19 novembro 2014

Comemoração do Dia da Bandeira Nacional Brasileira – 19.11.2014

Comemoração do Dia da Bandeira Nacional Brasileira – 19.11.2014

Gustavo Biscaia de Lacerda


Bandeira nacional republicana brasileira. Fonte da imagem: wikipédia.

O dia 19 de novembro marca o Dia da Bandeira. Nessa data, no ano de 1889 a proposta feita por Raimundo Teixeira Mendes e pintada por Décio Villares foi apresentada por Benjamin Constant e aceita pelo governo provisório da nascente república brasileira (proclamada um pouco antes, no dia 15 de novembro): assim, é impossível separar a comemoração do Dia da Bandeira da própria Proclamação da República.

Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil e autor da bandeira nacional republicana brasileira. Fonte da imagem: wikipédia.

A bandeira republicana é ao mesmo tempo bonita, simples e profundamente filosófica. Ela é agradável à vista e em linhas gerais pode ser desenhada à mão por qualquer pessoa. Nesse sentido, aliás, ao contrário do que monarquistas, católicos e supostos especialistas em bandeiras afirmam, a bandeira nacional republicana não é complicada: se, por um lado, ela não tem a simplicidade banal de outras bandeiras que se limitam a justapor faixas coloridas, por outro lado ela não apresenta as complexas filigranas que outros pendões ostentam.

Mas, deixando de lado os aspectos estéticos da bandeira nacional, o mais importante é que ela contém em si uma importante combinação de história, de filosofia e de política. O quadrilátero verde e o losango amarelo eram elementos usados na bandeira imperial, correspondendo respectivamente às cores das casas dinásticas de Bragança e de Habsburgo; em versões mais recentes e bem mais populares, essas duas figuras geométricas significariam as matas e as riquezas minerais do país: o que importa notar, de qualquer maneira, é que a permanência dos elementos da bandeira imperial (de 1822 a 1889) na então nova bandeira republicana indicava a continuidade sociológica do Brasil, isto é, o fato simples e importante, mas freqüentemente esquecido ou desprezado, de que a sociedade brasileira continuava existindo ao longo do tempo, em meio aos seus desenvolvimentos e também às mudanças de regimes políticos.

A circunferência azul com a faixa branca contendo o "Ordem e Progresso" (em letras verdes) é ainda mais direta e claramente filosófica. As estrelas no céu lembram-nos de que todos os seres humanos submetem-se à ordem natural, cuja regularidade é enorme e sem a qual nós não existiríamos: sem os contínuos calor e luz do Sol, não haveria vida na Terra, da mesma forma que só é possível a vida neste nosso valioso planeta em virtude de condições geológicas e astronômicas especialíssimas. Mas, por outro lado, a observação das estrelas foi o início da ciência e, de qualquer maneira, é fonte de curiosidade e estímulo permanente à imaginação e à poesia.

O "Ordem e Progresso", por sua vez, é a afirmação do ideal sociopolítico que norteia o Brasil, ao buscar um regime político que permita ao mesmo tempo o progresso (político, econômico, moral) e garanta a ordem social. Proposta pelo filósofo francês Augusto Comte como devendo integrar todas as bandeiras do mundo, essa frase é passível de aceitação por todos os grupos sociais e políticos.

A esse respeito, há um erro de interpretação bastante comum. Ao contrário do que costumam afirmar variados esquerdistas – para quem o "Ordem e Progresso" quer dizer "progresso apenas dentro da ordem", ou seja, para quem o progresso é e sempre será anárquico –, no pensamento comtiano a "ordem" inclui o respeito às liberdades públicas, o bem-estar material de toda a população (em particular a mais pobre), a separação entre igreja e Estado, a fraternidade social e a paz universal etc. Dessa forma, o "Ordem e Progresso" só faz sentido se entendido como propunha originalmente Augusto Comte: na medida em que os elementos da ordem são respeitados e desenvolvidos, há progresso social.

Por fim, desde há alguns anos fala-se em incluir o "Amor" no "Ordem e Progresso". Costuma-se dizer que, ao elaborar a bandeira, Raimundo Teixeira Mendes teria desfigurado a fórmula original de Augusto Comte – que é "O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim" –, ignorando a primeira parte. Na verdade, Teixeira Mendes seguiu ao pé da letra as orientações de Comte, que considerava que, enquanto não houver em cada sociedade e, depois, no mundo inteiro, um consenso a respeito da necessidade de unir a ordem ao progresso e de deixar para trás os grupos que querem a ordem de maneira retrógrada e o progresso de maneira anárquica, não será possível incluir o amor como elemento político. Nesse caso, não se trata de que as relações sociais não devam ser mais fraternas, mais pacíficas, mais cuidadosas e respeitadoras do "outro": o que ocorre é que, enquanto não há um consenso efetivo sobre os valores sociais mínimos, o Estado tem que se limitar a manter a ordem social e, dentro do possível, desenvolver as sociedades.


