Deixando de lado algumas correções gramaticais menores, a única alteração maior refere-se ao título: ele passou de "Política e instituições na 'teoria do Brasil' dos positivistas ortodoxos brasileiros" (conforme a proposta original da comunicação) para "Formação étnica e independência nacional na 'teoria do Brasil' dos positivistas ortodoxos brasileiros" (que descreve mais corretamente a versão final do texto).
De qualquer forma, convém notar que esse é apenas um resultado inicial de uma pesquisa que realizo sobre a "teoria do Brasil" dos positivistas ortodoxos brasileiros. Como havia limitação de espaço, o texto é relativamente curto.
O portal do Encontro está disponível aqui.
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Formação étnica e independência nacional na “teoria
do Brasil” dos positivistas Ortodoxos brasileiros
Gustavo
Biscaia de Lacerda[1]
1. Introdução
É mais ou menos senso comum nos meios
acadêmicos e eruditos o fato de que o Positivismo no Brasil exerceu grande
influência nos meios intelectuais e políticos no período de cerca de meio
século que vai de 1881 a 1930. Nesse sentido, a frase de Otto Maria Carpeux é
famosa: “A significação do positivismo na história do Brasil ultrapassa os
limites da história de um sistema filosófico” (Carpeaux apud BOSI, 2010, p. 273). Em virtude disso, vários estudos de
diferentes perspectivas e qualidades foram dedicados a analisar essa
influência, seja desde meados do século XIX, seja nas últimas décadas,
abrangendo não apenas os positivistas ortodoxos (ligados à Igreja e Apostolado
Positivista do Brasil (IPB), em particular Miguel Lemos e Teixeira Mendes) como
também os heterodoxos (a plêiade que atuou no jornalismo, na política, na vida
acadêmica e que não se vinculava à IPB: Pereira Barreto, Júlio de Castilhos, V.
Licínio Cardoso, Ivan Lins, Paulo Carneiro)[2].
Face à alegada importância dos
positivistas, não deixa de causar certa estranheza a sua ausência em discussões
sobre os chamados “pensamentos social e político brasileiros”. Um exemplo de
ausências desse gênero está na coletânea organizada por Botelho e Schwarcz
(2009), que aborda 29 autores dos séculos XIX e XX que se dedicaram a refletir
a respeito do “enigma chamado Brasil”, nenhum dos quais é positivista (ortodoxo
ou heterodoxo). É claro que os organizadores não tinham nenhuma obrigação de
incluir positivistas e que, assim como os positivistas estão ausentes dessa
coletânea, inúmeros outros pensadores nacionais também não se encontram
relacionados nela: o que nos interessa aqui é destacar o aspecto exemplar dessa ausência.
Comparando as várias pesquisas havidas
sobre o Positivismo no Brasil, em que se afirma a sua importância histórica,
com a ausência em coletâneas e estudos sobre o pensamento social e político
brasileiro, a impressão que se tem é que o Positivismo merece somente alguns
comentários (“críticos”), mas não exposições mais ou menos sistemáticas de suas
intervenções: é como se o grande conjunto de pensadores e ativistas que recebe
a etiqueta geral de “positivistas brasileiros” não tivesse refletido sobre a
história do país, sua sociedade, suas instituições, seus problemas e, claro,
seus caminhos e soluções. Em outras palavras, os círculos intelectuais e
acadêmicos, de direita ou de esquerda, realizam na prática e assim “confirmam”
a agressiva opinião do marxista Paulo Arantes (1988, p. 185), para quem o
Positivismo no Brasil foi como que um surto de sarampão – devendo-se lembrar-se
dele, mas sem que isso conduza a maiores possibilidades de reflexão teórica
e/ou aplicação prática positiva.
Pode-se dizer, portanto, que na
literatura especializada ocorre uma importante lacuna; nesse sentido, o que
propomos nesta pesquisa é investigar diretamente o conjunto de idéias e noções
dos positivistas brasileiros que poderíamos enquadrar no “pensamento social e
político brasileiro”. De maneira mais específica, propomo-nos a estudar aquilo
que, dentro da vasta produção intelectual dos positivistas ortodoxos,
denominamos anteriormente de “teoria do Brasil”.
Como etapa preliminar para as
pesquisas desenvolvidas em Lacerda (2013a; 2013b), fizemos a classificação
inédita de pouco mais de 350 das mais de 500 publicações da IPB[3],
organizando-as em uma série de rubricas gerais, sugeridas pelos temas
principais abordados em cada uma dessas publicações: em um total de 27 categorias,
apresentavam-se temas tão variados quanto “separação entre Igreja e Estado”, “abolição
da escravidão”, “militarismo”, “despotismo sanitário”, “relações internacionais”
etc. Uma dessas categorias era “teoria do Brasil”, que apareceu em dois dos 355
opúsculos indexados como categoria principal e em outros sete como categoria
secundária ou terciária.
