A corrupção não é um problema menor da prática política[1]. Embora ela atinja basicamente os meios e não os fins e, dessa forma, pareça que ela não trata de política substantiva, é importante notar que ela não é apenas uma questão de apropriação privada de recursos públicos, mas também – e talvez principalmente – ela consiste em um desvirtuamento do civismo, isto é, das preocupações com o bem público. Dessa forma, a corrupção abrange também os fins da política, na medida em que a atividade política deixa de visar à coletividade mas aos interesses particulares.
Dessa forma, há algumas considerações a fazer. A primeira é que, a partir da exposição acima, podemos dizer que (idealmente, ao menos) há graus de corrupção: o primeiro consiste nos desvios de verbas pelos agentes públicos[2], na exigência de comissões pelos agentes públicos para liberação de projetos e nos orçamentos superfaturados para enriquecimento ilícito tanto dos agentes públicos quanto dos agentes privados.
O segundo grau consiste na perda de referências para a formulação de políticas públicas. Não é fácil formular com clareza este nível, mas podemos sugerir os seus contornos: os responsáveis pela condução da política perdem a preocupação em elaborar projetos efetivos para o país, os “projetos de nação”. Nesse nível, há uma desmoralização generalizada da atividade política e falar em “civismo” ou em “patriotismo” é sinônimo de tolice ou ingenuidade. Apesar disso, não é exagerado afirmar que a falta de rumo ou os rumos desvirtuados podem resultar, entre outras coisas, no fim das liberdades públicas[3].
Isso nos leva, incidentalmente, a algumas áreas de pesquisa (e de “engenharia institucional e política”): cultura política, estudos das instituições, mecanismos internos e externos de controle do Estado; teoria política. É claro que o problema da corrupção é tanto societal quanto estatal: os agentes públicos podem corromper-se “endogenamente” (a partir da locupletação ilícita oriunda de instituições, práticas e valores próprios aos agentes públicos) ou “exogenamente” (isto é, pelas ofertas de corrupção vindas da sociedade); além disso, a corrupção ocorre porque é tolerada pelo Estado mas, principalmente, pela sociedade; por fim, a ocorrência ou a ausência de manifestações sociais de repúdio à corrupção e a existência ou inexistência de mecanismos institucionais de controle da corrupção. Há discussões específicas sobre cada um desses aspectos nas subdisciplinas específicas da Ciência Política e da Sociologia Política, mas é possível considerá-las como integrantes da teoria republicana, no âmbito da Teoria Política.
Embora, como sugerimos, a corrupção atinja a formulação das políticas públicas, ou seja, os fins, basicamente ela visa aos meios; por outro lado, ela consiste no desvio das funções públicas, que deixam de servir à coletividade e passam a servir a particulares. Ela pode institucionalizar-se em práticas correntes, mas é sempre fora ou contrária à lei (seja na forma, seja no espírito do ordenamento jurídico). Como os meios são, em certa medida, secundários em relação aos fins e como o desvio das funções públicas tem um elemento “valorativo”, isto é, envolve os valores dos agentes públicos corruptos (ou corruptores), é fácil afirmar que tratar da corrupção é discutir algo menor em termos políticos e que resvala no “moralismo” – ou seja: é fácil afirmar que o discurso anticorrupção é mero diversionismo ou hipocrisia.
Sem dúvida, é fácil usar o discurso da corrupção contra um governante ou contra um agente público a que se opõe: a posição de poder de quem ocupa cargos e funções permite, sempre, que ocorram desvios de recursos ou práticas de corrupção; dessa forma, nunca se pode afastar a possibilidade improbidade administrativa.
Também é certo que, na falta de propostas concretas, de capacidade de discussão ou de articulação política ou de alguma coisa como “credibilidade política”, afirmar que a corrupção grassa no governo ou no Estado é sempre uma estratégia possível, na medida em que ela apela para um senso de responsabilidade e de correção da “opinião pública”. Em última análise, é sempre mais fácil apelar para as emoções fáceis[4] que para o difícil exercício da racionalidade política e sociológica.
