26 setembro 2023

Sobre títulos e tratamentos

No dia 17 de Shakespeare de 169 (26.9.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua "Oitava conferência", dedicada à filosofia das ciências superiores (Sociologia e, acima de tudo, Moral).

Em seguida, fizemos nosso sermão a respeito dos títulos e dos tratamentos pessoais.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/cLT8S) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/KTD6m). O sermão começa em 46' 47".

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Sobre títulos e tratamentos pessoais 

-        Em termos de relações pessoais e cívicas, a respeito dos pronomes de tratamento e do uso de títulos honoríficos, o Positivismo aplica alguns princípios muito claros e determinados e a regra é: não os usar

o   A base para tal procedimento é a fraternidade universal e a valorização do mérito individual, em um ambiente republicano

o   Em outras palavras, trata-se de realizar a sociocracia nas relações pessoais e cívicas

-        Em algum lugar – cito de memória, pois não consegui recuperar onde li essa bela passagem –, Augusto Comte observa que todos devemos tratar-nos por “senhor” (messieur, em francês), mas subentendendo nessa expressão o título de “cidadão” (citoyen, em francês)

o   A regra é usar “senhor” e também suas variações, como “senhora”, “senhorita”, “senhores” etc.

o   Adicionalmente ao uso de “senhor”, a prática positivista também indica a profissão de cada cidadão: “operário”, “professor”, “médico”, “apóstolo” etc.

-        Essas expressões (“senhor”, “cidadão”) têm uma vinculação inequívoca com a Revolução Francesa e com o seu duplo programa (a abolição da monarquia e do Antigo Regime; a constituição de novas sociedade e sociabilidade)

o   O emprego da expressão “senhor”, no século XIX, apesar de depurada pela Revolução Francesa, possuía ainda um certo elemento feudal, no sentido de que “messieur” referia-se antes aos nobres – daí a necessidade, de qualquer maneira justificada, de reforçar que o elemento “cidadão” deve estar subentendido

o   Na Revolução Francesa e no início da República no Brasil, era muito comum empregar-se o “cidadão” para referir-se aos vários indivíduos: “cidadão Teixeira Mendes”

-        Em todo caso, o que importa notar é que o emprego de “senhor” é uma forma respeitosa e simples de tratar os demais, sem reproduzir as fórmulas habituais: “vossa/sua excelência”, “vossa/sua alteza” etc. etc.

o   Evidentemente, ainda mais que os pronomes de tratamento, a regra sociocrática rejeita o uso dos títulos nobiliárquicos e das comendas: “barão”, “duque”, “marquês” etc.; “membro da ordem X”, “comendador da ordem Y” etc.

o   Isso estabelece uma grande proximidade – quase um igualitarismo – entre as pessoas, tanto afetiva quanto sociopolítica

§  Essa proximidade era uma realidade vivida na Igreja Positivista do Brasil, tanto na época de Miguel Lemos e Teixeira Mendes quanto depois (até os anos 1990)

-        A presente regra é uma orientação geral; mesmo Augusto Comte usava títulos honoríficos ao dirigir-se a outras pessoas, como a dois de seus executores testamenteiros, o espanhol Don José Flores e o alemão Barão Constant-Rebecque

o   É claro que, mesmo usando essas fórmulas tradicionais, Augusto Comte era muito comedido nesse emprego

o   Da mesma maneira, esse emprego de fórmulas tradicionais evidencia o uso de outra regra positivista: “inflexível quanto aos princípios, conciliante de fato”

-        O uso de outros pronomes de tratamento e de títulos honoríficos serve, tanto no Brasil quanto em outros países, para adular, dar carteirada e literalmente discriminar:

o   É extremamente comum vermos documentos oficiais dirigidos a “Sua Excelência o sr. prof. dr. Joãozinho da Silva”, com uma enorme profusão de títulos e pronomes de tratamentos

o   Essa profusão é particularmente notável nas áreas jurídicas, seja em escritórios de advocacia, seja na Ordem dos Advogados do Brasil, seja no Ministério Público, seja nos muitos tribunais

o   O Decreto n. 9.758/2019 estabeleceu que, no âmbito do poder Executivo federal (Art. 1º, § 2º), só se pode usar “senhor” (Art. 2º) – não por acaso, excetuando expressamente todo o pessoal jurídico (Art. 1º, § 3º, inc. II)

