Sempre me interessei por política, ou melhor, por
estudos sobre a sociedade e sobre a história, além de pela ciência; a
aproximação com as Ciências Sociais e, até certo ponto, com a chamada política
prática foi algo natural. Ao mesmo tempo, em inúmeras ocasiões considerei
seriamente em filiar-me a partidos políticos, mas dois motivos – muito próximos
entre si, embora distintos – sempre me impediram de que eu desse o passo final
nessa direção; um desses motivos é de ordem teórico-filosófica, o outro é de
ordem prática.
O motivo teórico consiste em que, como positivista,
isto é, como adepto da filosofia e da religião fundadas por Augusto Comte,
entendo-me como integrante do poder Espiritual, cuja ação deve dar-se por meio
do aconselhamento, por meio do guiar os sentimentos, as idéias e os valores;
conforme Comte repetia continuamente, quem aconselha não pode mandar, sob o
risco de degradar o conselho e tornar hipócrita o mando.
O motivo prático consiste em que jamais quis abrir
mão da minha capacidade de criticar as bobagens realizadas por políticos
práticos, nem, por outro lado, quis aceitar subscrever, devido à necessária
fidelidade partidária, as tolices ditas e feitas pelos políticos profissionais.
Isso não significa que eu não tivesse ou não tenha minhas preferências ou
minhas simpatias político-partidárias; da mesma forma, isso não significa que
eu perfilhe-me entre a "oposição", ou seja, naquele grupo que se
define como tendo que se opor sistematicamente ao governo, ou à
"situação", em desrespeito sistemático aos interesses do país e da
Humanidade. Minha preocupação, nesse sentido, sempre foi com manter a
capacidade e a possibilidade de poder dizer, com um mínimo de independência,
que aquelas políticas que considero incorretas são, de fato, incorretas, sem me
ver obrigado por filiações partidárias a afirmar que tais políticas seriam
corretas ou, por outro lado, ser acusado de partidarismo ao fazê-lo.
No fundo, bem vistas as coisas, a minha precaução
prática constitui-se na condição para realizar o comportamento proposto do
ponto de vista teórico.
Além disso, cumpre notar que o conceito positivista
de "poder Espiritual" sempre me pareceu mais legítimo que todas as
outras concepções rivais, como a "hegemonia" gramsciana ou a
"ética da responsabilidade" weberiana.
A "hegemonia" defendida por Gramsci nada
mais é que o esforço empreendido por um partido de classe em dominar
intelectual e moralmente o conjunto da sociedade: trata-se, portanto, de um mero recurso da luta de classes, em que
uma parte da sociedade lança mão de expedientes com o objetivo de dominar
outras partes da sociedade. Nesse quadro, tanto o "domínio" quanto a
"luta de classes" devem ser entendidos literalmente, ou seja, em
termos de guerra civil, ainda que disfarçada. Isso não é exagero nem uma
suposta distorção da proposta de Gramsci e, antes dele, das propostas de Marx e
Engels: a orientação belicista da "luta de classes" e, por extensão,
da "hegemonia da classe proletária" sempre foi explícita e assumida por
todos esses pensadores; não é à toa que Marx e Engels (mas também Lênin) são
considerados filósofos da guerra. Nesse sentido, as interpretações correntes da
"hegemonia" – segundo as quais ela é um simples consenso social em
favor de valores universalmente válidos, como a "democracia" ou o
"Estado de Direito" – ou são versões ingenuamente edulcoradas e
falseadoras do pensamento de Gramsci, ou são mistificações da intenção
subjacente ao pensamento de Gramsci e, portanto, são formas de enganar o
conjunto da sociedade. Em outras palavras, a independência moral e intelectual
e a possibilidade de crítica estão radicalmente afastadas; mesmo no caso da
crítica à classe combatida não há independência, pois os "argumentos"
utilizados são elaborados de maneira estratégica e tática, ou seja,
subordinados à mais rasteira conveniência política; em outras palavras, as
idéias são manipuladas ao sabor das alianças políticas, resultando em cinismo e
em hipocrisia.
Assim, a idéia gramsciana de "hegemonia" é
radicalmente contrária à proposta positivista de "poder Espiritual",
seja porque une estreitamente o
aconselhamento ao mando, seja porque subordina
o aconselhamento ao mando, seja porque finge
que o aconselhamento não está a serviço do mando.