Elaboramos a categoria “teoria do
Brasil” adotando critérios ao mesmo tempo doutrinários e pragmáticos, ou seja,
buscando tanto seguir e respeitar as idéias seguidas pelos dois principais
autores dos opúsculos da IPB (Miguel Lemos e, principalmente, Raimundo Teixeira
Mendes) quanto estabelecer termos-chave que pudessem com facilidade identificar
temas gerais acessíveis aos leitores contemporâneos. No caso em questão, a “teoria
do Brasil” refere-se à interpretação do desenvolvimento social e político
do país, em que interagem dinamicamente as instituições, as elites, a massa da
nação, a organização interna e a realidade internacional. De qualquer forma,
convém notar que a maior parte dessas categorias (quando não sua totalidade),
não são nem exaustivas nem mutuamente excludentes, ou seja, elas tanto
sobrepõem-se umas às outras quanto com grande freqüência não esgotam os temas
tratados em cada uma das publicações: assim, para o caso que nos interessa,
embora “teoria do Brasil” esteja presente explicitamente em apenas nove casos,
ela apresenta-se de maneira implícita em dezenas de outros, como nos textos
dedicados à abolição da escravidão, à crítica à Guerra da Tríplice Aliança, à
incorporação do proletariado à sociedade brasileira, à proclamação e à
organização da República, à separação entre Igreja e Estado etc. Nesse sentido,
é possível ampliar bastante a abrangência qualitativa e quantitativa da
categoria “teoria do Brasil” no conjunto das publicações da IPB (embora tal não
seja nosso objetivo aqui).
A presente comunicação
pretende expor alguns dos argumentos e traços da “teoria do Brasil” defendida
pelos positivistas ortodoxos, especialmente no que se refere a dois aspectos:
(1) a composição étnica do país e algumas de suas conseqüências sociais e (2) a
interpretação dos positivistas a respeito da independência do Brasil. Para
isso, analisaremos algumas publicações da Igreja Positivista, nomeadamente a
comemoração do tricentenário da morte de Luís de Camões (Teixeira Mendes, 1977 [1880]) e a
biografia de Benjamin Constant (Teixeira
Mendes, 1936 [1892])[4].
2. Preliminares teóricas: evolução ocidental e inserção dos povos
ibero-americanos
Dois passos preliminares,
que são necessários para a presente discussão e que também foram desenvolvidos por
exemplo por Teixeira Mendes (1936 [1892]), são, de um lado, a exposição de
alguns elementos da teoria da história de Augusto Comte (incluindo aí a sua
utopia) e, por outro lado, explicar a inserção da evolução dos povos
ibero-americanos – e, portanto, do Brasil – no conjunto da evolução ocidental, igualmente
de acordo com o esquema proposto por Augusto Comte. Bem vistas as coisas, esses
passos correspondem a duas necessidades lógicas e teóricas de qualquer
exposição histórico-sociológica: de um lado, o enquadramento teórico da
exposição e, de outro lado, a contextualização. Convém reforçar o fato de que
esses passos correspondem a imperativos da filosofia positivista (cf. COMTE,
1929, v. II, cap. 1) e, nesse sentido, são integrantes da concepção defendida
pelos positivistas ortodoxos, sem os quais não faz sentido a sua “teoria do
Brasil”. Sendo mais específicos, e diferentemente de grande parte dos analistas
e intérpretes de sua época, os positivistas não consideravam o desenvolvimento
do Brasil apenas nos termos mais ou menos genéricos de “surgimento e
consolidação da nação”, ou da criação de um “tipo humano brasileiro”, ou da “oposição
entre Estado e nação”; também não consideravam, de maneira correlata, o
tratamento dessas questões tendo como pano de fundo a referência também mais ou
menos abstrata às “nações mais desenvolvidas”: suas elaborações percebiam o
Brasil como vinculado intimamente ao desenvolvimento da humanidade e de modo
mais específico do Ocidente, considerando também as contribuições do país para
a humanidade.
De acordo com Augusto
Comte (1929; 1972; cf. LACERDA, 2010), desde o século XIV a Europa atravessa
uma grande crise, que consiste em um duplo movimento: por um lado, destrutivo; por outro lado, construtivo. A destruição consiste no
fim da ordem católico-feudal, próprio à Idade Média, primeiramente em aspectos
secundários e marginais do sistema, depois sendo atacada em seu conjunto. A
construção consistiu no surgimento de elementos que, ao mesmo tempo em que
destruíam a ordem católico-feudal, desenvolviam traços e características de uma
nova sociedade: a ciência, a atividade pacífico-industrial, concepções
universalistas. A crise deflagrada após o século XIV consistiu no fato de que,
embora a antiga ordem social estivesse exausta e sendo desfeita em seus vários
traços, a nova ordem social ainda não estava pronta para sucedê-la: desde os
1400 até pelo menos 1789 essas duas dinâmicas foram concomitantes, embora com
suas intensidades e seus ritmos variando de acordo com o momento específico e
com cada país[5].
A Revolução Francesa, na concepção comtiana, corresponde a uma grande explosão
social, em que a antiga ordem é destruída violentamente, subjugada pelos novos
elementos – sem que, todavia, a nova sociedade constitua-se de maneira
orgânica.
