Alguns problemas na matéria "O amor por
princípio, a ordem por base e o progresso por fim", publicada na revista História Viva n. 121, de novembro de
2013
Aproveitando a efeméride do aniversário da
Proclamação da República, a revista História
Viva, em seu número 121, de novembro de 2013, publicou um dossiê temático
sobre a República no Brasil. Com vários artigos, o dossiê termina com uma
matéria intitulada "O amor por princípio, a ordem por base e o progresso
por fim" (p. 42-44), em que uma jornalista aborda tanto a doutrina
positivista quanto a contribuição específica dos positivistas brasileiros para
a Proclamação da República[1].
De modo geral, a matéria apresenta um tom
interessado, apresentando detalhes importantes e interessantes: o fato de que o
Positivismo é ao mesmo tempo uma filosofia, uma proposta política e uma
religião; a ação de Benjamin Constant no movimento que resultou no 15 de
novembro de 1889 etc.
Entretanto, a matéria apresenta – sempre a título
de "criticidade"! – uma série de erros e problemas, muitos dos quais
simplesmente consistem em repetir preconceitos e lugares-comuns acadêmicos:
assim, é necessário convir que, no final das contas, a proposta da revista História Viva de apresentar o
Positivismo fracassou.
Vejamos alguns dos problemas e preconceitos
identificados[2].
1)
A fórmula sagrada máxima do Positivismo tem uma
redação diferente da apresentada como título da matéria: é "O amor por
princípio e a ordem por base; o progresso por fim". Augusto Comte foi
muito claro a respeito da alteração dessa fórmula, entre a versão primitiva
(que intitula a matéria) e a segunda e final; em vez de tratar-se de uma
enumeração de elementos e características, a fórmula final apresenta um
ordenamento lógico, social e moral, indicando que o progresso resulta da união
do amor com a ordem, além de dever ser almejado pela união do amor com a ordem.
(Além disso, deve-se ter em mente
que a "ordem" não se confunde com o status quo, nem com uma sociedade estática, avessa ao progresso: a
ordem são as condições fundamentais da vida social – o que inclui, por exemplo,
o bem-estar dos indivíduos e as liberdades de pensamento e de expressão,
elementos que usualmente são apresentados como do "progresso".)
2)
A jornalista afirma que a lei dos três estados
considera a passagem do estado teológico para o positivo: entretanto, também
afirma que o estado teológico é "controlado pelo catolicismo" e que o
estado positivo é "[controlado] pela ciência" (p. 43).
Há pelo menos três erros nessa afirmação. Em
primeiro lugar, o que significa a palavra "controlado", conforme
usada na frase, não está claro. Controlar é mandar, manter o controle, exercer
a autoridade: ora, isso não faz sentido algum para a filosofia da história e
para a filosofia política de Augusto Comte: seja porque o catolicismo não
exerce nenhum poder de mando sobre as etapas específicas anteriores da
teologia, seja porque ele não é a mais importante: bem ao contrário, o
catolicismo é a etapa final da teologia.
Assim, em segundo lugar, a fase teológica mais importante
é o politeísmo (seja em sua vertente conservadora – representada pelas
teocracias –, seja em sua vertente progressista – representada pelos regimes
militares da Antigüidade). Além disso, o catolicismo foi importante não devido
à sua doutrina, mas devido à ação social, intelectual e política do clero
católico durante a Idade Média (ou seja, entre os séculos V e XIV).
Em terceiro lugar, a fase final não é
"controlada" (o que quer que isso queira dizer) pela
"ciência", mas, sim, pela positividade.
A positividade é o espírito relativo, simpático, útil; ou melhor, é o estado
mental e social caracterizado pelos sete atributos da palavra
"positivo": real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e
simpático. Também é necessário notar que, enquanto a ciência, ou melhor, as
ciências – no plural – são sempre analíticas, a positividade apresenta um
caráter sintético.
3)
A matéria repete chavões e lugares-comuns e é
extremamente fantasiosa, como na
definição de "ditadura republicana": "[...] o francês [i. e.,
Augusto Comte] idealizou um programa político com um regime de Estado forte e
antiliberal (com a submissão dos direitos individuais ao bem público): uma
ditadura republicana" (p. 43).
