08 maio 2020

O Positivismo como cortina de fumaça para os erros da direita brasileira

O artigo abaixo foi escrito como réplica a um outro texto, publicado alguns dias antes, no jornal Gazeta do Povo. Embora eu faça referência expressa a esse artigo inicial, lendo a minha réplica torna-se logo evidente que não faz muita diferença a leitura do primeiro texto; em outras palavras, a minha réplica sustenta-se por si mesma e apresenta informações e interpretações por si só.

A minha réplica foi publicada em 8.5.2020 e está disponível aqui. A versão abaixo é um pouco maior que a publicada na Gazeta do Povo.

O artigo também foi publicado - com acesso aberto - no jornal carioca Monitor Mercantil, na edição de 23 a 25 de maio de 2020; ele encontra-se disponível aqui. Lá embaixo porei também a versão JPG do artigo.

N. B.: A data de publicação do meu artigo não poderia ser mais emblemática: em 8 de maio de 1945 a Alemanha nazista rendeu-se de maneira incondicional aos Aliados, encerrando a luta contra o fascismo na Europa.


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O Positivismo como cortina de fumaça para os erros da direita brasileira

O artigo “O que é o Positivismo, a filosofia política que faz a cabeça dos militares brasileiros”, escrita pelo jornalista Rafael Salvi e publicada na Gazeta do Povo em 4.5.2020, é uma coleção inacreditável de mitos, invenções arbitrárias e erros sobre o Positivismo, sobre seu criador, Augusto Comte, e sobre a atuação dos positivistas no Brasil; praticamente todas as suas informações estão erradas, o que é mesmo notável. Aliás, não por acaso, entre suas fontes – todas elas de segunda, terceira ou quarta mãos – estão Olavo de Carvalho e João Camilo de Oliveira Torres, dois intelectuais conservadores e produtores em série de mitos, invenções arbitrárias e erros. Na mesmíssima senda anda Rodrigo Constantino, celebrado “autor” – mas não “pesquisador” nem “historiador”, nem “filósofo” – da nova direita radical brasileira. Todos eles colecionam, como se fosse uma competição, tolices e erros sobre o Positivismo, em um esforço aparentemente coordenado contra essa doutrina nas últimas semanas. Em virtude disso, merece uma réplica que seja minimamente detalhada.

Comecemos pela obra do francês Augusto Comte (1798-1857), fundador da Sociologia, da História das Ciências, do Positivismo e da Religião da Humanidade. A sua principal obra foi o Sistema de política positiva (1851-1854), em que, repetindo várias considerações pacifistas presentes em sua obra preparatória do ponto de vista intelectual (o Sistema de filosofia positiva (1830-1842)), ele afirma com todas as letras que a política moderna tem que ser pacifista e civilista, que as forças armadas devem ser dissolvidas e que as forças policiais devem ter um caráter cidadão e de manutenção da ordem pública. De maneira correlata, a política moderna deve caracterizar-se pela “separação entre os dois poderes”, ou seja, pela separação entre os poderes temporal e espiritual, em que o Estado não tem religião oficial e as religiões não se beneficiam do poder do Estado – o que em termos gerais equivale à laicidade do Estado. Política pacifista, civilista e laica: as liberdades de pensamento, de expressão e de associação são a base da organização social e política e esta, por sua vez, fundamenta-se na fraternidade universal e no respeito mútuo. O resultado disso tudo é que a política moderna – republicana – é cada vez mais regulada pela moral, pelos valores, e, de maneira concomitante, cada vez menos regulada pela força física.

Uma outra consequência da “separação entre os dois poderes” é que o governo não pode ser constituído pelos “sábios” ou pelos técnicos. Evidentemente é necessário que o Estado tenha seus técnicos, assim como um corpo burocrático responsável pela realização das políticas públicas; todavia, há uma gigantesca diferença entre o Estado possuir um corpo técnico e esse mesmo Estado ser dirigido pelos técnicos. Augusto Comte dizia com todas as letras que os “sábios” não podem mandar no Estado; esse regime político era por ele chamado de “pedantocracia” (palavra criada por Stuart Mill) – “governo dos pedantes” – e, em termos atuais, ela poderia ser chamada de “tecnocracia”. Para Comte, o governo deve ser dirigido por cidadãos com espírito público, visão de conjunto, sensibilidade social, tolerância e fraternidade – e sempre atentos às opiniões e avaliações da opinião pública.

Vale notar que, justamente porque era movido por um espírito histórico, relativo e altruísta, Augusto Comte afirmava a necessidade de uma política moderna que fosse positiva, incluindo nessa política o respeito escrupuloso e cuidadoso pelas religiões antigas e por seus papéis históricos; sendo francês, Comte indicava aí nomeadamente o catolicismo. Essa regra foi cumprida pelos positivistas, mas, ao mesmo tempo, foi ridicularizada pela esquerda e “esquecida” pela direita católica; em qualquer caso, como a respeito de vários outros aspectos, ela foi objeto de desinformação.

A atuação dos positivistas no Brasil seguiu à risca essas orientações. O autor da bandeira nacional republicana, o vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil, Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), tinha em mente os valores indicados acima ao seguir a orientação comtiana e incluir o “Ordem e Progresso” na bandeira. Aliás, nas centenas de publicações da IPB, Teixeira Mendes e Miguel Lemos (1854-1917, Diretor da IPB) não se cansaram nunca de repetir esses valores e de refutar os sofismas daqueles que atribuem o militarismo ao Positivismo. (Aliás, exatamente para combater a desinformação antipositivista, uma dessas publicações está disponível para consulta pública e gratuita no portal Archive.org.)

O professor Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) – positivista por opção religiosa, filosófica e política, militar por necessidade, como se vê na monumental biografia que Teixeira Mendes escreveu sobre ele – era igualmente adepto dessas concepções. Assim, o ensino que ele realizava na Escola Militar e na Escola Politécnica era civilista, pregando o afastamento dos militares (como militares) da vida política nacional e ocidental. Exatamente por isso, Benjamin Constant e sua orientação foram objeto de ódio pelos militaristas, que pregavam a politização das forças armadas e a militarização da política. Entre esses militares, o mais famoso e importante foi o arquigolpista General Pedro Aurélio de Góis Monteiro (1889-1956), que, apoiando o golpe de 1930, apoiou também todos os militares golpistas dali por diante, em particular aqueles simpáticos ao integralismo (a versão nacional do fascismo) e que fizeram o golpe de 1964, como o antigo integralista Olímpio Mourão Filho (1900-1972). No regime autoritário de 1964, um dos seus apoiadores de primeira hora foi o economista “liberal” Roberto de Oliveira Campos (1917-2001); apesar de “liberal”, ele foi Ministro do Planejamento do governo autoritário e nunca deixou de chamar-se de “tecnocrata”.

