No dia 28 de Carlos Magno de 169 (15.7.2023), no curso do evento I Ciclo de Palestras do Centro Positivista do Lavradio - que, alías, marcou a inauguração da instituição -, nosso amigo Hernani Gomes da Costa proferiu a conferência "A bandeira nacional - mitos e verdades".
Para auxiliar a divulgação dessa interessantíssima, densa e profunda conferência, reproduzimos abaixo o texto lido por Hernani na ocasião.
* * *
A Bandeira Nacional: Verdades e Mitos
Hernani Gomes
da Costa
Caras irmãs e irmãos na Humanidade:
Uma prédica sistemática sobre a teoria positiva das
bandeiras – sim, creiam, isso existe! – deveria incluir muitos e variados
aspectos que nos levariam a assuntos por vezes afastados de nossos objetivos
mais diretos; até que só ao fim da exposição, fosse-nos possível mostrar para
onde tais elementos haveriam de confluir, bem como a importância do conjunto
total daquelas informações.
Ao invés disso selecionamos apenas um único e grande
tópico, justamente o que nos pareceu o mais grave, à vista das atuais circunstâncias
políticas e sociais de nosso país e mesmo do mundo.
O desinteresse pelas festividades cívicas – sobretudo
as engendradas pelos nossos diversos governos, parece-nos algo que dispensa
comentários.
Porém as dificuldades de que
padecem hoje tais comemorações não podem continuar ignoradas ou mal
caracterizadas como mera “frivolidade” e “falta de patriotismo” das novas
gerações.
Essas pretendidas lacunas – ousamos
apostar – não existem; haja vista como – bem ou mal a propósito – é nas mobilizações
mais populares que – embora nem sempre de modo salutar – vemos a marcante
presença dos símbolos nacionais erguerem-se e serem invocados (ou mesmo
imolados) em auxílio das mais variadas reivindicações.
Boa parte da responsabilidade por aquele desinteresse
deve antes caber a uma insuficiência cultual característica e mesmo inerente a
tudo quanto nesse sentido possa oferecer um governo temporal qualquer.
Investigaremos quais são os fatores associáveis a
isso, a fim de que tal interesse não se perca irremediavelmente, ou, o que
talvez ainda seja pior, torne-se tal gostosura cívica restrita justo àquelas
pessoas e grupos que menos saberiam fruir de sua pacífica sentimentalidade.
No fundo as cerimônias ditas oficiais em louvor à
bandeira realizaram-se sempre sob o peso de um dilema cujas tentativas de
solução jamais chegaram a compor uma idéia nítida que guiasse governantes e
governados ao que seria um real e inovador experimento estético que conviesse e
interessasse diretamente a ambos.
Com efeito, das duas uma: ou os símbolos máximos a que
tais festas se referem tornam-se usurpados pela camarilha do partido hegemônico
do momento (e então o que deveria corresponder a uma cerimônia de todos, com
todos e para todos, perverte-se numa panfletagem partidária ou classista) ou
então ao invés, o governo haverá de empregar seus maiores escrúpulos no sentido
de evitar tal situação, tudo porém às custas de diluir a presença do símbolo
máximo da pátria, mesclando-o a um sem-número de outros, e assim descaracterizando
(quase até o limite do irreconhecível) uma cerimônia que deveria, ao invés,
poder concentrar as nossas emoções, já a partir da concentração do nosso
próprio olhar sobre um alvo único.
É a tais insuficiências que nós associamos isso que
obriga aos diversos governos, a manterem suas festividades confinadas a
retrógrados ou, (na menos ruim das hipóteses) a inócuos limites determinados
por simples lembranças mais ou menos vagas de episódios da história nacional,
carregadas em cores militarescas e teológicas.
E é também a insuficiências como estas que nós devemos
a tão freqüente e sinistra associação da idéia de pátria a uma ruminação
ufanista que faz parecer óbvio que uma pátria – coincidentemente sempre a nossa
– só possa ser bem comemorada quando nós a consideramos acima das demais; ainda
que apenas por suas belezas naturais, ou seja segundo a fórmula de um
nacionalismo que quando não completado e retificado pela voz ainda maior do
culto à Humanidade, jamais chega a extrair dos fatos em que se pretende
baseá-lo, o que seriam os mais preciosos sentimentos e as mais exemplares
lições que de outro modo comportariam, tais como sejam a própria glorificação
dessa mesma Humanidade, e o prognóstico (ou ao menos os anseios) de um futuro
mais feliz para Ela.
É dessa forma também que tais
cerimônias – aliás sempre tão cômodas, – acabam muito facilmente transformando
os marcos do passado em um conteúdo congelado no tempo, numa história sem
ligação com o presente e incapaz de nos apontar o futuro.
Enfim, é mediante a coleta de um punhado de
informações terceirizadas, cuja busca torna-se cada vez mais fácil em virtude
da sempre crescente acessibilidade tecnológica; que se obtém por fim o
resultado de poderem-se reunir e fixar de uma vez aqueles mesmos apanhados, que
haverão, a partir daí, de reproduzirem-se maquinalmente, perpetuando erros
consagrados e fazendo variar a expressão deles apenas a tal ou qual pormenor de
forma.
Em suma, tais cerimônias acabam funcionando ou como
aulas banais revestidas de um certo espírito de festividade difusa, ou ao
contrário como verdadeiras festividades plenamente caracterizáveis, mas que ao
invés de instrutivas tornam-se opressivamente sectárias em tudo quanto
pretendem ensinar.
Notemos ainda, que o problema não é menor quer tais
festas concentrem-se na homenagem a algum indivíduo e a algum grupo social,
quer realizem-se abstratamente, isto é, por intermédio da bandeira propriamente
dita.
Tanto num caso como noutro o
verdadeiro objetivo deve continuar sendo sempre único e o mesmo, assim como
idênticos tornam-se também os problemas de se compor um tipo de comemoração que
prepare-nos e nos predisponha ao transbordamento dos nossos melhores afetos, e
apenas destes num espírito de universalidade e de simplicidade que deve poder
convir a ambos os sexos, a cada gênero, e mesmo a todas as idades.
Ora, o positivismo encontra-se, já por sua definição,
livre de incorrer naqueles dois inconvenientes.
Por um lado, os aspectos
históricos ou seja a co-memoração – a lembrança em comum da pátria e portanto
da bandeira – não pode nem fechar-se nunca sobre si mesma; nem tampouco
evanescer.
Deve apenas formar um
preâmbulo funcional – não muito longo, aliás.
E este mesmo, logo exorbitaria
de suas legítimas atribuições, assim que buscasse dominar por qualquer forma o
evento inteiro, ao invés de apenas nos preparar para o momento seguinte da
cerimônia.