A idéia weberiana da "ética da
responsabilidade" é intelectualmente mais satisfatória, mas ainda assim é
inferior à proposta positivista do "poder Espiritual". A "ética
da responsabilidade" forma par com a "ética da convicção"; nessa
dupla, a primeira "ética" refere-se ao comportamento adotado pelos
políticos, cuja é com as conseqüências de seus atos, no sentido de que devem
pesar o que acontecerá se determinadas ações forem tomadas; a "ética da
responsabilidade" corresponde ao comportamento adotado por aqueles
indivíduos motivados por suas convicções íntimas e para quem, nesse sentido,
não importam as conseqüências de sua ação, mas apenas a fidelidade às suas
crenças íntimas. Weber comentava que, em sua tipologia, a
"responsabilidade" não abre mão, necessariamente, das "convicções",
pois os políticos de modo geral precisam de orientações morais e intelectuais
para sua conduta; inversamente, a "convicção" nem sempre deixa de
lado a "responsabilidade", pois pode considerar os efeitos de seu
comportamento na consecução dos valores pelos quais se guia.
Analiticamente, a oposição entre as éticas da
"responsabilidade" e da "convicção" é interessante;
todavia, ela nada mais é que "interessante". Essa oposição não
distingue entre os indivíduos e os grupos que, por um lado, dedicam-se
explicitamente à atividade política, isto é, à tomada de decisões e aqueles
que, por outro lado, dedicam-se à formulação e à difusão de idéias e valores.
Da mesma forma, essa oposição não estabelece os
critérios que devem pautar uma organização sócio-política correta e adequada;
ao apenas afirmar que há indivíduos mais preocupados com as conseqüências de
seus atos e indivíduos mais preocupados com a fidelidade íntima a si mesmos,
essa oposição deixa sem qualquer tipo de orientação os problemas fundamentais
que consistem em saber o que é uma boa sociedade, qual é o "bem
comum", qual a relação que se deve manter entre o mando e o
aconselhamento, qual é a relação que se deve manter entre as classes sociais
etc. Poder-se-ia, talvez, argumentar que Weber explicitamente era contrário a
que categorias analíticas servissem também como guias para a ação prática; com
todas as letras, ele era favorável à famosa "separação entre fatos e
valores". Entretanto, embora de fato seja necessário que se respeitem as
características e as condições próprias à compreensão racional do mundo, por
outro lado também é necessário ter clareza de que, sem orientação prática, essa
compreensão racional é vazia e destituída de sentido. Como argumentava Augusto
Comte, o valor da ciência (e, de modo mais amplo, o valor da inteligência)
consiste em atuar como conselheira dos sentimentos: ora, a oposição entre as
éticas da "convicção" e da "responsabilidade", bem como, de
modo mais amplo, toda a filosofia da ciência de Weber rejeitam a concepção de
subordinação da ciência aos sentimentos, ao considerar ilegítima essa
subordinação.
A mera oposição analítica entre as éticas da
"convicção" e da "responsabilidade", portanto, é sugestiva
para o estudo de alguns comportamentos e da "psicologia" de alguns
indivíduos, mas ela esgota-se aí; para piorar, essa oposição é uma forma mais
ou menos vazia, que pode aplicar-se a uma quantidade enorme de casos díspares e
que, no fim, acaba tendo reduzido poder analítico. Por exemplo, é possível
aplicar a idéia da "ética da convicção" tanto a Hitler, quanto a
Stálin, quanto a Cromwell, quanto a Gandhi; ou a São Francisco de Assis e a
Antônio Conselheiro; por outro lado, é possível aplicar o conceito de
"ética da responsabilidade" tanto a Bismarck, quanto a Júlio César,
quanto a Léon Gambetta, quanto a Fernando Henrique Cardoso: é até interessante
pôr essas duas etiquetas em todos esses indivíduos, mas as perspectivas
específicas e as condições sociais de todos eles são tão diferentes entre si
que, de fato, pouco se aprende com as categorias "ética da
responsabilidade" e "ética da convicção". Por fim, aplicar essas
duas categorias a todos esses indivíduos diz pouco mais do que já se sabe a
respeito de todos eles; na verdade, essas duas categorias apenas formalizam o
que empiricamente, com base no mais elementar senso comum, já se sabe a
respeito de todos eles.
