22 junho 2012

"Preconceitos acadêmicos: um estudo de caso"



Reproduzo abaixo o texto "Preconceitos acadêmicos: um estudo de caso", de autoria de Ramon Cardinali. Esse texto toma as idéias de Augusto Comte e Edgar Morin para, contrapondo-as, indicar de maneira concreta como os preconceitos acadêmicos muitas vezes são meramente isso - preconceitos - e, a partir de rótulos, impedem que se abordem teorias, idéias e abordagens que podem ser frutíferas.


A postagem original do texto original está disponível aqui.


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Preconceitos acadêmicos: um estudo de caso

Autor: Ramon Cardinali


O preconceito acadêmico é um fenômeno comum e razoavelmente compreensível.
 Nós simplesmente não temos tempo e recursos suficientes para nos aprofundar no estudo de todasescolas filosóficas, psicológicas, sociológicas etc., e em decorrência disso, as chances de que nós venhamos a desenvolver concepções reduzidas/simplificadas de tudo aquilo que foge aos nossos interesses mais imediatos são bastante elevadas. Soma-se a isso o fato de inúmeros fatores sócio-culturais (dentro e fora do âmbito acadêmico) se agregarem no sentido de favorecer o surgimento e a manutenção de uma espécie de "culto à autoridade", onde muito do que é dito pordoutoresprofessores e cientistas é tomado como verdade absoluta e instantânea.

Quando alguém afirma que não gosta da Psicanálise porque ela "interpreta todos os fenômenos humanos apenas em termos de sexualidade" (ou em versão taquigráfica: pra Psicanálise "tudo é sexo!"), evidencia a formação daquilo que estou chamando de um preconceito acadêmico - no caso, uma descrição excessivamente simplificada/reduzida da teoria psicanalítica. Será que esta pessoa - nosso crítico fictício da Psicanálise - já se debruçou sobre as discussões a respeito da noção de "sexo" em Freud? Mais do que isso, será que ela tem o mínimo de interesse e ou condições (tempo e recursos principalmente) de fazer isto? Provavelmente ela construiu uma concepção simplificada da Psicanálise baseada única e exclusivamente naquilo que ouviu falar ou leu de maneira despretenciosa.¹

Por outro lado, há momentos em que esta redução/simplificação se torna um valioso recurso argumentativo, adotado de maneira consciente por acadêmicos que desejam ressaltar a "profundidade" ou relevância de uma determinada concepção em detrimento de outra - este procedimento se enquadra bem naquilo que se convencionou chamar de falácia do espantalho.
Um exemplo da argumentação falaciosa descrita acima pode ser encontrado nos momentos em que o psicólogo evolucionista Steven Pinker se propõe a criticar o behaviorismo de B.F. Skinner, simplificando ao máximo a concepção skinneriana com o intuito tornar sua concepção (a Psicologia Evolucionista) ainda mais relevante para o público. (Mais informações sobre este caso específico podem ser encontradas aqui)

A formação de preconceitos acadêmicos como os apresentados acima é recorrente no meio acadêmico e de maneira geral nenhuma concepção-a-respeito-de-alguma-coisa está imune a este fenômeno. 

Para nos aprofundarmos um pouco mais neste problema, gostaria de fazer uma breve digressão, contrapondo alguns trechos da obra de dois autores: Auguste Comte (1798-1857) e Edgar Morin(1921-). O primeiro é muitas vezes conhecido como o "pai da Sociologia" e fundador doPositivismo - o segundo, como idealizador da epistemologia da Complexidade, ou pensamento complexo. Devo ressaltar de antemão que foge completamente às minhas pretensões elaborar uma exposição e análise completa da obra destes autores. Irei apenas contrapôr alguns trechos específicos de textos específicos que me permitirão explicitar ainda mais algumas das consequências negativas do preconceito acadêmico.