Isso não é um mero detalhe da estrutura de nosso
culto, isso radica diretamente no próprio ideal de Humanidade que defendemos.
Nós não queremos nenhuma
pátria soberana, mas uma única Humanidade suprema.
Assim, apenas essa
circunstância já se pode indicar o quanto o culto à bandeira, no positivismo,
deve destoar radicalmente de tudo quanto até aqui se tentou nesse sentido.
Um culto a uma pátria soberana ou mesmo um culto
exclusivo a ela, fatalmente nos haveria de entravar, confundir e amesquinhar as
nossas emoções, ao invés de conduzi-las naturalmente ao que precisa ser hoje o
seu destino final, a saber o de erguer-nos até à sublimada apoteose de um amor
à Humanidade, amor que por ser o único universal, trespassa radicalmente todas
as fronteiras.
Tal deve ser o arremate
necessário de todo esforço cultual que se pretenda a altura das exigências
modernas.
Não existe, a nosso ver, nenhum verdadeiro culto à
pátria que não precise ser, o quanto antes, completado logo pelo culto à
Humanidade; e, a não ser possível efetuar-se, por qualquer motivo, tal
complemento indispensável; melhor seria, no fundo, que jamais ninguém houvesse
pensado em realizar culto algum desse tipo.
Nada do que não nos possa
conduzir diretamente a esse amor final que se deve apenas à Humanidade, pode
jamais considerar-se como uma efetiva cerimônia sociolátrica.
Fora desse propósito capital, que consiste em nos
conduzir a esse amor maior, tais cerimônias, por mais bem intencionadas e por
mais pomposamente organizadas que sejam, terão malogrado inteiramente em seus
princípios afetivos, em suas justificativas lógicas e em suas finalidades
práticas.
Em suma, se esse pretendido
culto à bandeira não nos puder levar – e elevar – acima de todas as bandeiras
nacionais e inclusive da nossa própria, terá falhado em sua principal – e mesmo
no fundo em sua única missão social e moral – e ter-nos-á feito mais mal do que
bem.
Boicotemos pois, a nossa presença, como já o sugeria
há tantos anos o próprio autor da bandeira nacional e vice-diretor do
Apostolado Positivista do Brasil, Raimundo Teixeira Mendes – a essas atrasadas
cerimônias militaristas como as da chamada “parada de sete de setembro”.
Tomemos a esses eventos como parte do que já se compreende como apologia ao
crime; onde a violência recebe das mãos da oficialidade e mesmo do clero,
honras e bênçãos que hoje só podem ser devidas à colaboração e à fraternidade
de todos os povos da Terra.
Pois é na glória do amor à Humanidade, único
plenamente generoso, que deverá residir o momento supremo a assinalar o sucesso
de uma autêntica e portanto inconfundível festa positivista, ou por outra, é em
tudo quanto acaso seja capaz de realizar isso, que haverá de corresponder
espontaneamente a um culto que emparelha-se sem o saber – e no que ele tem de
mais essencial – ao nosso.
A tal momento todo especial, o positivismo denomina
efusão.
É nele que depositamos,
expressamos e desenvolvemos as nossas maiores esperanças no sentido de
fomentar, retemperar e reavivar o altruísmo, ou seja nossos instintos sociais
de amizade, de veneração e de bondade; justamente aqueles sentimentos que
formam a Humanidade, e que as vicissitudes do dia a dia tantas vezes tende a
nos atrofiar os seus correspondentes órgãos cerebrais e a amortecer-lhes as
funções.
Em nossos antigos esforços apostólicos tivemos muitas
vezes o gratíssimo privilégio de ao menos tentar realizar – no saudoso templo
da única religião que comporta diretamente festas como estas – tais
manifestações de culto cívico.
* * *
Mas, o que temos a oferecer a vocês dessa vez, ainda
não é o que seria uma oportuna e necessária amostra disso; não decerto, por
julgarmos que esse sugestivo e belo ambiente em que nos encontramos e que tão
carinhosamente nos acolheu e reuniu, não o pudesse comportar.
Longe disso.
O caso é que; o que temos a dizer hoje, embora guarde
estrita relação com a exaltação da imagem querida da nossa bandeira, é algo que
corresponde infelizmente a uma outra necessidade.
A apreciação que haveremos de
fazer dela, dar-se-á sob outro ângulo, dessa vez como numa advertência, e sob o
signo, portanto, de uma grave preocupação pessoal.
Outrora em nossos ensaios cultuais, tínhamos em vista
sobretudo enaltecer a bandeira pelo que ela pudesse nos representar de
generoso.
Hoje, porém dadas, como
dissemos, as circunstâncias, julgamos chegada a hora de sublinhar o que a
glorificação de uma bandeira – de QUALQUER bandeira – também possa comportar de
problemático e mesmo de funesto.
Aliás, o que temos em conta oferecer aqui é, antes de
tudo, uma pergunta; e uma pergunta que talvez soe despropositada a um auditório
adulto e instruído:
O que é, afinal, uma bandeira?
Por menos que pareça veremos como é do desdobramento
de tal questão que ser-nos-ão revelados alguns aspectos inusitados e mesmo
sutis do nosso assunto.
Aliás nenhuma afirmação
consegue ser tão óbvia – e nem impressão alguma tão evidente – que algo de
importante, delas não nos possa escapar.
E é justamente nos meandros
oclusos dessas obviedades que escondem-se grandes surpresas, aquelas mesmas que
uma vez reconhecidas nos trazem a desagradável mas sempre instrutiva sensação
de havermo-nos deixado entreter ou enganar; tanto, desnecessariamente e por tão
pouco.
Julgamos que a falta de tais reflexões venha
contribuindo para subverter o bom uso que se possa dar às bandeiras
transformando-as, por assim dizer, no contrário de tudo que precisam sempre e
garantidamente continuar representando, se não quisermos vê-las degenerarem-se
em outros tantos símbolos odiosos de opressão, confusão, medo e ressentimento.
Afinal nunca o mundo esteve tão repleto – e por que
não dizer, tão sobrecarregado – de todo tipo de bandeiras.
Dir-se-ia até, que começa já a
faltar cores suficientes para todas elas e ainda; que quanto menor for a nossa
capacidade de reconhecer e de bem nos servirmos daquelas que já temos, maior
torna-se-nos a necessidade de adotar mais uma.
Advertir quanto ao que possa
estar significando tudo isso e assinalar em tempo real quais sejam esses
perigos, é o que afigura-se-nos enfim, como uma tarefa que cabe à própria
filosofia – e em particular a uma filosofia que se pretenda positiva – fazer.