Finalmente, um político incompetente ou corrupto pode desviar a atenção pública de si mesmo para outros problemas arvorando-se em defensor da ética, da moral e dos bons costumes.
Tudo isso é verdade. Entrementes, não se pode nem minimizar a importância do problema da corrupção nem afirmar que toda denúncia contra ela ou que o tema da corrupção, por si só, é diversionismo, hipocrisia ou moralismo. Além do que vimos anteriormente – que a corrupção pode passar do nível um para o nível dois, ultrapassando os meios para afetar de maneira central os fins – , há casos em que a corrupção é utilizada como um recurso para obtenção do poder político, por meio da desestabilização de um regime político[5].
Comentamos anteriormente que, no âmbito da Teoria Política, é o republicanismo o que trata mais diretamente do tema da corrupção. A teoria republicana, contudo, não é unitária, ou seja, há diversas tradições republicanas, cada qual com suas particularidades, embora mantenham um certo parentesco entre si.
Conforme comentou Quentin Skinner (em A lberdade antes do liberalismo), podemos simplificadamente afirmar que há duas grandes tradições de teoria republicana, a neo-ateniense e a neo-romana. A primeira afirma a importância da participação popular no processo deliberativo e, de maneira mais específica, realça as virtudes cívicas dos cidadãos: interesse pelo bem comum, honestidade, abnegação, dedicação. Esse é o que alguns autores, como Hannah Arendt e o brasileiro Newton Bignotto, chamam de “republicanismo cívico”, que foi teorizado no Renascimento italiano por Maquiavel. De acordo com essa corrente, a fim de evitar a corrupção os cidadãos – aí incluídos, sem dúvida, os governantes – devem ser virtuosos.
Em sentido semelhante, Augusto Comte afirmava que o aspecto positivo da república é a subordinação da política à moral. Nos termos comtianos, a “moral” equivale a “bem público”, a “bem comum”, mas não há dúvida de que o combate à corrupção (nos dois níveis identificados) entra nesse conceito.
Na verdade, a proposta republicana comtiana permite transitarmos das idéias neo-atenienses para as neo-romanas. Assim, há uma outra vertente teórica que surge dos escritos maquiavelianos; embora não seja propriamente republicana, não é totalmente descabido incluí-la na família dos republicanismos: é a linha que surge (ou continua) com John McCormick. Inspirado nos livros históricos de Maquiavel, McCormick afirma que uma das melhores e mais eficazes – se não a melhor e mais eficaz – formas de controlar a corrupção é por meio do contínuo escrutínio público dos “grandes” (ou seja, dos governantes e dos ricos) pelos “pequenos” (os governados e as classes médias e baixas). Esse escrutínio não é apenas uma questão de fiscalização, mas um controle permanente das ações governamentais, para evitar tanto a corrupção quanto a tirania; o conflito político e social não está, de modo algum, ausente dessa perspectiva.
Esse é um exemplo bastante ilustrativo de um dos traços mais importantes do republicanismo neo-romano: o controle permanente dos governantes pelos governados é uma idéia compartilhada por Augusto Comte, por McCormick e pelo principal teórico atual do republicanismo, P. Pettit.
McCormick acentua mais o caráter de confronto do controle do governo pelos “de baixo”; Comte dá maior ênfase à fiscalização e à legitimidade do governo; Pettit poderia ser posto em uma posição intermediária, ao afirmar a fiscalização constante por meio dos mais variados institutos políticos e sociais (tribunais, Ministério Público (no caso brasileiro), ouvidorias, manifestações públicas etc.).
Não queremos com esses comentários sugerir que o republicanismo, em suas várias modalidades e vertentes, resume-se a uma teoria ou a uma engenharia anticorrupção, pois sua(s) proposta(s) é (são) maior(es), abrangendo configurações sociais, princípios de legitimação e arquiteturas institucionais específicas; além disso, como os republicanismos propõem definições do que seja o “bem comum”, há também neles propostas que visam aos fins, não se limitando aos meios. Entretanto, não deixa de ser verdade que, entre as teorias políticas normativas, é o republicanismo o que mais diretamente trata da corrupção.
