Comentários
a O momento comtiano – República e
Política no Pensamento de Augusto Comte, de Gustavo Biscaia de Lacerda
Hernani Gomes da Costa
Desejo
expressar aqui toda a minha satisfação pela recente leitura que fiz d’O momento comtiano, elaborado pelo meu
amigo Gustavo Biscaia de Lacerda (e por ele defendido inicialmente como tese de
doutorado há uma década) em 2010.
Se
algum valor especial deve-se dar aos comentários de quem por cinco anos
realizou as conferências dominicais no Templo da Humanidade (e de quem por 14
anos – desde 1986 até 2000 – envolveu-se nas alegrias e sobretudo nos
dissabores daqueles que vieram a ser os últimos anos de vida do movimento
positivista no Rio de Janeiro) então, não parecerão deslocados os meus esforços
para, de novo tentar sorrir em gratidão àquilo que eu só posso chamar de um
verdadeiro ACONTECIMENTO.
Com
efeito, por tudo quanto me foi dado compreender do ideário político do
positivismo, eu penso que seja a partir dessa obra, que o exame de tal programa
alcançou enfim – entre nós e no resto do mundo – sua plena maturidade; com toda
a liberdade e responsabilidade que tal maturidade encerra.
Ela
alcançará, estou certo, um merecido lugar de destaque junto às seletas
produções intelectuais que, embora vindas do meio acadêmico e a ele destinadas,
obtiveram pela força irresistível de seu encanto, de sua verdade, de sua
utilidade – e mesmo de sua incidental beleza – um destino bem maior que o
comportável por aquelas estreitas e, por vezes, tão mesquinhas fronteiras.
Eu
diria mesmo que tornou-se hoje IMPOSSÍVEL realizar-se um exame vasto e profundo
da TOTALIDADE das concepções políticas do fundador da sociologia[1]
sem uma longa estadia em suas páginas. Mais do que uma obra de referência ela
se firmará, pois, como uma sorte de crivo para discernir – dentre a nova safra
de comentadores do positivismo – os honestos e competentes, dos que não o são.
E a julgar pela felicidade com que o autor soube esgotar seu tema, eu
acrescentaria que ele conseguiu – decerto sem o desejar e disso suspeitar – não
só tornar por muito tempo desnecessárias quaisquer outras produções que no
mesmo sentido ainda venham a ser tentadas; quanto – ousaria dizê-lo – permitir
ao leitor dispensar-se (se assim o desejar) de um contato direto com a grande
obra sociológica de Comte, ao menos para tudo quanto refira-se especificamente
aos ideais políticos do positivismo.
Até
aqui, os comentários sobre as idéias de Comte padeceram sob o jugo de dois
graves estorvos: considerando-se que sua obra capital (A Política Positiva)
ainda não existe em português, os pretendentes a comentadores que não dominam
seu idioma original (mas que ainda assim insistem em tomar o positivismo como
alvo de suas especulações) acabarão cedo ou tarde frente a um dilema. Ou eles
necessitarão buscar como fontes primárias, textos que por sua ortodoxia estejam
a salvo de qualquer suspeita quanto a não espelharem o mais fielmente os reais
pontos de vista de Comte – e então NÃO HAVERÁ ALTERNATIVA senão destilarem – das
mais de quinhentas publicações do Apostolado Positivista do Brasil – a quintessência
da doutrina; ou, então – se renunciarem a isto – precisarão adentrar, sem muito
critério e mesmo sem maiores escrúpulos, num verdadeiro dédalo (por vezes
sedutor, diga-se) de sinopses superficiais, condenatórias e truncadas, vindas
das mais variadas linhas de pensamento, e de autores que estiveram bem longe de
VIVER tudo quanto pretenderam criticar. Perdidos nesse labirinto e embriagados
pelos muitos brilhos, matizes e contrastes de tais obras, os estudiosos não
disporão de outro meio de se situar, senão guiando seu caminho por entre
aquelas ditas “mais consagradas” o que, na verdade, seria o pior que poderiam
fazer: longe de constituírem-se no que há de mais seguro sobre a vida e os
escritos de Comte, elas costumam representar apenas um farto e desconexo lote
de preconceitos e de mal entendidos a partir dos quais seus autores lançam-se a
arrojadas extrapolações tanto mais desembaraçadas quanto mais inconsequentes, o
que (além das graças naturais de um estilo brilhante) é tudo quanto basta para
erguerem-se mais alto que suas congêneres mais modestas e menos desonestas.