-        Uma observação pessoal: muitas pessoas tratam-me por “professor”

o   Embora, evidentemente, o uso de “professor” para dirigir-se a mim seja feito com total boa vontade, boa fé, respeito e reconhecimento de (alguma) capacidade, o fato é que essa palavra é problemática por pelo menos dois motivos:

§  Por um lado, ela não corresponde à minha profissão (eu sou servidor público, ocupando o cargo de sociólogo)

§  Por outro lado, em termos de atuação positivista, não apenas não corresponde à atuação como, pior, ela diminui: eu sou um apóstolo da Humanidade e um sacerdote

o   Vejamos cada um dos âmbitos de atuação:

§  O professor é alguém que domina um assunto e expõe para seus alunos; então, todo apóstolo e sacerdote tem que ser, necessariamente, um professor; mas um professor não é, necessariamente, nem apóstolo nem sacerdote

§  O apóstolo é quem se dedica à difusão sistemática de uma doutrina; sua preocupação é intelectual mas também, e acima de tudo, moral e social; então um apóstolo é um professor, mas cuja atuação é mais ampla

§  O sacerdote (que apresenta os três graus: noviciado, vicariado, sacerdote pleno) é quem divulga uma doutrina, interpreta-a nos diversos casos e atua como educador, conselheiro, avaliador e consagrador; assim, a função sacerdotal abrange necessariamente as atuações como professor e como apóstolo, mas é superior a elas

-        Uma última observação, que faço apenas para não deixar em silêncio o tema em uma prédica dedicada a tratamentos pessoais:

o   Pessoalmente, sou contrário à chamada “linguagem neutra”, que busca abolir a golpes de marretada os gêneros na língua portuguesa e impor um suposto “gênero neutro”, por meio do emprego da terminação “e” nos casos de palavras masculinas (e exclusivamente masculinas) e/ou pelo emprego de “x”, “@”, “#”[1] etc.

o   Sou contra o emprego desse linguajar porque ele é inócuo; porque desrespeita os falantes e os leitores da língua portuguesa; porque é radicalmente contrário ao caráter histórico (e sociológico) da língua; porque é a manifestação lingüística do ultraparticularismo político e moral do identitarismo



[1] Uma curiosidade: o símbolo # em português chama-se “cerquilha”.

20 setembro 2023

Martins Fontes: "O homem se agita e a Humanidade o conduz"

O homem se agita e a Humanidade o conduz

 

No contínuo eferver das paixões, no tumulto

Trágico da existência, em qualquer circunstância,

Ninguém pode insular-se, ou ficar à distância,

Nem, egoísta, observar, conservando-se oculto.

 

Deve agitar-se, sempre, em social concordância,

Mirando o bem comum, como o quer nosso Culto;

Acima do momento e até do insulto,

Demonstrando, em parcela, o poder da constância.

 

Glória àquele que fez da sua vida um poema,

E tombou no combate, a cantar, a sentir

Que está no sacrifício a grandeza suprema.

 

Nossa benção fraterna há de ter no porvir,

Quem sofreu e se impôs, mas cumpriu este lema:

“Agir por afeição e pensar, para agir”.

 

(Fonte: José Martins Fontes. Nos jardins de Augusto Comte. São Paulo: Comissão Glorificadora de Martins Fontes, 1938, p. 173.)

Martins Fontes: "Viver às claras"

Viver às claras

 

Declara-te, não só no íntimo, como

Publicamente. No recolhimento,

Redestilando o teu discernimento

Vence os impulsos do menor assomo.

 

Faze o que dizes. E o teu pensamento,

Que entre os modelos do critério tomo,

Amadureça, equivalente ao pomo,

Porém nasça da flor do sentimento.

 

Exposto à luz solar, visto por fora,

Se torne evidentíssimo, insuspeito,

Teu humanismo, que te condecora:

 

Ostenta o coração, livre e perfeito,

Em toda a limpidez, brilhando agora,

Como um emblema de cristal no peito.

 

(Fonte: José Martins Fontes. Nos jardins de Augusto Comte. São Paulo: Comissão Glorificadora de Martins Fontes, 1938, p. 172.)

