Artigo publicado na Revista Pesquisa Fapesp, n. 196, p. 78-81, jun.2012. O original pode ser lido aqui.
Ele faz uma revisão do papel do Positivismo no desenvolvimento do ensino e das pesquisas matemáticas no Brasil. Ele evidencia que se começa a deixar para trás muito da criticidade de manual (de origem liberal, católica e/ou marxista), que vê no Positivismo a fonte de todos os males do país (reais e imaginários).* * *
Debate sobre matemática positivista abriu espaço para a ciência pura no Brasil
Carlos Haag, da Revista Pesquisa FAPESP
Para muitos historiadores, a fundação da Universidade de São Paulo, em 1934, marcou, enfim, o início da ciência moderna no Brasil: “É uma revolução intelectual e científica que mudará as concepções econômicas e sociais dos brasileiros”, nas palavras de Sérgio Milliet. Até então, afirmam, o país amargara um “isolamento científico”, culpa do grupo “autoritário e anticientificista” que impôs “ordem e progresso” à bandeira e aos brasileiros. Assim, numa curiosa distorção, o positivismo, cujo credo era a fé na ciência como alavanca de progresso e civilização, acabou “demonizado” como o grande obstáculo ao desenvolvimento científico nacional.
A acusação ganha contornos polêmicos ao recair, em especial, sobre a disciplina vista pelo francês Auguste Comte (1798-1857), criador do positivismo, como a base da educação: a matemática. “O positivismo à brasileira da Primeira República (1889-1930) foi, e ainda é, analisado de maneira simplista e generalizadora por causa da sua visão ‘cientificista’, que preconizava ciên-cia e matemática pragmáticas, instrumentos práticos para solucionar os problemas nacionais com progresso material e modernização social. Leituras apressadas e interessadas os acusam de supervalorizar a ciência aplicada, criando constrangimentos para o avanço científico, cujo motor seria a ciência pura e desinteressada”, explica o matemático Rogério Monteiro de Siqueira, professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH/USP), autor da pesquisa Modernismo, modernidade e modernização nas ciências matemáticas brasileiras, apoiada pela FAPESP.
“Claro que antes dos anos 1930 não se fazia aqui uma matemática como a europeia. Mas não podemos simplificar e dizer que não tivemos qualquer tipo de desenvolvimento matemático antes da USP. Existiam, sim, indivíduos publicando trabalhos com regularidade e originalidade em revistas internacionais. Logo, dizer que os positivistas impediram que se tentasse fazer uma ciência pura, como querem seus detratores de ontem e de hoje, é um engano”, avisa. “Ainda assim muitos hoje insistem que só houve avanços nas ‘escapadas do positivismo’. Isso joga uma nuvem sobre o passado, reduzindo o progresso matemático a um panteão restrito de antipositivistas ‘modernos’ como Otto de Alencar (1874-1912), Manuel de Amoroso Costa (1885-1928), Theodoro Ramos (1895-1935) e Lélio Gama (1892-1981)”, avisa Rogério.
O embate entre ciência pura e aplicada é muito mais complexo e é pouco estudado, como o pesquisador descobriu ao analisar os artigos das revistas especializadas. “Havia matemáticos ‘positivistas’ que criticavam Comte. O Brasil não teve um positivismo único, radical, mas dividiu-se em várias facções com diferentes graus de ortodoxia”, diz. Basta ver que a figura de proa do movimento no país, Benjamin Constant de Magalhães (1833-1891), republicano de primeira grandeza e professor de matemática em escolas militares, objetava abertamente as leituras comtianas da matemática. “É preciso também conhecer a produção dos ‘modernos’ na sua totalidade. Hoje há apenas um retrato incompleto dos debates, dos quais se extraíram as variáveis políticas e os jogos de interesses. Pinçam-se apenas os artigos ‘modernos’ que escreveram, deixando de lado os muitos outros sobre questões aplicadas. ‘Esquece-se’ também que os ditos ‘pioneiros da matemática pura’ eram ‘híbridos’, pois, além dos teoremas, também aceitaram cargos públicos e escreveram sobre a prática da engenharia, não se limitando à ‘ciência desinteressada’”, diz.