Todas essas informações são públicas e disponíveis para consulta; só é necessário buscar as fontes originais, não as secundárias, terciárias, quaternárias... Uma informação mais difícil de obter, todavia, são as opiniões de Henrique Batista da Silva Oliveira e Alfredo de Morais Filho – como Benjamin Constant, positivistas por opção religiosa, filosófica e política, militares por necessidade – a respeito dos militares de 1964. A partir de conversas pessoais que mantive com eles e também de relatos de amigos meus, para eles quem deu o golpe de 1964 eram “fascistas”; não por acaso, chamavam Góes Monteiro de “Gás morteiro”, que enquanto viveu fez o possível para combater com agressividade os positivistas militares. Por outro lado, o tecnocrata autoritário Roberto Campos, que é objeto de admiração dos liberais e da nova direita brasileira – incluídos aí o Ministro da Economia Paulo Guedes, o astrólogo Olavo de Carvalho e o autor Rodrigo Constantino – era encarado como alguém sem patriotismo, um “entreguista”, que aliás até o fim de sua vida desejava vender o patrimônio brasileiro para os estrangeiros. A nova direita, embora afirme defender a “liberdade” e combater a “tecnocracia”, não vê problema nenhum em celebrar Góes Monteiro e Roberto Campos e em atribuir os defeitos de gente como eles ao “Positivismo”.

Todos os erros teóricos e históricos indicados acima provêm da (nova?) direita conservadora (neste caso, “católica” e “liberal”): não é por acaso que citam em profusão J. C. Oliveira Torres. Entretanto, é motivo de assombro, ou de ridículo, que repitam os mesmíssimos erros que a esquerda sempre gostou de imputar ao Positivismo e aos positivistas. Embora seja possível incluir aí Marilena Chauí e Michel Löwy, um autor menos espalhafatoso foi o historiador paulista Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982), fundador do Partido dos Trabalhadores. Como já tive oportunidade de indicar e refutar, Sérgio Buarque repetiu todas as desinformações indicadas acima, com a espantosa inovação de pretender entender a obra de Augusto Comte melhor que o próprio Teixeira Mendes!

Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino e agora Rafael Salvi, entre outros, têm-se dedicado a imputar ao Positivismo os seus próprios erros: politização dos militares, aumento da violência na política, desprezo pelos aspectos morais e afetivos na vida sociopolítica, desprezo pela fraternidade e pela tolerância, instrumentalização do Estado por ideologias político-religiosas etc. Eles atribuem ao Positivismo a militarização da política, mas ao mesmo tempo apoiam um governo que se caracteriza exatamente por essa militarização e por um esforço de tecnocratização do Estado; aliás, fazem eco ao voto de extermínio dos positivistas proferido em 9.3.2020 por um dos filhos do Presidente da República.

Infelizmente, tudo isso é apenas distração e desinformação. Desde há alguns anos vivemos um novo tenentismo, com crescentes grupos paramilitares bastante agressivos, de origem castrense e civil; esse novo tenentismo não tem sido reprimido pelas Forças Armadas, que o tolera como se não fosse profundamente perturbador, tanto da ordem político-social quanto da própria disciplina militar.

Nesses termos, os golpes dirigidos contra o Positivismo e os positivistas servem apenas para (tentar) disfarçar a própria política antirrepublicana e anticívica seguida atualmente pela direita nacional. De modo mais específico, a difusão renovada dessa desinformação integra uma campanha promovida pela direita histérico-política desde há algumas semanas no sentido de incentivar os militares – que cada vez mais integram o governo, movidos, sem dúvida, por um sincero embora equivocado senso de dever e de patriotismo – a abandonarem o comportamento constitucional e republicano de obediência às regras e de limitação da atividade propriamente política (felizmente interpretados pela direita como sinais de Positivismo) e a adotarem um renovado comportamento político ativista, intervencionista e autoritário.

A crítica ao Positivismo, assim, é uma nuvem de fumaça e um código da direita para um eventual golpe militar fascista.

Gustavo Biscaia de Lacerda é positivista ortodoxo e Doutor em Sociologia Política.

Fonte: https://monitormercantil.com.br/positivismo-como-cortina-de-fumaca-para-os-erros-da-direita-brasileira

07 maio 2020

Lamento por uma burguesia abaixo do mínimo político-moral


Quando eu era aluno de graduação, do mestrado e do doutorado, sempre que ouvia falar em "burguesia" ficava irritado: essa palavra quase sempre era proferida por marxistas, que de fato têm uma escabrosa metafísica político-moral. Para o marxismo, a "burguesia" é uma entidade e sempre é ruim, sempre é maléfica.

Entretanto, se deixarmos de lado a metafísica marxista e entendermos de maneira concreta a palavra "burguesia", ela assume um caráter descritivo. Nesse caso, a burguesia nacional é o conjunto dos grandes capitalistas brasileiros, isto é, dos donos de lojas, de fábricas, de empresas de investimento, dos especuladores financeiros.

Sem dúvida que também há a pequena burguesia, isto é, os micro e pequenos empresários, além dos empresários individuais; da mesma forma, podemos incluir na categoria geral de burguesia a classe média profissional, isto é, os profissionais liberais, aqueles que têm sua renda e seu status social ligados a um diploma universitário: médicos, engenheiros, advogados, professores universitários, consultores etc. Creio que atualmente os "youtubers", os "influenciadores" também entram nessa categoria.

Mas deixemos de lado a pequena burguesia e os profissionais liberais; o que me interessa aqui é a burguesia, isto é, o grande capital.

Se até 2018 eu tinha paciência e boa vontade com a burguesia brasileira, desse ano em diante não dá mais para levá-la a sério.

Não me incomoda o fato de que a burguesia é rica e que, por isso, tem poder e/ou influência. A vida, a sociedade são assim; se não fossem, seria estranho.

Mas quem é rico tem responsabilidades coletivas. Ao contrário do que diz a metafísica liberal e individualista, cujo grande centro de difusão atualmente são os EUA, a riqueza não é sinal de mérito individual e não existe para prazer dos ricos. A riqueza é um fardo, pois implica sempre e necessariamente responsabilidades gigantescas: os donos do capital não têm que ficar sempre e cada vez mais ricos, eles têm que produzir mais riqueza para sempre e cada vez mais alimentar (e vestir e educar e entreter) a população, seja por meio da geração de empregos - esse deveria ser o seu principal instrumento e, portanto, a sua principal preocupação -, seja por meio de ações sociais diretas (como deveria ser a ação do Sistema S), seja por meio do pagamento de impostos.

Ora, desde 2018 a burguesia brasileira aderiu a um projeto político-social fascista, de desprezo sistemático aos trabalhadores, de destruição das sociedades indígenas, de destruição das nossas florestas, de venda do patrimônio nacional, de redução sistemática dos salários, de precarização sistemática das condições de trabalho. Em outras palavras, a burguesia brasileira faz tudo o que é possível para destruir o que há de civilizado no país, mesmo que tenha a audácia de conspurcar as palavras "modernidade" e "progresso".

(Diga-se de passagem que "fascismo" é outra palavra que o marxismo e a esquerda degradou, ao usar de maneira cínica contra tudo o que não era marxismo e esquerda. Mas, ainda assim, a palavra "fascismo" tem um conteúdo descritivo que resiste à sua degradação pelo marxismo; é considerando esse conteúdo que eu emprego, de maneira concreta, para referir-me a um governante que é, sim, fascista.)

Aliás, o governo fascista insiste em degradar outra bela expressão de que os brasileiros têm a honra de tomar como divisa política; em outras palavras, os fascistas degradam e conspurcam o belo "Ordem e Progresso".