19 setembro 2023

Sobre a expressão "funcionários públicos"

No dia 10 de Shakespeare de 169 (19.9.2023) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua "Oitava conferência". O trecho comentado aborda em particular a constituição da ciência-arte da Moral.

Na seqüência, na parte do sermão, comentamos a bela expressão "funcionários públicos", utilizada por Augusto Comte para referir-se a como todos os cidadãos, servidores da Humanidade, devem encarar-se ao de fato servirem a Humanidade.

Devido a problemas técnicos com a transmissão via Youtube, fomos obrigados a cancelar a transmissão nesse canal, limitando-nos ao Facebook.

A prédica foi transmitida no canal Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/G8FE6) e também está disponível no canal Positivismo (aqui: https://ury1.com/lpDoU). O sermão inicia-se em 56' 50".

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Sobre o conceito de “funcionalismo público” 

-        Uma das mais belas e instrutivas expressões de Augusto Comte por vezes é alvo de críticas e confusões, nem sempre originadas da boa-fé dos comentadores

o   Essa expressão é que regime normal, todos os servidores da Humanidade devem ser vistos como “funcionários públicos”

o   Alguns dos comentários deste sermão, especialmente no final, retomam considerações presentes na postagem “Dois erros sobre o Positivismo: ‘autoritarismo’, ‘funcionalismo público’” (disponível aqui: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2017/03/dois-erros-sobre-o-positivismo.html) e esta, por sua vez, publicou o artigo de mesmo nome, que apareceu na Revista Espaço Acadêmico (Maringá, n. 87, agosto de 2008)

-        No Discurso sobre o conjunto do Positivismo, Augusto Comte afirma que somos todos “funcionários públicos”; eis o trecho[1]:

Sob esses diversos aspectos, o princípio fundamental do comunismo é então necessariamente absorvido pelo positivismo. Ao fortalecê-lo bastante, a nova filosofia estende-o mais, pois que ela aplica-o a todos os modos quaisquer da existência humana, indistintamente votados ao serviço contínuo da comunidade, conforme o verdadeiro espírito republicano. Os sentimentos de individualismo como as vistas de detalhe tiveram que prevalecer durante a longa transição revolucionária que nos separa da Idade Média. Mas uns convêm ainda menos que os outros à ordem final da sociedade moderna. Em todo estado normal da Humanidade, cada cidadão qualquer constitui realmente um funcionário público, cujas atribuições mais ou menos definidas determinam por sua vez as obrigações e as pretensões. Esse princípio universal deve certamente se estender até a propriedade, em que o positivismo vê sobretudo uma indispensável função social, destinada a formar e a administrar os capitais por meio dos quais cada geração prepara os trabalhos da seguinte. Sabiamente concebida, essa apreciação normal enobrece sua possessão, sem restringir sua justa liberdade e mesmo a fazendo ser melhor respeitada.

-        O trecho acima – cuja parte que para nós importa destacamos com sublinhado – é bastante claro e autoexplicativo:

(1) Nas situações sociais normais cada cidadão deve ver-se como um funcionário público e

(2) É a partir dessa atuação pública que se deve estabelecer suas possibilidades de atuação e de exigências

o   Apesar da clareza estilística, convém esclarecermos o conceito de “estado normal” e, em seguida, explorarmos a concepção de “funcionário público”

-        Antes de comentar especificamente o trecho acima, é interessante indicar que ele é apresentado no âmbito da discussão sobre o “comunismo”, realizada no capítulo 3 do livro em questão (“Eficácia popular do Positivismo”)

o   Nesse capítulo, após indicar quais as relações entre o sacerdócio positivo e o povo e, em particular, após apresentar sua teoria da opinião pública, Augusto Comte passa a comentar o chamado “comunismo”

o   Essa reflexão está no âmbito do regime; mas no Discurso sobre o conjunto do Positivismo Augusto Comte adotou outro critério para organização dos capítulos (especificamente, os âmbitos de atuação do Positivismo: filosofia, política, povo, mulheres, artes, religião)