Quais seriam os
elementos da nova sociedade, de maneira mais específica? De modo mais imediato,
a atividade pacífico-industrial. Essa
expressão abrange vários aspectos: a exploração racional do mundo, baseada
tanto na aplicação dos conhecimentos técnico-científicos quanto, portanto, no
cuidado com a sociedade e os cidadãos e também com o meio ambiente. Essa
atividade não se baseia na guerra, isto é, não consiste mais no uso coletivo e
generalizado da violência de uma sociedade contra outra, para dominar, para
escravizar, para aniquilar, seja quais forem os fins (riqueza, poder, glória):
ela deve ser pacífica, baseada na colaboração o mais livre possível entre os
seres humanos, buscando-se o bem comum. A ultrapassagem da guerra em direção à
atividade pacífico-industrial requer não apenas o desenvolvimento de elementos
técnicos e científicos, mas principalmente o espalhamento de uma concepção de
ser humano e de sociedade que adote com clareza o conceito de “humanidade”,
isto é, o conjunto de seres humanos convergentes, passados, futuros e
presentes: esse conceito subordinaria a si a idéia de “pátrias”, sem no entanto
negá-las, de modo a regular o patriotismo e afirmar um conceito ao mesmo tempo
intelectual e afetivo que possa de fato irmanar países e seres humanos.
O terceiro elemento é
a concepção relativa e imanente da realidade, isto é, nem absolutista nem
supraterrena. Grosso modo, essa
concepção pode ser entendida como o empreendimento científico, que se opõe à
teologia (e à versão corrompida da teologia, a metafísica), na medida em que a
teologia é absolutista em termos filosóficos e supraterrena. Todavia, apesar de
falar-se muitas vezes em “ciência” no singular, o fato é que há somente “ciências”,
no plural: cada ciência corresponde tanto a um grau específico de abstração no
estudo da realidade quanto ao estudo de um determinado tipo de objeto; em
outras palavras, as ciências são fragmentárias e particulares. Em princípio não
há problema em as ciências terem tais características: a dificuldade surge
quando se considera que as ciências fragmentárias não propõem aos seres humanos
concepções de conjunto sobre a realidade, sobre a sociedade e sobre os
indivíduos, como a teologia faz; além disso, as ciências também se caracterizam
pela especialização, acarretando não poucas vezes o seu isolamento progressivo
ou, inversamente, o imperialismo intelectual de uma ciência sobre outras; tanto
em um caso como em outro, Augusto Comte considera que as ciências com
freqüência tendem, de maneira paradoxal, ao absolutismo filosófico.
Assim, cumpre o
desenvolvimento de uma concepção geral da realidade que se baseie nas ciências
mas que não se limite a elas, ou seja, que ao mesmo tempo seja sintética (em
vez de analítica) e que, assim, seja capaz de contemplar os vários aspectos e
as várias atividades humanas: a vida prática, os sentimentos, os pensamentos; a
política, a economia, as artes, a ciência, a vida familiar. Mais
particularmente, essa concepção deve abranger também os valores morais e,
portanto, deve ter um caráter normativo, afirmando e valorizando o altruísmo,
comprimindo (e, caso necessário, repreendendo) o egoísmo. Para Comte, essa
concepção é de caráter filosófico e, ao estabelecer uma interpretação geral da
realidade e parâmetros de relacionamento, consiste em uma religião: daí o grande
sistema teórico que é o Positivismo e a proposta comtiana de Religião da
Humanidade.
Para Comte, a perspectiva que afirma a
humanidade e o altruísmo deve servir para regular também as diversas relações
sociais. De modo mais específico, notamos que, aceitando tanto o governo quanto
a propriedade privada, Comte afirmava a necessidade de orientá-los para a
satisfação das necessidades sociais, o que resultava, no seu sistema
filosófico, em um governo não autoritário, em cidadãos nem revoltosos nem
servis, em patrões respeitadores dos padrões de vida de seus trabalhadores.
Além disso, um Estado que não adote nenhuma crença em caráter oficial e que não
a imponha aos cidadãos; inversamente, doutrinas, igrejas e associações que não
usem o Estado para imporem-se nem para oprimirem outras doutrinas. Todas essas
relações seriam afirmadas em um âmbito público não-estatal, ou seja, na
sociedade civil; o órgão sistematizador e propagador dessas idéias religiosas
seria a igreja positivista.
Embora relativamente
longa, esta digressão foi necessária para que se compreenda tanto a
interpretação que os positivistas ortodoxos faziam do Brasil quanto a sua
própria atuação prática.
Enfim: para Comte, no
duplo processo de decadência da ordem católico-feudal e de criação da sociedade
pacífico-industrial, a península ibérica ocupava uma posição bastante
específica. Desde o século XV o papado conferiu aos reis de Portugal e Espanha
o regalismo, ou seja, o direito e o dever de protegerem a Igreja Católica em
seus territórios, fossem os metropolitanos, fossem os coloniais. O regalismo
por si só indica ao mesmo tempo a incapacidade do papado de manter e regular a
igreja e a doutrina em determinados territórios e o poder material dos reis,
isto é, sua capacidade de controlar seus territórios. De qualquer forma, pelo
menos no caso português, ao regalismo associou-se o padroado, ou seja, a
obrigação legal da igreja católica em um país de pedir autorização para o
governo para os seus processos diversos, quer fossem doutrinários, quer fossem
eclesiásticos.