O que é uma bandeira?
Parece que todos nós temos uma resposta bem óbvia e
imediata a tal pergunta.
A primeira delas apelará a uma
identificação que invoca o aspecto físico comum a todas: uma bandeira consiste
num pedaço de pano, em geral retangular, fixado num de seus lados a um longo
cilindro, em geral de madeira ou metal.
Essa definição decerto basta
aos limites segundo os quais algo possa ser caracterizado como um objeto
material, para em seguida compará-lo sob esse mesmo critério, a outros de
aspecto mais ou menos semelhante.
Mas limites como estes
circunscreveriam demais o nosso conceito de bandeira: um lenço sujo, por
exemplo, pode ser levado pela ventania até fixar-se por puro acaso a uma haste
ou poste, e isso não transformará tal conjunto numa bandeira, por mais que pudesse
convir a certas idéias ou indivíduos.
Um pequeno parêntesis: queremos lembrar que foi
preciso o advento da informática para que começássemos a adotar esse belo
hábito mental de separar, de um modo mais acurado, o que deve ser tomado como o
“físico” e como o “lógico” numa apreciação qualquer, faltando agora fazer
entrar nessa mesma sistematização abstrata, exclusivamente o fator moral.
Referimo-nos às duas alcunhas
que a nossa proverbial subserviência aos Estados Unidos nos fez importar como
“hardware” e “software” respectivamente.
Referidas tais expressões
primeiro aos computadores, e daí, por extensão, a todas as demais coisas e
circunstâncias; a indispensável separação que esses dois conceitos sugerem
tendeu a nos tornar hoje filosoficamente mais hábeis em entender um pouco mais
a fundo as operações – até então obscuras, fora do positivismo – que consistem
em se conseguir separar os aspectos material e imaterial de uma questão, para
em seguida melhor podermos articulá-los um com o outro, sem que com isso nem o
material venha a imperar absoluto aí – como se tudo sempre pudesse ou devesse
reduzir-se ao físico – e sem que o lógico fosse concebido como alguma espécie
de entidade mística e fugidia, que de algum modo habitasse o interior daquela
casca material, furtando-se porém a qualquer possibilidade de observação, de
compreensão e de intervenção nossa.
Tanto no que se refere a um computador, quanto a uma
bandeira, talvez não haja melhor forma de bem caracterizar o teor daquela
divisão, do que pela piada que define “hardware” como tudo aquilo que você
quebra, e como “software”, tudo aquilo que você xinga.
Existem portanto, a considerar, sempre o que sejam –
por um lado – os elementos físicos que definem uma bandeira e, por outro,
aqueles elementos não físicos, elementos esses que, como veremos, assumem aí
como na maioria dos casos, uma relevância maior para a solução dos mais
importantes problemas a que se tenha em conta resolver na vida.
Fecho aqui o parêntesis.
Dirão, então, alguns outros, que bandeiras devem ser
definidas como símbolos usados para identificar nacionalidades, instituições
etc. frente a outras, de modo a que não sejam confundidas.
Sem dúvida, tal definição corresponde já a um
extraordinário avanço em relação à anterior, oferecendo-lhe por complemento
nada menos do que um primeiro esboço daquela nova e indispensável dimensão não
física, que nos faltava para bem caracterizá-las.
As bandeiras realmente devem
cumprir tal propósito.
Mas com que extensão o fazem e o podem fazer?
E se não o fazem, o que as
estaria ainda impedindo?
Eis aí apenas duas das muitas
questões que a simples definição social, política, comercial ou numa palavra –
coletiva – das bandeiras não é ainda capaz de fornecer.
É justo nesse terreno que
palpitam as diversas dúvidas e questões que temos em mente apresentar.
No mais profundo sentido do
que consistiria essa função de “identificadora de nacionalidades” perguntamos
agora: o que, além de uma bandeira consegue ser – a um só tempo – mais popular
e mais enigmático?
Na idéia de se criar uma bandeira encerra-se o
propósito de simbolizarmos algo, isto é, de transmitir, de traduzir
sinteticamente – sob a forma de imagens – a comunicação indireta de
sentimentos, pensamentos e mesmo de atos; sugeridos então por cores, formas e
eventualmente por palavras, que apenas poderão aludir a eles e à sua
importância real ou suposta para nós.
Uma bandeira é (ou ao menos propõe-se a ser) antes de
tudo, isto: um símbolo.
Mas se todas as bandeiras
configuram-se como símbolos; nem todos os símbolos conseguem ser
indistintamente tão “bandeiráveis” assim; ainda que estampados num pano que
tremulasse no alto de um mastro.
O desenho pintado numa placa
de trânsito, por exemplo (seja, digamos aquele do E maiúsculo de cor preta
cortado por um traço diagonal vermelho e que indica “proibido estacionar”) bem
poderia, também estampar-se num pano retangular erguido num mastro, mas –
convenhamos – seria um tanto quanto forçado designar tal conjunto como “O
Lábaro do Não Estacionamento”.
Além disso; como é o caso da
imagem em questão apenas pretender nos informar a respeito de algo, precisará
estar o mais possível à vista, o que não se obtém com tanto proveito com
bandeiras, ainda que ao sabor das mais continuadas brisas.
Assim temos que não basta às bandeiras servirem-nos
para identificar nações ou instituições, e nem apenas para informar de algo,
sob pena de que, com tal definição, elas se limitem ao papel de meros códigos
para fixar certas indicações ou fazer valer certos direitos frente a uma
burocracia qualquer, seja esta diplomática ou o que mais for.
Donde se conclui que nem o
aspecto físico e nem mesmo o aspecto puramente social e informativo bastam por
si sós ou em conjunto, para dar-nos uma idéia precisa do que é uma bandeira, e
assim do que pode ser tanto a inegável eficácia do seu bom uso, quanto os
perigos que se escondem em seus diversos abusos.
Dirão outros ainda que bandeiras devem servir não
apenas como um código sinóptico, mas como uma expressão artística, poética que
idealiza certa realidade embelezando-a para além de suas inegáveis imperfeições
quer agudas ou crônicas; quer passadas ou mesmo atuais.
Assim, por exemplo, ao nos
representarem a idéia de uma pátria, as bandeiras deveriam servir para nos
fazer prefigurar um futuro ainda não de todo vivido, mas que caberá a cada
pessoa construir paciente e permanentemente, geração após geração.
Acontece porém que consideradas as coisas sob tal
aspecto, as bandeiras não deveriam ser vistas nem como simples espelhos frente
aos quais pudéssemos nos reconhecer por completo, e nem como máscaras
impessoais que encobrindo-nos e falseando-nos os contornos íntimos de nossa
verdadeira identidade, nos conferisse a triste faculdade de reconhecermo-nos exteriormente
uns aos outros apenas por meio de algo cujo sentido maior ignoramos.