Mas
antes que me acusem de “vitimizar” o positivismo frente ao julgamento desses
intérpretes oficiais do pensamento universal, apresso-me em dizer que tal
situação não se restringe às idéias comtianas. Longe disso, confusões dessa
natureza parecem ferir em maior ou menor grau a todos os filósofos, muito
particularmente aos criadores de grandes sistemas largamente fundamentados em
informações históricas e em fatos colhidos das ciências naturais. Assim, por
exemplo (e apenas para citar um antagonista – igualmente sistemático – de
Comte) eu estou certo de que a recente edição em cinquenta volumes, da obra
completa de Marx haverá de deslindar outras tantas distorções semelhantes às
ocorridas com o positivismo; distorções que não raro determinaram o pesado
fardo de adesões a este (e ao materialismo dialético) por motivos opostos aos
de tudo quanto uma e outra destas duas doutrinas sempre se propuseram como mais
fundamental; e tendo como implicação direta disto a aproximação maciça a elas,
de pessoas que apenas vieram desmentir na prática seus princípios em nome
deles, e tanto mais, quanto mais prontificaram-se em louvá-los, justificá-los e
aplicá-los à vida. Esta me parece, sobretudo hoje, uma dificuldade grave e
generalizada; que inclusive ameaça abalar a estrutura do próprio ensino da
filosofia, da história, da sociologia e da psicologia como um todo; dificuldade
que tanto mais se aprofunda quanto mais fácil torna-se em aparência a
comunicação humana, mediante os recursos que a internet quase nos obriga a utilizar.
Acrescente-se
que a opção por comentar uma obra tomando-se por matéria-prima outros
comentários (ao invés dos textos do próprio autor) não se deve apenas àqueles
inconvenientes citados, mas a certos hábitos intelectuais que, por assim dizer,
imperam no mundo acadêmico os quais persistiriam mesmo se todas as facilidades
ao acesso dos textos originais lhes fossem oferecidas[2].
Chegamos
até a pensar que não se deseja nunca aí, a que nós leitores fiquemos em
igualdade de condições com os comentadores; e que, bem ao contrário, eles fazem
de tudo para deixar claro o quanto julgam-se dispensados de nos fornecer os
mais amplos trechos de suas vítimas, em abono ao que contra elas nos mostram
como peças de acusação. E tudo quanto, na falta disso, nos oferecem por magra
indenização é apenas uma fastidiosa bibliografia (que a rigor poderia
desdobrar-se indefinidamente não nos dando, aliás, segurança alguma de haver
sido lida) na qual as obras do autor apenas mereceram, quando muito, o duvidoso
privilégio de aí constarem à parte e em primeiro lugar. Eis como é que a
leitura de um comentário acadêmico vem se tornando cada vez mais o exercício de
uma fé tão ingênua quanto mal investida.
E
se completarmos esse quadro com o fato de que a tendência aí é a de só
depositar confiança, e a de só creditar imparcialidade a opiniões oferecidas
sob uma ótica desfavorável, teremos compreendido como foi que tantos trabalhos
sem o menor valor teórico puderam impunemente ganhar fama e mesmo um número
maior de edições que a própria obra original que souberam explorar, conquanto
apresentassem críticas que um mero cotejo com estas tê-las-ia inutilizado. Tal
é (para citar um exemplo típico disso que entre nós se tornou quase um gênero
de literatura filosófica) um dos mais detestáveis livrecos já escritos sobre (?)
as doutrinas comtianas e que consta de nada menos de dez edições: o volume 72
da coleção Primeiros Passos O que é o
Positivismo, de João Ribeiro Jr.
Ora,
da mesma forma como procedemos quando nos vemos acusados injustamente (quando
então de pronto cobramos pelas devidas comprovações do que nos está sendo
imputado) deveríamos também agir requerendo e mesmo EXIGINDO de um comentarista
filosófico as provas cabais do que afirma; sob pena de cairmos vítimas (ou de
nos entretermos) com calúnias. E que outra evidência maior poderia haver, nesse
sentido, que uma boa coleção de trechos do próprio autor cujo pensamento se
intenta apresentar? E como não ver como incompleto (para dizer o mínimo) um
exame sem o próprio objeto do que é examinado?
No
entanto, parece que a lógica torna-se bem outra quando o caso não nos toca
diretamente e quando aquelas afirmações gratuitas são de uma natureza mais
intelectual que moral: desde que não nos sejam oferecidas no calor das
discussões (mas sob a distante e respeitável forma de livros, teses e
comentários) e desde que os autores já tenham há muito falecido (como é o caso
da maioria daqueles sobre os quais a crítica acadêmica recai) não podendo
reivindicar direito algum de resposta, mesmo judicial; então não há limites à
covardia, tudo torna-se válido e o crime perfeito. Descortina-se o campo da
boataria inteiramente livre e desimpedido como em nenhum outro setor[3].