Em linhas gerais, para
Comte, a outorga feita pelo papado aos governos ibéricos do controle sobre a
igreja resultou em que as populações portuguesa, espanhola e suas respectivas
colônias (especialmente as americanas) estiveram muito mais sob a influência do
poder Temporal que do poder Espiritual; além disso, o catolicismo praticado em
tais países teria um caráter muito mais ritual, pro forma, que autêntico; a expulsão (e posterior fim) dos jesuítas
em meados do século XVIII confirmaria essa tendência. Ainda assim, em virtude
do peso histórico, o clero conservaria uma influência social considerável,
especialmente na Europa: na América isso teria menor importância e, portanto, o
surgimento de um novo poder Espiritual, positivo, em substituição ao católico,
enfrentaria menores obstáculos. Não por acaso, a seguinte citação, que resume
essas considerações, é usada por Teixeira Mendes (1936 [1892], p. 1) como
epígrafe do cap. 1 da sua biografia de Benjamin Constant:
"Porém,
por mais normais que sejam essas esperanças quanto ao clero na Península [Ibérica],
elas parecem-me convir sobretudo à expansão americana do duplo elemento
ibérico. O centro romano pode, na Espanha, obstar a regeneração do sacerdócio,
se não em virtude de uma preponderância direta, há muito extinta aí mais do que
alhures, pelo menos em virtude do ascendente indireto que lhe conservam as
disposições populares. O mesmo não acontece na América, onde o papado jamais
prevaleceu senão por meio da realeza, única fonte real da hierarquia eclesiástica.
Depois que as colônias católicas obtiveram a independência política, a
influência romana encontra-se aí naturalmente desenraizada. Ainda que os chefes
temporais falhem aí em termos de consistência, eles devem espontaneamente
suceder às atribuições eclesiásticas do governo real. Esses ditadores
precários, ainda que empíricos, devem respeitar mais a independência de um
único sacerdócio incorporado profundamente a tais populações" (COMTE,
1929, v. IV, p. 488-489).
Um outro aspecto
importante das concepções especificamente de Comte é o caráter ao mesmo tempo
social e afetivo das populações neolatinas, o que evidentemente inclui Portugal
e a sua colônia americana, o Brasil. Para Comte, os países do Sul da Europa integraram
diretamente o Império Romano e, assim, sofreram a sua influência, que consistiu
em estimular a sociabilidade, ao criar uma grande associação humana surgida da
guerra mas voltada para a paz, subordinando a política à moral e a inteligência
à política. Assim, os países do Sul da Europa teriam unido os avanços
intelectuais gregos à sociabilidade romana (algo que os países do Norte da
Europa só obtiveram indiretamente, por meio da expansão posterior do
catolicismo): no esquema comtiano, a civilização católico-feudal desenvolveu os
atributos afetivos, com o culto cavalheiresco à mulher, com as preocupações
diretamente morais (embora mais voltadas para um certo combate ao egoísmo que
para o estímulo do altruísmo), mas também com a progressiva emancipação dos
escravos (que passaram a homens livres via servidão nas glebas), com as guerras
defensivas (em relação às sucessivas invasões bárbaras e, depois, com a reação
à expansão do Islã) e com o ensaio da separação entre os dois poderes (com o
poder Espiritual unificado em meio à dispersão feudal e com as disputas entre o
papa e o imperador).
No caso específico de
Portugal, as lutas contra os mouros e, depois, a afirmação da identidade
política face aos reinos espanhóis conduziu à precoce unidade política ainda no
fim da Idade Média. A monarquia lusa, depois do século XIV, dobrou perante si a
igreja católica e a nobreza, promovendo, por um lado, a confusão entre os dois
poderes e, por outro lado, afirmando-se como a fonte de poder. Após o ciclo da
afirmação da nacionalidade, nos séculos XII e XIII, o país passou a dedicar-se
à exploração marítima, contornando primeiramente a África e depois atravessando
o Atlântico, rumo ao Brasil.
3. Alguns dos elementos da “teoria do Brasil” dos positivistas
ortodoxos
3.1. Composição étnica do Brasil
O primeiro elemento da
teoria do Brasil dos positivistas ortodoxos que devemos considerar refere-se à composição
étnica do país. Teixeira Mendes nota que a população brasileira é composta
pelos tipos europeu, africano e autóctone, definidos em termos de seus
respectivos desenvolvimentos: o português, como vimos, seria o grupo ao mesmo
tempo intelectual e social, que, integrando o movimento geral da Europa,
atravessaria a transição revolucionária em direção à plena positividade; além
disso, como comprovariam os costumes gerais e a língua, foi o grupo dominante
na constituição do Brasil. Os índios e os africanos eram povos feiticistas
(TEIXEIRA MENDES, 1977 [1880], p. 47; 1936 [1892], p. 2-3), colaborando com a
imaginação e, no caso específico dos escravos negros, desenvolveriam bastante
os atributos afetivos do povo brasileiro.