Assim, a idéia de "ética da
responsabilidade", embora seja analiticamente interessante, apresenta
vários problemas teóricos e práticos: por um lado, é pouco explicativa e ainda
menos descritiva; por outro lado, simplesmente não serve como guia prático.
Para resumirmos, podemos dizer que a idéia
gramsciana de "hegemonia", embora baseie-se na união entre teoria e
prática, estabelece um vínculo demasiadamente forte e estreito entre ambas as
atividades, subordinando a teoria à prática e, portanto, degradando a teoria e
tornando a prática profundamente cínica e hipócrita; além disso, a
"hegemonia" baseia-se no estreito particularismo de uma classe, que
busca dominar e eliminar outra classe, além de incentivar a beligerância. No
caso do conceito weberiano de "ética da responsabilidade", embora ele
distinga a teoria e a prática, ele leva muito longe essa distinção – na
verdade, ele baseia-se na rejeição das imbricações entre teoria e prática –;
assim, esse conceito é propositalmente inútil em termos práticos. Já em termos
analíticos, isto é, teóricos, embora ele dê azo a algumas reflexões, no final
das contas essas reflexões são bastante limitadas e rasas.
Por que faço essas reflexões todas? Porque a
conjuntra atual do Brasil – que atravessa ao mesmo tempo intensas crises
política e econômica, em que uma é causa e alimento da outra – tem suscitado as
mais diferentes reações da parte dos chamados "intelectuais". É claro
que o "público em geral" também tem reagido bastante a esses
problemas: as inúmeras manifestações que têm ocorrido no Brasil nos últimos
dois ou três anos e que se têm incrementado desde as eleições presidenciais de
2014 são a mais clara demonstração de um intenso ativismo social.
Mas a situação dos intelectuais é específica, pois a
eles cabe ao mesmo tempo a análise intelectual dos problemas por que o Brasil
passa e a indicação de caminhos para que essas crises sejam solucionadas –
caminhos que devem ser indicados tanto para a sociedade civil quanto para o
governo. Assim, os intelectuais têm um papel fundamental no atual cenário; na
verdade, como deveria ser evidente para qualquer cientista social, os
intelectuais são importantes em qualquer momento, mas nos períodos de crise
essa importância aumenta, justamente devido às dificuldades próprias à
legitimidade do governo. Além disso, convém notar que a grande maioria desses
"intelectuais" é de professores universitários, que se valem dessa
condição institucional para legitimarem-se perante a sociedade e perante o
governo e que integram órgãos estatais e entidades civis para emitirem
"opinões".
Ora, muitos desses intelectuais mantêm uma postura
fortemente crítica contra o governo atual; a maior parte dessas críticas, para
não dizer sua totalidade, é justa. Vários desses intelectuais não se preocupam
nem com a estabilidade do país, nem, em conseqüência, com a sua
governabilidade: em certo sentido, eles não são responsáveis, na medida em que,
preocupados com sua críticas, não apontam rumos factíveis para o país superar
seus sérios e profundos problemas.
Essa postura constitui o cerne da "oposição":
ora, a idéia da "oposição" surgiu na Inglaterra, como sendo o
conjunto minoritário de parlamentares, isto é, aqueles parlamentares que não
dão apoio ao primeiro-ministro; a autoproclamada função desse grupo seria
criticar sistematicamente o governo e elaborar propostas alternativas de
políticas públicas, seja como forma de legitimar-se perante a opinião pública
(com propostas que difeririam de qualquer maneira das políticas implementadas
pelo governo, qualquer que seja a razoabilidade ou a viabilidade dessas
propostas alternativas), seja como eventuais contribuições legítimas: em todo
caso, a "oposição" basicamente serve para incomodar o governo. No
Brasil, nas últimas três décadas, ou a "oposição" foi extremamente
crítica, quando não reacionária, ou foi inerte e indistinguível do governo; em
outras palavras, como "oposição" o PT sempre foi virulento e, ao
tornar-se governo, teve a felicidade de lidar com rivais molengas,
desarticulados e sem identidade.
Entretanto, desde as eleições presidenciais de 2014,
o comportamento dessa oposição mudou bastante, principalmente devido à
insatisfação social com o governo. Essa oposição deixou de ser apática e
molenga e, mudando bastante o seu padrão de comportamento, assumiu uma postura
cada vez mais radical, em que o que importa é criticar o governo e buscar obter
o poder, independentemente de outras considerações. Nesse sentido, essa
oposição passou a assumir as piores características que seus rivais mantinham
antes de assumir o poder.