Em determinado momento da produção de suas obras, tanto Morin quanto Comte elaboraram críticas ao processo de "hiperespecialização" (nos termos de Morin) ou "especialização excessiva" (nos termos de Comte) do saber científico. Em linhas gerais, trata-se de uma crítica a uma constatação feita por ambos, a saber, de que a ciência tem progredido através da excessiva compartimentalização de seus problemas - o que acaba por resultar em profissionais especializados, pouco capazes de dialogar com as demais disciplinas científicas. Ademais, a multiplicação desenfreada das especialidades científicas aumenta as fronteiras interdisciplinares e reduz a probabilidade de que o conhecimento produzido por estas diversas disciplinas possam ser integrados em visões globais, coerentes e bem contextualizadas.

Deixemos os próprios autores nos ajudarem no restante desta digressão. Meus comentários e grifos apenas ressaltarão os pontos de contato entre o pensamento de ambos.

Este processo de especialização excessiva das disciplinas científicas tem o seu lado positivo, como afirma Comte:
"É a essa repartição de diversas espécies de pesquisas entre diferentes ordens de sábios que devemos, evidentemente, o desenvolvimento tão notável que tomou, enfim, em nossos dias, cada classe distinta dos conhecimentos humanos[...]"²
Entretanto, já na primeira metade do século XIX, Comte começa a vislumbrar alguns aspectos negativos deste processo:
"Embora reconhecendo os prodigiosos resultados dessa divisão, vendo de agora em diante nela a verdadeira base fundamental da organização geral do mundo dos cientistas, é impossível não se aperceber dos inconvenientes capitais que engendra em seu estado atual, em virtude da excessiva particularidade das idéias de que se ocupa exclusivamente cada inteligência individual."
E ele continua: "É urgente ocupar-se com isso de modo sério, pois tais inconvenientes que, por sua natureza, tendem a crescer sem parar, começam a vir a ser muito sensíveis. Todos o admitem, as divisões, estabelecidas para a maior perfeição de nossos trabalhos, nos diversos ramos da filosofia natural, são por fim artificiais."
Em seguida, Comte chama a atenção para a importância de remediarmos "este mal antes que se agrave", e afirma que: 
"[...]hoje cada uma dessas ciências tomou separadamente extensão suficiente para que o exame de suas relações mútuas possa dar lugar a trabalhos contínuos, ao mesmo tempo que essa nova ordem de estudos torna-se indispensável para prevenir a dispersão das concepções humanas."
Comte expõe a sua solução da seguinte maneira:
"O verdadeiro meio de cessar a influência deletéria que parece ameaçar o porvir intelectual, em conseqüência duma demasiada especialização das pesquisas individuais, não poderia ser, evidentemente, voltar a essa antiga confusão de trabalhos, que tenderia a fazer retroceder o espírito humano e que se tornou hoje, felizmente, impossível. Consiste, ao contrário, no aperfeiçoamento da própria divisão de trabalho. Basta fazer do estudo das generalidades científicas outra grande especialidade.
Que uma classe nova de cientistas, preparados por uma educação conveniente, sem se entregar à cultura especial de algum ramo particular da filosofia natural, se ocupe unicamente, considerando as diversas ciências positivas em seu estado atual, em determinar exatamente o espírito de cada uma delas, em descobrir suas relações e seus encadeamentos, em resumir, se for possível, todos os seus princípios próprios num número menor de princípios comuns, conformando-se sem cessar às máximas fundamentais do método positivo. Ao mesmo tempo, outros cientistas, antes de entregar-se a suas especialidades respectivas, devem tornar-se aptos, de agora em diante, graças a uma educação abrangendo o conjunto dos conhecimentos positivos, a tirar proveito das luzes propagadas por esses cientistas votados ao estudo de generalidades e, reciprocamente, a retificar seus resultados, estado de coisas de que os cientistas atuais se aproximam cada vez mais. [...] Existindo uma classe distinta, incessantemente controlada por todas as outras, tendo por função própria e permanente ligar cada nova descoberta particular ao sistema geral, não cabe mais temer que demasiada atenção seja dada aos pormenores, impedindo de perceber o conjunto."
Em suma, Comte propõe um trabalho de reflexão constante sobre o modo como às disciplinas científicas se relacionam umas as outras e as eventuais consequências destes entrelaçamentos. Além disso, propõe também um processo educacional que conscientize os futuros cientistas da existência de tais relações e do modo como elas ocorrem.