Assim, em seu conjunto, a bandeira brasileira é mais que um símbolo de um país – um símbolo que, aliás, comemora seus 125 anos em 2014 –: é a afirmação de um projeto social de longo prazo, de paz, de respeito, de liberdades, de integração, de bem-estar; em outras palavras, é um símbolo adequado da "república", da cidadania e da realização do ser humano.

Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1833-1891), professor da Escola Militar; membro do governo provisório republicano que, em 1889, apresentou ao governo federal a proposta da bandeira nacional. Fonte da imagem: wikipédia.

Tela "República" de Décio Villares (1851-1831), isto é, do mesmo artista que pintou a bandeira nacional republicana. Fonte da imagem: wikipédia.

Tela "Pátria" de Pedro Bruno (1888-1949); costuma-se afirmar que a família que borda a bandeira é a de Benjamin Constant. Fonte da imagem: wikipédia.

Augusto Comte (1798-1857), filósofo e sociólogo francês, fundador do Positivismo; suas idéias orientaram a elaboração da bandeira nacional republicana brasileira. Fonte da imagem: wikipédia.

(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)

Homenagens oficiais ao Dia da Bandeira 2014

As imagens abaixo são homenagens de duas das mais importantes instituições brasileiras ao símbolo maior do Brasil, a Bandeira.

A primeira imagem é do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e, juntamente com a própria bandeira, traz os primeiros versos do Hino à Bandeira, de autoria de Olavo Bilac.

A segunda imagem é do Senado Federal e, com o mote dado por uma cantiga infantil ("Marcha, Soldado"), ao mesmo tempo valoriza a bandeira, apresenta informações sobre os rascunhos da bandeira republicana, de autoria de Raimundo Teixeira Mendes e lembra o lamentável furto da primeira bandeira republicana, ocorrido em condições suspeitas há alguns anos. 






18 novembro 2014

L. Fedi e C. Lévi-Strauss sobre A. Comte

Dois artigos interessantes sobre Augusto Comte, escritos por especialista (L. Fedi) ou por pensador que vale a pena ser lido (C. Lévi-Strauss):

- de Laurent Fedi, "Augusto Comte y la técnica" (disponível aqui) e

- de Claude Lévi-Strauss, "Auguste Comte et l'Italie" (disponível aqui).

Ambos os textos estão disponíveis graças à gentileza da Casa de Augusto Comte (Maison d'Auguste Comte).

17 novembro 2014

Fotos do Museu Casa de Benjamin Constant: exemplar da "Síntese subjetiva"

As fotos abaixo correspondem a itens do acervo do Museu Casa de Benjamin Constant (IBRAM/MinC); elas foram-me gentilmente enviadas pelo historiador e pesquisador do Museu, Marcos Felipe de Brum Lopes.

As fotos mostram um elegantíssimo presente dado a Benjamin Constant Botelho de Magalhães por seus alunos da Escola Militar: trata-se de uma luxuosa edição do volume I (e único) da obra Síntese subjetiva (Synthèse subjective), de Augusto Comte, juntamente com uma belíssima caixa acolchoada.


Edição da Síntese subjetiva de Augusto Comte. Nas cantoneiras estão escritos: esquerda superior: "Humanidade"; direita superior: "Descartes"; direita inferior: "Bacon", esquerda inferior: "Vauvenargues". No centro lê-se: "[ilegível] Benjamin Constant Botelho de Magalhães, homenagem dos alunos da Escola Militar da Corte".


Caixa em que se guarda o exemplar da Síntese subjetiva, de Augusto Comte, presenteado pelos alunos da Escola Militar a Benjamin Constant. No centro lê-se: "Viver às claras", circundado por "Amor por Princípio - Ordem por Base - Progresso por Fim".
Interior da caixa em que se guarda o exemplar da Síntese subjetiva, de Augusto Comte, presenteado pelos alunos da Escola Militar a Benjamin Constant.  O verde das fitas corresponde à cor do Positivismo.

15 novembro 2014

Feriado da República como comemoração da cidadania

Feriado da República como comemoração da cidadania

Gustavo Biscaia de Lacerda

Pode-se dizer que, no Brasil, os dois feriados mais importantes são o da Independência (7 de setembro) e o da Proclamação da República (15 de novembro). Comemorados em meses que se sucedem (novembro vem depois de setembro, com outubro no meio), por felicidade eles indicam uma progressão na vida brasileira: a Independência marca a condição básica para que os brasileiros decidamos o que desejamos fazer e ser; mas é com a República que realizamos e consagramos uma escolha clara pelo regime de liberdades, de responsabilidades, de preocupação com o bem público, a partir de perspectivas puramente humanas – em uma palavra, com a República escolhemos o regime da cidadania.