Teixeira Mendes
observa que o isolamento geográfico e político da nação brasileira manteve o
país distante dos progressos intelectuais e industriais realizados na Europa,
especialmente nos países protestantes. Sem dúvida, isso nos privou de avanços
importantes; mas, por outro lado, também evitou que se difundisse no Brasil a “semiputrefação”
a que uma “incompleta emancipação teológica” condenava esses países. Como o
catolicismo nacional era pro forma e
os colonos brasileiros de origem portuguesa buscavam aqui a melhora das
condições materiais, o país manteve-se livre dos grupos sociais mais energicamente
retrógrados. A conjugação desses fatores resultaria em que não seria difícil ao
Brasil a assimilação posterior dos progressos intelectuais e materiais das
nações mais desenvolvidas, ao mesmo tempo em que se garantiria a subordinação
desses progressos à cultura afetiva – o que, no sistema comtiano, equivale ao
estímulo do altruísmo, da sociabilidade e do caráter e do destino sociais da
inteligência[6].
A mistura dos três
grupos sociais e a prevalência do elemento português na exposição de Teixeira
Mendes apresentam dois aspectos dignos de nota. Em primeiro lugar, Teixeira
Mendes fala em “raça” ao longo dos textos, especialmente na comemoração de
Camões: mas, entre os vários empregos dessa palavra, aqui e ali ele observa que
a emprega em sentido sociológico e
não biológico. A investigação de diferenças biológicas entre os seres humanos
como fundamento para a afirmação das raças, de acordo com a narrativa de
Teixeira Mendes, seria anticientífica (TEIXEIRA MENDES, 1977 [1880], p. 41),
isto é, metafísica. Para Teixeira Mendes, seguindo A. Comte, em termos
biológicos o que há é unidade do ser humano (no que se refere à natureza
humana); as diferenças não são dadas a
priori por variações genéticas, mas, bem ao contrário, o que ocorre são
diferenças de adaptação dos vários grupos aos seus ambientes, que a pouco e
pouco se fixam nos grupos sociais: quando se trata do ser humano, portanto, a
discussão sobre as raças deve pautar-se pelas investigações históricas e
sociológicas, em vez de pelas biológicas.
Em segundo lugar, há
uma sensível diferença de ênfase entre a conferência de 1880 e o livro de 1892
a respeito da colaboração dos povos feiticistas na constituição do povo
brasileiro. Na comemoração de Camões, Teixeira Mendes afirma a um tempo a
afetividade dos negros africanos, bem como o caráter social e também afetivo
dos portugueses; também lembra que o fetichismo estimula a imaginação e a
afetividade[7].
Entretanto, ao avaliar a contribuição que os índios e os africanos teriam para
a formação étnica brasileira, caso tivessem a proeminência, considera que seria
pequena ou mesmo negativa, em virtude do estágio em que se encontravam em suas
evoluções, especialmente se comparado com os portugueses (TEIXEIRA MENDES, 1977
[1880], p. 47). Essas considerações não deixam de parecer um pouco brutais para
os leitores do início do século XXI; entretanto, relendo atentamente os trechos
o que se evidencia é que a preocupação de Teixeira Mendes está na direção geral do processo e não
propriamente nas colaborações parciais dos grupos: nesse sentido, o que
aconteceria com o nível de abstração atingido pelos portugueses se os índios ou
os africanos dirigissem a colonização? Ou, então, como ficaria a instituição da
monogamia ou as vistas gerais de humanidade em situação similar? De qualquer
forma, na biografia de Benjamin Constant, ainda que não interessasse a Teixeira
Mendes estender-se a respeito da formação étnica do Brasil, ele comenta de
maneira mais suave e positiva a contribuição dos dois grupos subalternos
(especialmente dos africanos) para o Brasil, notando que eles influenciaram-nos
em particular no sentido de aumentar e estimular a afetividade (TEIXEIRA
MENDES, 1936 [1892], p. 3). Além disso, em ambos os livros Teixeira Mendes não
deixa de afirmar a responsabilidade dos europeus pelos seus crimes, a começar
pelas escravidões dos índios e, depois, dos africanos na América (que, cada uma
a seu tempo, contou com o apoio direto da igreja católica) e referindo-se
também, entre outras coisas, ao “criminoso industrialismo” que prevalecia em
sua época e que degradava os trabalhadores e desunia os seres humanos.
