismo ou do confederalismo não é absoluta, no sentido de que os consideraria válidos a qualquer instante ou a qualquer transe: seguindo o relativismo comtiano, em sua discussão sobre a independência nacional e sobre as propostas de José Bonifácio, Teixeira Mendes demonstra que reconhece a centralização política como o instrumento, de caráter transitório, encontrado naquele momento para (1) obter-se a independência das pátrias brasileiras, (2) de maneira pacífica (fosse mais ou menos em relação a Portugal, fosse das províncias entre si, fosse mesmo do Brasil em relação aos países vizinhos); da mesma forma, essa centralização seria aceitável desde que respeitasse as liberdades civis, políticas e sociais (o que foi prometido em 1822, mas desrespeitado no período posterior a 1823 (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 12-13)).

Referências bibliográficas

COMTE, A. 1929. Système de politique positive ou traité de Sociologie instituant la Religion de l’Humanité. 4ème ed. 4 v. Paris: Larousse.
LACERDA, G. B. 2010. O momento comtiano: república e política no pensamento de Augusto Comte. Florianópolis. Tese (Doutorado em Sociologia Política). Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: http://www.tede.ufsc.br/teses/PSOP0369-T.pdf. Acesso em: 24.jan.2012.
_____. 2014. Política e instituições na “teoria do Brasil” dos positivistas ortodoxos brasileiros. Comunicação apresentada no IX Encontro Anual da Associação Brasileira de Ciência Política, realizado entre 4 e 7 de agosto, em Brasília. Digit.
LEMOS, M. & TEIXEIRA MENDES, R. 1890. Bases de uma Constituição política ditatorial federativa para a república brasileira. (2ª ed.: 1934.) Série da Igreja Positivista do Brasil, n. 82. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil. Disponível em: http://bd.camara.leg.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/15236/bazes_constituicao_politica.pdf?sequence=3. Acesso em: 25.jun.2014.
TEIXEIRA MENDES, R. 1880. Discurso comemorativo do tricentenário de morte de Luís de Camões. (2ª ed.: 1977). Série da Igreja Positivista do Brasil, n. 1. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil. 
_____. 1892. Benjamin Constant. Esboço de uma apreciação sintética da vida e da obra do fundador da República Brasileira. Série da Igreja Positivista do Brasil, n. 120. 3ª ed.: 1936. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil. 
_____. 1913. O império brasileiro e a república brasileira perante a regeneração social. A propósito do “Manifesto de S. A. I. o sr. d. Luiz de Bragança”, publicado no Diário do Congresso Nacional, de quarta-feira, 27 de agosto de 1913. Série da Igreja Positivista do Brasil, n. 350. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil.
_____. 1915. O Positivismo e a questão social. A propósito da questão anarquista. Série da Igreja Positivista do Brasil, n. 383. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil.

(Permitida a livre reprodução, desde que citada a fonte.)





[1] As anotações abaixo reproduzem em grandes traços a seção 3.2 de Lacerda (2014). Em todo caso, deve-se notar que os positivistas escreveram muitos discursos e artigos, tanto sobre a independência nacional quanto sobre José Bonifácio. Assim, a exposição que se seguirá é bastante tímida em relação à produção positivista a respeito.
[2] Augusto Comte considerava que, mesmo antes da independência dos EUA, o processo de fragmentação das grandes nações começou com a luta neerlandesa por sua independência em relação à Espanha, nos séculos XVI e XVII. De qualquer forma, o caso dos Estados Unidos é mais ilustrativo, pois tratou-se da separação entre dois povos de mesma língua, mesma fé e mesma cultura (cf. COMTE, 1929, v. IV, p. 460-467; LACERDA, 2010, p. 352).
[3] Essa falta de coordenação entre os núcleos de povoamento, nota de passagem T. Mendes, persistia até pelo menos o momento em que redigia a biografia de Benjamin Constant, ou seja, até pelo menos 1891-1892: “[...] o Brasil não possuía então, como realmente não possui hoje, uma verdadeira capital” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 7).
[4] Mais adiante, Teixeira Mendes nota que os novos países americanos surgiam como repúblicas, embora fossem repúblicas muito imperfeitas: com escravidão no caso dos Estados Unidos, com religião de Estado no caso dos países hispano-americanos (“verdadeiras monarquias constitucionais sem rei”); além disso, a instituição das repúblicas, novamente no caso da América hispânica, deu-se com a ocorrência de grandes conflitos com a metrópole e, depois, de guerras civis (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 9-10).
[5] O federalismo seria claramente defendido no projeto de constituição federal apresentado por Miguel Lemos e Teixeira Mendes em 1890, logo em seguida à Proclamação da República, no famoso documento intitulado “Bases de uma Constituição política ditatorial federativa para a república brasileira”. Sendo mais específicos, nos artigos 1º e 2º, Lemos e Teixeira Mendes defendem tanto o federalismo quanto o confederalismo: uma federação entre os “estados ocidentais brasileiros” (as antigas províncias do Império) e os “estados americanos brasileiros” (as tribos indígenas dispersas pelo território brasileiro) e uma confederação entre os vários “estados ocidentais brasileiros”. Cf. Lemos e Teixeira Mendes (1890). 