            No Brasil não temos o hábito de efetivamente comemorar os feriados e as datas cívicas. Como se sabe, de modo geral os feriados são ótimas desculpas para não trabalharmos e, se for possível, viajarmos. Deixando de lado, talvez, o Dia do Trabalho (1º de maio), as exceções à afirmação acima são os feriados religiosos, em que se pode incluir mesmo o carnaval. O problema é que não deveriam existir tais feriados religiosos: não que se possa, nem que não se deva, haver comemorações religiosas: o problema é que não cabe ao Estado proclamar como valor cívico o que é próprio a uma única religião, mesmo que essa religião seja professada pela maioria da população. Afinal de contas, as crenças são questões individuais e o Estado não pode impô-las a ninguém. Além disso, os feriados religiosos no Brasil têm, todos eles, um caráter extra-humano e individualista: o que se comemora não são a história compartilhada pela população, os ideais a serem perseguidos por cada um e por todos, mas a busca da salvação individual em um mundo que, supostamente, existiria além deste.

            Quando a República foi proclamada, no amanhecer do dia 15 de novembro de 1889, muitas esperanças eram depositadas nessa mudança: harmonia, desenvolvimento, altruísmo, fraternidade, paz universal, justiça social e assim por diante. Entre as primeiras medidas tomadas pelo novo regime estavam o fim da unicidade imperial, com a atribuição da autonomia aos estados (antigas províncias), de tal maneira que cada estado pudesse ter liberdade para desenvolver os projetos políticos e sociais que julgassem mais adequados às suas realidades; a separação entre Igreja e Estado, acabando com o benefício oficial concedido à Igreja Católica, com a hipocrisia oficial que obrigava todos os servidores públicos e todos os políticos a serem nominalmente católicos e também com a opressão que a própria Igreja Católica vivia, ao ter que se submeter ao Estado. Além disso, ao tornar-se uma república, o Brasil deixava de prestar atenção exagerada à Europa e passava a prestar atenção à América, não mais para guerrear com os países americanos (como na Guerra da Tríplice Aliança, também conhecida por "Guerra do Paraguai"), mas para buscar uma comunidade fraterna no novo mundo.

             Embora esses ideais nem sempre tenham sido respeitados ou buscados, o fato é que eles eram afirmados desde o início da República. Aliás, logo em seguida, novos feriados foram instituídos, entre os quais 1º de janeiro, como confraternização universal; 13 de maio, como fim da escravidão e união das raças no Brasil; 14 de julho, como fim da opressão, com a queda da Bastilha; 7 de setembro, como Independência do Brasil; 12 de outubro, como descoberta da América e fraternidade americana. Eram feriados cívicos, que celebravam os ideias de liberdade, progresso e fraternidade; seguindo a idéia da república, de respeito ao bem comum, eles celebravam efetivamente a cidadania e a humanidade.

           Entretanto, ao longo do século XX, esses belos feriados foram abolidos (14 de julho, por exemplo), trocados (12 de outubro deixou de ser a descoberta da América para ser o dia de N. Sra. Aparecida) ou substituídos por outros (como Corpus Christi e Natal), sem contar os vários feriados relativos a "santos padroeiros". Além disso, o 7 de Setembro – a Independência – passou mais e mais a caracterizar-se como uma ocasião para desfiles militares, em vez de celebração da liberdade brasileira. Por fim, os ideais de pleno universalismo, fraternidade e generosidade foram substituídos pelo particularismo e pelo exclusivismo: não celebramos mais a união fraterna e inclusiva das raças no dia 13 de maio, mas temos em cada vez mais municípios a "consciência negra", em 20 de novembro.

            Os comentários acima não são muito otimistas; realmente, eles trazem uma nota de tristeza e desencanto. Mas, precisamente devido a isso, talvez seja necessário afirmarmos e reafirmarmos o oposto do desencantamento. Assim, celebremos o dia 15 de Novembro: que o belo feriado da Proclamação da República Brasileira seja a lembrança coletiva dos ideais e dos deveres cívicos brasileiros, rumo à inclusão social, à fraternidade universal, à justiça, ao desenvolvimento!