Pondo de lado as
diferentes preocupações de cada um dos escritos – explicar a importância social
e literária de Camões em um caso, explicar a importância social e política de
Benjamin Constant no outro caso –, como poderíamos entender as ênfases nos dois
escritos? Antes de mais nada, temos que observar que Teixeira Mendes era muito
coerente consigo próprio, ou seja, a partir dos escritos de Augusto Comte,
procurou manter ao longo de sua vida adulta concepções estáveis sobre o mundo e
a sociedade; ainda assim, essa coerência ao longo do tempo não equivale a
dureza ou alheamento à realidade; em vários momentos ele (bem como Miguel
Lemos) mudou publicamente de opinião – como, por exemplo, nas recomendações a
respeito dos destinos para os negros tornados livres, em que passaram de
sugerir a transformação dos negros em servos da gleba (nas mesmas antigas
fazendas em que antes eram escravos) para a sua incorporação direta nas
cidades, como proletariado livre e respeitado (cf. LINS, 1973); em outro
momento (TEIXEIRA MENDES, 1915) comentou que, ao longo do tempo, procurou ser
sempre cada vez mais positivo, isto é, mais altruísta, mais sintético, mais
cooperativo. Dito isso, parece-nos que há duas ou três razões para as
diferentes ênfases, todas de caráter mais ou menos “contextual”. Em primeiro
lugar, a comemoração de Camões foi um dos seus primeiros escritos públicos de
grande alcance com base no Positivismo, quando contava com menos de 25 anos de
idade: embora já conhecedor das idéias de Comte, percebe-se um tom enérgico,
que poderíamos considerar como sendo um pouco próprio à idade; a energia dos
seus textos manteve-se, mas sem dúvida ele adocicou-se com o passar do tempo.
Em segundo lugar, entre os dois escritos a participação política de Teixeira
Mendes aumentou bastante: por “participação política” não entendemos a vida
partidária, mas, de acordo com o ideal dos positivistas ortodoxos de constituírem-se
em um poder Espiritual, incluímos aí as intervenções cotidianas nos assuntos
públicos, por meio de prédicas, palestras e escritos. Ao longo da década de
1880, como se sabe, entre as várias campanhas que agitaram a sociedade civil e
os políticos brasileiros, uma destacou-se: a campanha pela abolição da
escravatura. Assim, embora ainda tencionemos verificar seus posicionamentos diretamente
nos textos publicados sobre esse tema, cremos que foi o decidido engajamento
dos positivistas na campanha abolicionista que fez Teixeira Mendes mudar sua
ênfase a respeito da colaboração das raças na constituição da nacionalidade
brasileira[8].
3.2. A independência nacional
O segundo elemento que
abordaremos da “teoria do Brasil” dos positivistas ortodoxos é o da
independência nacional, exposta principalmente na biografia de Benjamin
Constant (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892]).
Seguindo a teoria
comtiana, Teixeira Mendes observa alguns aspectos a respeito da expansão
territorial européia desde o século XV e os processos de independência dos
séculos XVIII e XIX. De acordo com A. Comte, as grandes nações modernas
surgiram devido à decadência do ascendente religioso existente na Idade Média,
seja porque os reis passaram a manter o controle territorial via força das
armas, sem reguladores morais, seja porque a própria ausência da regulação
moral deixou os reis entregues a si próprios, preocupados apenas com a expansão
territorial: em outras palavras, prolongando a política guerreira em termos
internacionais (ainda que desenvolvendo a política pacífica internamente). Ao
mesmo tempo, a expansão marítima e comercial levou os europeus a procurarem
novos territórios fora da Europa, conduzindo aos ciclos das grandes navegações
e da colonização das Américas.
Por outro lado, para
Comte as pátrias da sociedade pacífico-industrial devem ser pequenas, com áreas
variando entre as dos Países Baixos (41,5 mil km2) e de Portugal (92,4
mil km2)[9].
Essa pequena extensão corresponderia a um vínculo político forte, que deve
basear-se na associação livre dos cidadãos irmanados pela atividade pacífica e
por história e valores comuns; além disso, e de modo mais importante, a pequena
extensão territorial permite um conhecimento mais direto dos cidadãos entre si,
o que aumenta a confiança mútua e também a responsabilidade dos gestores
públicos e privados dos diversos tipos de capital.
No que se refere ao
continente americano, os europeus realizaram a colonização da América desde o
século XVI de diferentes maneiras e com variados objetivos, mas no fim do
século XVIII as antigas colônias já se encontravam relativamente estruturadas e
conscientes de si. Nesse período, as metrópoles passaram a cobrar cada vez mais
tributos das colônias, ao mesmo tempo que a impor mais e mais restrições às
suas vidas autônomas: controle das alfândegas, restrições às liberdades de
pensamento e discussão etc. Aliás, em parte o aumento das exigências
metropolitanas deveu-se exatamente à estruturação e à riqueza das colônias, sem
que, em contrapartida às taxações adicionais, as metrópoles preocupassem-se com
o desenvolvimento das terras d’além-mar: para Londres, Lisboa e Madri, a
América era fonte de riquezas e eventualmente foco de conflitos, mas não
parceira na vida nacional da Europa.
A despeito dos
esforços de muitos dos habitantes das colônias americanas com vistas a manterem
a unidade política, as ações metropolitanas eram claramente no sentido de
aumentarem as restrições e as taxações, resultando em tirania. Como se sabe, a
primeira colônia da América a declarar-se e a fazer-se independente, nesse
quadro, foram os Estados Unidos[10];
nesse período, as idéias críticas de A. Sidney, J. Locke e de outros pensadores
contratualistas – metafísicos, de acordo com as concepções comtianas – foram
instrumentais para a crítica ao governo metropolitano. A luta pela
independência estadunidense, bem como o seu sucesso, influenciaram bastante
tanto os outros países europeus quanto as demais colônias americanas.