Com tais considerações chega-se ao cerne da nossa
questão: à dimensão física e social das bandeiras deve-se agora somar uma
dimensão psicológica. E será então no interior dessa última dimensão, e mais em
especial, no aspecto diretamente afetivo desta, que nós devemos concentrar o
conjunto das nossas atenções.
Quanto mais nos aproximamos de
uma definição que alcance a mais importante e completa de todas as ciências – a
psicologia – mais as bandeiras haverão de se apresentar como esses instrumentos
paradoxais que são: instrumentos que embora muito revelem, velam tudo aquilo
que revelam.
De fato, por elas tornamo-nos o que ainda não sabemos
ser integralmente;
Com elas revestimo-nos de uma
sublimidade emprestada, que não necessariamente nos deixará quaisquer vestígios
quando dela nos despirmos;
Sobre elas inscrevemos nossa
voz, como se tudo quanto pudéssemos jamais dizer de melhor já houvesse sido
registrado e avalizado por seus dísticos, embora o mais essencial sentido deles
nos continue escapando;
Na sinuosa e hipnótica dança
de suas cores e formas, somos por elas tragados, eliciam-se-nos reações
passionais reflexas, mudanças de estado de ânimo inconscientes, imperceptíveis
que, diga-se, cada vez mais os donos do poder vem aprendendo a explorar contra
nós, manipulando-nos sem que ao menos tenha-nos sido possível dar-lhes o mais
elementar consentimento.
Por elas, somos enfim, arrastados à carnificinas
contra quem conhecemos tão pouco quanto às sofisticadas letras dos hinos, que
aprendemos a repetir desde pequenos em nossa doutrinação escolar, numa época em
que ter-nos-ia sido impossível saber, afinal o que é exatamente isso que
precisa ser sentido, quando se está em posição de sentido.
Não é pois de se estranhar que por uma sorte de
fatalidade, as bandeiras encontrem seu povo sempre a meio caminho de bem
compreendê-las, e que sua mensagem assim tornada simplória por esse mesmo povo,
e fora do contexto original que a produziu, preste-se tão facilmente às mais
disparatadas e incompatíveis interpretações.
E se, como é o caso da nossa bandeira, existirem além
de simples cores e formas, também um lema; este não poderá deixar de tornar-se
tanto mais enigmático quanto precisou ser o mais possível sintético, afim de
poder alinhar-se ao caráter sinóptico das imagens que lhes correspondem e que
lhes servirão agora de fundo.
Se o significado mais cabal de uma afirmação ou mesmo
de um único vocábulo isolado não pode ser achado senão no contexto em que se
inscrevem, e se portanto nunca existe completa sinonímia entre as palavras;
mesmo as mais corriqueiras (cão por exemplo jamais consegue ser exatamente o
mesmo que cachorro – ninguém que declare ter um cão de estimação, terá por um
animal como esse a mesma estima que teria se esse cão pudesse ser tomado na
conta de um cachorro) então, tal hiato tenderá a ameaçar a veracidade de
qualquer que seja o uso que se dê às bandeiras, quer quando seja o caso de
cultuá-las, quer mesmo quando fosse o de xingá-las e quebrá-las.
Se tais riscos parecem inevitáveis a quem quer que
julgue útil servir-se delas, o que melhor temos a fazer a fim de premunirmo-nos
contra eles é, antes de tudo, mantermo-nos lúcidos quanto à sua real e
permanente possibilidade.
Um símbolo haverá de estar sempre a mercê de quem dele
houver de se servir.
E um símbolo, quando se
converte em algo de domínio público, já não serve a ninguém mais em particular,
podendo assim oferecer-se inadvertidamente a todos, e para o que quer que seja.
Um dos mais tenebrosos exemplos disso, um dos mais
emblemáticos casos do quão fácil consegue um símbolo rebaixar-se à medida em
que sobe por um mastro, ocorreu à swastika.
Bastou à sanha corruptora de
apenas duas décadas sob o jugo de um partido tal como o nazista, para que fosse
possível enxertar num símbolo ingênuo, de origem essencialmente apolítica, e
cuja criação se perde no tempo; um significado de todo alheio ao de sua real
natureza.
Aquilo que jamais pretendeu
ser senão um dos incontáveis – e de outra forma quase esquecidos – talismãs que
a nossa pobre espécie já criou em vão para proteger-se contra os azares da
vida, transformar-se-ia não só num dos símbolos mais imerecidamente odiados,
quanto – ironicamente – num dos mais aziagos presságios do que pode ocorrer de
pior a uma sociedade.
Deixaremos que cada um aqui reflita sobre o desastre
análogo que por um triz não se reproduziria entre nós, se a bandeira
republicana continuasse por mais tempo sob o cativeiro ideológico dos que a seqüestraram
para fazê-la degenerar – de símbolo nacional independente que é e que sempre
será – num sacrílego e mal disfarçado instrumento para os projetos de poder de
grupos políticos e teocráticos; grupos esses que – não hesitamos em dizer – tão
logo deitassem raízes mais fundas na máquina do estado, encarregar-se-iam de
substituí-lo por algo genuinamente seu, e que assim pudesse traduzir sem
reservas tanto o absurdo de suas bases teóricas quanto a mesquinhez de seus
princípios morais.
A força de um símbolo – aquilo mesmo que nos permite
defini-lo como tal – reside pois, como dissemos, na capacidade de sugerir-nos
tudo, sem nos propôr nada; de instigar a um caminho qualquer, sem no entanto
esclarecer qual seja este; e de insuflar-nos uma vasta série de emoções sem no
entanto nos impelir preferencialmente a nenhuma em particular.
E é por isso mesmo, por este
seu caráter necessariamente vago, e em aparência inocente, que um símbolo acaba
por nos propor, esclarecer e impelir ao que quer que nos venha à cabeça.
Nem é preciso que estes símbolos sejam-nos oferecidos
sob a forma de bandeiras, basta que sejam símbolos; basta que convidem e
legitimem a uma certa interpretação, que cada um se julga sempre capaz de
fazer, considerando haver-lhe encontrado a melhor senão a única mensagem
verdadeira.
John Paul Knowles, por
exemplo, o assassino serial da década de 1970, inspirou-se para cometer seus
numerosos homicídios, numa intrincada interpretação das alegorias da história
de Fernão Capelo Gaivota.