(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)

Vídeos do Seminário "Positivismo Ontem e Hoje"

Aqueles que tiverem interesse em assistir aos vídeos do Seminário "Positivismo Ontem e Hoje", promovido pela e realizado na Casa de Rui Barbosa, em 10.11.2014, eles estão disponíveis aqui:

- primeira parte, realizada pela manhã, com as comunicações dos pesquisadores Gustavo Biscaia de Lacerda (UFPR), Luís Otávio Ferreira (Fiocruz), Heloísa Bertol Domingues (MAST) e Christian Lynch (FCRB): https://www.youtube.com/watch?v=x2YYOdmkeG0

- segunda parte, no início da tarde, com a apresentação do projeto de reforma da Igreja Positivista do Brasil: https://www.youtube.com/watch?v=ZzxhhWg-5Ss

- terceira parte, com a conferência do Prof. Jean-François Braunstein (Casa de Augusto Comte): https://www.youtube.com/watch?v=gjrAfeUZFQE

Mensagens oficiais comemorativas da Proclamação da República

Comemoração divulgada no Facebook pelo Senado Federal.

Comemoração divulgada no Facebook pelo CNJ.

13 novembro 2014

Roteiro da exposição: "A ortodoxia da Igreja Positivista"

Exponho abaixo o roteiro da minha exposição "A ortodoxia da Igreja Positivista", que apresentei no Seminário "Positivismo Ontem e Hoje", realizado no dia 10 de novembro de 2014 na Fundação Casa de Rui Barbosa.

Como o tempo era limitado e também como, em princípio, não se previram anais do evento, elaborei apenas um roteiro da exposição.


O folheto com a programação do evento pode ser visto aqui.



*   *   *



A ortodoxia da Igreja Positivista

Gustavo Biscaia de Lacerda

Roteiro da exposição

Rio de Janeiro, 10 de novembro de 2014 – Fundação Casa de Rui Barbosa

1. Agradecimentos:

a. Ao público presente

b. À Casa de Rui Barbosa

c. Ao Christian Lynch, pelo convite

2. Questão básica da comunicação: o que é ser “ortodoxo”?

a. Quem eram os “ortodoxos”? Embora não exclusivamente, eram aqueles ligados à IPB

b. Os dois mais conhecidos eram Miguel Lemos e, ainda mais, Raimundo Teixeira Mendes

3. Os ortodoxos eram religiosos e é nesse sentido que eram “ortodoxos”

a. O próprio Augusto Comte já tinha definido a distinção entre “ortodoxos” e “heterodoxos”:

                                                              i. Os ortodoxos eram os religiosos, ou seja, os que aceitavam todas as obras de Comte, em particular as “religiosas” (Sistema de política positiva, Discurso sobre o conjunto do Positivismo, Apelo aos conservadores, Catecismo positivista, Síntese subjetiva)

                                                            ii. Os heterodoxos eram aqueles que rejeitavam a parte religiosa e tinham preocupações mais intelectuais, restringindo-se ao Sistema de filosofia positiva

1. Secundariamente, os heterodoxos apoiavam ativamente a tese de que Augusto Comte tinha ficado louco, ou retomado a “loucura” de 1826-1828

2. E. Littré; J. Stuart Mill, A. Giddens

4. Os ortodoxos não eram fanáticos nem dogmáticos:

a. Eram pessoas que adotavam as idéias religiosas e políticas de Comte como parâmetro de ação e de pensamento

b. Em outras palavras, não eram pessoas que adotavam de maneira genéricas as idéias filosóficas de Comte como fonte de inspiração e como apoio metodológico

5. Há a concepção geral de que a ortodoxia corresponde a rigidez mental e/ou a falta de imaginação ou inventividade

a. Mas, por um lado, a gigantesca maioria das idéias que qualquer indivíduo tem em qualquer momento já foi pensada antes por outras pessoas, seja no mesmo contexto, seja em períodos anteriores

b. Além disso, em particular, as idéias de qualquer pessoa baseiam-se nas idéias de outras pessoas, sejam pensadores sistemáticos, sejam indivíduos comuns

c. Assim, a concepção de que a imaginação das pessoas é “ilimitada” – defendida tanto pelo vulgo quanto por acadêmicos – é fantasiosa, quimérica e, no fundo, é anti-histórica, anti-sociológica e profundamente individualista

d. Costuma-se afirmar que a ortodoxia corresponde à falta de imaginação e de “inovações”: mas as inovações por si próprias não querem dizer muita coisa:

                                                              i. Muitas “inovações” consistem apenas em repetições de idéias já lançadas em outros momentos, com ou sem conhecimento da parte do “inovador”: as “viradas” (“turns”) acadêmico-intelectuais demonstram sobejamente essas falsas inovações

                                                            ii. Além disso, muitas inovações consistem simplesmente em retrogradações ou em propostas daninhas e/ou liberticidas: o nazismo e o comunismo soviético são dois exemplos perfeitos dessas inovações retrógradas

e. Deve-se notar que os ortodoxos não eram meros comentadores acadêmicos, sem maiores compromissos com o Positivismo e a obra de Comte: eles defendiam essa obra e aplicavam-na abertamente aos vários temas que agitavam as sociedades carioca, brasileira, americana e internacional