Afinal, mesmo Amoroso Costa, que responsabilizava o positivismo pela situação precária das ciências exatas no Brasil, viu-se obrigado a reconhecer que “o nosso terreno é ainda impróprio ao cultivo dessa suprema flor de espírito que é a ciência pura, contemplativa e desinteressada”. “Essa briga era sintoma da readequação de forças políticas nas ciências nacionais, onde o grupo de engenheiros que investiu numa matemática alheia às suas aplicações, seguindo um padrão então em hegemonia na Europa, viu-se aos poucos desvalorizado e sem espaço. Ao mesmo tempo, isso ocorreu num ambiente em que a matemática, cada vez mais, era vista como instrumento de trabalho prático para o progresso do país”, analisa Rogério. Alijados, passam a defender a criação de um “lócus” institucional para a ciência “descompromissada”, a universidade, que dominariam.
Efetivamente, um pequeno grupo radical de positivistas era contrário à criação desse espaço, cientes da queda de braço em curso, mas muitas outras facções não comungavam dessa “censura”, tendo uma postura não dogmática dos textos de Comte. “Também não se pode esquecer que a influência do positivismo na Primeira República não durou muito tempo e a geração de 1870, a cúpula militar invadida pelos ideais reformistas sociais de Comte, foi alijada do poder pelas oligarquias”, explica Angela Alonso, professora do Departamento de Sociologia da USP e autora do estudo Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império (2002). O grupo queria a cisão entre civis e militares, com um notório desprezo pelos “bacharéis” e sua visão liberal e de conformismo romântico para o Brasil monárquico. Para essa contraelite de militares, engenheiros e médicos, todos com formação técnico-científica, o positivismo confirmou a consciência que tinham do fosso existente entre o país e a “civilização”.
Canhão
“Essa é uma particularidade dos positivistas brasileiros que, em vez de pensar a doutrina em termos religiosos, a usam para discutir questões políticas num terreno social. A ciência, então, emerge como a fonte de soluções”, observa. Adeptos da “ilustração brasileira”, defendiam a educação como panaceia e se viam como participantes de uma “missão”: conhecer a realidade social e a natureza brasileiras, superando obstáculos com ciência e soluções práticas, e revelar, assim, as potencialidades do território. “Não era valorizar a ciência aplicada em detrimento da ciência pura, mas praticar o conhecimento científico com uma destinação social associada ao papel fundamental atribuído ao cientista no novo Brasil positivista”, explica Luiz Otávio Ferreira, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, da Fiocruz, e coordenador do estudo O ‘ethos’ positivista e a institucionalização da ciência no Brasil (2007).
“Logo, não havia como abrir espaço para ‘matemática pura’ nesse desbravamento urgente dos territórios. Mas surgiram vozes divergentes, a partir da criação, em 1858, da Escola Central de Engenharia, que cindiu o ensino da engenharia entre civis e militares, grupo que vai abraçar, nas academias militares, o positivismo”, observa Ferreira. Os matemáticos “puros” alinharam-se aos engenheiros civis. O conflito abriu-se em 1896, quando Benjamin Constant de Magalhães, como ministro da Instrução Pública, encerrou os cursos de ciências físicas, matemáticas e naturais na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. “Mesmo que o encerramento possa ser atribuído ao fato de que desde 1874 apenas 67 alunos se matricularam, para alguns professores o que se pretendia era a imposição, pelos positivistas que dominavam a instituição, da visão utilitarista das ciências”, explica Ferreira.