Eu
devi insistir tanto sobre esse único ponto, tendo em vista que uma das
diferenças mais flagrantes a quem apenas folheie O momento comtiano é o grande número de citações que o autor faz ao
filósofo[4]
fora e dentro do texto. Não há praticamente uma só página onde, para nosso
conforto e segurança, não sejamos brindados com elas. Ora, se APENAS nesse
único bom exemplo – se apenas nessa única lição – pudesse residir todo o legado
desta obra, somente isso bastaria para muito elevar-se o nível geral dos textos
acadêmicos no Brasil.
Aliás,
com a exceção de um trabalho de natureza introdutória – A república positivista– do meu amigo Arthur Virmond de Lacerda; O momento comtiano, insisto, oferece
COMO NENHUMA OUTRA obra sobre o ideário político de Comte essa preciosa garantia
teórica: a de não haver JAMAIS resvalado em concluir algo que já não estivesse
contido na generosa coleção de passagens do filósofo, num constante e tocante
escrúpulo a que ambos os autores ativeram-se, a fim de não trair o pensamento
de seu mestre comum, aplicando – já à elaboração mesma dos textos – a máxima
positivista de que “todo progresso é o desenvolvimento da ordem correspondente”.
Ora, são estas constantes citações que revestem – tanto O momento comtiano quanto (o que acabou por se tornar o seu natural
prelúdio) A república positivista – dessa
autoridade única; impossível, aliás, sob quaisquer outras circunstâncias.
Mas
eu não devo limitar-me apenas ao impacto d’O
momento comtiano junto ao mundo letrado. Se como exposição geral e teórica
ele já se faz oportuno; são, por outro lado, esses nossos tempos nada comtianos
que o tornaram, por assim dizer, indispensável. E se a exigência dos espíritos
preocupados com os destinos humanos deve incliná-los a uma especial atenção aos
grandes quadros de referência concebidos para o entendimento dos fenômenos
sociais (e se é, inclusive, por conta dessas angústias, que devemos a invasão
por vezes irritante às prateleiras das livrarias, de uma avalanche de todo tipo
de obras de discussão político-ideológica) O
momento comtiano oferecerá para além daqueles quadros teóricos mais
difundidos – mas sempre como consequência da consistente adoção de UM deles – e
para além daquelas apreensões e daquele caos de opiniões desencontradas; uma
singular, enérgica e otimista resposta frente a urgências práticas de toda
sorte.
Com
estas páginas, o Brasil acha-se, enfim, munido de um instrumento (quase ia
dizendo de uma arma) com a qual tornamo-nos capazes de entrar na arena desses
confusos debates, confiantes do sucesso junto à tarefa tornada imperiosa de
apresentar o positivismo pelo que ele verdadeiramente é; e COM ISSO desnudar
todo o cinismo de um governo que profana as cores e a divisa da bandeira
nacional até pervertê-las no seu exato inverso, invocando-as como se estas pudessem
representar – ou ter alguma vez representado – uma espécie de subliminar
convite à tirania.
Ora,
se como eu espero, O momento comtiano
alcançar a tempo todo o sucesso que merece (o que dependerá apenas de uma boa
difusão) isso determinará inclusive a que esses fascistas vejam-se forçados
doravante a combater o positivismo comtiano com uma ferocidade igual – senão
maior – àquela com a qual dedicam-se a combater o que confusamente denominam “comunismo”,
para maior honra de ambos os sistemas. Nós veremos então, como é que estes
mesmos fascistas que tão camaleonicamente travestem-se de verde-e-amarelo e
cujos discursos estão sempre tão transbordantes de “ordem e progresso”
ver-se-ão forçados – tão logo sintam-se seguros de sua ALIANÇA PELO BRASIL – a
arrancar da bandeira aquele lema, em prol de algum malsoante dístico teológico
de última hora, ou mesmo de algum versículo bíblico ostensivamente teocrático;
coisa que (eu não duvidaria) talvez já conste de um dos secretos itens da pauta
desse “novo” partido.