Para a burguesia nacional é ótimo dizer-se contra o "marxismo cultural"; a burguesia não se importa com o conteúdo específico dessa corrente, mas também não deseja ser criticada como parasitária, como irresponsável, como... inútil. (Não por acaso, essa burguesia emprega um especulador financeiro altamente suspeito como porta-voz, para dizer que os servidores públicos é que seriam parasitários.)

Mas a verdade é que, como observei acima, o marxismo consiste em uma enorme metafísica político-moral; sua acusação à "burguesia" no final não passa de indignação política para adolescentes rebeldes.

Agora, dizer com clareza que a nossa burguesia é mesquinha, é egoísta, é covarde, é irresponsável - isso é muito pior e muito mais duro. Dizer que a nossa burguesia resolveu embarcar - quando não assumir - no fascismo para justificar seu individualismo antissocial é tudo o que ela não deseja. O que a nossa burguesia deseja é ser sempre e cada vez mais exploradora da população, insensível aos seus problemas, irresponsável em seus comportamentos.

O Positivismo, aquela mesma filosofia que formulou o belo "Ordem e Progresso", afirma que o capital, a riqueza, tem origem social e que, portanto, ela tem que ter destinação social. É o Positivismo que afirma que a destinação social da riqueza impõe pesadas responsabilidades sobre os ombros dos ricos, isto é, da burguesia. É o Positivismo que rejeita como mesquinha, como imoral, a idéia de que a riqueza por si só é sinal de mérito e que os ricos não têm nenhuma obrigação para com ninguém, exceto serem cada vez mais ricos.

(Não é por outro motivo que os representantes histérico-ideológicos dessa burguesia têm mirado cada vez mais no Positivismo, tornando-o o alvo preferencial de seu ódio e de suas mentiras, deixando de lado a lenga-lenga sobre o "marxismo cultural".)

Desde 2018, cada vez mais eu vejo a burguesia brasileira - os donos de grandes lojas, de grandes empresas, de grandes indústrias; os presidentes dessas empresas, os administradores de fundos de especulação - fazendo questão de defender o "direito" de ser mesquinha e inútil.

O comportamento degradante de nossa burguesia, que já seria extremamente condenável somente pelo seu ignóbil apoio ao fascismo, tem-se aprofundado nesta crise de saúde pública. A nossa burguesia, em vez de assumir republicanamente, civicamente, humanamente, que o isolamento social é a medida mais efetiva para combater as mortes; em vez de assumir esse fato e pagar para isso, o que nossa burguesia insiste em fazer é querer que os trabalhadores e a população continuem a trabalhar como se não houvesse nenhuma violenta emergência de saúde. Para essa burguesia, se a classe média e os trabalhadores morrerem nos hospitais, não há problema: essa mesma burguesia não tem vergonha de dizer que hoje, quando estamos longe do pico da epidemia no país, esse pico já foi ultrapassado para os ricos! Esses mesmos ricos têm a ilusão de que a pandemia não os atingirá apenas porque eles são ricos e porque, caso contraiam a doença, eles podem viajar em UTIs aéreas para os mais caros hospitais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Essa mesma burguesia tem até mesmo um representante no Ministro da Saúde!

É com um misto de crescentes tristeza e raiva que cada vez mais me convenço de que a burguesia brasileira tem um comportamento desprezível. Ricos, eles querem apenas ser mais ricos às custas da vida e da dignidade de nossa população; com influência política, eles apóiam o fascismo; com capacidade de manter empregados sem trabalhar por meses (como donos de cadeias de lojas e lanchonetes já se gabaram), eles insistem que "todos" (isto é, todos os outros) devem trabalhar normalmente, como se não houvesse uma pandemia mortal. Com influência moral, eles repetem discursos desprezíveis, que passam a ser os discursos da pequena burguesia, da classe média profissional e - isso é o mais chocante - mesmo dos trabalhadores!

Quando tudo isso acabar - isto é, quando a pandemia for passado e o fascismo tiver sido varrido do Brasil -, será que ainda haverá algum país para que essa burguesia possa agir?  Ou, de maneira mais importante: será que nossa burguesia terá aprendido a ser decente, responsável, humana, altruísta? Pessoalmente, eu acredito que não; entretanto, é como dizem: a esperança é a última que morre.

28 abril 2020

O desvirtuamento fascista do civismo


Vejo algumas pessoas qualificarem de “ ‘brasileiros’ ” quem critica o governo. Para esclarecer e evidenciar o problema: de acordo com essas pessoas, quem critica o governo é “brasileiro” e não brasileiro, ou seja, é um brasileiro entre aspas. Em outras palavras, os “verdadeiros” brasileiros não criticam o governo e apenas os falsos (mentirosos, hipócritas, vendidos, traidores, quintas-colunas) brasileiros é que criticam o governo.

Se o caráter fascista do atual governo - amplamente divulgado e documentado - já não fosse um problema sério e enorme, devo admitir que é motivo de muito maior preocupação o fascismo da sociedade civil. Ao contrário do fascismo governamental, o fascismo “social” continuará existindo após a queda do atual governo; assim, seus efeitos sociais, políticos, econômicos, culturais durarão muito, muito, muito mais.

O fascismo social no caso que indiquei acima ocorre porque põe em questão o civismo de quem tem a ousadia de criticar o governo; mais uma vez, isso é o mesmo que dizer que um verdadeiro cidadão, um cidadão “do bem”, um cidadão correto é somente aquele que não critica o governo.

De acordo com esse raciocínio, aqueles que criticam o governo não são bons cidadãos; na verdade, no fundo, nem são cidadãos de verdade. Assim, se não são cidadãos, não merecem respeito, nem apoio, nem a defesa que as leis devem proporcionar... se duvidar, não merecem nem mesmo viver no país. Pôr em dúvida o civismo de quem critica o governo é o começo da odiosa mentalidade do “Brasil, ame-o ou deixe-o”.

É fácil ver que e como o fascismo distorce seriamente o civismo, que ele confunde propositalmente com a adulação ao poder e com o ufanismo incondicional.

Mas se o fascismo perverte o civismo, o que seria o civismo normal, o civismo saudável?

De maneira bastante simples, é a valorização ativa e passiva das tradições nacionais, o respeito às leis, a atividade convergente. Para o que nos interessa, o civismo também inclui de maneira central a tolerância e o respeito à diversidade de opiniões. Aliás, não por acaso, o jurista nazista Carl Schmitt dizia que a política é a oposição entre os amigos e os inimigos: os inimigos são os adversários que, na guerra, devem ser eliminados, isto é, devem ser mortos. Uma política republicana, pacífica e pacifista considera que as pessoas de quem discordamos e que têm propostas sociais e políticas diferentes das nossas são somente isso - são “adversários”, mas nunca “inimigos”. Na República, todos são cidadãos e não se pode nunca falar em “nós contra eles”.

Vale a pena notar que no fundo é quase uma redundância falar em “civismo republicano”. “Civismo” refere-se à vida na “cidade”, mais ou menos como a “política” é a atividade desenvolvida na “polis”. Ora, como felizmente não vivemos na monarquia, mas na república (muito devido à excelente ação dos positivistas - que, não por acaso, é vista com ódio pela família Bolsonaro), todas as pessoas maiores de idade são cidadãs, todas as pessoas maiores de idade têm o direito de participar da vida política. E um dos fundamentos da vida política na república é justamente a trinca de liberdades - de pensamento, de expressão e de associação.