Símbolos são assim – aliás eles precisam ser assim –
capazes de se prestar a nos fazer crer que tudo aquilo que existe apenas em nós
(e que apenas proveio de nós) quer sejam sentimentos quer sejam idéias ou
propensões; projete-se inteiramente sobre eles como se existissem lá fora, como
se emanassem dos próprios símbolos, como se estivessem plasmados, incrustados,
dir-se-ia mesmo materialmente neles.
Parece ser um tanto quanto difícil damo-nos conta do
perigo que reside em que uma imagem nos valha – como se costuma dizer – tão
mais do que mil palavras.
Assim, se pudéssemos resumir aqui numa única sugestão
o que melhor nos defenderia contra tais abusos, talvez consistisse num certo
treinamento que nos habituasse a só nos sentirmos seguros de nossas emoções
quando as que experimentássemos como provenientes da visão, pudessem vir
acompanhadas pelas garantias indispensáveis de palavras esclarecedoras.
No entanto, parece que
tendemos a considerar a hierarquia habitual da visão em nossas avaliações, como
algo sempre no fundo vantajoso por nos poupar tempo e por nos funcionar como
uma espécie de salvaguarda que a natureza nos oferecesse contra os perigos mais
iminentes que ela mesma nos arma.
No entanto se a isca colocada
na ponta do anzol é falsa, então não é de todo exato dizer que o peixe morre
pela boca, e nem muito menos pelo nariz. Na verdade ele morre pela visão.
Seja porém como for, embora
tal confiança maior naquilo que a visão nos provê possa ter se originado de um
exame justo entre o que seria a nossa maior fragilidade física caso nos
faltasse o sentido da luz ao invés daquele que nos habilita a captar sons;
chega-se a extrair falsamente daí, o que não passa de um duvidoso critério,
segundo o qual podemos confiar mais no que nos chega através dos olhos, do que
pelos ouvidos.
Se porém como nos diz Augusto Comte, é a visão o mais
sintético dos nossos sentidos, é a audição, como ele mesmo o completa, aquele
que corresponde ao mais simpático, e que portanto, mais eficazmente nos pode e
nos deve corrigir das ilusões de óptica, aliás sempre mais numerosas e daninhas
que as de audição.
Resgatar o justo papel que
cabe à palavra falada como um antídoto contra a sedução visual, seria pois um
primeiro passo para contrabalançar o que de outro modo pode bem representar o
monopólio ou antes a tirania dos olhos.
Se como disse Saint-Exupéry, o
essencial é invisível aos olhos, cabe a eles então, certa responsabilidade por
tudo quanto nos mantém nesse nível enganador de aparência e de
superficialidade, inclusive emocional.
Deveríamos nos lembrar de que somos em geral bem mais
suscetíveis às lágrimas pela recitação de um poema e pela audição de uma
música, do que pela contemplação de uma pintura, monumento ou obra
arquitetônica.
Subtraia-se a música da dança
e só o que nos restará contemplar mesmo nas melhores coreografias, será uma
pura ginástica acrobática quando não um contorcionismo simiesco; subtraia-se
dos melhores filmes mudos as animadas trilhas sonoras que lhes acompanham, e
nós veremos como em questão de minutos um tédio arrebatador se apossará de nós.
Ao invés, ponha-se, como fez
Daniel Wurtzel, um pano bem leve no centro de uma ciranda de ventiladores
ligados e façamos com que suas piruetas aleatórias sejam acompanhadas por uma
música qualquer, e logo nossa subjetividade se encarregará de encaixá-las exata
e maravilhosamente à melodia tocada, de modo a nos fazer ver em seus ziguezagues
os precisos gestos correspondentes ao que aquela música haveria de melhor
sugerir aos nossos próprios braços e pernas.
Usar melhor a audição, apurá-la para captar na voz o
que a máscara da face encobre, talvez já pudesse ser o começo de uma
contracultura que privilegiasse o que há de mais tipicamente humano em nós, ao
invés do que apenas temos em comum com nossos irmãos animais.
Porém, deve continuar firme também aí o nosso alerta!
Que nós não nos iludamos mais
uma vez!
Mesmo aí nós não nos
encontraremos totalmente à salvo do erro.
Quer nas palavras de um discurso demagógico, ou de um
hino repetido, podemos encontrar algo de quase tão mirífico quanto o jogo de
cores, formas e lemas de todas as bandeiras do mundo. Para que mergulhássemos
num estado permanente de guerra de cada nação contra todas as outras bastaria
que as pessoas simplesmente passassem a levar à sério as letras dos seus hinos
patrióticos.
A força maior da comunicação verbal, quando o que ela
intenta é arrebanhar de uma só vez multidões inteiras; bem como o que há de
mais pavoroso e inescapável no drama desse seu destino, consiste nisso: em que
quanto mais calculadamente vazios possam tornar-se os discursos dos nossos
pretendidos líderes; mais as nossas mentes também os preencherão com tudo que
jamais esteve noutro lugar senão em nós mesmos, atribuindo em seguida esse
conteúdo autoral nosso, inteiramente a eles ao invés de ao nosso próprio
espírito.
Então, desatentos ou esquecidos de que foi apenas isso
o que fizemos; nós nos quedaremos espantados e orgulhosos pelo que só pode então
ser compreendido como a miraculosa coincidência entre o que jamais passou dos
nossos próprios e mais batidos chavões, com tudo aquilo que apenas julgamos
haver ouvido de mais original em meio às reticências, insinuações, alusões
oblíquas, silêncios e perífrases; as quais fazendo brilhar a arte de nada
dizer, podem traduzir tudo quanto queiramos ou estejamos precisando ouvir.
Eis aí o segredo máximo desse vínculo, ou melhor
desses grilhões indestrutíveis que se formam entre as multidões e os seus
mitos.
Eis aí o truque da falsa
afinidade segundo a qual julgamos haver encontrado confirmação, onde não houve
nunca senão a projeção do nosso próprio pensamento e sentimento, na
magniloquência oca de um discurso demagógico ou de um hino hermético.
Eis aí, enfim como é que se
chega do nada à sensação de se estar diante de uma verdadeira revelação, diante
de tudo aquilo que nunca passou enfim das más inspirações há muito sussurradas
pelos nossos corações magoados; mas que – não fosse pelo gatilho oferecido por
esses líderes carismáticos – ter-nos-iam faltado a coragem, ou (por que não
dizer) o despudor para trazê-las à consciência e externá-las publicamente.
A força do totalitarismo no fundo reside inteiramente
aí.
Não deve ser procurada em seu
conteúdo. Não está em suas idéias, que sempre foram pelo contrário de uma
mediocridade a toda prova. Ela reside, pelo contrário, no caráter inexpugnável
de que se reveste tudo aquilo que não pode ser ferido porque não pode ser
tocado, e que não pode ser tocado apenas por que é vazio.