05 setembro 2014

5 de setembro - comemoração do passamento de Augusto Comte


Augusto Comte (19.1.1798-5.9.1857)


Augusto Comte refletindo sob a inspiração de seus três anjos (quadro a óleo de Ete
x)
5 de setembro - comemoração do passamento de Augusto Comte

Gustavo Biscaia de Lacerda

dia 5 de setembro marca o passamento de Augusto Comte (1798-1857), fundador do Positivismo, da Sociologia, da História da Ciência e da Religião da Humanidade.

Comte é popularmente conhecido por ter fundado a Sociologia e pelas suas reflexões histórico-filosóficas sobre as ciências em geral, mas sua obra consiste muito mais em compreender as condições da vida humana em uma sociedade imanente e relativista, ou seja, em como os seres humanos devem relacionar-se entre si em uma sociedade que reconheça o irrealismo das crenças sobrenaturais e absolutas.

Para isso, com base no estudo da história e da natureza humanas, ele propôs um sistema de valores e de organização social em que a vida é valorizada em seus mais diversos aspectos: individuais, familiares, nacionais e universais; passados, futuros e presentes; filosófico, artístico, científico, político, econômico – tudo isso baseado no estímulo do altruísmo.

O seu conjunto de idéias sobre o relacionamento humano imanente e relativista consubstanciou-se na “Religião da Humanidade”, cujas máximas mais importantes resumem o sistema:

O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim

Viver às claras

Viver para outrem

Ordem e Progresso

Agir por afeição e pensar para agir

“Cansamo-nos de agir / E até de pensar cansamos; / Só não cansamos de amar / E nem de dizer que amamos” (Teixeira Mendes, a partir de Augusto Comte)

Os vivos são sempre e cada vez mais, necessariamente, governados pelos mortos

Entre suas várias lições, Augusto Comte mostrou como o culto aos mortos é uma das partes mais importantes das nossas vidas.

Pode parecer estranho comemorar o passamento – ou seja, a morte – de um ser humano; todavia, por paradoxal que possa parecer, isso é um dos atos mais humanos que há. Ao nascer, um indivíduo é apenas uma promessa, talvez uma esperança: é ao longo de sua vida, isto é, o conjunto de suas ações e decisões que indicará o valor de cada ser humano. Sendo a morte uma parte da vida, o conjunto da existência objetiva de cada um permite que se avalie de maneira global a sua vida: somente aí é possível determinar se o indivíduo foi bom ou mal, altruísta ou egoísta, e se merece de fato ser valorizado pelos seus contemporâneos e pelos pósteros.

Há outros dois aspectos importantes na comemoração dos mortos.

Por um lado, ao considerarmos a vida daqueles que já se foram, refletimos sobre suas condutas em determinadas situações; avaliamos suas dificuldades e suas possibilidades; lembramos os afetos que ofereceram: livres dos constrangimentos objetivos, a memória dos entes queridos dá-nos orientação, conforto, alegria; assim, embora objetivamente eles tenham passado, subjetivamente eles continuam entre nós.

