O jornal carioca Monitor Mercantil publicou, em 23 de julho de 2019, um
artigo interessantíssimo em que se recupera e aplica-se o Positivismo à
realidade brasileira.
Os autores lembram o quanto o Positivismo, em termos de teoria
sociopolítica, afirma com clareza, com todas as letras, a importância central
de um Estado republicano com caráter social. Da mesma forma, em termos
históricos, os autores lembram as grandes contribuições do Positivismo para o
desenvolvimento nacional.
Esse texto é tanto mais interessante
quanto os autores não são positivistas. Além disso, o que se evidencia com esse
texto é o quanto o Positivismo é necessário nesta época em que a demagogia
liberticida assola o Brasil (e o Ocidente) e em que inúmeros intelectuais e
grupos sociopolíticos defendem o particularismo, o facciosismo, a nostalgia
pelo autoritarismo, a nostalgia pelo liberalismo escravocrata.
Não há dúvida de que vale totalmente a
leitura, a reflexão e a aplicação!
O original encontra-se disponível aqui.
* * *
Preparando o Estado para Soberania: crítica ao liberalismo
oligárquico
Por Monitor Mercantil -17:36 - 23 de julho de 2019
O positivismo, tal como estabelecido por Augusto Comte,
preconizava a necessidade de uma reorganização da sociedade em bases
científicas, industriais, altruístas e progressistas, ou seja, positivas,
partindo do material intelectual e institucional acumulado nas experiências
históricas.
O estudo dos fenômenos sociais, considerando a relatividade
e as “leis naturais invariáveis” inerentes a eles, devia servir de base para
uma ação sobre a realidade, dirigida por um governo forte e centralizado, de
modo a impulsionar um conjunto de transformações que favorecessem o
aperfeiçoamento coletivo e, portanto, moral, das sociedades e dos seus membros.
A etapa definitiva de evolução da humanidade em que isso se daria, a positiva,
sucederia a metafísica, que por sua vez havia sucedido a teológica.
As fases teológica e metafísica procuravam determinado
fator absoluto de explicação cosmológica. Nelas, o espírito humano buscava a
origem e o destino do universo, atribuindo, na primeira, o princípio causal a
entes sobrenaturais e, na segunda, a abstrações intelectuais.
Na fase positiva, o espírito humano abdicaria dessa procura
e passaria a investigar as leis que governam os fenômenos sociais, isto é, as
relações invariáveis de semelhança e sucessão entre eles e que os caracterizam.
O relativo substituiria o absoluto e prepararia a humanidade para conhecer
adequadamente o seu próprio mundo e reconstruí-lo conforme seus próprios
desígnios.
Para Comte, a modernidade até então, ao consagrar
princípios individualistas, abstratos e negativos próprios da metafísica
liberal (como o contratualismo, o constitucionalismo e o livre-cambismo), não
lograra integrar a sociedade, ao contrário, a esfacelara em benefício apenas de
oligarquias várias, como as proprietárias, as parlamentares e as intelectuais,
essas últimas sobretudo na imprensa.
A ausência de critérios compartilhados de sociabilidade
abriu caminho ao arbítrio, manifestado tanto pela “democracia anárquica” quanto
pela “aristocracia retrógrada”, ambas incapazes de restabelecer a unidade
social necessária ao desenvolvimento comum, ou, em outras palavras, a ordem e o
progresso.
A unidade social própria do medievo estaria, para Comte,
perdida, mas não de maneira definitiva. A desorganização característica da
modernidade ocidental se dava pela transição de um sistema social, o
metafísico, para outro, o positivo, no qual adviria a reorganização por ele
preconizada.
A unidade a ser alcançada no estágio positivo seria,
inclusive, superior ao do medievo, por a sociedade dispor de um grau maior de
conhecimento acerca das suas condições e das leis que a regem. A positividade
dessa nova fase consistiria, fundamentalmente, no domínio da humanidade sobre
si mesma, fazendo prevalecer a ciência sobre a metafísica e o altruísmo sobre o
egoísmo.
O proletariado e as mulheres seriam os porta-vozes e os
agentes principais dessas mudanças, daí que Comte defendeu, ipsis litteris, as “revoluções”
proletária e feminina. Revoluções que, longe de romperem com a ordem, a
restabelecessem, fundamentando o progresso vindouro e vinculando-o ao conjunto
histórico, que não deveria ser rechaçado, mas elaborado, extraindo dele o
impulso para o desenvolvimento social.
