Seção final
do artigo de Bernard Plé, “Auguste Comte on Positivism and Happiness”
(Journal of Happiness Studies, v. 1, p. 423-445,
2000. P. 442-443).
O artigo em questão é muito interessante. Nos últimos anos, diversos pesquisadores, originários de inúmeras áreas do conhecimento, têm proposto a inclusão da felicidade como parâmetro de desenvolvimento das sociedades; a criação de uma revista dedicada a esse tema ("Journal of Happiness Studies" - "Revista de Estudos sobre a Felicidade") ilustra bem essa tendência.
O trecho abaixo conclui um texto que se dedica a examinar a obra de Augusto Comte à luz dessa questão. Após tratar das características gerais do Positivismo - e, claro, após indicar que o Positivismo de Comte não é o "Positivismo" a que se refere meio-mundo, geralmente em tom negativo e acusatório -, o autor indica de que maneira a proposta política, científica e religiosa comtiana serve para o desenvolvimento da felicidade.
A fim de facilitar para aqueles que não têm fluência em inglês, ajuntei uma pequena tradução, logo após o trecho citado.
* * *
I have
sought to show that in identifying the natural order of the sciences as the
frame of a new conception of the ‘world’, Comte embarks on the task of leading
the way to a state of happiness. I have argued that in his quest for happiness,
Comte insists on connecting scientific certainty with religious affections like
love, veneration and reverence. Furthermore, I have argued that in stressing
the importance of this consensus, Comte regards the state of happiness as a
right living in the true order, first, of the world of which it is a part, and
second, of the civilization in which it goes on evolving. In developing both
arguments, I have been led to focus on the new science of life as the final step
towards the state of happiness. What Comte regards as its ‘sacred’ mission is
to show the fashion in which man’s power is being exerted in accordance with
the world of law, and, at the same time, to remind modern man of the twofold
heredity he continuously receives through the accumulated modifications both of
the natural world and of the civilization he lives in. By leading modern man to
gain clear insight into his position as part of a natural and social history,
Comte seeks to reveal to the citizens of a new Republic the sphere of their
dignity as well as of their happiness.
There are
some important aspects in which my argument fits the fourfold matrix that Ruut
Veenhoven has recently developed in order to analyse four main ‘qualities of
life’[1].
Happiness as understood by Comte’s positivism can be conceived of as unifying
all of these qualities. In the first place, it appears to be a far-reaching
attempt, both scientific and political, aiming at ensuring not only the
‘liveability’ of the natural environment as a fruit of human intervention but
also man’s ‘life-ability’ as knowledge of the natural limits within which his
civilization may progress and modify the natural milieu it lives in. In the second
place, such state of happiness appears to be a subjective ‘appreciation of
life’ inasmuch as it represents a state of mental health and the fulfilment of
modern man’s quest for certainty as to the order in which he lives. Finally,
happiness appears to be the awareness of what Veenhoven’s matrix classifies as
‘utility of life’, that is, our awareness of being related both to the social
order and to the natural milieu we inherit from the past. It is precisely here
that happiness is to become noble, public and religious or, as Comte puts it, “le salut intellectuel de la société”.
Tradução:
Eu procurei apresentar que identificando a ordem natural das
ciências como o quadro de uma nova concepção do “mundo”, Comte iniciou a tarefa
de indicar o caminho para um estado de felicidade. Argumentei que nessa busca
de felicidade, Comte insiste em conectar a certeza científica com os afetos
religiosos como o amor, a veneração e a reverência. Além disso, argumentei que
ao enfatizar a importância desse consenso, Comte percebe o estado de felicidade
como um direito vivendo na verdadeira ordem, em primeiro lugar, do mundo de que
é parte e, em segundo lugar, da civilização que se desenvolve. Ao desenvolver
ambos esses argumentos, levei-me a focalizar na nova ciência da vida como a
etapa final em direção ao estado de felicidade. O que A. Comte percebe como sua
missão “sagrada” é mostrar a forma como o poder do ser humano está sendo
exercido de acordo com o mundo da lei [natural] e, ao mesmo tempo, lembrar ao
homem moderno da dupla hereditariedade que ele continuamente recebe por meio
das modificações acumuladas, tanto do mundo natural quanto da civilização em
que ele vive. Ao indicar ao homem moderno como obter perspectivas mais claras a
respeito de sua posição como parte de uma história natural e social, Comte
procura revelar aos cidadãos de uma República a esfera de sua dignidade, assim
como de sua felicidade.
Há alguns importantes aspectos em que o meu argumento
enquadra-se na matriz quádrupla que Ruut Veenhoven elaborou recentemente a fim
de analisar quatro principais “qualidades de vida”[2].
A felicidade como entendida pelo Positivismo de Comte pode ser concebido como
unificando todas essas qualidades. Em primeiro lugar, ele aparece como sendo
uma tentativa de amplo escopo, tanto científica quanto política, com o objetivo
de garantir não apenas a “vidabilidade” do ambiente natural como fruto da
intervenção humana, mas também a “vida-habilidade” humana como conhecimento dos
limites naturais em que sua civilização pode progredir e modificar o meio
ambiente natural em que vive. Em segundo lugar, esse estado de felicidade aparece
como uma “apreciação da vida” subjetiva, tanto quanto ela representa um estado
de saúde mental e a realização da busca do homem moderno por certeza na ordem
em que ele vive. Finalmente, a felicidade aparece como sendo a consciência do
que a matriz de Veenhoven classifica como “utilidade da vida”, ou seja, nossa
consciência de estarmos relacionados tanto à ordem social quanto ao ambiente natural
que herdamos do passado. É precisamente aqui que a felicidade torna-se nobre, pública
e religiosa, ou, como Comte diz, “a saúde intelectual da sociedade”.
[1] For this conceptual analysis, see Ruut Veenhoven, The
Four Qualities of Life. Ordering Concepts and Measures of Good Life, in Journal
of Happiness Studies, Vol. 1, nr 1 2000; especially §1.3 and §2.
[2] Para essa análise
conceitual, cf. Ruut
Veenhoven, The Four Qualities of Life. Ordering Concepts and Measures of Good
Life, in Journal of Happiness Studies, Vol. 1, nr 1 2000; especially §1.3 and
§2.
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