Essa oposição – é necessário dar nomes aos bois: o
PSDB – é basicamente partidária, isto é, organizada em partido político. O
importante a notar é que, embora haja diversos intelectuais vinculados
oficialmente a essa oposição partidária, o grosso dos intelectuais que se opõe
ao governo não é partidária, ou pelo menos não é vinculada ao principal partido
da oposição. É bem verdade que vários desses intelectuais são vinculados a
outros partidos políticos, alguns dos quais foram violentamente atacados pelo
governo na última campanha presidencial, de sorte que têm mágoa e ressentimento
– justificados – com o governo. Mas, ainda assim, muitos outros intelectuais
são propriamente independentes, isto é, criticam o governo porque consideram
que os atuais rumos e hábitos políticos do país são errados e conduzem a
direções daninhas.
Nesse sentido, esses intelectuais
"independentes" e, em menor medida, os intelectuais vinculados aos
partidos que não o principal da oposição, levam a sério seu papel de
"poder Espiritual", ainda que não conheçam e/ou não levem a sério a
própria idéia do poder Espiritual; em outras palavras, seja empírica, seja
sistematicamente, tais intelectuais que se mantêm críticos entendem que seu
papel é formar e orientar a opinião pública.
Por outro lado, vários outros intelectuais buscam
apoiar o governo como forma de legitimá-lo neste momento em que a crise de
legitimidade também integra o rol de crises. Esse esforço de legitimação,
todavia, não consiste em afirmar que várias políticas específicas e/ou que a
orientação geral do governo são adequadas para a consecução de determinados
fins socialmente necessários e/ou importantes; o que se vê é um esforço
sistemático para afirmar a correção de todas as medidas governamentais e para
desqualificar todos os que se opõem ao governo (geralmente por meio de
sugestões viperinas, como, por exemplo, no sentido de que os críticos seriam
quinta-colunas ou aristocratas ciumentos de seus privilégios); as críticas que
porventura fazem ao governo vão na direção de que o governo deveria perseverar
na direção que toma, independentemente de se tal direção é correta, adequada ou
conforme o bem comum. Em outras palavras, são intelectuais simplesmente a
serviço do governo: são uma forma cada vez mais desesperada de tentarem
realizar a "hegemonia" gramsciana, mas, de qualquer maneira, submetem
o aconselhamento ao mando e instrumentalizam o aconselhamento de acordo com as
necessidades momentâneas do mando. Na medida em que são intelectuais, esses
indivíduos degradam-se como seres humanos; como analistas das políticas
públicas, esses indivíduos abrem mão de sua capacidade analítica e crítica;
como cidadãos, esses indivíduos procuram apenas servir ao Estado.
Sendo bem franco: pessoalmente, considero assustador
o comportamento dos intelectuais governistas, tal o grau de adesão que eles
manifestam ao governo. Não se trata aqui de simplesmente apoiar o governo:
afinal de contas, o governo existe para governar a sociedade e o normal é que
ele seja, de fato, em geral apoiado. O problema aqui consiste em que os atuais
intelectuais governistas sistematicamente ignoram problemas evidentes; afirmam
que as críticas ao governo são motivadas por "falta de patriotismo"
ou por mesquinharia de classe; apóiam propostas irracionais e criticam
propostas que visam a racionalizar, a moralizar e a tornar mais eficiente o
Estado e o serviço público. A isso se soma o fato de que esse comportamento é
vinculado não ao Estado ou ao governo, mas ao partido político que atualmente
exerce o governo. Assim, o assustador é que tais intelectuais, por vontade
própria, deixam de ser intelectuais para tornarem-se apenas membros do partido
político; embora tenham abandonado totalmente o poder Espiritual, valem-se de
suas posições institucionais e de seus títulos acadêmicos para darem a
impressão de que permanecem no poder Espiritual.
Sem negar os danos que o radicalismo, o extremismo,
a exaltação de ambos os lados – do governo e da "oposição" – que a
presente conjuntura acarretam e de que se alimenta, estou convencido de que
essa verdadeira "traição dos clérigos" é o mais sério problema
envolvendo intelectuais neste momento. Esse problema sem dúvida terá, como já
está tendo, conseqüências nefastas e, infelizmente, duradouras.