Essa definição assustadora talvez
provenha de livros de popularização do conhecimento (como o recém-publicado 1889), mas o fato é que essa suposta
definição da "ditadura republicana" simplesmente não corresponde às
idéias de Comte, nem na letra, nem no espírito.
Para Comte qualquer governo é
"ditadura", especialmente em épocas de transição social, política e
moral, como ele considerava que vive o Ocidente desde o século XV e
especialmente após a Revolução Francesa. Se todo governo é ditadura, pode haver
ditaduras progressistas e reacionárias, liberais e liberticidas. Além disso, a
"ditadura republicana" em particular foi proposta por A. Comte como
um regime de transição entre a época de crise e a "era normal"; esse
regime, assim como a "era normal", caracterizar-se-iam pelas mais
completas e amplas liberdades sociais e políticas (ou seja, pelas
"liberdades individuais", que, de acordo com o infeliz relato da
jornalista, seriam negados): o que ocorre, e como política e socialmente se
sabe, as "liberdades individuais" são altamente deletérias se não
houver uma preocupação social com o bem-estar da sociedade: é justamente a
união das liberdades públicas com o bem-estar coletivo que caracteriza (por
exemplo) os regimes do Estado de Bem-Estar Social.
Além disso, deve-se notar que o conceito de "ditadura
republicana" pura e simplesmente é desconhecido no Brasil. Tanto
pesquisadores ditos "profissionais" quanto o senso comum assumem a
palavra "ditadura" no sentido adotado a partir da prática comunista
de Lênin, que corporificou a "ditadura do proletariado" de Marx; com
isso, ignoram o "contexto lingüístico" em que viveu e elaborou
Augusto Comte, ou seja, que no século XIX Augusto Comte adotou nesse caso o
hábito lingüístico da época, em que "ditadura" não tinha sentido
negativo e que não era antiliberal.
Nesse sentido, a matéria não esclarece nada e aprofunda vários mitos. A
observação de que a ditadura republicana é "antiliberal", para fazer
algum sentido e não ser injusta, tem que ser entendida estritamente do ponto de
vista da história das idéias, significando que a ditadura republicana não se
filia ao liberalismo, especialmente no liberalismo laissez-faire – ou seja, no mesmíssimo sentido em que o Estado de
Bem-Estar Social também não se filia ao liberalismo. Ora, usar a palavra
"antiliberal" e não esclarecer que se trata estritamente de afastamento
do liberalismo é querer dar a entender que se trata de um regime autoritário.
Da mesma forma, a expressão "Estado forte" também sugere
autoritarismo: mas nem na obra de Augusto Comte, nem nos opúsculos dos
positivistas brasileiros (como nos de Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes) há
qualquer referência seja a um "Estado forte" seja, principalmente, a qualquer
defesa do que chamaríamos atualmente de "autoritarismo". Aliás, é
digno de nota que a idéia da ditadura republicana como autoritária foi
difundida no Brasil por pesquisadores explicitamente liberais (e católicos)
que, ao mesmo tempo em que denunciavam o suposto autoritarismo da proposta,
defendiam o regime militar iniciado em 1964 e suas variadas truculências.
Sem dúvida que a revista tem pouco espaço para apresentar suas idéias, o
que talvez justificasse essa gigantesca "imprecisão conceitual".
Infelizmente, essa limitação de espaço não pode justificar nem uma imprecisão
tão grande nem a manutenção de um mito. Nesse sentido, a reprodução dos mitos
na matéria, especialmente sem atribuir os mitos a alguém em particular,
equivale a assumir os valores e as perspectivas do mito - como se sabe, isso é
que os pesquisadores de comunicação chamam de "enquadramento".
