Cartaz gentilmente elaborado por João Carlos Silva Cardoso. |
No dia 15 de novembro comemoramos
no Brasil a Proclamação da República[1].
Esse belo e importante acontecimento ocorreu por meio da conjunção de inúmeros indivíduos
e grupos que, de diferentes maneiras, baseados em diversos princípios e com
variadas intensidades, desde pelo menos 1789 almejavam que o Brasil fosse uma
república livre e progressista. O movimento que resultou no fim da monarquia em
1889 teve a importantíssima participação dos positivistas brasileiros, de Norte
a Sul do país, e foi liderada pelo professor de Matemática e Coronel do
Exército Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) – ele também positivista
e adepto da Religião da Humanidade.
Benjamin Constant Botelho de Magalhães |
Neste ano desejo celebrar a
memória de Benjamin Constant por meio da apresentação de elementos da teoria
republicana. Assim, creio, será possível entender um pouco das idéias que
moveram esse grande cidadão e patriota; da mesma forma, creio que será possível
percebermos que a República é um verdadeiro ideal político, capaz de orientar
as ações dos cidadãos ainda por muitas e muitas gerações – se é que em algum
dia ela deixará de ser um ideal.
Definindo a “República”
“Em seu significado negativo, o princípio republicano resume
definitivamente a primeira parte da Revolução [Francesa], ao interditar todo
retorno de uma realeza [...]. Por sua interpretação positiva, ele começa
diretamente a regeneração final, ao proclamar a subordinação fundamental da
política à moral, a partir da consagração permanente de todas as forças
quaisquer ao serviço da comunidade” (Augusto Comte, Système de politique positive, v. I, p. 70).
De acordo com o Positivismo,
a República define-se pelo menos por duas características, uma negativa e outra positiva.
(1) Contra a monarquia, a favor da meritocracia
A característica negativa refere-se
à oposição à monarquia. Isso não significa apenas que a sociedade deve ser
governada por um presidente e não por um rei; que seus impostos devem remunerar
governantes capazes e não toda uma casta que parasita a sociedade. A oposição à
monarquia implica também o fim das sociedades de castas, de “estados”, de “ordens”,
isto é, das sociedades em que a condição jurídica, política e até moral de cada
indivíduo é dada pelo seu nascimento. Assim, em vez de termos “reis”, “príncipes”,
“marqueses”, “duques”, “condes”, “barões” etc. – que, apenas por terem nascido
nas famílias em que nasceram, valeriam mais ou menos que o comum das pessoas,
como ocorre ainda hoje na Inglaterra, nos Países Baixos, na Espanha, na Suécia
e em vários outros países –, temos apenas cidadãos.
Isso resulta em que o valor
dos indivíduos é dado não por seu nascimento, mas pelo seu mérito individual.
Ora, a valorização do mérito individual, ao mesmo tempo em que deve resultar na
meritocracia, implica um sério
problema prático, na medida em que as condições sociais concretas dificultam o
desenvolvimento das capacidades de muitos cidadãos, em particular dos mais
pobres. Para contornar esse problema e, no limite, remediá-lo, tanto o governo
quanto a sociedade civil devem esforcem-se para conferir condições para que os
mais pobres possam desenvolver suas capacidades.
Além disso, um outro
procedimento é necessário; esse procedimento adicional é mais difícil, pois ele
exige reflexão e ponderação e também porque ele é abstrato: o mérito individual deve ser avaliado abstratamente, não
em termos concretos, considerando as contribuições que cada indivíduo dá para a
coletividade. Assim, não é possível entender por “mérito” apenas a capacidade econômica de cada um, mas também outros
aspectos, como aptidões artísticas, elaborações filosóficas, pesquisas
científicas, manutenção de famílias saudáveis, estímulo à cooperação social e
ao desenvolvimento do altruísmo.
Augusto Comte |
Como argumentava Augusto
Comte, a avaliação do mérito individual é a função social mais difícil de realizar,
em virtude da sua grande complexidade: por esse motivo, deve ser feita por um órgão
social (não governamental) especialmente dedicado a isso, que analise serenamente
o conjunto da vida de cada cidadão e leve em consideração as várias
circunstâncias envolvidas[2]:
esse órgão é o sacerdócio positivista.