Por outro lado, relembrar quem já passou lembra-nos também de que a sociedade humana é, acima de tudo, história, ou seja, é o conjunto sucessivo das várias gerações que nos permite sermos o que somos. Considerar os momentos específicos em que cada um viveu; as possibilidades e as dificuldades de cada situação; as soluções propostas: com uma correta perspectiva de longo prazo, tudo isso nos permite entender como é que chegamos a ser o que e quem somos e quais os rumos que segue a Humanidade. Dessa forma, o culto aos mortos é também, ao mesmo tempo, uma aula de História, de Sociologia e de Antropologia.

Fala-se com freqüência que a sociedade moderna não tem valores, que não tem "sentido" e assim por diante; também se fala que a responsabilidade dessa falta de sentido e de valores é da secularização, da ciência, da "técnica" etc.: a Religião da Humanidade é um poderoso antídoto, ou desmentido, contra o vazio moral e existencial. Augusto Comte mostrou como é possível ao mesmo tempo valorizar o próprio ser humano, não apelar aos deuses e ainda ter uma vida rica e plena.

Entre muitos outros, é por esses motivos que, no dia de hoje, 5 de setembro, cultuamos a memória de Augusto Comte.

(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)

03 setembro 2014

L. A. Becker sobre o clericalismo na UFPR

Ainda a respeito da existência de (1) uma capela (2) explicitamente católica na UFPR, meu amigo L. A. Becker leu os argumentos apresentados pelos defensores do clericalismo. Ele notou alguns vários e sérios problemas na argumentação dos clericalistas; como Becker foi tão claro nos comentários, reproduzi-los-ei ipsis literis abaixo.

O artigo dos defensores do clericalismo na UFPR - publicado na Gazeta do Povo curiosamente ao mesmo tempo que o meu em favor da laicidade - pode ser lido aqui.

Abaixo, os comentários de L. A. Becker, com realce verde escuro:
  • o fato de clérigos participarem da fundação de uma universidade pública não cria o "direito" de nela instalar um espaço religioso; se assim fosse, o fato de flamenguistas participarem criaria o direito de nela instalar uma filial da torcida organizada do Flamengo;
  • laicidade não tem nada a ver com culto idólatra à razão - é questão conceitual;
  • também não se trata de atrapalhar o rendimento acadêmico; muito menos fechar a universidade porque tem origem na Igreja; o autor inventa acusações não feitas para atacá-las; é como seu eu dissesse: "é mentira que existe um cavalo de duas cabeças lá em casa!";
  • comparar a capela da UFPR com a Notre Dame é descabido; não só pela desproporção histórica e arquitetônica, mas porque a Notre Dame não está instalada dentro de uma universidade pública;
  • porque o Estado reconheceu o valor histórico da capela não significa que se está proibido de reconhecer que o lugar é inadequado; um erro não justifica o outro;
  • a proteção aos lugares de culto não significa a convalidação de sua instalação em lugares inadequados; caso contrário, instalemos o Templo de Salomão sobre as pistas do aeroporto Afonso Pena e, em seguida, proibamos que seja derrubado;
  • não se trata de apagar os rastros da religião, mas de retirá-la dos espaços laicos; igrejas fora deles, nada contra elas;
  • um espaço de laicidade não é o mais adequado a receber uma capela; assim como uma igreja não é o espaço mais adequado para instalar o gabinete de um prefeito: a Cesar o que é de Cesar.
Acrescento ainda quatro aspectos: 
  • os clericalistas, no artigo mencionado acima, reconhecem implicitamente que a capela universitária da UFPR seria da Igreja Católica, ao referirem-se à Concordata de 2010 para justificarem a obrigação do Estado brasileiro (e, por extensão, da UFPR) de defenderem templos católicos. Em outras palavras, eles levam tão pouco a sério a separação entre igreja e Estado; defendem com tanta naturalidade os privilégios da Igreja Católica, que não entendem (e nem querem entender) que o espaço da UFPR é um espaço do Estado brasileiro e não uma representação eclesiástica no ambiente universitário;
  • a capela foi criada em 1958; todavia, desde 1950 a antiga Universidade do Paraná é uma autarquia federal: em outras palavras, a capela foi, desde o início, construída irregularmente e ofendendo francamente a laicidade do Estado;
  • os clericalistas afirmam que, devido ao fato de a Capela Universitária ser tombada pelo Serviço de Patrimônio Histórico, não se pode mexer nela. Todavia, não é a capela, mas o complexo da Reitoria da UFPR que é tombado; além disso, o tombamento refere-se aos elementos arquitetônicos do prédio, não à decoração interna e ao uso que os prédios fazem de seus espaços internos. Nesse sentido, como argumentamos em nosso artigo inicial, não há absolutamente óbice algum à utilização do espaço para outros fins que não os cultuais, ou, por outro lado, para o uso de outros cultos e ritos;
  • devido ao uso ostentatório do espaço da Capela Universitária pela Igreja Católica, muitos indivíduos têm a impressão de que esse espaço pertence a essa igreja, isto é, de que se trataria de um enclave católico na UFPR. Não: a Capela Universitária é um espaço da Universidade (o que equivale a dizer que é um espaço do Estado brasileiro, ou seja, da República Federativa do Brasil) e sua decoração católica é devida à ação completamente ilegal dos administradores da UFPR, tanto os de 1958 quanto os de 2014.