Mas
se uma obra tão inocente como O momento
comtiano (inocente no sentido de não haver sido concebida para fins de
polêmica) pode nos servir de modo tão eficaz como meio de luta, isso é algo a
que devemos atribuir antes de tudo à sua natural universalidade. De fato,
dentre seus muitos méritos paralelos, está o de nos oferecer a mais completa
relação dos erros até hoje já alinhados contra o positivismo. Ora, são
exatamente esses erros que, uma vez trazidos à luz e destruídos, desfazem de
vez qualquer tentativa ignorante ou malévola de ressuscitar a falsa afinidade e
o falso vínculo que se forjou entre o golpe de 1964 e o positivismo. Decerto O momento comtiano haverá de complicar
bastante o ofício de todos que ainda imputam ao ideário comtiano o desastre
político em que chafurdamos, o qual segundo nos querem fazer crer, não passaria
de um híbrido teratológico entre o oportunismo evangélico da criatura que hoje
habita o Palácio do Planalto – última dejeção gestada por aquele golpe – com o
positivismo, representado iconograficamente pelas cores e pelo lema sociológico
inscrito na bandeira nacional.
Assim,
O momento comtiano é essa obra por
excelência que nos ajudará como povo, a arrancar o véu verde-e-amarelo desse
tenebroso personagem e de seu séquito, a fim de revelar quais são as suas
verdadeiras cores, que aliás ninguém – talvez, no fundo, nem eles mesmos – saibam.
O momento comtiano auxiliará pois, não só a
aprofundarem-se as opiniões dos simpatizantes da doutrina positivista (e dos
que desejam estuda-la a sério) como a robustecer os ideais de todos que, fora
dela, prezam a justiça histórica, a liberdade de ensino, as liberdades civis e
de expressão, a laicidade do estado, a transparência da administração da coisa
pública, a defesa das tradições, crenças, cultura e territórios indígenas, o
internacionalismo, a fraternidade inter-racial, o congraçamento universal de
todas as pátrias em torno da Humanidade (ao invés do “Brasil Acima de Tudo”,
simples transposição do Deutschland Über
Alles) a igualdade de oportunidades, a condenação do trabalho infantil e
juvenil; dentre tantas outras grandes causas – todas, diga-se, tornadas em
tempo real, tema de intervenção dos apóstolos positivistas Miguel Lemos e
Teixeira Mendes – e todas, agora, sistematicamente afrontadas e ameaçadas pelo
atual governo fascista.
Tendo
sido vista a importância teórica e prática d’O momento comtiano, cumpre ainda uma última observação antes de
comentarmos O momento comtiano
capítulo a capítulo.
Será
preciso agora tentar compreender as razões e o significado de não haver
disposto o Brasil, até aqui, de textos dessa envergadura, embora a carência por
algo assim já devesse ter sido sentida há muito. De fato, como entender essa
lacuna, decerto involuntária, que acabou por se tornar desde a morte de Teixeira
Mendes em 1927, um longo mutismo?
Penso
que seria preciso ir buscar as raízes de tal fenômeno no próprio perfil
psicológico de uma organização religiosa, e nas dificuldades especiais que
estas encontram diante do NOVO, ou mesmo do simplesmente DIFERENTE.
Lembremo-nos
que nem Miguel Lemos nem Teixeira Mendes desejaram realizar nada além de
simples comentários episódicos sobre a doutrina que professavam. Tudo quanto
propuseram-se a oferecer por escrito, resumiu-se a tentativas de aplicá-la (sem
criticá-la ou mesmo aperfeiçoá-la) como articulistas atentos que eram da
realidade nacional; ilustrando-a com fatos de seu próprio tempo e lugar
considerados como de maior peso e repercussão social e política.
Outrossim,
o que eles desejaram ACIMA DE TUDO com isso, foi estimular a que seus leitores
voltassem suas atenções PARA A OBRA DE COMTE; obra que então, diga-se, ainda
conseguia corresponder a algo mais legível do que hoje, quer devido às
peculiaridades do estilo do filósofo (tornado cada vez mais distante daquele
que acabou prevalecendo) quer à então maior popularidade da língua francesa
entre nós.
Foi
assim que – bem ou mal a propósito – os apóstolos decidiram-se POR PRINCÍPIO a
evitar audaciosas expedições teóricas, na forma de longas TESES ou TRATADOS; coisa
que seria, segundo criam, a usurpação de um trabalho genuinamente reservado aos
efetivos críticos e aperfeiçoadores da doutrina (os sacerdotes da Humanidade).
Duas únicas exceções a isso foram a Filosofia
Química e as Últimas Concepções de
Augusto Comte, ambas de autoria de Teixeira Mendes, correspondendo às duas
únicas ocasiões em que optou-se por aquilo que, tornado frequente, teria de
fato correspondido a uma verdadeira “tentação” a ser religiosamente evitada...
Tentação a qual o meu amigo Gustavo teve o bom senso de sucumbir...