A tríplice liberdade equivale à liberdade de discordar - seja dos outros cidadãos, seja especialmente do governo.

Na República, quando um cidadão discorda do governo e critica esse governo, a sua lealdade ao país, o seu respeito às leis, o seu civismo não é posto em dúvida. Mas, quando alguém afirma que algum crítico do governo não é um verdadeiro brasileiro, ou que é um brasileiro entre aspas, esse alguém está deturpando o civismo e está sendo, por definição, um fascista.

27 abril 2020

Negação da realidade via mistificação parlamentarista


“Se estivéssemos no parlamentarismo, Bolsonaro já teria caído”. Essa frase impressiona, mas é mera mistificação parlamentarista e, sendo mistificação, não nos ajuda em nada.

Hitler foi primeiro-ministro alemão no parlamentarismo durante 12 anos. Sua insanidade era visível para quem quisesse ver e teve um custo altíssimo, não apenas para suas vítimas mas também para o povo alemão de modo geral. Como se sabe, Hitler não “caiu” – e muito menos por virtude do parlamentarismo –; ele matou-se quando percebeu que não tinha mais futuro nenhum.

A Itália, como se sabe, tem primeiros-ministros com mandatos menores que um ano, desde 1945!

A Inglaterra parlamentarista, após aprovar em referendo a tolice nativista e xenófoba do Brexit, teve que fazer três ou quatro eleições gerais em dois anos para que o grupo no poder e favorável ao Brexit conseguisse elaborar internamente uma proposta aceitável por esse mesmo grupo no poder e favorável ao Brexit. Em outras palavras, o parlamentarismo criou e alimentou uma crise burra que durou mais de dois anos e, agora, esse mesmo parlamentarismo corre atrás da reversão prática do Brexit.

Israel – um país parlamentarista – vive uma crise de governabilidade semelhante à da Inglaterra parlamentarista.

Assim, surgem as perguntas: onde estão as apregoadas virtudes de responsabilidade e estabilidade, misticamente atribuídas ao parlamentarismo? A resposta é clara: o parlamentarismo não é nem estável nem responsável.

Em suma: o problema não é o presidencialismo, é o Presidente (e também o descrédito geral da política, em grande parte causada pelos mesmos políticos que sempre defenderam o parlamentarismo, como Aécio Neves, ou que sempre se esconderam atrás do parlamento, como o atual Presidente).

Dito isso, é importante notar que insistir na tolice do parlamentarismo – que, aliás, para ser implantado, teria que ser via (mais um) golpe – é fazer um desserviço para o país, atrapalhar os debates nacionais e, por tudo isso, ajudar o fascismo nacional.

Ao contrário do que dizem os defensores-mistificadores do parlamentarismo (e, em menor proporção, da monarquia), o presidencialismo é o verdadeiro regime de responsabilidade e responsabilização política. Basta minimamente não ser um fanático para perceber-se com clareza que Jair Bolsonaro é um incompetente e um irresponsável; não por acaso, ele é um produto acabado do parlamento e do parlamentarismo, onde sempre pode esconder-se e esconder sua podridão moral e sua insignificância política atrás de 512 outros deputados.

Sugestões sociológicas sobre o "mundo pós-pandemia"


Há algumas semanas vários comentários sobre o “mundo pós-pandemia” têm sido feitos. Há exageros e palpites aí, mas creio que no fundo o esforço vale a pena: por um lado, e neste momento de modo mais importante, porque há a simples e direta necessidade psicológica de termos esperança, de sabermos que o mundo não acabará; por outro lado, porque é necessário sabermos minimamente para onde vamos para podermos agir de acordo (é o “saber para prever a fim de prover” de nosso mestre Augusto Comte).

Minhas sugestões para o que ocorrerá no "mundo pós-pandemia", neste momento, são as seguintes:

1) antes de mais nada, não estamos em uma “economia de guerra”; mas, como é evidente, também não estamos na normalidade econômica. Se precisamos de uma denominação para a atual fase econômico-social (e creio que realmente precisamos), que utilizemos “economia de pandemia”. A economia de guerra envolve privação da população civil, mas não diminuição da atividade econômica; o que ocorre é aumento da atividade econômica e o seu direcionamento para os esforços de guerra (cujo objetivo é tirar vidas e destruir coisas). O que vivemos desde o início de 2020 é a diminuição da atividade econômica, em virtude do “isolamento social”, cujo objetivo é preservar vidas.

2) Até o final do ano com certeza voltaremos à normalidade relativa – isto é, deixando de lado as mortes, os problemas econômicos mundiais (e nacionais) e as necessárias mudanças de hábitos. Assim, quem afirma que “o mundo nunca mais será o mesmo” está vendo apenas e em excesso bobagens como a série televisiva The Walking Dead ou, então, filmes como Independence Day. Rigorosamente, é evidente que o mundo daqui a um segundo será diferente do mundo de um segundo atrás. Dessa forma, afirmar que após a pandemia “o mundo nunca mais será como antes”, das duas uma: ou é uma trivialidade sociológica ou é um exagero completo inspirado na escatologia estadunidense. (“Escatológico” significa duas coisas: (1) relativo ao “fim do mundo” e (2) relativo às fezes.)

3) Haverá um período de luto variável, que deve durar entre seis meses a um ano conforme o lugar. Creio que esse luto será mais individual no conjunto do Brasil, embora ele deva assumir um caráter também mais coletivo em alguns lugares (como a cidade de Manaus). Entretanto, tenho a triste impressão de que, em seu conjunto, devido à nossa burrice coletiva (capitaneada pelos nossos líderes políticos demagógicos, autoritários e obscurantistas, secundada pela nossa burguesia mesquinha e egoísta), não teremos luto coletivo no Brasil;

3) A adoção do feliz hábito de usar EPIs (equipamentos de proteção individual), em particular as máscaras, quando tivermos gripe ou resfriados. Provavelmente esse novo hábito não será generalizado, mas com certeza deixará de ser estranho ver-se nas ruas pessoas usando as máscaras, quando estiverem acometidas de doenças respiratórias.

4) O fortalecimento e a estruturação mais clara do teletrabalho, seja na iniciativa privada, seja no setor público; isso, aliás, ocorrerá não apenas em serviços de escritório mas também se refletirá no incremento do ensino à distância, provavelmente mesmo para crianças e adolescentes. Uma consequência daninha disso será o estímulo ainda maior à “uberização” do trabalho no Brasil, aumentando a informalidade e os trabalhos de baixa qualidade no país.

5) A despeito dos berros histéricos sobre “comunismo”, provenientes dos suspeitos grupos ideológicos da nova extrema direita, haverá um reforço claro do SUS (Sistema Único de Saúde) no Brasil, a ser apoiado também por iniciativas internacionais nesse sentido (como na Inglaterra e até nos EUA).