Ao contrário de Comte (autor pouco reconhecido por propostas como a apresentada acima), Morin é um autor contemporâneo que obteve grande reconhecimento no final do século XX por elaborar uma proposta que, pelo menos em alguns aspectos, se assemelha à de Comte: a noção depensamento complexo.

Morin, assim como Comte mais de um século antes, também elabora sua reflexão sobre o problema da hiperespecialização do conhecimento científico (apesar de em alguns momentos apontar o "positivismo" como uma corrente totalmente contrária à sua epistemologia da complexidade), e afirma que a ciência atual tem necessidade
"[...] não apenas de um pensamento apto a considerar a complexidade do real, mas desse mesmo pensamento para considerar sua própria complexidade e a complexidade das questões que ela levanta para a humanidade. É dessa complexidade que se afastam os cientistas não apenas burocratizados, mas formados segundo os modelos clássicos do pensamento. Fechados em e por sua disciplina, eles se trancafiam em seu saber parcial, sem duvidar de que só o podem justificar pela idéia geral a mais abstrata, aquela de que é preciso desconfiar das idéias gerais!"³
No momento em que condena os chamados "modelos clássicos de pensamento", ele frequentemente se refere ao pensamento moderno (em contraposição ao pós-moderno), que tem o Positivismo como um de seus expoentes.

De todo modo, Morin sugere que passemos a fazer "ciência com consciência" - uma ciência capaz de pensar o seu próprio processo de desenvolvimento das fronteiras interdisciplinares e que esteja apta a construir "pontes" que conectem uma disciplina a outra, promovendo um quadro que ele chama de transdisciplinaridade. Em suas palavras:
"De toda parte surge a necessidade de um princípio de explicação mais rico do que o princípio de simplificação (separação/ redução), que podemos denominarprincípio de  complexidade. É certo que ele se baseia na necessidade de distinguir e de analisar, como o precedente, mas, além disso, procura estabelecer a comunicação entre aquilo que é distinguido: o objeto e o ambiente, a coisa observada e o seu observador. Esforça-se não por sacrificar o todo à parte, a parte ao todo, mas por conceber a difícil problemática da organização[...]
Afirma por fim:
"Precisamos, portanto, para promover uma nova transdisciplinaridade, de um paradigma que, decerto, permite distinguir, separar, opor, e, portanto, dividir relativamente esses domínios científicos, mas que possa fazê-los se comunicarem sem operar a redução. O paradigma que denomino simplificação (redução/separação) é insuficiente e mutilante. É preciso um paradigma de complexidade, que, ao mesmo tempo, separe e associe, que conceba os níveis de emergência da realidade sem os reduzir às unidades elementares e às leis gerais."
Em mais de uma oportunidade Morin citou um pensamento do filósofo Blaise Pascal para ilustrar o pensamento complexo: "é impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, como é impossível conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes". Pelo que pudemos observar, a proposta de Comte envolve um processo semelhante - se não idêntico.
Morin dá o nome de pensamento complexo à sua proposta justamente por definir "complexus" como "aquilo que é 'tecido' junto'", justificando assim a necessidade de uma abordagem transdisciplinar, que dê conta de lidar com o mundo de forma integrada e não mutilada - da mesma forma que Comte já considerava as fronteiras entre disciplinas científicas como criações humanas; artificiais.
  
Não obstante, assim como também pudemos ler nas citações anteriores de Comte, Morin salienta a importância de se reformular o processo educacional nos moldes de seu pensamento complexo - chegando ao ponto de explicitar esta proposta em um livro chamado "Os sete saberes necessários à educação".