Bandeiras discursos e hinos podem ser e freqüentemente
tornam-se instrumentos eficazes disso.
Bandeiras, minhas caras irmãs
e irmãos na Humanidade, se houvessem de ser consideradas como remédios seriam
desses que podem nos causar dependência física e psicológica.
E – já que falávamos de cores
– de todas as que já tenham servido em auxílio do que seus idealizadores
pretenderam simbolizar, parece que sempre esqueceram-se de acrescentar aquele
único matiz que nos serviria, a título de tarja preta, a nos alertar contra
esses perigos.
Não gostaríamos porém de haver chegado à esta parte de
nossa conferência dando aos presentes a falsa impressão de que o melhor a fazer
seria livrarmo-nos de vez de todas essas enganosas exterioridades.
Não afirmamos nada disso.
Antes diríamos que de pouco
adiantaria combater dessa forma tais símbolos, ainda mesmo que estes não fossem
combatidos por outros, como se de sua pura e simples supressão nos fossem
arrancados os últimos obstáculos que ainda nos impedissem de uma compreensão
melhor das coisas, e de uma comunhão humana mais franca e direta.
Não.
No fundo, nenhum sinal
exterior, por mais simples que nos seja dado expressá-lo – sem excetuar aqueles
da mais rigorosa palavra escrita ou os do mais preciso número – estarão livres
disso.
Nenhum símbolo terá jamais
como dispor do que seria esse poder mágico de repelir para bem longe de si,
todos quanto dele queiram servir-se com maus propósitos ou com propósitos
antagônicos aos que o fizeram nascer.
Assim, o repúdio indistinto
que se alimentasse quanto ao uso das bandeiras seria o mesmo sentimento que nos
acabaria por condenar ao mais absoluto e estéril silêncio a respeito de tudo, e
a começar por aquilo que ser-nos-ia o mais urgente reclamar.
Imagens são meios lógicos legítimos, e indispensáveis
ao bom uso da razão. Nossa mente busca incessantemente por elas e haverá de
encontrá-las quer existam quer não, como o atestam as experiências de privação
sensorial e as célebres ilusões de óptica elaboradas pelos psicólogos da Gestalt.
A proibição islâmica do uso de imagens no interior das
mesquitas jamais chegou a impedir de fato o culto delas, tendo antes
sofisticado-lhe a expressão, disfarçada então por belíssimos e intrincados
pictogramas que apesar de formarem imagens como de pássaros etc., constituem
para todos os efeitos cultuais apenas frases escritas do Corão.
E com a proibição protestante
do culto às imagens, dar-se-ia algo que só podemos chamar de uma grotesca
vingança do cérebro quando artificialmente impedido de um de seus instrumentos
naturais: em nome de um zelo que fez os pastores repelirem ferozmente como
anti-bíblicas as imagens de Jesus e de santos, eis que vemos hoje esses líderes
não hesitando em fixar à entrada de seus templos, fotografias em tamanho
natural... de si próprios.
* * *
O título que demos à nossa apresentação deixou de pé a
promessa de examinar alguns mitos criados em torno de nossa bandeira.
Ao havermos sumariado as
condições mais gerais que nos permitem fazer bom uso de uma bandeira e
evitar-lhe os abusos, cremos ter cumprido uma parte dessa promessa, cabendo-nos
agora tomar, como ilustração, o que nos pareceu o mais interessante mito que a
nossa bandeira já tenha inspirado, ao menos até aqui.
Na verdade existem inúmeros deles, ao gosto do
freguês; mitos calculadamente insolúveis e que permitem aos que se estimam
imaginando-se parte de uma elite de detentores de conhecimentos misteriosos e
profundos, colher tais preciosidades, de onde e como bem queiram, na certeza de
que jamais essas informações poderão ser confrontadas por jamais poderem ser
comprovadas.
Esses mitos vão desde a exploração de óbvias
coincidências (como a que alimentou a história de que a bandeira brasileira
derivou de um certo ladrilho desenterrado de um povo antigo) e pela pueril
hipótese de que na inscrição do lema, teria havido um erro de confecção que
determinou a que ao invés de um suposto “ordem é progresso” (afirmação que de
fato o positivismo jamais endossaria) acabou-se ficando mesmo com “ordem e
progresso”; indo até as mais delirantes elucubrações esotéricas, que fazem ver
nas disposições das suas estrelas uma cifra que esconde sabe-se lá que código
ultra secreto.
A propósito, conquanto as mais completas tiranias tenham
até aqui encontrado sempre maiores entraves em distorcer palavras do que
imagens, seria um erro supor que um lema como o da nossa bandeira, mesmo
encontrando-se tão visceralmente unido a uma doutrina pautada do começo ao fim
pela simpatia e pela clareza como é o positivismo, a preservasse melhor de todo
tipo de interpretações equivocadas, que para existirem, de nada mais carecem
senão de um certo tipo de má-fé que aliás, nunca anda em falta.
E nem se diga que tal circunstância deva-se ou mesmo
possa ser imputada ao autor do nosso pavilhão e à natureza do lema escolhido.
Podemos até supor que a
bandeira brasileira, dada a pluralidade maior dos elementos que a compõe, e que
os tornam um a um, outros tantos motivos adicionais de incompreensão,
preste-se, com menor dificuldade que outras, a tais mal entendidos; mas, mesmo
aí, isso se deverá atribuir primordialmente ao fatal espírito anti histórico
que domina o nosso povo; aliando-se a isto, uma credulidade viciada em conceber
más intenções para tudo.
Aliás, fala-se com muita freqüência
(e na maior parte dos casos com razão) dos riscos que existem quando um povo
começa a temer, ao invés de amar a sua bandeira.
Entre nós, porém seria antes o
caso de sugerir que coubesse à bandeira a necessidade de temer o seu povo.
É nos mitos inspirados pelas assim chamadas teorias
conspiratórias (em geral de uma natureza mais diretamente política) que nós
haveremos hoje de encontrar o mais popular dentre eles.
Tal mito, ao contrário
daqueles cuja natureza fantástica assinalamos, sendo em aparência o mais
plausível e de conteúdo mais singelo, não demorou a conquistar em torno de si
um verdadeiro séquito crescente, que hoje forma inclusive um movimento que já
tem nome e sobrenome, o movimento “Põe Amor na Bandeira”.
Tal movimento reivindica (não
só como ato de justiça para com o positivismo) como sobretudo devido à própria
urgência de estimular-se sociabilidade no conjunto da vida humana, o que seria
a pretendida “reintrodução” do amor no lema da bandeira.