6) Em virtude da necessidade de firme atuação do Estado para lidar com a pandemia – seja em termos de controle da população, seja em termos de manutenção de um sistema público de saúde eficiente, seja em termos de adoção de medidas econômicas para controle da crise e para recuperação da recessão que virá depois – também ocorrerá um enfraquecimento do discurso ultraliberal (capitaneado pelo Ministro Paulo Guedes e apoiado por capitalistas como João Amoêdo, todos ignorantes da realidade social e política do Brasil). Concomitantemente ao feliz descrédito do ultraliberalismo, talvez ocorra um fortalecimento do keynesianismo e, quem sabe, do neodesenvolvimentismo.

7) Deverá ocorrer a criação de um sistema internacional de prevenção e controle de doenças infectocontagiosas mais eficiente e coordenado, alguma coisa como uma “OMS (Organização Mundial da Saúde) turbinada”) – a despeito dos EUA (e da China e da Rússia) e, portanto, liderada pela União Européia, pela ONU (Organização das Nações Unidas) e por uma coalizão de diversos países.

8) Quando as restrições à movimentação forem totalmente levantadas, lá pelo final do ano, provavelmente teremos uma epidemia de comportamento desregrado, fortemente compensatório em termos subjetivos, resultando, no segundo semestre do ano que vem, em uma explosão de partos (algo semelhante ao que ocorreu nos EUA e, em menor escala, na Europa após a II Guerra Mundial).

De pronto, é nisso que eu penso. Comentários e sugestões são bem-vindos!

02 abril 2020

Ângelo Torres: publicação de "O léxico de Augusto Comte"

A Editora Poiesis publicou no dia 31.3 o livro O léxico de Augusto Comte - criptografia e filosofia, de autoria de Ângelo Torres. A obra corresponde à dissertação de mestrado do autor, defendida na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) em 1997; para essa publicação, manteve-se a formatação original do autor, que faleceu em janeiro de 2019, com quase 92 anos. 

Assim, a publicação contém um prefácio - que, por sua vez, inclui uma pequena autobiografia de Ângelo Torres - e notas de rodapé com a tradução das inúmeras citações em francês e inglês; além disso, o autor previa a inclusão de vários anexos, a maioria dos quais foi incluída (não todos, pois alguns eram extensos índices temáticos, remissivos e onomásticos, cuja publicação era impraticável).

O livro está disponível para venda na Amazon (aqui).

No livro Ângelo Torres dedica-se a examinar - e a explicar - várias características do altamente espefícico estilo de redação do fundador da Religião da Humanidade e do Positivismo, Augusto Comte (1798-1857). A partir disso, Torres examina vários aspectos da filosofia política de Comte, indicando como é que as dificuldades lexicais introduzem importantes camadas de incompreensão em uma filosofia que é profundamente libertária, humana e inclusiva.

Fonte: https://www.amazon.com.br/l%C3%A9xico-Augusto-Comte-criptografia-filosofia-ebook/dp/B08697GDF6/

10 março 2020

David Carneiro: "Veralinda", uma novela positivista

Reproduzo abaixo a novela Veralinda, publicada em 1948 pelo grande positivista paranaense, o historiador, professor e filósofo David Carneiro (1904-1990). Esse livrinho é uma completa raridade editorial, de modo que mais que se justifica a sua divulgação neste blogue.

Essa pequena preciosidade literária foi-me cedida graças à generosidade de meu amigo e correligionário Hernani Gomes da Costa. Aliás, é do próprio Hernani a observação de que Veralinda é um romance positivista!



















Foto do sr. Paul Thomas, neto adotivo de A. Comte

Abaixo está a foto do sr. Paul Thomas; ele era filho de Sofia Bliaux Thomas. Sofia Thomas era empregada doméstica de Augusto Comte; após alguns anos trabalhando para o fundador do Positivismo e da Religião da Humanidade, o filósofo decidiu adotá-la, isto é, ad-rogá-la; assim, Paul Thomas acabou sendo um dos netos adotivos de Comte.

Essa foto foi obtida graças à generosidade de meu amigo e correligionário Hernani Gomes da Costa.




Abaixo está uma foto da efígie de Sofia Thomas no cemitério Père Lachaise.




Foto de Leo Reynalds, tirada em 19.6.2006; fonte: https://www.flickr.com/photos/lwr/311286089/in/photostream/

Foto do túmulo de Augusto Comte no Père Lachaise

Abaixo está uma foto do túmulo de Augusto Comte no famoso cemitério parisiense Père Lachaise. O túmulo do fundador do Positivismo e da Religião da Humanidade é o que está na parte de baixo e no centro da foto, com uma grade com várias barras e uma lápide branca com topo arredondado.

Essa foto foi tirada em 1952 pelo positivista gaúcho Carlos Torres Gonçalves (1875-1974). Ela foi obtida graças à generosidade de meu amigo e correligionário Hernani Gomes da Costa.



Foto de Nísia Floresta Brasileira Augusta

Abaixo está uma foto da sra. Nísia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto (1810-1885). Ela era uma educadora do Rio Grande do Norte que se mudou para a Europa e, em Paris, tomou contato com Augusto Comte, trocando correspondência com o fundador do Positivismo e da Religião da Humanidade e sendo considerada por ele como "sua digna discípula brasileira"; quando Augusto Comte faleceu em 1857, Nísia Floresta esteve no enterro.

Além de educadora, Nísia Floresta é considerada uma das precursoras do feminismo no Brasil e, como nota Ivan Lins em seu gigantesco História do Positivismo no Brasil (disponível aqui e aqui), ela integra o panteão positivista brasileiro tanto quanto o francês.

Essa foto foi obtida graças à generosidade de meu amigo e correligionário Hernani Gomes da Costa.



Foto do dr. Robinet

Abaixo está uma foto do dr. Jean-François Eugène Robinet (1825-1899); ele foi médico e executor-testamenteiro de Augusto Comte e autor de inúmeras biografias de Augusto Comte, Condorcet e Danton. Aliás, no que se refere a Condorcet e a Danton, ele foi o grande responsável pela manutenção da memória histórica da atuação política desses dois grandes líderes. Além disso, republicano (afinal, era positivista), teve participação ativa na Comuna de Paris (1871).

Não possuo dados sobre a data em que a foto foi tirada, nem o lugar, nem por quem; entretanto, é seguro afirmar que foi tirada na década de 1890, haja vista o dr. Robinet já ser idoso nessa gravura.

Essa foto foi obtida graças à generosidade de meu amigo e correligionário Hernani Gomes da Costa.



24 fevereiro 2020

Hernani Gomes da Costa: "Comentários a 'O momento comtiano'"

Comentários a O momento comtiano – República e Política no Pensamento de Augusto Comte, de Gustavo Biscaia de Lacerda

Hernani Gomes da Costa 

Desejo expressar aqui toda a minha satisfação pela recente leitura que fiz d’O momento comtiano, elaborado pelo meu amigo Gustavo Biscaia de Lacerda (e por ele defendido inicialmente como tese de doutorado há uma década) em 2010.



Se algum valor especial deve-se dar aos comentários de quem por cinco anos realizou as conferências dominicais no Templo da Humanidade (e de quem por 14 anos – desde 1986 até 2000 – envolveu-se nas alegrias e sobretudo nos dissabores daqueles que vieram a ser os últimos anos de vida do movimento positivista no Rio de Janeiro) então, não parecerão deslocados os meus esforços para, de novo tentar sorrir em gratidão àquilo que eu só posso chamar de um verdadeiro ACONTECIMENTO.