(2) Dedicação à coletividade, subordinando a política à moral
O aspecto positivo da definição
da república consiste na dedicação à coletividade, a partir da subordinação da
política à moral.
A dedicação à coletividade
consiste em cada indivíduo buscar ser um cidadão útil, contribuindo ativamente
da melhor maneira possível, dentro de suas condições, para a sociedade. Essas
contribuições são de vários tipos: evidentemente, as atividades econômicas são
as mais extensas e as mais básicas, mas não são as únicas, pois o ser humano
não se limita nem se resume ao estômago. Assim, as contribuições também podem
ser afetivas, filosóficas, artísticas, científicas, políticas, organizacionais,
familiares e assim por diante.
Cumpre notar também que todo
cidadão desenvolve ao mesmo tempo pelo menos dois tipos de atividades: as
particulares e as gerais. As particulares são as suas atividades específicas: suas
profissões, seus trabalhos; já as gerais são aquelas que se referem à
coletividade e que, de acordo com o senso comum, são chamadas de “políticas”.
Esses dois tipos de atividades são complementares e, dessa forma, não faz
sentido opor uma à outra: todo trabalhador é e deve ser um cidadão, todo
cidadão é e deve ser um trabalhador.
Mas, por outro lado, é
necessário reconhecer que as atividades particulares consomem bastante tempo, o
que impede que o grosso dos cidadãos dediquem-se exclusivamente às atividades
gerais; ao mesmo tempo, as sociedades modernas oferecem um sem-número de
atividades de lazer, de possibilidades de gozo da vida individual, familiar,
coletiva que não se referem ao que chamamos de “política”; essas atividades são
legítimas e integram o que chamamos de “bem-estar”. Inversamente, há indivíduos
que se dedicam exclusivamente à condução dos negócios gerais: tais indivíduos constituem
o governo. Há uma separação clara entre governantes e governados, entre o
Estado e os cidadãos; essa separação é boa, é correta e é necessária. Nesse
quadro, o comum dos cidadãos participa da vida política principalmente do
acompanhamento dos negócios públicos, no âmbito da sociedade civil e por meio da
opinião pública.
A subordinação da política à
moral consiste em que cada indivíduo, cada cidadão, cada empresa, cada
organização, cada país, cada civilização deve visar à convergência em seus
esforços, limitando as atividades divergentes e particularistas; deve buscar
estimular e satisfazer o altruísmo, comprimindo os vários egoísmos e
esforçando-se para orientá-los em direção ao altruísmo; deve fortalecer e
estimular a atividade pacífica, evitando as guerras e resolvendo o máximo
possível os conflitos por meio das negociações e com instrumentos pacíficos.
No ser humano, o egoísmo é
mais forte que o altruísmo, assim como as formas que o egoísmo assume são mais
variadas que as do altruísmo. O “egoísmo” significa a satisfação de
necessidades e desejos individuais mas que visam a fins particulares; em contraposição, o altruísmo significa o estímulo e
a satisfação de necessidades também individuais mas que visam a beneficiar
outrem e/ou a coletividade. Assim, não é possível erradicar o egoísmo e nem
faria sentido isso; mas daí não se segue que o egoísmo possa ser um fim em si
mesmo. É necessário limitar o egoísmo e direcioná-lo para outros objetivos que
não nós mesmos: a moralidade, portanto, consiste no estímulo e no
desenvolvimento do altruísmo. Quando Augusto Comte afirmava que a política deve
subordinar-se à moral ele queria dar a entender isso: que a política e o
conjunto das atividades humanas devem orientar-se em direção ao altruísmo e não
se resumir nem se consumir no egoísmo.
Ao definir o sentido positivo
do seu conceito de “república”, Augusto Comte incluía um elemento que chamava “social”.