Assim
quando os apóstolos faleceram, tudo quanto restou à Igreja além do vazio pela
perda de dois dedicadíssimos propagadores, foi de um lado, uma tentativa
canhestra de manter aquela tradição em apenas compor pequenos folhetos de
ocasião e, de outro, uma espécie de preconceito contra quem sonhasse mais alto:
“se NEM MESMO os apóstolos julgaram-se capazes de escrever tratados
sociológicos... que diremos nós”...
Mas
apesar de todo o virulento contágio com o qual aqueles limites auto impostos
por Lemos e Mendes acabaram por involuntariamente paralisar a produção teórica
de todo o grêmio da igreja, pode-se dizer que há mais aparência que verdade na
afirmação de que jamais houve um tratado sociológico positivista entre nós: de fato,
se rastrearmos com paciência o conjunto daquela vasta coleção apostólica
decerto reaveremos (e mesmo recomporemos) a totalidade das teorias políticas do
positivismo, representadas de pleno, e em seu mais puro estado; coisa que,
porém, não se obterá jamais a não ser como o prêmio de contínuos, complicados e
demorados esforços; aqueles mesmos, diga-se, que o PRIMEIRO TRATADO BRASILEIRO
DE SOCIOLOCIA POSITIVA, o nosso MO(NU)MENTO COMTIANO vem hoje (afinal!) tornar
inúteis...
Isto
posto, passemos agora ao exame detido de cada um de seus capítulos.
(Continua.)
[1] Há uma crítica renitente,
injusta e no fundo tola segundo a qual Comte não teria fundado a Sociologia
porque não teria feito pesquisas sociológicas... evidentemente, para nós, isso
é tolo, mas o que está subjacente é que Comte não teria feito pesquisa “com
pranchetinha”, surveys. Ora, bastaria
que se lesse os volumes 4 a 6 do Sistema
de filosofia positiva ou 2 e 3 do Sistema
de política positiva para saber-se o quanto isso é tolo; mas, ainda assim,
esse preconceito existe e é largamente difundido. Uma caracterização (sem
maiores esclarecimentos) de Comte como o criador de um sistema “abstrato”
subrepticiamente pareceria apoiar essa tolice.
[2] Entre esses hábitos temos o
excessivo espírito de detalhe e a cisão entre “científico” e “empírico”, de um
lado, e o “filosófico” e “abstrato”, de outro. Ora, em Comte científico e
empírico andam de mãos dadas com o filosófico e o abstrato, sem que seu sistema
recaia em um desprezível “empiricismo”. Essa é, aliás, uma das suas principais
características que o distanciam do academicismo e o tornam tão estranho aos hábitos
acadêmicos. Quanto ao excessivo espírito de detalhe, vale notar que a
Sociologia de Comte é a ciência geral da
sociedade; as divisões acadêmicas atuais, tão sofregamente buscadas, entre
Sociologia da Religião, da Política, Política, da Linguagem, histórica,
institucional etc. etc. etc., além da Antropologia (vista como ciência à parte
da Sociologia!) e da Ciência Política (vista como se tivesse existência
autônoma em relação à Sociologia!) – todas essas divisões são vistas exatamente
como divisões, em que o espírito
analítico desenvolve-se sem freios e em que o caráter ao mesmo tempo social e
histórico do ser humano perde-se radicalmente. A falta de eficácia social da
Sociologia, entendida como ciência geral da sociedade, deve-se, aliás, em larga
medida à sua fragmentação, à ciosa divisão acadêmica em dezenas de
especializações. Desenvolvida por esse mesmo espírito analítico encontra-se
também a Ciência Política cindida em “Ciência Política”, destinada à política
interna, e “Relações Internacionais”, dedicada à política internacional. Aí é
necessário criar modelos que consigam restabelecer a unidade da política e da
sociedade, entre os âmbitos interno e externo. Ora, isso foi exatamente essa
cisão o que Comte procurou evitar.
[3] Começamos mesmo a ver hoje, no cenário
das discussões políticas, o reflexo direto de tal situação. Na prática a
boataria filosófica e seus verdadeiros institutos para a produção e
desenvolvimento de fofocas oficiais tornaram-se hoje um problema insolúvel. O
contra-ataque a essas forças tão rápidas e numerosas exigiria não só um
contingente semelhante de defensores, como o uso de estratégias eticamente
questionáveis. À era dos falsos argumentos, representados pelos antigos
sofistas, sucede-se hoje a era ainda mais odiosa e estúpida dos falsos fatos
representados por robôs replicantes de Fake
News.
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