Com efeito, por tudo quanto me foi dado compreender do ideário político do positivismo, eu penso que seja a partir dessa obra, que o exame de tal programa alcançou enfim – entre nós e no resto do mundo – sua plena maturidade; com toda a liberdade e responsabilidade que tal maturidade encerra.

Ela alcançará, estou certo, um merecido lugar de destaque junto às seletas produções intelectuais que, embora vindas do meio acadêmico e a ele destinadas, obtiveram pela força irresistível de seu encanto, de sua verdade, de sua utilidade – e mesmo de sua incidental beleza – um destino bem maior que o comportável por aquelas estreitas e, por vezes, tão mesquinhas fronteiras.

Eu diria mesmo que tornou-se hoje IMPOSSÍVEL realizar-se um exame vasto e profundo da TOTALIDADE das concepções políticas do fundador da sociologia[1] sem uma longa estadia em suas páginas. Mais do que uma obra de referência ela se firmará, pois, como uma sorte de crivo para discernir – dentre a nova safra de comentadores do positivismo – os honestos e competentes, dos que não o são. E a julgar pela felicidade com que o autor soube esgotar seu tema, eu acrescentaria que ele conseguiu – decerto sem o desejar e disso suspeitar – não só tornar por muito tempo desnecessárias quaisquer outras produções que no mesmo sentido ainda venham a ser tentadas; quanto – ousaria dizê-lo – permitir ao leitor dispensar-se (se assim o desejar) de um contato direto com a grande obra sociológica de Comte, ao menos para tudo quanto refira-se especificamente aos ideais políticos do positivismo.

Até aqui, os comentários sobre as idéias de Comte padeceram sob o jugo de dois graves estorvos: considerando-se que sua obra capital (A Política Positiva) ainda não existe em português, os pretendentes a comentadores que não dominam seu idioma original (mas que ainda assim insistem em tomar o positivismo como alvo de suas especulações) acabarão cedo ou tarde frente a um dilema. Ou eles necessitarão buscar como fontes primárias, textos que por sua ortodoxia estejam a salvo de qualquer suspeita quanto a não espelharem o mais fielmente os reais pontos de vista de Comte – e então NÃO HAVERÁ ALTERNATIVA senão destilarem – das mais de quinhentas publicações do Apostolado Positivista do Brasil – a quintessência da doutrina; ou, então – se renunciarem a isto – precisarão adentrar, sem muito critério e mesmo sem maiores escrúpulos, num verdadeiro dédalo (por vezes sedutor, diga-se) de sinopses superficiais, condenatórias e truncadas, vindas das mais variadas linhas de pensamento, e de autores que estiveram bem longe de VIVER tudo quanto pretenderam criticar. Perdidos nesse labirinto e embriagados pelos muitos brilhos, matizes e contrastes de tais obras, os estudiosos não disporão de outro meio de se situar, senão guiando seu caminho por entre aquelas ditas “mais consagradas” o que, na verdade, seria o pior que poderiam fazer: longe de constituírem-se no que há de mais seguro sobre a vida e os escritos de Comte, elas costumam representar apenas um farto e desconexo lote de preconceitos e de mal entendidos a partir dos quais seus autores lançam-se a arrojadas extrapolações tanto mais desembaraçadas quanto mais inconsequentes, o que (além das graças naturais de um estilo brilhante) é tudo quanto basta para erguerem-se mais alto que suas congêneres mais modestas e menos desonestas.

Mas antes que me acusem de “vitimizar” o positivismo frente ao julgamento desses intérpretes oficiais do pensamento universal, apresso-me em dizer que tal situação não se restringe às idéias comtianas. Longe disso, confusões dessa natureza parecem ferir em maior ou menor grau a todos os filósofos, muito particularmente aos criadores de grandes sistemas largamente fundamentados em informações históricas e em fatos colhidos das ciências naturais. Assim, por exemplo (e apenas para citar um antagonista – igualmente sistemático – de Comte) eu estou certo de que a recente edição em cinquenta volumes, da obra completa de Marx haverá de deslindar outras tantas distorções semelhantes às ocorridas com o positivismo; distorções que não raro determinaram o pesado fardo de adesões a este (e ao materialismo dialético) por motivos opostos aos de tudo quanto uma e outra destas duas doutrinas sempre se propuseram como mais fundamental; e tendo como implicação direta disto a aproximação maciça a elas, de pessoas que apenas vieram desmentir na prática seus princípios em nome deles, e tanto mais, quanto mais prontificaram-se em louvá-los, justificá-los e aplicá-los à vida. Esta me parece, sobretudo hoje, uma dificuldade grave e generalizada; que inclusive ameaça abalar a estrutura do próprio ensino da filosofia, da história, da sociologia e da psicologia como um todo; dificuldade que tanto mais se aprofunda quanto mais fácil torna-se em aparência a comunicação humana, mediante os recursos que a internet quase nos obriga a utilizar.

Acrescente-se que a opção por comentar uma obra tomando-se por matéria-prima outros comentários (ao invés dos textos do próprio autor) não se deve apenas àqueles inconvenientes citados, mas a certos hábitos intelectuais que, por assim dizer, imperam no mundo acadêmico os quais persistiriam mesmo se todas as facilidades ao acesso dos textos originais lhes fossem oferecidas[2].

Chegamos até a pensar que não se deseja nunca aí, a que nós leitores fiquemos em igualdade de condições com os comentadores; e que, bem ao contrário, eles fazem de tudo para deixar claro o quanto julgam-se dispensados de nos fornecer os mais amplos trechos de suas vítimas, em abono ao que contra elas nos mostram como peças de acusação. E tudo quanto, na falta disso, nos oferecem por magra indenização é apenas uma fastidiosa bibliografia (que a rigor poderia desdobrar-se indefinidamente não nos dando, aliás, segurança alguma de haver sido lida) na qual as obras do autor apenas mereceram, quando muito, o duvidoso privilégio de aí constarem à parte e em primeiro lugar. Eis como é que a leitura de um comentário acadêmico vem se tornando cada vez mais o exercício de uma fé tão ingênua quanto mal investida.

E se completarmos esse quadro com o fato de que a tendência aí é a de só depositar confiança, e a de só creditar imparcialidade a opiniões oferecidas sob uma ótica desfavorável, teremos compreendido como foi que tantos trabalhos sem o menor valor teórico puderam impunemente ganhar fama e mesmo um número maior de edições que a própria obra original que souberam explorar, conquanto apresentassem críticas que um mero cotejo com estas tê-las-ia inutilizado. Tal é (para citar um exemplo típico disso que entre nós se tornou quase um gênero de literatura filosófica) um dos mais detestáveis livrecos já escritos sobre (?) as doutrinas comtianas e que consta de nada menos de dez edições: o volume 72 da coleção Primeiros Passos O que é o Positivismo, de João Ribeiro Jr.

Ora, da mesma forma como procedemos quando nos vemos acusados injustamente (quando então de pronto cobramos pelas devidas comprovações do que nos está sendo imputado) deveríamos também agir requerendo e mesmo EXIGINDO de um comentarista filosófico as provas cabais do que afirma; sob pena de cairmos vítimas (ou de nos entretermos) com calúnias. E que outra evidência maior poderia haver, nesse sentido, que uma boa coleção de trechos do próprio autor cujo pensamento se intenta apresentar? E como não ver como incompleto (para dizer o mínimo) um exame sem o próprio objeto do que é examinado?