6. Um aspecto central da ortodoxia: a Religião da Humanidade

a. Em círculos acadêmicos e vulgos pode parecer estranha a religião secular proposta por A. Comte, seja porque se considera que Comte era “cientificista”, seja porque se considera de modo geral que religião é igual a teologia

b. Todavia, para Comte “religião” não equivale a “teologia”: a religião é um sistema geral de regulação das condutas e das vidas, individual e coletivo: para Comte, religião vem de “religare”, isto é, produzir a harmonia individual e também produzir a harmonia coletiva

c. Ao mesmo tempo, os acadêmicos adotam um desprezível double standart (dois pesos e duas medidas) a respeito da religião:

                                                              i. As religiões teológicas e metafísicas afirmam com enorme freqüência as coisas mais aberrantes e assustadoras a respeito do ser humano, da natureza, da realidade, da sociedade e da moral, mas, mesmo assim, são respeitadas e levadas a sério, por serem “sistemas de pensamento”, “religiosidades populares”, “fontes de identidades coletivas” etc.

                                                            ii. Mas, ao mesmo tempo, os acadêmicos costumam negar ao Positivismo esse respeito, simplesmente porque a Religião da Humanidade não é teológica – mesmo que o Positivismo afirme e exija a fraternidade universal, o pacifismo, o realismo cognitivo e político etc.

                                                          iii. Assim, os intelectuais costumam ser ou hipócritas ou cínicos a respeito da Religião da Humanidade

                                                          iv. Quais “acadêmicos” fazem isso? Os mais variados possíveis: católicos, marxistas, liberais; além disso, os especialistas em “religião” (isto é, em teologia): sociólogos, antropólogos, historiadores, filósofos da religião

7. Os positivistas ortodoxos eram “intelectuais públicos”

a. A idéia do “intelectual público” tem sido defendida há vários anos pelo marxista Michael Burawoy

                                                              i. O intelectual público é aquele intelectual que desenvolve uma atividade “extramuros”, que participa dos debates públicos, procurando constituir e desenvolver uma “consciência pública”

b. Em outras palavras, a figura do intelectual público corresponde à ação do que Augusto Comte chamava de “novo poder Espiritual”, que constituiria e mobilizaria a opinião pública

                                                              i. Incidentalmente, cabe notar mais um caso de double standart: se um marxista defende o “intelectual público”, a proposta é válida; se Augusto Comte defende um “poder Espiritual”, um “sacerdócio” que desenvolva a opinião pública, é motivo de chacota e desprezo

c. Os positivistas ortodoxos manifestavam-se a propósito de tudo que julgavam útil e/ou importante, de acordo com suas possibilidades materiais e pessoais: problemas sociais, políticos, econômicos, jurídicos, íntimos etc.

d. Assim, de fato, eles procuravam constituir uma nova moral pública e uma nova consciência pública

                                                              i. Deve-se notar que eles tinham como alvo o público não-estatal, ou seja, a sociedade civil

e. Em suas intervenções, eles procuravam dialogar com todos, ao mesmo tempo em que rejeitavam o uso da violência, fosse em suas intervenções, fosse como instrumento político em qualquer situação; também valorizavam muito as liberdades individuais e coletivas de escolha e decisão

                                                              i. A leitura direta das obras dos positivistas ortodoxos e, em particular, de Teixeira Mendes, revela e confirma o que o próprio Teixeira Mendes afirmou certa vez: com o passar do tempo ele(s) melhorou(raram), tornando-se cada vez mais fraterno(s), pacífico(s), humano(s)

                                                            ii. Embora do ponto de vista teórico o Positivismo rejeite a noção de “direitos humanos”, por ser metafísica, anti-histórica, anti-social e individualista, o fato é que todas as suas intervenções sempre defenderam o que se chama atualmente de “direitos humanos”

8. No Brasil, juntamente com o coro dos que ironizam ou desprezam os positivistas, houve quem dissesse que os ortodoxos tinham “medo da realidade”

a. O autor dessa tese é o historiador Sérgio Buarque de Hollanda

                                                              i. Nessa tese há um explícito desprezo pelos portugueses e pela herança portuguesa na colonização e na formação do Brasil, considerando-os molengas e preguiçosos: dando continuidade a essa “tradição”, os positivistas seriam intelectualmente moleirões

b. Também há uma especiosa interpretação da ação e das intervenções positivistas, com a fantástica e arrogante afirmação de que os positivistas não conheciam a obra de Comte nem sabiam interpretá-la – evidentemente ao contrário do próprio Sérgio Buarque

c. A atuação pública dos positivistas revelava uma preocupação enorme com o Brasil, com a América e com todos os povos do mundo: suas intervenções tinham por objetivo melhorar a situação de todos, combater injustiças, corrigir problemas etc.