Evidentemente, a definição de moralidade que apresentamos acima é “social”,
pois o altruísmo consiste nos esforços em bem dos demais indivíduos e da
coletividade de modo geral; mas o traço “social” da república, de modo
específico, é melhor entendido em contraposição a uma definição estritamente
política da república. Nesse sentido, para Augusto Comte e para o Positivismo, a
república não pode ser apenas um regime político,
que se opõe à monarquia, mas deve também ser uma forma de organização social
que integre e valorize todos os seus membros; em particular, realizando a “incorporação
social do proletariado”. Assim, o regime político cujo nome significa,
literalmente, “coisa pública” e que, de acordo com Augusto Comte, caracteriza-se
pelo primado do altruísmo e da preocupação com os demais, deve realizar na
prática esse primado e essa preocupação a começar pela combate à miséria, pelas
políticas de geração de renda, pelas políticas de geração de emprego e assim
por diante.
As virtudes cívicas libertam, o “desejo” escraviza
Uma outra forma de entender a
subordinação da política à moral é uma concepção mais clássica da “república”,
a saber, que a república é o regime político e social mantido pelas virtudes
cívicas, a que se contrapõe a corrupção. Quando falamos em “virtudes cívicas”
queremos dar a entender as virtudes próprias à atividade política na República:
o interesse pela coletividade, o espírito de grupo, a generosidade, a
honestidade, a fraternidade, o respeito às opiniões divergentes, o entendimento
de que as divergências devem ser solucionadas via argumentação racional e não
por meios violentos, a convergência e a busca de amplos entendimentos e
consensos.
As virtudes cívicas,
portanto, andam bastante próximas da forte ênfase de Augusto Comte em relação
aos deveres sociais. Sem serem impostos pelas leis, os deveres são regras de
comportamento que obrigam entre si os cidadãos, no sentido indicado antes, ou
seja, a favor do altruísmo, da incorporação social do proletariado e assim por
diante. Conseqüentemente, ao rejeitar a sua definição nas leis, a noção de
deveres baseia-se na opinião pública: cada indivíduo, cada cidadão deve aceitar
voluntariamente essas obrigações, de
tal sorte que elas definam comportamentos adotados de “dentro para fora” –
afinal de contas, o altruísmo só é verdadeiro e só produz os seus melhores
resultados quando é voluntário, não quando é imposto de fora e pela ameaça do
uso da força (como ocorre com as leis).
Um famoso publicista brasileiro,
que há pouco tempo foi Ministro da Educação, bem ao gosto “pós-moderno”, ao
tratar da República afirmou que as virtudes cívicas devem ser contrapostas ao “desejo”,
às vontades íntimas; segundo ele, a virtude coage e os desejos “libertam”. Essa
concepção é claramente um sofisma, um jogo de palavras que distorce a realidade
e tem péssimos resultados. A virtude não coage ninguém, sejam as virtudes
cívicas (que beneficiam diretamente a vida coletiva), sejam as virtudes
individuais (que regulam o comportamento individual: temperança, modéstia,
humildade etc.). Como vimos, as virtudes regulam o comportamento humano,
estimulam o altruísmo e orientam o egoísmo em favor do altruísmo: essa
regulação é fundamental para uma verdadeira vida coletiva e pacífica. Em
contraposição a isso, o “desejo” é a vontade individual em sua forma mais
clara, ou seja, é o egoísmo. Enquanto a virtude cívica tempera algumas paixões pessoais
e políticas por meio do uso da inteligência e do altruísmo, os desejos são as
paixões humanas em estado puro, sem a mediação da inteligência e do altruísmo.
Ou melhor, os desejos até usam a inteligência, mas apenas para buscarem sua
satisfação: ora, a satisfação dos desejos é sempre uma satisfação pessoal, ou
seja, egoísta; além disso, como se sabe há séculos (e mesmo milênios), as
paixões e os desejos não se satisfazem nunca.
Em outras palavras, exatamente ao contrário do que argumentou o publicista, as
virtudes libertam e são condição da liberdade; o desejo é sempre elemento de
egoísmo, de conflitos permanentes e de escravização pessoal e coletiva.