O problema da hiperespecialização do conhecimento científico e da necessidade de promoção da transdisciplinaridade é extremamente interessante, e, sem dúvidas, continuará fazendo parte de diversas discussões filosóficas contemporâneas. O fato de podermos identificar um autor da primeira metade do século XIX e, muitos anos depois, outro da segunda metade do século XX discorrendo sobre esta questão evidencia a pertinência histórica do tema. Entretanto, minha digressão se encerra aqui. Por ora, o objetivo desta postagem é utilizar deste diálogo Comte-Morincomo um meio, e não como fim.

O que importa no momento é a constatação de que, na medida em que deixamos os próprios autores dialogarem, através da sucessão de (por vezes longas) citações, podemos identificar o quão semelhante é a descrição do problema e a solução por eles proposta. Apesar de utilizarem vocabulários distintos, a existência de convergências no pensamento dos dois autores é notável.

O motivo de ter optado por contrapôr trechos da obra de Comte com a de Morin é justamente pelo fato do primeiro ser um dos maiores alvos de preconceitos acadêmicos, enquanto o segundo goza de um prestígio proporcionalmente inverso. Concordo com Gustavo Biscaia de Lacerda - estudioso da obra de Comte e do Positivismo - quando este afirma que é "consensual no âmbito das ciências sociais que a palavra 'Positivismo' tem um significado negativo" e que este costuma ser o "grande arquiinimigo de várias das principais correntes teóricas nas ciências sociais". No meio acadêmico atual (e isso aparece inclusive na obra de Morin) o Positivismo é tomado como representante máximo da simplificação, do reducionismo e da ingenuidade filosófica.

O "como" e o "por que" do termo "Positivismo" ter adquirido uma conotação pejorativa é assunto muito longo e foge também aos objetivos deste post - podendo ser melhor compreendido à luzdeste artigo de Lacerda. O cerne da questão, entretanto, é a constatação de que o preconceito acadêmico em relação às idéias de Comte (por este ser considerado o "positivista paradigmático") é frequente, e faz com que muitos deixem de entrar em contato direto com a obra deste autor.

Impedindo que muitos estudantes ou profissionais entrem em contato com a grande e diversa obra de Comte, o preconceito acadêmico faz com que certos pensamentos e idéias que podem se mostrar extremamente relevantes e atuais - como este breve diálogo entre Comte e Morin nos mostra - passem completamente despercebidos. Por mais que os problemas da hiperespecialização das disciplinas científicas estejam muito mais evidentes hoje do que nos tempos de Comte, sua proposta de solução a esta questão deve ser julgada após uma leitura e análise mais detalhada, e não aprioristicamente, justificada pura e simplesmente por se tratar de um autor "ultrapassado" e vinculado a uma corrente filosófica já "superada".

O exemplo desenvolvido neste texto é apenas um dos inúmeros possíveis, e pode nos servir também para lembrar das consequências negativas envolvidas na prática do tal "culto à autoridade", mencionado no início desta postagem.

Por fim, se não temos tempo e recursos suficientes para entrar em contato direto com a obra de todos os autores, que pelo menos tenhamos consciência deste fato e sejamos mais humildes em relação às concepções que formamos sobre os diversos aspectos que compõe este universo que é o conhecimento humano.

Notas 

¹ Em encontro recente do nosso grupo "Círculo da Savassi", Vinícius Garcia me chamou a atenção para a existência de preconceitos semelhantes relacionados ao Liberalismo, apontando como é recorrente a interpretação (por demais simplista e apressada) de que o liberalismo - com sua defesa da liberdade individual - se vincula necessariamente à uma defesa do livre-arbítrio.

² Todas as citações de Auguste Comte foram retiradas do livro Curso de Filosofia Positiva.Originalmente de 1848 - p.52/55. Versão digitalizada disponível em:http://search.4shared.com/postDownload/iYxCaxVS/COMTE_Curso_de_filosofia_posit.html 


³ Todas as citações de Edgar Morin foram retiradas do livro Ciência com Consciência 8ª edição, 2001 - p.9/10, 138 e 215.

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