Consideram os proponentes
dessa alteração que a máxima “O Amor por Princípio e a Ordem por Base, o
Progresso por Fim” teria sido mutilada em seu significado maior, ficando a
palavra “amor” deliberadamente de fora da bandeira, de modo a evitar-se
qualquer referência ao que – ninguém o ignora- é o mais poderoso, radical e
efetivo elemento de subversão contra uma ordem social injusta.
E é assim que o único remédio
seria então restaurar ao que teria sido um lema amputado (ou mais exatamente
castrado) a sua pulsação original, pondo fim a esse suposto logro imposto ao
povo como parte de uma manobra ardilosa de políticos interessados em manter um
status social no qual o amor – não podendo ter vez nem voz – tampouco poderia
figurar como parte principal do que uma bandeira nos tenha a inspirar.
Mas seria mesmo esse o caso? Teria mesmo havido essa
tal conspiração contra o amor?
Vejamos:
Em primeiro lugar, devemos dizer que este pareceu-nos
por assim dizer, o mais simples, simpático e estético erro a que uma
interpretação mal informada a respeito da nossa bandeira já tenha conduzido, e
portanto haverá de ser aquele mito, que – na condição de único a nos merecer
hoje uma crítica séria – será examinado aqui.
Acima porém da crítica que devemos fazer-lhe, cabe-nos
antes de tudo acolher o valor intrínseco daquela reivindicação social,
inteiramente justa e mesmo oportuna, extraindo-a para nós em toda a sua pureza
e ternura; e desvinculando-a por completo do que possam ter sido suas pretensas
justificativas históricas.
Aliás é assim que nós veremos como a Humanidade – a
exemplo de seu precursor todo poderoso – também escreve, embora
involuntariamente, certo por linhas tortas.
De fato, quer no presente caso
como em tantos outros, é possível chegar-se a conclusões acertadas mediante
pressupostos falsos.
Uma cadeia de operações
lógicas que tenha sofrido dois erros opostos que se neutralizam, pode muito bem
produzir por fim um resultado correto, tal como se ambos os erros não houvessem
sido cometidos.
E mais ainda. É até possível
que aqueles erros não percebidos – e que conduziram a conclusões acertadas – sejam-nos
mais convincentes para tal, do que o seriam as mais corretas justificativas que
os melhores argumentos pudessem comportar.
Se o inferno está cheio de
boas intenções, o paraíso bem pode estar – e mais ainda do que aquele – repleto
de diabólicas ilusões.
Devemos pois, ter em conta acima de tudo o quanto
essas pessoas, guiadas por uma honestidade sem igual, souberam assim
ultrapassar os preconceitos que pairam contra o positivismo, honestidade que
acabou por brindá-las com a exata compreensão intuitiva do que constitui o
espírito geral dessa doutrina; fazendo-as perceber a efetiva (e já assinalada
pelo próprio Comte) superioridade da fórmula suprema da Religião da Humanidade,
quando comparada ao seu simples lema político “ordem e progresso” dela aliás
derivada e a ela subordinada.
Embora precisemos ao mesmo tempo louvar essa nobre e
mesmo sintomática iniciativa, quanto apontar o erro fatal em que o movimento
inteiro incide; nós o faremos valorizando bem mais o sentimento que inspirou o
ideal de sua proposta, do que concentrando, ainda que em nome da verdade, nossa
atenção em vãs invectivas contra a inevitável hipótese fantasiosa de que eles precisaram
servir-se, a fim de patentear necessidades afetivas ineludivelmente reais – e
mesmo urgentes – para todos nós.
Só assim seremos capazes de ver como é que tais
pessoas, ocupando o espaço vago onde faltou um conhecimento teórico genuíno
para o que estavam querendo dizer, no fundo acabaram por conquistar sem o
saberem (e talvez sem mesmo o desejarem) o mais alto posto de uma vanguarda
social única que, como veremos, a própria doutrina positivista já lhe havia
previsto o aparecimento e assinalado-lhe o papel; e cujo desempenho, no caso
deles, torna-se tanto mais cercado de garantias e tanto mais autenticamente
expressivo, quanto mais eles não podiam simular nada daquilo.
Sim.
É de fato chegada a hora de fazer valer suas
reivindicações mas não pelo modo, e nem pelos motivos que esse movimento alega.
A primeira e a mais fundamental informação que faltou
ao conhecimento de seus integrantes (e que, mais do que qualquer outra precisa
ser aqui apresentada) é a de que a atual bandeira republicana foi concebida
para ser uma bandeira provisória.
Em outras palavras a bandeira republicana havia sido
destinada – já a partir do momento mesmo em que foi concebida – a ser algum
dia, substituída por outra.
Tratou-se, pois, de uma
bandeira criada com tempo de vida não somente definido, como verificável
segundo certos sinais sociais precisos a serem tomados como indícios do cabal
preenchimento da sua missão original, e assim também do seu efetivo esgotamento
e de sua necessidade de substituição.
Cabe-nos portanto examinar se o clamor espontâneo que
esse interessante movimento começa a erguer hoje, corresponderia de fato à
efetiva chegada daquele momento histórico prognosticado por Augusto Comte e,
então em vista disso, oferecer-lhe o nosso apoio sistemático, por piores que
sejam os argumentos de que ele ainda insista em se servir para justificá-lo,
dando-lhe porém, e ao mesmo tempo, todas as luzes de nossa doutrina na
esperança de que venha-se por fim a reconhecer o caráter que embora moralmente
justo de suas reivindicações, mostra-se distorcido em teoria e talvez até
prematuro na prática.
Ora, se a insuficiência
afetiva do lema ordem e progresso, base espontânea de tudo o que eles
pressentiram tão logo tomaram seus primeiros conhecimento mais ou menos
apressurados da fórmula suprema do positivismo, é um FATO, e um fato atestado
pelas próprias palavras de Augusto Comte numa carta ao seu mais célebre
discípulo, Pierre Laffitte; talvez se pergunte por que diabos alguém haveria de
– contrariando tudo que sempre se fez ao se compor uma bandeira – criar uma que
cedo ou tarde teria seu prazo de validade vencido?
Afinal, se uma bandeira deve existir pelo que ela
representa em termos dos nossos mais nobres ideais, e se estes mesmos, só podem
corresponder a verdades essenciais sobre nossa natureza, por qual razão não
possuiriam elas o dom da eternidade?
Para que possamos entender isso, precisaremos
compreender antes de tudo que as sociedades mudam.
O século XIX não estava preparado para assimilar em
toda a sua extensão, o papel do amor; ao menos tanto quanto já estava preparado
para compreender a necessidade de conciliar a ordem com o progresso, muito
embora mesmo isso fosse um caso problemático.