No entanto, parece que a lógica torna-se bem outra quando o caso não nos toca diretamente e quando aquelas afirmações gratuitas são de uma natureza mais intelectual que moral: desde que não nos sejam oferecidas no calor das discussões (mas sob a distante e respeitável forma de livros, teses e comentários) e desde que os autores já tenham há muito falecido (como é o caso da maioria daqueles sobre os quais a crítica acadêmica recai) não podendo reivindicar direito algum de resposta, mesmo judicial; então não há limites à covardia, tudo torna-se válido e o crime perfeito. Descortina-se o campo da boataria inteiramente livre e desimpedido como em nenhum outro setor[3].

Eu devi insistir tanto sobre esse único ponto, tendo em vista que uma das diferenças mais flagrantes a quem apenas folheie O momento comtiano é o grande número de citações que o autor faz ao filósofo[4] fora e dentro do texto. Não há praticamente uma só página onde, para nosso conforto e segurança, não sejamos brindados com elas. Ora, se APENAS nesse único bom exemplo – se apenas nessa única lição – pudesse residir todo o legado desta obra, somente isso bastaria para muito elevar-se o nível geral dos textos acadêmicos no Brasil.

Aliás, com a exceção de um trabalho de natureza introdutória – A república positivista– do meu amigo Arthur Virmond de Lacerda; O momento comtiano, insisto, oferece COMO NENHUMA OUTRA obra sobre o ideário político de Comte essa preciosa garantia teórica: a de não haver JAMAIS resvalado em concluir algo que já não estivesse contido na generosa coleção de passagens do filósofo, num constante e tocante escrúpulo a que ambos os autores ativeram-se, a fim de não trair o pensamento de seu mestre comum, aplicando – já à elaboração mesma dos textos – a máxima positivista de que “todo progresso é o desenvolvimento da ordem correspondente”. Ora, são estas constantes citações que revestem – tanto O momento comtiano quanto (o que acabou por se tornar o seu natural prelúdio) A república positivista – dessa autoridade única; impossível, aliás, sob quaisquer outras circunstâncias.

Mas eu não devo limitar-me apenas ao impacto d’O momento comtiano junto ao mundo letrado. Se como exposição geral e teórica ele já se faz oportuno; são, por outro lado, esses nossos tempos nada comtianos que o tornaram, por assim dizer, indispensável. E se a exigência dos espíritos preocupados com os destinos humanos deve incliná-los a uma especial atenção aos grandes quadros de referência concebidos para o entendimento dos fenômenos sociais (e se é, inclusive, por conta dessas angústias, que devemos a invasão por vezes irritante às prateleiras das livrarias, de uma avalanche de todo tipo de obras de discussão político-ideológica) O momento comtiano oferecerá para além daqueles quadros teóricos mais difundidos – mas sempre como consequência da consistente adoção de UM deles – e para além daquelas apreensões e daquele caos de opiniões desencontradas; uma singular, enérgica e otimista resposta frente a urgências práticas de toda sorte.

Com estas páginas, o Brasil acha-se, enfim, munido de um instrumento (quase ia dizendo de uma arma) com a qual tornamo-nos capazes de entrar na arena desses confusos debates, confiantes do sucesso junto à tarefa tornada imperiosa de apresentar o positivismo pelo que ele verdadeiramente é; e COM ISSO desnudar todo o cinismo de um governo que profana as cores e a divisa da bandeira nacional até pervertê-las no seu exato inverso, invocando-as como se estas pudessem representar – ou ter alguma vez representado – uma espécie de subliminar convite à tirania.

Ora, se como eu espero, O momento comtiano alcançar a tempo todo o sucesso que merece (o que dependerá apenas de uma boa difusão) isso determinará inclusive a que esses fascistas vejam-se forçados doravante a combater o positivismo comtiano com uma ferocidade igual – senão maior – àquela com a qual dedicam-se a combater o que confusamente denominam “comunismo”, para maior honra de ambos os sistemas. Nós veremos então, como é que estes mesmos fascistas que tão camaleonicamente travestem-se de verde-e-amarelo e cujos discursos estão sempre tão transbordantes de “ordem e progresso” ver-se-ão forçados – tão logo sintam-se seguros de sua ALIANÇA PELO BRASIL – a arrancar da bandeira aquele lema, em prol de algum malsoante dístico teológico de última hora, ou mesmo de algum versículo bíblico ostensivamente teocrático; coisa que (eu não duvidaria) talvez já conste de um dos secretos itens da pauta desse “novo” partido.

Mas se uma obra tão inocente como O momento comtiano (inocente no sentido de não haver sido concebida para fins de polêmica) pode nos servir de modo tão eficaz como meio de luta, isso é algo a que devemos atribuir antes de tudo à sua natural universalidade. De fato, dentre seus muitos méritos paralelos, está o de nos oferecer a mais completa relação dos erros até hoje já alinhados contra o positivismo. Ora, são exatamente esses erros que, uma vez trazidos à luz e destruídos, desfazem de vez qualquer tentativa ignorante ou malévola de ressuscitar a falsa afinidade e o falso vínculo que se forjou entre o golpe de 1964 e o positivismo. Decerto O momento comtiano haverá de complicar bastante o ofício de todos que ainda imputam ao ideário comtiano o desastre político em que chafurdamos, o qual segundo nos querem fazer crer, não passaria de um híbrido teratológico entre o oportunismo evangélico da criatura que hoje habita o Palácio do Planalto – última dejeção gestada por aquele golpe – com o positivismo, representado iconograficamente pelas cores e pelo lema sociológico inscrito na bandeira nacional.

Assim, O momento comtiano é essa obra por excelência que nos ajudará como povo, a arrancar o véu verde-e-amarelo desse tenebroso personagem e de seu séquito, a fim de revelar quais são as suas verdadeiras cores, que aliás ninguém – talvez, no fundo, nem eles mesmos – saibam.

O momento comtiano auxiliará pois, não só a aprofundarem-se as opiniões dos simpatizantes da doutrina positivista (e dos que desejam estuda-la a sério) como a robustecer os ideais de todos que, fora dela, prezam a justiça histórica, a liberdade de ensino, as liberdades civis e de expressão, a laicidade do estado, a transparência da administração da coisa pública, a defesa das tradições, crenças, cultura e territórios indígenas, o internacionalismo, a fraternidade inter-racial, o congraçamento universal de todas as pátrias em torno da Humanidade (ao invés do “Brasil Acima de Tudo”, simples transposição do Deutschland Über Alles) a igualdade de oportunidades, a condenação do trabalho infantil e juvenil; dentre tantas outras grandes causas – todas, diga-se, tornadas em tempo real, tema de intervenção dos apóstolos positivistas Miguel Lemos e Teixeira Mendes – e todas, agora, sistematicamente afrontadas e ameaçadas pelo atual governo fascista.

Tendo sido vista a importância teórica e prática d’O momento comtiano, cumpre ainda uma última observação antes de comentarmos O momento comtiano capítulo a capítulo.