No que se refere aos
colonos portugueses na América, Teixeira Mendes caracteriza-os como sendo populares
que buscavam em terras d’além-mar o melhoramento de suas condições. Além disso,
como a igreja era subordinada ao rei, a maior fonte de prestígio estava,
precisamente, no rei: essas duas circunstâncias uniram-se para que “[...] a
nação brasileira se formou na ausência quase total de qualquer das classes
dirigentes do regime católico-feudal e, portanto, livre das enérgicas
tendências retrógradas de tais classes” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 3).
Nesse quadro, o
exemplo das colônias inglesas na América do Norte e o garroteamento imposto por
Portugal ao Brasil tiveram como primeira conseqüência a Inconfidência Mineira e
a conseqüente morte solitária do Tiradentes. No caso de Tiradentes, Teixeira
Mendes comenta que ele não era o líder da insurgência nem se destacava por suas
habilidades políticas, mas a coragem e o desprendimento que exibiu no processo
criminal e na sua execução tornaram-no um símbolo da independência do país. Por
outro lado, observa Teixeira Mendes que, no ano em que a Inconfidência foi
tornada pública, iniciava-se também a Revolução Francesa, passando a França a
influenciar mais diretamente os rumos do Brasil doravante: fosse com o
Positivismo a partir de meados do século XIX, fosse mais diretamente no início
do século XIX, quando Napoleão Bonaparte invadiu a Península Ibérica,
acarretando a migração forçada da família real portuguesa para o Brasil.
A vinda da família
real e da corte para a América trouxeram consigo várias medidas que equipararam
os dois países em termos políticos e que aliviaram as pressões sofridas pela antiga
colônia. Mesmo assim, problemas de longa data acarretaram em Pernambuco, em
1817, sublevações republicanas, o “[...] que veio identificar ainda mais o
sentimento popular da independência com as aspirações republicanas da parte
mais avançada da nação” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 6).
Assim, as medidas
tomadas ao longo da década de 1810 resultaram em que
“A
separação política das duas porções da raça portuguesa parecia conjurada pela
satisfação dada às aspirações nacionais, quer do povo, quer da massa dirigente.
Quebradas as opressões mais intoleráveis, a monarquia lusitana apresentava o
aspecto de uma livre federação sob a presidência de uma realeza
tradicionalmente venerada” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 6-7).
A revolução do Porto,
de 1820, reverteu esse quadro, trazendo consigo o retorno do Brasil ao statu quo ante, na condição de colônia
estreitamente controlada: com isso, o movimento independentista
reapresentou-se.
Para Teixeira Mendes, face
às condições sociais e políticas vividas pelo Brasil desde meados do século
XVIII, a independência do Brasil era questão de encontrar-se um líder capaz de
empolgar a nação e realizar o movimento. Após a inconfidência mineira, a vinda
da família real tornou aceitáveis as condições em que vivia o Brasil, mas o
retorno do rei a Portugal reverteu o quadro: nesse momento apresenta-se a
figura de José Bonifácio.
“José
Bonifácio, o tipo mais eminente da raça portuguesa naquele tempo, reconhecendo
a gravidade da situação, pôs-se à testa dos patriotas. Um pensamento o domina.
Frustrada a união política dos portugueses de ambos os hemisférios, o velho
cidadão preocupa-se com salvar pelo menos a unidade da América portuguesa. Essa
unidade se lhe oferece no seu duplo aspecto: manutenção da integridade política
das pátrias brasileiras e fusão completa das três raças que as constituem, de
modo a formar com elas uma nação homogênea” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p.
7).
No que se refere à
unidade política do Brasil, Teixeira Mendes nota que a colonização do Brasil
foi “empírica” e “não-sistemática”, ou seja, foi feita de maneira irregular, de
acordo com as possibilidades, as necessidades e as oportunidades; com isso, os
vários núcleos de povoamento tinham poucos contatos entre si e nenhum deles
centralizava e coordenava, de fato, todos eles[11];
muitas províncias comunicavam-se mais repetida e facilmente com a Europa que
com o Rio; finalmente, algumas províncias eram suspicazes em relação a outras,
como no caso de Pernambuco em relação à Corte (devido ao movimento republicano de
1817); por fim, em todo o território havia tropas militares de origem européia.
O problema de José Bonifácio, nesse sentido, era tornar o Brasil independente e
ao mesmo tempo manter todas as províncias unidas, a despeito dos poucos e
frágeis laços que as uniam entre si.
No que se refere à
unidade étnica, Teixeira Mendes define assim o problema:
“Examinada
na sua composição, a população incorporada à civilização ocidental, dividia-se
em duas castas: uma de senhores, outra de escravos. E a população indígena, que
escapara às devastações, vagava errante pelo interior em tribos mais ou menos
desmoralizadas pelos contatos ocidentais” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 7).
Nesses termos, as
dificuldades estavam em acabar com a divisão entre senhores e escravos, que,
econômica e jurídica, perpetuava-se no tempo e era consagrada pelo catolicismo,
chegando a constituir duas diferentes castas
sociais. Da mesma forma, era necessário incorporar os índios à sociedade
nacional sem os erradicar fisicamente nem os degradar moral e culturalmente, ou
seja, permitindo ao mesmo tempo as trocas culturais e a digna autonomia das
tribos indígenas.