(A primeira versão desta posta é de 3.9.2014; em 5.9.2014 fiz uma atualização.)

02 setembro 2014

Artigo na Gazeta do Povo: "Novamente: UFPR clerical?"

Artigo de minha autoria publicado na Gazeta do Povo de 2.9.2014. O original pode ser lido aqui.

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Novamente: UFPR clerical?

No dia 7 de agosto, ocorreu no câmpus da Reitoria da Universidade Federal do Paraná (UFPR) uma cerimônia curiosa: a reinauguração da capela universitária, realizada pelo magnífico reitor em pessoa. Após um longo processo de reforma, o curioso em tal evento não foi a sua reabertura ao público, mas a reabertura com a sua “reconsagração”, por meio da realização de uma missa católica conduzida pelo bispo auxiliar dom Rafael Biernaski. Além disso, em todo esse espaço há, de modo ostensivo, imagens de santos católicos e símbolos cristãos. Talvez, à primeira vista, pareça não haver nada errado com isso; entretanto, como já indicamos em outros momentos neste espaço da Gazeta do Povo, é tudo altamente problemático.
A UFPR é uma autarquia federal e deve seguir as leis gerais da República e as específicas que regulam o Estado brasileiro. Dessa forma, a UFPR deve pautar-se pelo cuidadoso e rigoroso respeito à laicidade do Estado. A laicidade do Estado brasileiro foi definida pelo Decreto 119-A, de 1890, bem como afirmada e reafirmada por todas as Constituições republicanas, incluindo a de 1988 (em seus artigos 5.º e 19). De acordo com essas leis, não é facultado a nenhum órgão e/ou servidor público – presidente da República, reitor de universidade ou o mais humilde servidor do menor município do país – apoiar ou subvencionar qualquer religião.
Ora, a “reconsagração” especificamente católica, os símbolos presentes e, aliás, o próprio nome da capela, “Nossa Senhora do Carmo”, constituem apoios claros a uma religião por um órgão público. Como conciliar os preceitos legais com a existência da capela na UFPR?
Em primeiro lugar, em face da laicidade, a UFPR não deveria ter capela. Nesse sentido, deve-se notar que a universidade apresenta uma séria falta de espaço para alojar gabinetes de professores, grupos de pesquisa, grupos artísticos e de extensão, órgãos administrativos: o amplo espaço da capela poderia ser utilizado para qualquer uma dessas utilidades.
Mas, caso aceite-se a existência da capela como um fait accompli – o que não é nenhuma obrigação política ou jurídica –, para que ela respeite a laicidade são necessárias mudanças ao mesmo tempo radicais, mas simples: a retirada de todos os símbolos religiosos, guardados para uso quando da prática episódica dos cultos católicos e/ou cristãos; a mudança do nome, para simplesmente “Capela Universitária”; a definição urgente de critérios de utilização do espaço pelos diversos grupos religiosos e filosóficos (convém notar que, entre 2012 e 2014, solicitamos inúmeras vezes à administração da UFPR a apresentação dos critérios de utilização da capela; ou as respostas eram evasivas ou não havia resposta).
A religião é uma questão de foro íntimo e é ilegítimo ao Estado – e às suas autarquias – promover qualquer uma delas. Por outro lado, não se sabe a que ou a quem serve essa capela: se à comunidade universitária que deseja um espaço de reflexão íntima ou ao proselitismo paraoficial de determinados credos e igrejas. Se a UFPR deseja realmente ser um espaço da prática e da reflexão democráticas, cidadãs e republicanas; se deseja ser um símbolo do que o Paraná e o Brasil produzem de melhor, é imperativo que a capela seja efetivamente um espaço laico.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor e pós-doutor em Teoria Política pela UFSC.