d. Assim, eles teriam tido “horror à realidade”? Não: eles eram sacerdotes do novo poder espiritual ou, dito de outra maneira, eram “intelectuais públicos”: sua preocupação era apontar soluções, opções, alternativas para os problemas que identificavam

                                                              i. Ou seja: para usar uma palavra que está na moda (e que o próprio Augusto Comte empregava), eles defendiam uma utopia

e. Mas em certo sentido é possível empregar a expressão “horror à realidade”:

                                                              i. Ao contrário da interpretação cheia de rancor e preconceitos de Sérgio Buarque, o fato é que, de fato, os positivistas tinham “horror à realidade” brasileira do período em que atuaram (1881-1927): era uma sociedade oligárquica, com exclusão sistemática dos antigos escravos, com miséria, com uso sistemático da violência da parte dos ricos, dos poderosos e do governo contra os pobres, os fracos e a sociedade civil; eram uma sociedade que cada vez mais valorizava o militarismo, que desrespeitava os índios etc.

9. Não deixa de ser suspeito o desprezo habitual manifestado pelos intelectuais aos positivistas ortodoxos: provavelmente se escondem em tais manifestações ciúme e inveja, além de estratégias para afirmação política

10. Em síntese:

a. A atuação prática dos positivistas ortodoxos foi positiva para a sociedade brasileira

b. A despeito disso, os intelectuais comprazem-se em vilipendiar os positivistas, gerando os mais variados preconceitos


(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)

11 novembro 2014

Entrevista de Salvador Dalí a propósito do Positivismo

No documento anexo, pode-se verificar uma entrevista e uma foto tirada quando o pintor catalão surrealista Salvador Dalí visitou a Capela da Humanidade, na Casa de Clotilde de Vaux, em Paris.

Diga-se de passagem, visita e entrevista inusitadas!

O texto e a foto podem ser vistos aqui, no boletim n. 13 da Maison d'Auguste Comte (cujo portal pode ser visto aqui).

03 novembro 2014

Evento na Casa de Rui Barbosa: Seminário Positivismo Ontem e Hoje

http://www.casaruibarbosa.gov.br/interna.php?ID_S=195&ID_M=3035



Seminário Positivismo ontem e hoje
Dia 10 de novembro, segunda-feira, das 10 às 18h
O evento apresentará um panorama da irradiação do Positivismo no Brasil, de suas influências na vida política brasileira e suas ligações com o pensamento positivista na França. Nesta ocasião, será mostrado o projeto de restauro do Templo da Humanidade situado na rua Benjamin Constant, no Rio de Janeiro, sede da Igreja Positivista do Brasil, e de implementação de um Centro de Referência do Positivismo, em parceiria com o meio acadêmico e instituições museais.
"Positivismo ontem e hoje" tem por finalidade tecer uma rede de parcerias em torno do projeto, discutir suas linhas de pesquisas e agregar novas iniciativas.

:: Programação:
Mesa1: O Positivismo e suas repercussões na cultura brasileira (10-12h)
Convidados:
- Gustavo Biscaia Lacerda (UFPR) A ortodoxia da Igreja Positivista.
- Luiz Otávio Ferreira (Fiocruz) O positivismo e a institucionalização das ciências no Brasil no início do século XX.
- Heloisa Bertol Domingues (MAST/MCTI) Um viés do positivismo brasileiro na UNESCO.
- Christian Lynch (FCRB) Positivismo versus liberalismo: José Veríssimo, crítico de Joaquim Nabuco.
Mediação : Marcos Veneu (FCRB)

Mesa 2: Projeto de recuperação do Templo da Humanidade (14-16h)
Convidados:
- Luciano Cavalcanti, arquiteto encarregado do projeto de restauro do Templo da Humanidade (Ateliê Belmonte)
- Bertrand Rigot-Muller, consultor encarregado do projeto do Centro de Referência do Positivismo (Soluções Urbanas)
- Alexandre Martins, diretor da Igreja Positivista do Brasil
Mediação: Ana Pessoa (Diretora do CMI/FCRB)

Debatedores:
- Magaly Cabral (Museu da República)
- Marcos Felipe de Brum Lopes (Museu Casa de Benjamin Constant)
- Mariana Várzea (Superintendência de Museus)
- Paulo Vidal (Inepac)
- Superintendência do Iphan - Rio de Janeiro
- Carina Mendes (Superintendência do Iphan - Rio de Janeiro)


Conferência: Auguste Comte aujourd’hui: science et religion (16h30-18h)

Convidado:
- Jean-François Braunstein (Sorbonne-Paris I/presidente da Maison Auguste Comte)
Palestra em francês com tradução simultânea.