Há ainda uma questão de fundo que exige análise e que permeia tudo o que se comentou até agora[6]. Poderíamos chamar essa questão de “problema da natureza humana” (embora a expressão “natureza humana” seja um tanto ambígua e esteja sujeita a várias contestações): afinal de contas, é possível eliminar a corrupção? De modo mais profundo, o ser humano é bom ou mal, é corrupto (ou corruptível) por natureza?
Entre as concepções que Hobbes, Locke e Rousseau tinham do ser humano, ficamos com a de Augusto Comte: em vez de um homem por natureza mal ou bom, o ser humano possui pendores, ou “instintos”, egoístas e altruístas, ou seja, voltados para o próprio indivíduo (ou grupo) ou para os demais; além disso, há a coragem, a firmeza e a prudência. Em cada meio social os indivíduos são educados e socializados de acordo com alguns princípios e em algumas práticas; alguns meios são mais propícios à corrupção e outros menos; alguns indivíduos têm maior firmeza para evitar ou resistir à corrupção e outros, menos. Dessa forma – reforçamos –, a corrupção é um problema tanto moral quanto institucional e societal. Ainda assim, é forçoso reconhecermos: sempre haverá quem deseje obter alguns resultados específicos por fora ou acima da lei. Uma sociedade completamente virtuosa não é possível, ainda que seja desejável: a corrupção é inextinguível. Ainda assim, isso não equivale a afirmar que ela é um mal necessário ou que devamos aceitá-la ou conviver com ela: ela deve ser combatida e evitada, mas sem a ilusão de que o ser humano deixará de ser, algum dia, humano[7].
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁCICAS
BIGNOTTO, N. 2001. Origens do republicanismo moderno. Belo Horizonte: UFMG.
COMTE, A. 1957. A General View of Positivism. New York: R. Speller.
MAQUIAVEL, N. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: M. Fontes.
MCCORMICK, J. P. 2003. Machiavelli against Republicanism: On the Cambridge School’s “Guicciardinian Moments”. Political Theory, London , v. 31, n. 5, p. 615-643, Oct.
PETTIT, P. 1997. Republicanism: A Theory of Freedom and Government. Oxford : Oxford University .
SKINNER, Q. 1997. A liberdade antes do liberalismo. São Paulo: UNESP.
[1] Embora este texto seja de minha inteira e exclusiva responsabilidade, ele não seria possível sem as discussões que o Núcleo de Estudos em Pensamento Político da Universidade Federal de Santa Catarina (NEPP-UFSC) realiza; também não seria possível sem a bolsa de estudos concedida pelo CNPq.
[2] Concentramo-nos aí na corrupção que atinge o Estado, mas é importante notar que ela não existe ou ocorre apenas no âmbito estatal. Não apenas a corrupção tem uma dimensão societal como também é possível determinarmos processos de corrupção estritamente societais. No que se refere ao Brasil, não é descabido perceber no “jeitinho” uma forma de corrupção.
[3] É claro que os dois níveis que sugerirmos e as várias práticas que identificamos (ainda que de modo sumário) permitem considerar a constituição de uma tipologia da corrupção.
[4] Entram nessa categoria não apenas o moralismo anticorrupção como também os discursos que apelam para políticas de tolerância zero em questões de segurança.
[5] Basta pensarmos nas propostas de Lênin para desestabilizar os “regimes burgueses” e cimentar o caminho para as revoluções bolcheviques – cujas influências chegaram ao Brasil (de que Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra e vários esquerdistas, desde a década de 1930, são exemplos).
[6] Agradeço ao amigo Tiago Losso pela proposição desse tema, tão central aqui.
[7] Talvez a melhor forma de ilustrar o combate à corrupção seja por meio de uma curva assintótica: à medida que o combate à corrupção aumenta e avança, ela diminui; ainda assim, por mais que a curva (da corrupção) aproxime-se do zero, ela nunca alcança o valor nulo, sempre restando algum resíduo.
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