Será preciso agora tentar compreender as razões e o significado de não haver disposto o Brasil, até aqui, de textos dessa envergadura, embora a carência por algo assim já devesse ter sido sentida há muito. De fato, como entender essa lacuna, decerto involuntária, que acabou por se tornar desde a morte de Teixeira Mendes em 1927, um longo mutismo?

Penso que seria preciso ir buscar as raízes de tal fenômeno no próprio perfil psicológico de uma organização religiosa, e nas dificuldades especiais que estas encontram diante do NOVO, ou mesmo do simplesmente DIFERENTE.

Lembremo-nos que nem Miguel Lemos nem Teixeira Mendes desejaram realizar nada além de simples comentários episódicos sobre a doutrina que professavam. Tudo quanto propuseram-se a oferecer por escrito, resumiu-se a tentativas de aplicá-la (sem criticá-la ou mesmo aperfeiçoá-la) como articulistas atentos que eram da realidade nacional; ilustrando-a com fatos de seu próprio tempo e lugar considerados como de maior peso e repercussão social e política.

Outrossim, o que eles desejaram ACIMA DE TUDO com isso, foi estimular a que seus leitores voltassem suas atenções PARA A OBRA DE COMTE; obra que então, diga-se, ainda conseguia corresponder a algo mais legível do que hoje, quer devido às peculiaridades do estilo do filósofo (tornado cada vez mais distante daquele que acabou prevalecendo) quer à então maior popularidade da língua francesa entre nós.

Foi assim que – bem ou mal a propósito – os apóstolos decidiram-se POR PRINCÍPIO a evitar audaciosas expedições teóricas, na forma de longas TESES ou TRATADOS; coisa que seria, segundo criam, a usurpação de um trabalho genuinamente reservado aos efetivos críticos e aperfeiçoadores da doutrina (os sacerdotes da Humanidade). Duas únicas exceções a isso foram a Filosofia Química e as Últimas Concepções de Augusto Comte, ambas de autoria de Teixeira Mendes, correspondendo às duas únicas ocasiões em que optou-se por aquilo que, tornado frequente, teria de fato correspondido a uma verdadeira “tentação” a ser religiosamente evitada... Tentação a qual o meu amigo Gustavo teve o bom senso de sucumbir...

Assim quando os apóstolos faleceram, tudo quanto restou à Igreja além do vazio pela perda de dois dedicadíssimos propagadores, foi de um lado, uma tentativa canhestra de manter aquela tradição em apenas compor pequenos folhetos de ocasião e, de outro, uma espécie de preconceito contra quem sonhasse mais alto: “se NEM MESMO os apóstolos julgaram-se capazes de escrever tratados sociológicos... que diremos nós”...

Mas apesar de todo o virulento contágio com o qual aqueles limites auto impostos por Lemos e Mendes acabaram por involuntariamente paralisar a produção teórica de todo o grêmio da igreja, pode-se dizer que há mais aparência que verdade na afirmação de que jamais houve um tratado sociológico positivista entre nós: de fato, se rastrearmos com paciência o conjunto daquela vasta coleção apostólica decerto reaveremos (e mesmo recomporemos) a totalidade das teorias políticas do positivismo, representadas de pleno, e em seu mais puro estado; coisa que, porém, não se obterá jamais a não ser como o prêmio de contínuos, complicados e demorados esforços; aqueles mesmos, diga-se, que o PRIMEIRO TRATADO BRASILEIRO DE SOCIOLOCIA POSITIVA, o nosso MO(NU)MENTO COMTIANO vem hoje (afinal!) tornar inúteis...

Isto posto, passemos agora ao exame detido de cada um de seus capítulos.

(Continua.)



[1] Há uma crítica renitente, injusta e no fundo tola segundo a qual Comte não teria fundado a Sociologia porque não teria feito pesquisas sociológicas... evidentemente, para nós, isso é tolo, mas o que está subjacente é que Comte não teria feito pesquisa “com pranchetinha”, surveys. Ora, bastaria que se lesse os volumes 4 a 6 do Sistema de filosofia positiva ou 2 e 3 do Sistema de política positiva para saber-se o quanto isso é tolo; mas, ainda assim, esse preconceito existe e é largamente difundido. Uma caracterização (sem maiores esclarecimentos) de Comte como o criador de um sistema “abstrato” subrepticiamente pareceria apoiar essa tolice.

[2] Entre esses hábitos temos o excessivo espírito de detalhe e a cisão entre “científico” e “empírico”, de um lado, e o “filosófico” e “abstrato”, de outro. Ora, em Comte científico e empírico andam de mãos dadas com o filosófico e o abstrato, sem que seu sistema recaia em um desprezível “empiricismo”. Essa é, aliás, uma das suas principais características que o distanciam do academicismo e o tornam tão estranho aos hábitos acadêmicos. Quanto ao excessivo espírito de detalhe, vale notar que a Sociologia de Comte é a ciência geral da sociedade; as divisões acadêmicas atuais, tão sofregamente buscadas, entre Sociologia da Religião, da Política, Política, da Linguagem, histórica, institucional etc. etc. etc., além da Antropologia (vista como ciência à parte da Sociologia!) e da Ciência Política (vista como se tivesse existência autônoma em relação à Sociologia!) – todas essas divisões são vistas exatamente como divisões, em que o espírito analítico desenvolve-se sem freios e em que o caráter ao mesmo tempo social e histórico do ser humano perde-se radicalmente. A falta de eficácia social da Sociologia, entendida como ciência geral da sociedade, deve-se, aliás, em larga medida à sua fragmentação, à ciosa divisão acadêmica em dezenas de especializações. Desenvolvida por esse mesmo espírito analítico encontra-se também a Ciência Política cindida em “Ciência Política”, destinada à política interna, e “Relações Internacionais”, dedicada à política internacional. Aí é necessário criar modelos que consigam restabelecer a unidade da política e da sociedade, entre os âmbitos interno e externo. Ora, isso foi exatamente essa cisão o que Comte procurou evitar.

[3] Começamos mesmo a ver hoje, no cenário das discussões políticas, o reflexo direto de tal situação. Na prática a boataria filosófica e seus verdadeiros institutos para a produção e desenvolvimento de fofocas oficiais tornaram-se hoje um problema insolúvel. O contra-ataque a essas forças tão rápidas e numerosas exigiria não só um contingente semelhante de defensores, como o uso de estratégias eticamente questionáveis. À era dos falsos argumentos, representados pelos antigos sofistas, sucede-se hoje a era ainda mais odiosa e estúpida dos falsos fatos representados por robôs replicantes de Fake News.

[4] Embora em diversos momentos desses comentários eu devesse observar que Comte foi um filósofo, e que sua obra é filosófica, isso EM ABSOLUTO deve ser interpretado como uma forma de diminuir ou obscurecer o caráter sociológico e político de suas contribuições teóricas. Aliás, a universalidade do conhecimento teve em Comte o seu último verdadeiro cultor. E embora em sua época a separação entre “cientistas” e “filósofos” já estivesse bastante consagrada (não à toa Miguel Lemos criou em português a palavra “cientista”, na tradução do Apelo aos Conservadores), Comte faz considerações filosóficas sobre afirmações científicas tanto quanto, inversamente, considera do ponto de vista científico afirmações filosóficas.