A imprecisão e os erros assumem maiores
perspectivas quando se considera que há explicações detalhadas, a partir de
perspectivas variadas, a respeito da idéia de "ditadura republicana":
de Gustavo Biscaia de Lacerda, "O momento comtiano" (tese de
doutorado em Sociologia Política, UFSC, 2010, especialmente a seção 7.1: http://www.tede.ufsc.br/teses/PSOP0369-T.pdf; livro publicado pela Editora da UFPR: https://www.editora.ufpr.br/produto/405/momento-comtiano,-o--republica-e-politica-no-pensamento-de-augusto-comte)
e "Teoria Política positivista: pensando com Augusto Comte" (Poiesis
editora, 2013: http://www.poiesiseditora.com.br/publicacoes/teoria-política-positivista-pensando-augusto-comte);
de Arthur Lacerda, "A república positivista. Teoria e ação no pensamento
de Augusto Comte" (Juruá, 2003, 3ª ed.).
4)
Na p. 44 a matéria cita um famoso pesquisador, de
acordo com quem os positivistas eram "sectários e fundamentalistas":
o problema é que nem o pesquisador entrevistado nem a jornalista que escreveu a
matéria apresentam os motivos para caracterizar os positivistas como
"sectários e fundamentalistas".
Sectário e fundamentalista é uma
pessoa que pensa apenas em termos do próprio grupo e de maneira irracional e
absoluta no que se refere às próprias crenças, desrespeitando e desconsiderando
sem mais as idéias e as propostas de outros indivíduos e grupos – o que não era
o caso dos positivistas.
Em primeiro lugar, eles eram
coerentes com a idéia de "ditadura republicana", ou seja, respeitavam
escrupulosamente as liberdades públicas, não negando o direito de expressão a
ninguém – ou seja, não impedindo a manifestação de interlocutores, ao mesmo
tempo que se opondo às medidas governamentais tendentes a impedir as
manifestações de idéias.
Em segundo lugar, o pesquisador
citado sugere que o sinal de que os positivistas eram "sectários e
fundamentalistas" eram as expulsões do grêmio positivista: ora, esse
comentário foi extremamente especioso, pois descontextualizado e injusto. Os
membros expulsos eram donos de escravos que não aceitavam o programa
abolicionista, bem como aqueles supostos positivistas que queriam manter cargos
públicos ao mesmo tempo em que faziam propaganda da doutrina (ou seja, eram
indivíduos que se valiam do cargo para pregação, desrespeitando a separação
entre Igreja e Estado): em outras palavras, eram indivíduos cujos
comportamentos públicos e privados eram moralmente condenáveis, por serem
degradantes e/ou hipócritas.
(Convém notar que, a esse
respeito, os positivistas eram muito mais corretos, coerentes e orientados para
o bem público que a maior parte das associações religiosas e políticas dos dias
correntes: se isso é "fanatismo e sectarismo", a conclusão é que a
nossa própria época é lamentavelmente merecedora de muita, muita reprovação.)
Além disso, é importante observarmos que o famoso pesquisador que foi consultado pela jornalista autora da matéria é apenas "famoso" - em grande parte porque ele é pesquisador de uma importante fundação de pesquisas (a Fundação Getúlio Vargas) -; entretanto, nem sua fama nem a sua filiação institucional conferem-lhe qualquer conhecimento, seja sobre a doutrina positivista, seja sobre a atuação específica dos positivistas no período considerado. Em outras palavras: na melhor das hipóteses, como se pode perceber pelos diversos problemas comentados nesta postagem, esse famoso pesquisador apenas emite palpites sobre o Positivismo.
[1] Pode-se consultar a
revista História Viva neste endereço:
http://www2.uol.com.br/historiaviva/.
Aí é possível encontrar disponíveis diversas matérias, embora a que seja objeto
de nossa crítica não esteja aberta ao
público em geral.
[2] Os pontos abaixo baseiam-se em
uma série de quatro mensagens eletrônicas trocadas com o editor da revista, sr.
Dirley Fernandes, em 3 e 4 de dezembro de 2013 (sendo duas de nossas autoria e
duas dele).
Embora os argumentos apresentados pelo sr. Dirley
em defesa da matéria não nos tenham convencido, é necessário reconhecer a
educação e a rapidez com que nos respondeu – características infelizmente
incomuns no mercado editorial brasileiro –, bem como a atenção em responder de
maneira clara e direta às nossas observações.
Por fim: acrescentamos alguns pontos e editamos
diversos trechos das mensagens originais, de modo a evitar passagens mais duras
e/ou que citavam nominalmente pessoas.
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