-        Passando ao conceito de “estado normal”:

o   Podemos dizer que o objetivo do Positivismo é regular as forças humanas, a fim de que atinjamos a harmonia individual e coletiva; para isso, uma série de aspectos devem ser levados em consideração, adotados e/ou respeitados

o   A situação de harmonia dinâmica antevista pelo Positivismo é chamada por Augusto Comte de “estado normal”

§  Dito de outra forma, podemos considerar o “estado normal” a realização da utopia positivista

§  A descrição cuidadosa do estado normal e dos passos a serem seguidos até lá corresponde ao v. IV do Sistema de política positiva

o   Mas, além da referência à utopia positivista, no trecho acima há a referência aos estados normais, isto é, a uma pluralidade de estados normais

o   Nesse caso, a concepção de estado normal refere-se aos períodos históricos orgânicos, em que há efetivamente concepções gerais sobre a realidade, sobre o ser humano coletivo e sobre o ser humano individual

§  Daí a referência à Idade Média e também ao período crítico que prevalece desde o século XIV

-        Quais são as características do período crítico que Augusto Comte considera aí?

o   Por um lado, de maneira explícita, “os sentimentos de individualismo” e “as vistas de detalhe”

o   Por outro lado, de maneira implícita, as concepções de que cada indivíduo vive para si mesmo, que somente as suas preocupações particulares e exclusivas realmente importam; que não há concepção de bem comum vigente, que a propriedade privada é gerida de maneira absoluta e com vistas apenas à satisfação pessoal (ou seja, ao enriquecimento contínuo às expensas dos trabalhadores)

o   Além disso, Augusto Comte observa que o individualismo e as vistas de detalhe – convergentes entre si, especialmente contra as vistas gerais que estabelecem o real bem comum – foram fatais e mesmo necessárias desde o fim da Idade Média, como meios para destruir a antiga ordem social

-        O que Augusto Comte afirma, então, no trecho acima, é que devemos ultrapassar a fase crítica e estabelecer os hábitos e os valores próprios ao estado normal, em particular ao estado normal positivo

-        Ora, em um estado normal existe de verdade uma noção de bem comum; essa noção de bem comum – que, aliás, é uma concepção geral e não particular – organiza efetivamente a sociedade e permite que cada indivíduo saiba quais são suas responsabilidades, seus deveres, os meios de ação necessários e também os justos reclamos de recompensa

o   Assim, a partir de uma real concepção de bem comum – que Augusto Comte relaciona à idéia de república –, como cada qual tem clareza de qual sua participação na vida pública, importa se trabalhamos para empresas privadas, para o Estado ou para organizações sem fins lucrativos; se nossas atividades são teóricas ou práticas; se atuamos na economia “pública” ou se atuamos em atividades domésticas: toda atuação tem um caráter público

§  É devido ao caráter público de toda atividade estado normal que Augusto Comte afirma que os servidores da Humanidade são cidadãos e que devem perceber-se como funcionários públicos, isto é, como participantes de um grande empreendimento público

-        Outro aspecto implícito nos comentários acima é a relativização da divisão entre público e privado:

o   Evidentemente, existe uma área da vida social que corresponde àquilo que é específico de cada um e de cada família: esse é o âmbito do que se chama de “privado” ou de “particular”

o   O que a noção normal de funcionário público afirma é que não há, nem pode haver, uma cisão entre o “público” e “privado”: claro que são âmbitos diferentes, mas essa diferença não se pauta pela duplicidade de critérios morais e intelectuais

o   Deve haver o respeito ao âmbito privado e às suas particularidades, mas os critérios gerais que orientam a conduta humana são os mesmos

§  A continuidade dos parâmetros fica evidente no “viver às claras”, especialmente no sentido de adotar comportamentos publicamente justificáveis

§  Além disso, o “viver para outrem” também evidencia a continuidade dos critérios de conduta

o   Enquanto o individualismo estabelece uma rígida separação entre o público e o privado; em que o público é mais ou menos o que sobra do privado e os parâmetros de conduta privadas são absolutos, todo estado normal estabelece que, mesmo quando atuam no âmbito privado, os indivíduos devem entender-se como cidadãos cujas atividades integram uma concepção geral de bem comum