A humanidade assumiria, a partir dessa fase, a posição
anteriormente atribuída a Deus. A “religião da humanidade”, proposta por Comte,
enaltece a imanência da humanidade e sua capacidade de aprimoramento, ao mesmo
tempo progressivo e ordeiro.
Não é difícil verificar a incompatibilidade da doutrina
positivista, largamente difundida no Brasil entre o final do século XIX e
início do XX, com a organização social e institucional existente durante a
Primeira República.
Republicanos e abolicionistas inveterados, os positivistas
brasileiros não tiveram força política para converter a maior parte de seus
ideais em realidade quando da Proclamação da República, ainda que muitos deles
fossem presentes em instituições politicamente decisivas como o Exército e
tivessem apoiado e mesmo participado da instauração republicana.
O lema presente na bandeira nacional e a separação entre
Estado e Igreja consagrada na Constituição de 1891 foram as principais
contribuições positivistas em âmbito nacional. No mais, o reformismo político e
social positivista, inspirado em Comte, não obteve efetividade prática em
âmbito nacional durante a Primeira República, principalmente a partir do
governo de Prudente de Morais, que consolidou no comando do país a coalizão agrário-exportadora
e mercantil.
O arranjo institucional do período, caracterizado por um
federalismo que fortalecia a autonomia dos estados em relação à União e
facilitava assim o fenômeno do coronelismo, e o arranjo econômico, organizado
sobretudo em torno da produção de café para o exterior e no aprofundamento da
dependência para com o capital financeiro e industrial estrangeiro,
principalmente inglês e estadunidense, consagravam o pleno domínio das
oligarquias primário-exportadoras do centro-sul (particularmente de São Paulo)
no comando do país.
Foi um período de vigência de valores e políticas de forte
conteúdo liberal, que iam ao encontro das demandas oligárquicas vigentes,
exceto quando se tratava de pleitear a proteção do Estado para negócios
particulares ligados à cafeicultura, como se verificou no Convênio de Taubaté
em 1906.
Nesse contexto, o positivismo, uma das ideologias fundantes
da República, assumiu um papel crítico e contestador, análogo ao de Comte em
relação à França que vivenciou, propugnando uma organização alternativa do
país, consoante os princípios do mestre francês, jamais esquecendo de sua lição
acerca da relatividade dos fenômenos sociais, o que estimulou a formulação de
propostas adequadas à realidade específica brasileira.
Medidas defendidas pelos positivistas desde o Império, como
o fortalecimento do Executivo e a centralização do poder, a função social da
propriedade, a emancipação material (para além da formal) dos negros, a
mediação do Estado nas relações entre o capital e o trabalho para proteger o
segundo e a responsabilização do Estado pela educação pública e pelo
desenvolvimento industrial, opostas aos interesses dos grupos dominantes na
Primeira República, teriam que esperar a Revolução de 1930 para serem colocadas
em prática.
Ainda assim, devido à forte autonomia estadual então
existente, foi possível ao Partido Republicano Rio-grandense (PRR), de linha
programática positivista, governar o Rio Grande do Sul na contramão do Governo
Federal e erigir instituições estaduais mais apropriadas à execução do programa
positivista. Como bem assinalou Alfredo Bosi em seu brilhante Dialética da
Colonização (Companhia das Letras, RJ, 1992), o positivismo gaúcho antagonizou,
em termos de projeto de Estado e de país, com o liberalismo paulista/federal.
A Constituição do estado gaúcho, de 1891, teve o
positivismo como sua linha mestra. Poder Executivo forte, educação primária
pública e leiga a todos, separação entre Estado e Igreja, abolição de
privilégios de nascimento, nobiliárquicos e acadêmicos, estabelecimento de
concurso para provisão dos cargos públicos civis e a supressão de todas as
distinções entre funcionários públicos e outros tipos de empregados foram
aspectos marcantes da Constituição do RS e balizaram o chamado castilhismo,
tendência política batizada em homenagem a Júlio de Castilhos, líder do PRR,
presidente do RS de 1891 a 1898 e autor dessa Carta, seguida por Borges de
Medeiros, presidente do estado de 1898 a 1908 e de 1913 a 1928.