Organização:
FCRB e Soluções Urbanas

Apoio:
Consulado geral da França e Igreja Positivista do Brasil

Auditório
Entrada franca
Informações: 3289 8676


25 outubro 2014

Necessidade do "ordem e progresso"; superioridade sobre "direita-esquerda", "situação-oposição"

Todos aqueles que afirmam que a fórmula "ordem e progresso" busca limitar o progresso à ordem são incapazes de definir o progresso, em particular para além da definição geral de Condorcet, para quem o progresso é desenvolvimento contínuo, permanente e infinito. O "ordem e progresso" estabelece, ao contrário, as condições e as possibilidades do progresso, dizendo com clareza exatamente em que ele consiste. Em outras palavras, o "ordem e progresso" tira a idéia de progresso da vagueza e, portanto, da metafísica; ao contrário, quem rejeita essa fórmula em nome do progresso indefinido é simplesmente incapaz de entender a ordem de outra maneira que não como sendo "despotismo" ou "autoritarismo".

Há também a possibilidade de rejeitar-se o "ordem e progresso" devido a uma rejeição do próprio progresso, seja porque há um apego à ordem, seja porque se nega a idéia de progresso. Quem se apega à ordem já foi retrógrado, atualmente é reacionário; bem vistas as coisas, nos dias de hoje são relativamente poucos grupos que rejeitam qualquer progresso: por vezes limitam as ambições de outros grupos em um ou outro aspecto e o mais das vezes desejam limitar o desenvolvimento ao que já se obteve: esses poderiam ser denominados de "reacionários" ou "conservadores". Os grupos atuais que têm um caráter especificamente retrógrado são, não por acaso, os teológicos, majoritariamente cristãos, muçulmanos e até judeus.

Já os que rejeitam a idéia de progresso não são necessariamente retrógrados, no sentido de rejeitarem melhorias: antes, são irracionalistas, que rejeitam a concepção de "leis sociológicas" e que consideram que a história humana consiste apenas e tão-somente de "som e fúria", de choques permanentes e infinitos entre os grupos humanos. Esse tipo de raciocínio freqüentemente é metafísico e, não por acaso, também com freqüência é possível determinar suas origens teológicas, tão próximas ao misticismo e à metafísica alemã. Se a vida é apenas choque permanente, além de não ser possível determinar sentido algum nesta vida, o máximo que se pode almejar em termos coletivos é a vida política e, em particular, a política do poder – em outras palavras, egoísmos coletivos, guerras e dominação de todos sobre todos.

O "ordem e progresso" propõe a conciliação das necessidades da ordem social e das tendências de desenvolvimento humano. Em uma outra forma de considerar as dinâmicas políticas e sociais, muitos afirmam que é necessário em toda sociedade e em todo regime político a existência de situação e oposição ou, em termos parecidos, de "direita" e "esquerda". Situação e oposição, de um lado, e direita e esquerda, de outro lado, não são equivalentes a ordem e progresso: seja porque, no limite, podem ser oposições meramente formais, seja porque seus conteúdos específicos diferem bastante de ordem e progresso. Situação e oposição refere-se apenas ao fato de que há alguém (ou algum grupo) que governa e alguém (ou algum grupo) que não gosta de quem está no poder e que gostaria de governar em seu lugar: refere-se, portanto, apenas à disputa pelo poder. Direita e esquerda, por outro lado, têm conteúdos muito mais problemáticos, na medida em que, surgida essa oposição na Revolução Francesa, em mais de 200 anos elas já mudaram inúmeras e inúmeras vezes de conteúdo. De modo geral, o pólo forte é a esquerda, ou seja, é ela quem define os conteúdos respectivos de cada um dos pólos; mas nem a esquerda pode ser sinônima automática de progresso e liberdade (mas é sempre de igualdade, o que, mais uma vez, não é sinônimo nem de progresso nem de liberdade), nem a direita é sinônima de autoritarismo (embora também não implique nem a liberdade nem a ordem). Em suma: enquanto "ordem e progresso" corresponde, de fato, a um programa político e social claro, com liberdades e melhorias nas condições de vida, "direita e esquerda" é uma oposição vaga e freqüentemente estéril; situação e oposição é apenas uma formalização da disputa pelo poder, conforme a política britânica cristalizou.

(Reprodução permitida, desde que citada a fonte.)

14 outubro 2014

Sobre a política brasileira em 2014

Eu lembro-me de que, em 2002, eu comentava com alguns amigos e colegas do mestrado que Lula e o PT tinham que passar pelo governo para deixarem de ser principistas e quiméricos; na ocasião, virtualmente todos os meus colegas eram petistas.

Importa reconhecer que a mudança operada então, do PSDB para o PT na Presidência da República, foi necessária; o PDSB já não conseguiria satisfazer as ambições nacionais; mas, mesmo assim, o PT não correspondia exatamente a esses anseios, haja vista que, ao contrário do que aconteceu com FHC nas suas duas eleições, nem Lula nem o PT jamais ganharam a Presidência no primeiro turno.