As virtudes cívicas contra a corrupção
A preocupação com o bem comum
– que pode ser entendida como uma forma de resumir as várias virtudes cívicas –
inclui o acompanhamento dos negócios públicos. É importante notarmos que “acompanhar
os negócios públicos” não é o mesmo que “conduzir os negócios públicos”: a
condução da vida política cabe antes de mais nada ao governo (aos “governantes”,
ao “Estado”), mas os cidadãos têm o dever de acompanhar as decisões e as
medidas adotadas. Esse dever impõe-se a todos não apenas porque a vida política
diz respeito a todos; ele é necessário também porque os cidadãos “comuns”
formam a sociedade civil, que, por sua vez, expressa-se por meio da opinião
pública: para que a opinião pública opine de maneira racional, ela deve estar
no mínimo bem informada. Além disso, o acompanhamento constante dos negócios
públicos é o instrumento mais importante e mais poderoso para que os
governantes desempenhem suas funções realmente em favor da coletividade e não
em favor de si próprios: em outras palavras, a opinião pública ativa é o
instrumento mais importante no combate à corrupção.
Concluindo: a República em memória de Danton, de Paris e da
França
As concepções expostas acima estão
bem longe de esgotar o conceito de República. A idéia e a prática da “república”
começaram na Roma Antiga, no século VI a.e.a., foram retomadas na Idade Média
em várias cidades italianas e neerlandesas, passaram pela Inglaterra,
atravessaram o Oceano Atlântico e foram finalmente consagradas na França, em
1792, no curso dos tormentosos, mas gloriosos, eventos que chamamos de
Revolução Francesa. O responsável pela proclamação da República na França foi o
grande Georges Jacques Danton (1759-1794); ao fazê-lo, ele procurava realizar o
programa duplo indicado acima: contra a monarquia, a favor da coletividade e do
bem comum. Com isso, ele consagrava também os princípios da liberdade e da
fraternidade, além da igualdade perante a lei.
Georges Danton |
Igualdade perante a lei,
liberdade e fraternidade: esses ideais são universais. Por meio da obra de
Augusto Comte, os princípios consagrados pela República francesa foram
aplicados e realizados no Brasil, graças à ação de inúmeros cidadãos e
patriotas, entre os quais tiveram papel de destaque muitos e muitos
positivistas: Benjamin Constant, Miguel Lemos, Teixeira Mendes, Júlio de
Castilhos e outros.
Miguel Lemos |
R. Teixeira Mendes |
Júlio de Castilhos |
A República no Brasil, assim,
deve muito à França. Neste dia 15 de novembro de 2015, temos que nos lembrar
tanto dos patriotas brasileiros do 15 de novembro de 1889, mas também temos que
lamentar que o país que nos forneceu muitos dos nossos mais importantes valores
tenha sido alvo de crimes radicalmente opostos aos nossos, apenas dois dias
antes, ou seja, em 13 de novembro de 2015.
Paris e França em luto Fonte: http://www.publico.pt/mundo/noticia/incidentes-violentos-nervosismo-e-luto-marcaram-o-dia-depois-da-tragedia-1681624 |
[1]
Publico o presente artigo no dia 16 em vez de no dia 15 devido ao seguinte
motivo. Após os crimes ocorridos em Paris, em que terroristas ligados ao Estado
Islâmico mataram centenas de inocentes na noite do dia 13 de novembro, passei
os dois dias seguintes lendo e escrevendo a respeito disso, procurando entender
o que ocorrera e quais os desdobramentos de um tal acontecimento. Assim, não
tive imediatamente condições intelectuais e morais para tratar de um assunto mais
abstrato, como é a teoria da República.
[2]
Nesses termos, parece claro que as acerbas disputas que têm ocorrido no Brasil em
que se opõe o auxílio governamental do “bolsa-família” ao “mérito individual”
são muito mal concebidas. Os defensores do “bolsa-família” desprezam, sem mais,
uma verdadeira conquista civilizacional, que é a afirmação social do mérito; já
os supostos defensores da meritocracia têm uma concepção estreita do mérito,
cuja consequência no final das contas é também desprezar os méritos. Em ambos
os casos as avaliações são rasas, apressadas e concretas.