Foram medidas políticas dos governos positivistas gaúchos:
o imposto territorial, seguindo a preferência comteana por impostos diretos e
desafiando o poder dos grandes fazendeiros, que eram privilegiados no âmbito
federal; incentivos fiscais às manufaturas gaúchas infantes, dentro de um
projeto industrialista liderado pelo governo, contrastando com a opção
primário-exportadora da Primeira República desde Prudente de Morais, quando as
oligarquias paulistas conseguiram derrotar o desenvolvimentismo avant la lettre
de Rui Barbosa e de Floriano Peixoto; a socialização dos serviços públicos, com
a defesa explícita de Borges de Medeiros, em sua Mensagem de 1913, da
municipalização de serviços essenciais como água, esgoto, iluminação, energia
elétrica, bondes e ferrovias.
A estatização do porto do Rio Grande e da belga Compagnie
Auxiliaire de Chemins du Fer au Brésil se contrapunha ao privatismo do Governo
Federal, que manteve a política prevalecente no Segundo Império de subordinação
da infraestrutura ao capital estrangeiro.
Também no âmbito trabalhista, o positivismo gaúcho opôs-se
frontalmente ao liberalismo oligárquico federal. No programa do Partido
Republicano Histórico, Júlio de Castilhos defendia uma série de medidas que
anteciparam boa parte da legislação trabalhista implementada por Vargas desde a
década de 1930, contradizendo assim o lamentável folclore da inspiração
“fascista” das leis do trabalho: o regime de 8 horas de trabalho na indústria,
férias, aposentadoria, proteção aos menores, mulheres e idosos, direito de
greve e um tribunal de arbitragem para resolução de conflitos entre patrões e
empregados, tudo isso já constava no ideário castilhista.
Enquanto os governos Federal e paulista reprimiam
violentamente as greves operárias de 1917, o governo gaúcho negociou com os
grevistas e induziu os patrões no estado a aceitarem as reivindicações dos
trabalhadores (Bosi citado, cap. 9).
Também o engenheiro paraense Aarão Reis, positivista e
socialista, contribuiu enormemente para a oposição ao status quo oligárquico da
Primeira República, ao defender, em compêndio de economia política adotado
oficialmente na Escola Politécnica, a maior intervenção e direção do Estado na
economia e da sociedade a fim de estimular a industrialização, proteger o
trabalho da coerção do capital, fomentar o mercado interno e o associativismo
civil, e promover “carinhosamente” a educação popular no sentido do
aperfeiçoamento da cidadania e do patriotismo no âmbito de uma organização
democrática da sociedade (Antônio Paim, “O Pensamento Político Positivista na
República”, In: Adolpho Crippa (org.) As Idéias Políticas no Brasil, vol. II,
Editora Convívio, RJ, 1979, p. 59-61).
Pode-se, portando, concluir que cabe ao positivismo
brasileiro no Segundo Império e na Primeira República, aplicado na política nos
governos estaduais gaúchos durante essa última, a formulação de um projeto
alternativo ao que era dominante no período.
Nesse projeto constava a edificação de país soberano,
desenvolvido e socialmente igualitário, dirigido a partir de um Estado forte e
centralizado que coordenasse a totalidade da Nação para equilibrar e harmonizar
os grupos sociais particulares e estabelecer um planejamento de longo prazo,
acima dos interesses privados e tendo por fim a construção nacional em bases
industriais e solidárias.
A gênese do Estado social e nacional-desenvolvimentista,
triunfante entre 1930 e 1980 (apesar de recuos e nuances ao longo do período)
em oposição ao liberalismo oligárquico prevalecente em quase todo o período
republicano anterior, pode enfim ser localizada na teoria e na prática
positivistas nas décadas anteriores à emergência de Vargas como líder político
nacional.
O castilhismo, a principal vertente política do positivismo
em sua versão gaúcha, foi o berço do trabalhismo de Getúlio Vargas e Leonel
Brizola. Assim como o conjunto do positivismo, tem ainda hoje muito a iluminar
acerca dos problemas nacionais brasileiros e da formulação e encaminhamento de
soluções integradas em um projeto de desenvolvimento nacional.
Felipe Quintas
Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal
Fluminense (UFF).
Gustavo Galvão
Doutor em economia, é autor de As 21 lições das Finanças
Funcionais e da Teoria do Dinheiro Moderno (MMT).
Pedro Augusto Pinho
Administrador aposentado.