§  No estado normal, portanto, as famílias preparam os indivíduos para serem cidadãos atuando na república

o   Dito de outra forma, no estado normal, mesmo as atividades privadas são claramente percebidas como contribuindo – e, mais do que isso, como devendo contribuir – para o bem comum

§  Assim, a ação de todos assume uma dupla característica: a atividade privada tem sempre um aspecto público

§  Ou melhor, sendo mais correto e mais preciso: a atividade privada é orientada pelo bem público e, filosoficamente, o particular é englobado no público

o   Todas essas concepções tornam-se ainda mais claras quando, algumas páginas adiante, Augusto Comte observa que “O verdadeiro princípio republicano consiste a fazerem sempre concorrer para o bem comum todas as forças quaisquer”[2]

§  É claro que o “bem público”, o “bem comum”, a “república” etc. não são concepções vagas: elas são concepções claramente definidas pelo Positivismo e aplicadas e atualizadas pelo sacerdócio positivo

§  A afirmação do bem comum e a subordinação das atividades privadas ao bem público é o que estabelece o caráter específico da república sociocrática (e, em particular, é o que permite identificar o que há de extremamente metafísico nas concepções usuais de “república democrática”)

-        Dissemos no início que a expressão “funcionários públicos” por vezes é mal interpretada e/ou produz confusão: de que maneira?

o   Tomar o “funcionário público” como “funcionário do Estado

o   Esse erro tem sua origem lógica em uma interpretação especificamente jurídica da palavra “público”, na medida em que, no Direito, o que se opõe ao “privado” é o “público” cuja representação empírica é apenas e tão-somente o Estado

o   Essa confusão empobrece o pensamento social ao pressupor que apenas no Estado ou por meio dele é possível existir uma vida “pública”

§  Alfredo Bosi[3] cometeu esse erro, considerando que os “funcionários públicos da era normal” seriam uma justificativa para o aumento do aparelho estatal

§  Além disso, Olavo de Carvalho[4] usou a concepção comtiana para afirmar que o Positivismo seria a favor de alguma coisa como uma “estatolatria” e/ou do “Estado total”

o   Vale notar que o Positivismo favorece um forte, com capacidade de intervenção na sociedade, seguindo esta recomendação geral: o Estado deve ser o menor possível, de modo a não onerar em demasia a sociedade

§  Mas um Estado que seja “o menor possível” não equivale a “Estado mínimo”, conforme defendido pelos liberais

-        Em suma:

o   O conceito de “funcionário público” no estado normal refere-se à concepção de todos devem orientar suas condutas, sejam públicas, sejam privadas, para o bem comum

o   Ao orientar suas condutas pelo bem comum na sociocracia, é totalmente natural que todos os cidadãos percebam-se como colaborando com o benefício coletivo e, dessa forma, que se percebam como funcionários públicos

         



[1] Auguste Comte. 1851. Discours préliminaire sur l’ensemble du Positivisme. In : _____. Système de politique positive, ou traité de sociologie instituant la Religion de l’Humanité. Paris : L. Mathias. P. 156, disponível aqui: https://archive.org/details/systmedepolitiq07comtgoog/page/156/mode/2up.

Vale notar que esse livro foi publicado duas vezes: a primeira, em 1848, sob o título Discours sur l’ensemble du Positivisme; a segunda em 1851, como um prefácio geral ao Sistema de política positiva, sob o título indicado acima (Discours préliminaire...). A versão de 1851 contém algumas alterações em relação à de 1848, especialmente em termos de referências temporais e de acontecimentos correntes à época.

[2] Auguste Comte. 1851. Discours préliminaire sur l’ensemble du Positivisme. In : _____. Système de politique positive, ou traité de sociologie instituant la Religion de l’Humanité. Paris : L. Mathias. P. 163, disponível aqui: https://archive.org/details/systmedepolitiq07comtgoog/page/162/mode/2up?view=theater.

[3] BOSI, Alfredo. 2007. A arqueologia do Estado-providência: sobre um enxerto de idéias de longa duração. In: TRINDADE, Helgio. (org.). O Positivismo. Teoria e prática. 3ª ed. Porto Alegre: UFRS.

[4] CARVALHO, Olavo. 1999. O jardim das aflições. São Paulo: É Realizações.