Carlos Eduardo Oliva: "deve-se compreender melhor o Estado laico"

Reproduzo abaixo alguns comentários que meu amigo Carlos Eduardo Oliva fez em 1º.9.2014, a propósito da idéia de "laicidade" defendida por alguns grupos sociais e por alguns políticos. Essas observações foram feitas no facebook, mas seu valor transcende a imediatez dessa rede social.

O original pode ser lido aqui.

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O Estado laico nunca precisou ser tão melhor compreendido! Eu já havia notado isso desde 2010, quando conheci o Observatório da Laicidade do Estado, que hoje se tornou o Observatório da Laicidade na Educação

[O Deputado Federal] Jean Wyllys, por exemplo, fala em "Estado laico" basicamente quando quer reclamar dos evangélicos, e defender um Estado pluriconfessional (!) que, de laico, não tem nada! Afinal, um candidato que defende o Estado laico não votaria a favor do ensino religioso no Congresso, como ele fez bem recentemente. 

Mesmo os termos "fundamentalismo", "laicismo" e "laicidade" também têm sido usados para expressar o que nunca expressaram, como se "fundamentalismo" fosse sinônimo de neopentecostalismo, "laicismo" de radicalismo na defesa da laicidade (um viés ateísta) e "laicidade" a defesa de um Estado pluriconfessional. A maneira como hoje se busca relacionar evangélicos a "fundamentalismo", a racismo e a machismo, como se a cultura brasileira só passasse a ser "fundamentalista", racista e machista quando passou a ser marcada por essa expressão religiosa, é de uma grande má-fé. E nada se diz dos católicos nos bastidores da política, garantindo atraso em pesquisas científicas, retrocesso na ampliação da cidadania das mulheres e seguidores de religiões de matriz africana, obstacularização dos direitos sexuais e reprodutivos. Critica-se muito os evangélicos no proscênio, de onde é até melhor controlá-los, e nada os católicos nos bastidores: isso é defender a laicidade? O Estado laico nunca precisou ser tão melhor compreendido!

01 setembro 2014

Irracionalidade administrativa: Marina Silva decide com a "fé"

Embora eu tenha muitas restrições à pessoa da Marina Silva, até o momento estava mantendo uma postura reservada a seu respeito.

Mas com declarações como as reproduzidas na matéria indicada abaixo não dá para calar-se e fingir que "está tudo bem".

Deixemos de lado, por ora, o problema da laicidade do Estado.

A administração pública brasileira tem feito, nos últimos 25 anos (para não dizer desde 1930, ou até mesmo desde 1889), um esforço hercúleo em direção à racionalidade administrativa, à previsibilidade e ao controle da discricionariedade dos atos dos agentes públicos, bem como à adoção de critérios humanos e universalmente compartilháveis. Mesmo o boquirroto e demagógico Lula mais ou menos seguiu esse parâmetro, que se afasta da astrologia imperial de Jânio Quadros e da arbitrariedade também imperial de Fernando Collor de Mello.

Aí, de repente, uma pessoa que tem chances reais de vir a tornar-se Presidente da República afirma tomar decisões na base da loteria, isto é, com base nas mais absolutas e completas arbitrariedade e, portanto, irresponsabilidade: qualquer servidor público que declarasse agir com base em tal (falta de) parâmetro correria o seriíssimo risco de sofrer um processo administrativo disciplinar. Mas cargo eleito com base na Bíblia pode... como assim? Que baderna é essa?

Por acaso Marina Silva adotará em última análise a tal da "roleta bíblica" para decidir a política econômica do país? Para decidir nossos posicionamentos na Organização Mundial do Comércio? Nossas relações com os países árabes, ou com os Estados Unidos? Ou será que ela buscará diretamente no Levítico as orientações para nossas políticas de saúde? Nem há nem laicidade, nem "universalismo", nem racionalidade nessa forma de "decidir".

Conferir a matéria "Decidindo com a fé", publicada em 1.9.2014 na Folha de São Paulo (disponível aqui).