Para os “engenheiros cientificistas” era um golpe destinado a roubar-lhes espaço. Em 1898 veio a reação. Otto de Alencar, um ex-positivista, publicou o artigo “Alguns erros de mathematica na Synthese subjectiva de A. Comte”, o primeiro “tiro” da “guerra” entre “puros” e “aplicados”. Era munição de pequeno calibre, mas serviu como bucha para o “canhão” acionado, em 1918, nas conferências de Amoroso Costa. “Há nos países novos um fanatismo pelo progresso material que ignora que exista um ideal científico superior ao homem que fabrica mil carros por dia ou opera um apêndice em 10 minutos. A opinião é unânime: a ciência é útil, porque os engenheiros, médicos e militares precisam dela. Não vale a pena fazê-la no Brasil: é mais cômodo e barato importar da Europa. Essa é a mentalidade que predomina entre os educadores e aqueles que nos governam”, atacou o matemático.
Uma década mais tarde, Lélio Gama, no Rio, e Theodoro Ramos, em São Paulo, foram à luta para “reaver” o espaço da ciência “desinteressada”, o que ajudou a criação da USP e da carioca Universidade do Brasil, em 1939. Mas havia espaço para as “ciências contemplativas” antes dos anos 1930? “Na Europa, matemática, física e engenharia logo foram separadas, ao contrário do Brasil. Isso foi possível por causa do processo acelerado de industrialização europeu no século XIX. Aqui não existia demanda de conhecimento técnico para todas as áreas do conhecimento, como houve, por exemplo, no caso da medicina”, observa Rogério. Tampouco as críticas antipositivistas eram “puras”.
“As pechas de ‘imprecisão’ e ‘falta de rigor científico’ que jogavam sobre os positivistas são discutíveis. Os matemáticos italianos, por exemplo, eram chamados de ‘poetas’ por uma suposta imprecisão e não se culpou o positivismo por isso. O ‘rigor’ reclamado não era exercido nos escritos dos ‘modernos’ brasileiros, muito aquém de como se trabalhava na Europa”, fala o pesquisador. “O que se almejava era criar uma ‘diferenciação’: a tese de Theodoro Ramos, por exemplo, usava teoria dos conjuntos menos em prol da ‘matemática pura’ do que como estratégia de luta”, diz Rogério.
Mas quais seriam as motivações dos “puros”? “Eles tinham uma sensação de descompasso, de ‘ideias fora do lugar’. Muitos haviam viajado ao exterior e voltaram com os novos conceitos científicos praticados na Europa”, avalia Rogério. Para o pesquisador, não se pode negar a presença constante de um componente político, de luta entre grupos que se excluíam e queriam seu lugar ao sol. “Isso se evidencia a partir da ligação de Ramos com a Revolução de 1930. Não foi por acaso que ele trouxe matemáticos italianos, muitos deles fascistas, para a USP, para agradar Vargas, um admirador do Duce. A ação igualmente atendeu às demandas da grande comunidade italiana paulista”, fala.
Na divisão, alemães e italianos ficaram com as exatas e os franceses com as humanas. A primeira geração de matemáticos dos anos 1950 é “herdeira” dessa escolha, incluindo-se nisso um desprezo pela didática, incutido por mestres italianos como Luigi Fantappié. A matemática nacional, cuja projeção no exterior se iniciou nos anos 1960, formou-se a partir de um “imbróglio intelectual”. “Os adeptos das ‘ciências puras’ se apropriavam de artigos que vinham do exterior sem, no entanto, conhecer o contexto e o debate em que estes estavam inseridos. Eram apropriados de forma direta e, assim, criou-se uma mistura que gerou um tipo ‘nacional’ de matemática”, nota Rogério.
Assim, a “demonização” do positivismo merece uma revisão. “As críticas das ideias científicas positivistas não foi apenas uma empreitada de jovens matemáticos inovadores que queriam romper o ciclo do arcaico conservadorismo científico brasileiro. Essa interpretação ignora que as fronteiras entre o arcaico e o moderno resultam de processos de construção social”, observa Ferreira. O positivismo foi a base para o desenvolvimento de uma classe de cientistas que era sua adversária. “Foram os positivistas que propiciaram os conteúdos ideológicos necessários à formação da categoria ‘cientista’. O modelo de intelectual positivista, objetivo e preciso, reformador social ou não, fez escola entre os que queriam ser vistos como cientistas.”
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