Comparando o apoio maciço e idealista dos meus colegas, amigos, conhecidos e intelectuais em geral em favor do PT, de 2002, com a profunda desilusão, com o cinismo e até com a profunda rejeição que esse partido sofre hoje, não deixa de ser chocante o resultado. Se em 2002 eu esperava um choque de realidade para o PT, hoje eu observo que esse choque foi bem mais intenso do que eu esperava.

Absolutamente TODAS as práticas que o PT condenava, por vezes de maneira histérica e cansativa, foram aplicadas. Para piorar, quando essas práticas eram, e são, praticadas pelos outros partidos, ou melhor, pelos partidos com quem o PT disputa cargos, essas práticas são criticadas como sendo "fisiológicas", "privatistas", "antidemocráticas", "preconceituosas" etc.; quando é o PT e/ou seus partidos de apoio que as praticam, são "necessidades", é "sabedoria política", é "habilidade política".

Longe de mim justificar o injustificável e afirmar que o PT está certo e que os outros estão errados, ou vice-versa, isto é, que os outros estão certos e o PT, errado: todos estão errados - e esse é um dos maiores descalabros da política brasileira em 2014. 

O "choque de realidade" do PT e seus efeitos sobre a (moral) política nacional possivelmente é um dos grandes motivos das manifestações de 2013, juntamente com uma versão brasileira da "revolução silenciosa" (proposta em 1972 por R. Inglehart).

André Singer definiu o principismo petista como o "espírito de Sion" e o pragmatismo petista como o "espírito de Anhembi". Indiscutivelmente foi bom para o país que o PT abandonasse o "espírito de Sion", isto é, todas as quimeras socialistas que ele acalentava em virtude da união dos intelectuais e dos católicos esquerdistas (ditos, ou autonomeados, "progressistas"). Mas ao jogar a água do banho, levou com ela o bebê: um certo espírito republicano nas práticas políticas foi embora também. Os programas sociais aumentados desde 2004 (excluo o histrionismo do "Fome Zero") são a parte aproveitável desse "espírito de Sion", embora esses mesmos programas sejam programaticamente incoerentes, na medida em que são focalistas e particularistas e não universalistas, ou seja, seguem o "neoliberalismo" e ampliam as políticas criadas desde os governos de FHC e que o PT então chamava de "esmolas".

(A assinatura da criminosa Concordata com o Vaticano, em 2008, e o apoio à Igreja Universal NÃO são traições ao "espírito de Sion": integram o rol de práticas e idéias do PT desde sempre.)

Por fim, deixando de lado os puros militantes, sejam eles teóricos, sejam eles práticos, que constituem parcela de apoio cada vez menor do PT, espanta-me que haja intelectuais que simplesmente negam os deslizes, os erros, as malversações, as incoerências e até os crimes do PT. Uma coisa é haver intelectuais que reconhecem tudo isso mas que, em nome da continuidade dos programas (ou melhor, de alguns programas) defendem o PT e a reeleição de Dilma Rousseff; outra coisa são os "intelectuais" que fazem malabarismos teóricos para justificar o injustificável, lançando mão dos mais variados sofismas políticos ou lógicos. 

Nesse sentido, esses intelectuais especificamente petistas correspondem à negação prática do "poder Espiritual" proposto por Augusto Comte. Deixando de lado a terminologia estranha para os dias de hoje, Comte defendia que o "poder Espiritual" deveria ser autônomo em relação ao governo e ao Estado, a fim de manter sua capacidade crítica; não "crítica" no sentido de aporrinhar e de negar o que o partido rival faz, mas crítica no sentido de ser o órgão, o intérprete, o guia da opinião pública, ou seja, o conjunto de indivíduos que, submetendo-se à autoridade material do Estado, estabeleciam as condições de legitimidade das políticas públicas, do governo, do Estado, do regime político. Em vez de serem membros da opinião pública, esses intelectuais fazem questão de serem "intelectuais orgânicos", ou seja, profissionais da justificação teórica das atitudes práticas do partido político a que estão ligados.

Por que a referência específica aos intelectuais petistas? Porque, como observei no início desta postagem, em 2002 a quase totalidade dos intelectuais que eu conhecia eram petistas. Os danos que esse partido fez ao ambiente intelectual brasileiro são enormes. Mas, bem vistas as coisas, o PT não fez o que fez apenas devido à "lógica política": fez o que fez porque os indivíduos que o comandam assim o desejaram e porque, em um nível mais profundo, as idéias que os orientam conduzem a isso: não desenvolvimento nacional, integração social e humanismo, mas lutas de classes, "maquiavelismo" político e cinismo teológico-metafísico.