12 setembro 2023

Martins Fontes: "O perfume da flor"

O perfume da flor

Sim, a Razão não basta. Para os povos
Para a celebração dos tempos novos, 
Sementeiras em flor, verdes renovos,
É indispensável qualquer cousa mais.

E este milagre, este deslumbramento,
Se opera, apenas, pelo Sentimento,
Pois vem do coração o pensamento
Que glorifica as fases imortais.

Ai, quantas vezes, estudando, cismo,
Quanta poesia se contém
Quanta beleza há no Positivismo!

Para este sonho ser o que é, porém,
Faltou-lhe um Poeta, apenas... E, em lirismo,
Augusto Comte o foi, como ninguém!


(Fonte: José Martins Fontes. Nos jardins de Augusto Comte. São Paulo: Comissão Glorificadora de Martins Fontes, 1938, p. 121.)


11 setembro 2023

Otimismo e pessimismo à luz do Positivismo

No dia 3 de Shakespeare de 169 (12.9.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista - em sua "Oitava conferência", dedicada à filosofia das ciências superiores, isto é, à Sociologia e principalmente à Moral.

Em seguida, na parte do sermão, abordamos como o Positivismo considera o otimismo, o pessimismo e o "negativismo".

Antes da prédica, fizemos alguns comentários sobre o livro do jornalista investigativo do jornal The New York Times Max Fisher, A máquina do caos - como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo (São Paulo: Todavia, 2023). Entre muitos aspectos, e apesar de certas limitações intelectuais e morais do autor, o livro indica como as redes sociais (especialmente o Facebook e o Youtube) de maneira consciente e intencional atuam no sentido de viciar os seus usuários e de estimular a polarização política e social.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://ury1.com/Dhbnz) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/kysA0). O sermão começou aos 58' 08" do vídeo do canal Igreja Positivista Virtual.

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Otimismo e pessimismo à luz do Positivismo 

-        À primeira vista, é extremamente natural falar-se em “otimismo” (e até em “pessimismo”) no âmbito do Positivismo

o   Em um sentido ingênuo e popular, as expressões “positivismo”, “positividade” e “espírito positivo” equivalem a otimismo, a uma esperança geral e difusa, a uma boa vontade também geral e difusa

§  Assim, por exemplo, em seu primeiro mandato, Lula afirmou que seria necessário mais “positivismo no Brasil”

o   Essa associação do Positivismo com o otimismo não está errada e pode ser incluída no Positivismo; mas, ao mesmo tempo, ela é imprecisa, vaga e pode originar desvios intelectuais, morais e práticos, de modo que tem que ser devidamente avaliada e corrigida

o   A partir da associação ingênua e popular do Positivismo com o otimismo, também podemos considerar as relações do Positivismo com o pessimismo e com algo chamado de “negativismo”

-        Comecemos então com os sentidos da palavra “positivo”:

o   A origem da expressão “positivismo” vincula-se ao conhecimento positivo, isto é, real, efetivo, verdadeiro; daí também a expressão “ciências positivas”, conforme usado, por exemplo, por Francis Bacon

§  Por extensão, em uma primeira abordagem, muito básica, o Positivismo refere-se àquilo que é real, que é verdadeiro, que é efetivo

§  Com gigantesca e escandalosa freqüência, as definições que manuais e vídeos de Sociologia, Moral e Filosofia dão do Positivismo limitam-se a esse conceito básico

·         Esse conceito em si mesmo não está errado, mas é tão limitado e tão básico que, no final das contas, ele sugere e daí deduz uma concepção de Positivismo que é (total ou majoritariamente) errada

·         É necessário dizê-lo com clareza: manuais e vídeos que adotam esse conceito são intelectualmente molengas, covardes e, no limite, desonestos, ao preferirem repetir frases feitas a partir da lei do mínimo esforço (ou do nenhum esforço)

o   Todavia, apenas a “realidade” não basta, seja porque o “realismo” tem que ser complementado por outros atributos próximos, seja porque precisamos e aplicamos outros parâmetros

§  Além disso, o desenvolvimento do Positivismo na obra de Augusto Comte acrescentou parâmetros inauditos à primeira vista

§  Daí os sete sentidos indicados por Augusto Comte no Apelo aos conservadores: real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático

 

N.