Para que ambas essas
compreensões fossem possíveis teria sido necessário que o positivismo já
estivesse bem mais espalhado e que o seu sacerdócio já estivesse minimamente constituído,
coisa que só agora está começando a acontecer de novo.
Estava-se numa época brutal,
em que a inclusão do amor teria sido fatalmente tomada como uma idealização
romântica, como um devaneio açucarado, como uma excrescência ou mesmo, como foi
o caso de se dizer, como um meio a mais de entreter o proletariado contra a
exploração que sofre, como mais um ópio do povo.
Que resistências enormes teve Freud ao tentar passados
já meio século da morte de Comte, mostrar que o pretendido império absoluto da
razão humana é ilusório, e que como Comte afirmava “nada é indiferente perante
o sentimento”?
E nem se diga que mesmo os
artistas estivessem então mais livres desse preconceito racionalista.
Por acaso não foi verdade que,
entre nós, um modernista da semana de 22 gostava de referir-se ao positivismo
como “um grande porre de guaraná espumante”?
E não é verdade que
comparando-se isto com tudo o que ainda se haveria de tentar caracterizar a
Religião da Humanidade, aquela definição até poderia ser tomada como
lisonjeira?
Portanto, parece-nos fora de dúvida que se na apresentação
da bandeira republicana as coisas houvessem sido colocadas na base de um “tudo
ou nada” o resultado seria o da pura e simples rejeição à ela, por uma
completude deslocada que a deixaria numa condição além da possibilidade de
assinalá-la.
O que teria sido melhor,
então, perguntamos? Que tudo fosse rejeitado, ou que ao menos alguma coisa de
sua fórmula sagrada já pudesse figurar como parte do nosso ideal social?
Foi por haver sido capaz de
antecipar-se a isso que Augusto Comte concebeu sua bandeira provisória, e não
por conta de nenhuma suposta conspiração anti-amor.
Apenas isso: não era ainda o momento.
Haverá de sê-lo hoje? Quem
sabe? A sociologia positiva permite até certo ponto, e mesmo nos convida a
anteciparmo-nos ao futuro, não só prevendo, por assim dizer, quais as suas
diversas fases sucessivas e os traços mais característicos de cada uma; como
oferecendo-lhe algo que facilite sua marcha.
Isto é claro descartando a
dupla hipótese antipática de que a Humanidade haverá de submergir por completo
como espécie, ou a de que flutuará indefinidamente à deriva nas oscilações que
hoje formam as diversas marés políticas, econômicas, religiosas, midiáticas
etc.
Assim para que seja-nos
possível compreender cabalmente que sentido pode haver numa bandeira provisória,
precisaríamos discutir agora em que consiste essa própria marcha geral do
progresso humano e suas correspondentes necessidades de simbolização.
Infelizmente porém seria
impossível realizarmos tal exposição, ainda que sumária; no tempo a que o mínimo
respeito à paciência dos ouvintes, ainda nos permitiria reivindicar.
Tais informações indispensáveis podem ser obtidas pela
leitura das obras de Augusto Comte e de seus primeiros discípulos já falecidos,
bem como pela consulta às atualíssimas obras impressas dos contemporâneos
apóstolos do positivismo Gustavo Biscaia de Lacerda e Arthur Virmond, das
infatigáveis conferências dominicais na capela da Humanidade de Porto Alegre
realizadas pelo apóstolo Érlon Jacques (e também pelo Gustavo em seu canal no
Youtube) e enfim, na venerante página do Facebook do apóstolo Luiz Gustavo
Mota.
Como dissemos logo no começo de nossa exposição, o
objetivo traçado aqui foi o de alertar; e assim pensamos que deva ser também
com tal espírito que melhor conviria encará-la, o que deve, infelizmente nos
provocar sensações e pensamentos desconfortáveis.
O culto à bandeira nacional parece-nos ter sido por
tal forma cooptado pelos setores mais – digamos – transtornados da população,
que ele precisaria ainda por um bom tempo, expurgar-se do visgo deixado por sua
derradeira apropriação indébita, antes que se opere por fim, o devido retorno
ao seu genuíno propósito original.
Todo cidadão consciente, e em particular o nosso
pequeno grupo de positivistas e seus simpatizantes aqui reunidos, não podemos
continuar nos sentindo constrangidos quer pela ausência de informação das
massas quer sobretudo pela profusão das falsas informações acadêmicas.
Ambas fatalmente acabarão – de
boa ou de má-fé – associando-nos de algum modo àqueles patéticos episódios que
ainda aguardam por justiça, e pelos quais a bandeira republicana foi
vilipendiada como nunca, em tudo quanto ela encerra como ideal de ordem e de
progresso, para não dizer de amor, ordem e progresso.
Não podemos nos sentir – e
tanto mais agora – obrigados a ocultar nossos melhores sentimentos cívicos, e
tampouco podemos evitar comunicar o que apenas nós estamos em plena condição de
revelar a respeito desses mesmos ideais expressos, mas como também já vimos,
oculto – no lema de nossa bandeira.
Por mais tristemente plausível
que seja o perigo de que se nos identifiquem àquele exército de Brancaleone, e
portanto a tudo quanto nós mais e sempre abominamos (já não dizemos nem em
matéria de política ou de ideologia) mas como simples modo de existir; não
evitaremos externar as nossas mais legítimas expressões de amor e de
reconhecimento por aquele símbolo conspurcado, e por tudo o mais que nos sirva
para bem representá-lo.
Estejamos, pois um pouco mais atentos à má utilização
que nesses tempos confusos sempre se haverá de fazer dos símbolos quaisquer, e
em particular daqueles que integram a oficialidade do estado.
Que esse nosso alerta e pedido possam assim servir
para que a distância física que tanto já nos separa das alturas em que as
bandeiras costumam tremular, não seja também aquela que nos coloque no fundo de
um abismo, que haverá de nos separar de nossa própria lucidez, em relação a
tudo aquilo que uma bandeira faz e deve continuar fazendo lá em cima.
Se minhas por vezes angustiosas palavras puderem
contribuir para melhor amar, compreender e festejar a nossa bandeira; sempre em
nome da Humanidade – terei, apesar de mim, cumprido aqui o nosso propósito, e
encerrado como convém um momento tão importante e maravilhoso como foi o deste
nosso primeiro encontro.
Muito obrigado.
Quero dedicar esta conferência muito especialmente à minha esposa Sandra, que assinalou uma lacuna importantíssima no texto, a qual, se não houvesse sido preenchida, tê-lo-ia deixado incapaz de transmitir uma de suas idéias mais essenciais.