Acepção

Opõe-se a

Estatuto teórico

1.   

Real

Irreal (fictício)

Condições fundamentais

2.   

Útil

Inútil

3.   

Certo

Incerto

Atributos intelectuais

4.   

Preciso

Vago

5.   

Relativo

Absoluto

Propriedades sociais

6.   

Orgânico

Crítico

7.   

Simpático

Antipático (ou egoísta)

Fonte moral

 

o   Das acepções acima, na minha opinião, o que se distancia, delimita e modifica o “real” são o “útil”, o “orgânico” e o “simpático”

§  O útil estabelece uma delimitação muito clara e direta, embora nem sempre seja compreendida nem devidamente aplicada

§  O orgânico relaciona-se com o relativo e, de qualquer maneira, é o que distancia o “positivo” da metafísica

§  O simpático, ao afirmar o caráter moral do Positivismo, dá um conteúdo que lembra com clareza que a inteligência e a prática não podem, nunca, separar-se do altruísmo

o   Dito isso, em que sentido podemos considerar que o Positivismo é uma forma de otimismo?

§  De duas formas que, com freqüência, combinam-se na mentalidade popular: por um lado, com a esperança; por outro lado, com a simpatia

§  No que se refere à esperança, as leis naturais permitem-nos prever o que será a partir do que é e, com isso, permite-nos agir adequadamente; ou, por outra, como a verdadeira esperança é aquela que se baseia na realidade, o Positivismo, ao indicar-nos o que pode e o que não pode ser feito, permite-nos desenvolver uma adequada confiança nas possibilidades humanas

§  No que se refere à simpatia, o Positivismo afirma que todos devemos ser altruístas: a lei-mãe da Filosofia Primeira estabelece que devemos elaborar sempre a hipótese mais simples, mais sintética, mais estética e mais altruísta, o que equivale a basicamente ver com bons olhos os seres humanos

-        Entretanto, afirmada a esperança e o altruísmo no Positivismo, temos que ter clareza de que ele não é um providencialismo:

o   O providencialismo é aquela postura geral frente ao mundo que considera que tudo está bom, que tudo é perfeito, que não há nada de errado no mundo

§  Essa postura tem clara origem teológica (em particular monoteísta), ao considerar que a divindade – onisciente, onipotente e onibondosa – criou o mundo com perfeição

·         Essa origem teológica já evidencia que o providencialismo incorre no vício intelectual e moral do espiritualismo

§  A concepção metafísica mais geral, a da Natureza, muitas vezes também recai no providencialismo; muitos cientistas (especialmente matemáticos, astrônomos e físicos) com freqüência adotam uma perspectiva providencialista

§  Leibniz propôs a concepção (metafísica) de que vivemos no melhor dos mundos possíveis; Voltaire ridicularizou essa concepção em seu Cândido, ou o otimismo

§  É certo que essa perspectiva caracteriza-se por grande altruísmo, mas: é um altruísmo vago e, acima de tudo, é uma concepção que falha miseravelmente na parte da realidade (isso para não mencionar a parte da utilidade)

§  Além disso, é necessário notar também que o providencialismo estimula a passividade

o   A realidade é extremamente imperfeita

§  Se por vezes isso não é evidente, a mera necessidade de termos que realizar uma série interminável de aperfeiçoamentos no mundo e na vida deveria acabar com qualquer pretensão providencialista

§  Afinal de contas, só podemos aperfeiçoar o que é imperfeito

o   No que se refere ao providencialismo, por vezes aparece uma tradução para o português da máxima “vivre au grand jour” que tem um aspecto providencialista – o que já deveria indicar que essa tradução é errada

§  O francês “vivre au grand jour” é traduzido como “viver às claras”

·         O francês jour significa tanto “dia” quanto “claridade”, “clareza” em português

§  Mas há pessoas que não conhecem o francês – e/ou não conhecem a tradução consagrada – e palpitam traduzir como “viver para o grande dia”

§  O problema de “viver para o grande dia” é que sugere que o Positivismo adota um messianismo e/ou um milenarismo, ao afirmar um suposto “grande dia”, alguma coisa como “o juízo final” – o que deveria ser muito claro que não corresponde, de maneira nenhuma e nunca, ao Positivismo 

-        Passando para o pessimismo em face do Positivismo:

o   Considerando os aspectos indicados acima, parece claro que não há muito espaço para o pessimismo no âmbito do Positivismo

o   Evidentemente há momentos em que podemos ficar pessimistas; mas ficar pessimista em alguns momentos, em algumas ocasiões, a respeito de alguns assuntos, é muito diferente de assumir o pessimismo como uma postura geral perante a vida

§  De modo geral, o Positivismo adota uma perspectiva otimista em relação ao ser humano e uma esperança a respeito do seu aperfeiçoamento

o   Muitas filosofias são “pessimistas” porque conjugam um suposto “realismo” com um estímulo a estados mórbidos

§  Sobre o suposto “realismo”:

·         Ele adota uma perspectiva negativa do ser humano, negando totalmente o altruísmo e também o desenvolvimento histórico e considerando que o ser humano é sempre egoísta e que ele nunca muda ao longo da história

·         Essa concepção, que é largamente herdeira do monoteísmo cristão, com facilidade descamba em ou justifica o cinismo

·         Da mesma forma, esse “realismo” antialtruístico justifica um amoralismo que, na verdade, é apenas uma desculpa para o imoralismo

·         Além disso, muitos pessimistas adotam uma perspectiva e/ou um comportamento blasé, de ironia e/ou desprezo fácil e incoerente em relação aos esforços de aperfeiçoamento humano

§  Sobre os estados mórbidos:

·         O pessimismo conduz a negar as alegrias da vida e, com isso, a tirar toda a satisfação nas atividades

·         Daí, os indivíduos não se satisfazem com o convívio social nem com suas atividades individuais: o resultado é a depressão

·         Como esse quadro moral não tem solução, os assim chamados pessimistas vivem em uma situação contraditória, consciente ou inconscientemente, obtendo satisfação com suas atividades e com o convívio social e reconhecendo possibilidades de melhorias, mas fingindo que nada disso ocorre

-         A respeito de um suposto “negativismo” como oposto ao Positivismo:

o   Por vezes já ouvi perguntarem-me a respeito do que seria um suposto “negativismo” como contrário ao Positivismo

o   Uma possibilidade inicial pode ser o pessimismo, que comentamos acima

o   Uma outra possibilidade desse “negativismo” dar-se-ia pela negação dos sentidos da palavra “positivo”; assim, o negativismo seria o irreal, o inútil, o incerto, o impreciso, o absoluto, o crítico e/ou o antipático

o   Dependendo da referência, podemos considerar que esse negativismo como antítese do Positivismo seria a teologia (irreal, incerta, impresa e absoluta) ou talvez a metafísica (irreal, incerta, imprecisa, absoluta, crítica e antipática)

§  Apesar de seu irrealismo, a teologia afirma coisas e, nesse sentido, ela não é negativista, no sentido de que ela não nega coisas

§  Por outro lado, nem toda metafísica é puramente negativa; por exemplo, Platão desenvolveu u’a metafísica que atuou como solvente do politeísmo e como preparatória para o monoteísmo

§  Mas a metafísica moderna, começando com o protestantismo e seguindo pelo liberalismo e pelo espírito revolucionário consagrado pelo marxismo e chegando aos pós-modernos atuais, é cada vez mais negativista

§  Essa metafísica moderna, apesar de profundamente negativista, é claro que muitas vezes tem que se haver com a realidade concreta e, aí, de maneira profundamente contraditória, vê-se obrigada a aceitar a positividade, como na frase de Trótski: “pessimismo da razão, otimismo na prática”

-        Em suma:

o   O Positivismo aceita e estimula um certo otimismo, seja em relação aos seres humanos em geral, seja em relação às nossas possibilidades de atuação

§  Mas esse otimismo de fundo exige sempre ser temperado pela prudência e pelo cuidadoso conhecimento das realidades que vivemos

§  Além disso, esse otimismo não pode nunca ser confundido com o providencialismo

o   Por outro lado, de maneira inversa ao otimismo, é possível dizer que somos contrários ao pessimismo como postura de vida

o   No que se refere ao “negativismo”, especialmente da metafísica moderna, somos totalmente contrários a ele