Para Teixeira Mendes,
a solução obtida por José Bonifácio para esses dois problemas foi a instalação
da monarquia constitucional no Brasil. Essa monarquia seria encabeçada pelo
príncipe regente, herdeiro presuntivo do rei: o respeito tradicional à
monarquia bragantina garantiria de um lado a unidade política e, por outro
lado, a reprodução no país da doutrina constitucionalista européia seria a
forma por que as liberdades públicas seriam consagradas. Ainda assim, a essa
proposta a resistência pernambucana tanto à monarquia quanto à centralização no
Rio de Janeiro seria uma dificuldade.
A monarquia
constitucional também permitiu “solucionar”, ou melhor, encaminhar o outro
problema, qual seja, o da unidade étnica. Teixeira Mendes faz duas observações
sobre José Bonifácio a esse respeito: por um lado, o político santista não
concebia uma república com escravos; por outro lado, ele tinha projetado a
emancipação gradual mas rápida dos escravos brasileiros; da mesma forma, ele
projetara a incorporação dos índios com base na ciência, em vez de com base na
catequese teológica. Uma república não poderia ser escravista (mesmo que por
pouco tempo): a monarquia podia. Dessa forma, sem poder de fato acabar (pelo
menos imediatamente) com o tráfico negreiro e com a escravidão, a monarquia
serviu para manter ambas as práticas[12].
Mesmo com essas
importantes limitações, Teixeira Mendes julga que José Bonifácio merece o
título de estadista – na verdade, o único estadista brasileiro até 1891-1892 –,
em virtude de ele ter compreendido os problemas brasileiros mais profundos:
“Foi
assim que José Bonifácio patenteou ter sido até hoje o único estadista de nossa
pátria. Depois dele se procura em vão quem tenha apanhado em toda a sua
plenitude o conjunto do problema brasileiro. As suas soluções foram empíricas e
por isso quiméricas ou insuficientes; mas é força convir que as luzes de então
dificilmente comportavam outras. Infelizmente só poude o patriota realizar a
parte mais secundária de seus projetos, instituindo a unidade política das
pátrias brasileiras” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 8).
Na biografia de
Benjamin Constant, a narrativa de Teixeira Mendes segue tratando das
vicissitudes da política imperial – isto é, expondo-as e avaliando-as –, nos
seus três grandes períodos (o I Império, o interregno regencial e o II
Império). Ela é interessante, seja devido à exposição factual, seja devido aos
comentários avaliativos sobre cada um desses momentos; todavia, não trataremos
deles, na medida em que desejávamos apresentar, nesta seção, a interpretação
que fez Teixeira Mendes da teoria comtiana da história e sua aplicação na
história brasileira, a respeito do contexto e dos problemas enfrentados no
período da independência nacional.
De qualquer forma,
cabem ainda alguns comentários a respeito da “teoria das pátrias brasileiras”,
conforme proposta por Teixeira Mendes. Nas exposições acima, aqui e ali usou-se
essa expressão – “pátrias brasileiras” –; o plural aí não é acidente: o
vice-Diretor da Igreja Positivista, ao empregá-la, considera duas acepções,
pelo menos. A primeira é histórico e descritivo, correspondente à pluralidade
de províncias brasileiras, surgidas ao longo da colonização: essas várias
províncias, como indicamos há pouco, surgiram e desenvolveram-se de maneira “empírica”
e “não sistemática”, conforme a avaliação de T. Mendes, mantendo entre si e
entre elas e as capitais (fosse metropolitana, no caso de Lisboa, fosse
colonial, nos casos de Salvador e, depois, do Rio de Janeiro) vínculos bastante
frouxos: em vez de ligações verdadeiramente orgânicas entre as províncias e
entre elas e a capital, o que existiria no Brasil seria mais uma “colcha de
retalhos” política.
A segunda acepção é de
caráter normativo e baseia-se na definição comtiana das “pátrias”, conforme
visto acima: devem ser unidades políticas de tamanho reduzido, em que a
cooperação material (isto é, política e econômica) seja pacífica e plenamente
voluntária e em que seja possível o contato pessoal entre os líderes políticos
e o corpo de cidadãos, entre os chefes industriais e o proletariado e,
portanto, seja efetivamente possível cumprir as responsabilidades sociais do
poder, da riqueza e do controle social dos recursos públicos.
Ao referir-se a “pátrias
brasileiras” em meio às suas narrativas a respeito da formação territorial e
étnica do Brasil, bem como do processo de independência nacional, Teixeira
Mendes evidencia que reconhece a pluralidade das formações sociais e políticas
brasileiras – incluindo aí as tribos indígenas – e que, rejeitando o unitarismo
político, advoga o federalismo ou o confederalismo[13].
A defesa do federalismo ou do confederalismo não é absoluta, no sentido de que
os consideraria válidos a qualquer instante ou a qualquer transe: seguindo o
relativismo comtiano, em sua discussão sobre a independência nacional e sobre
as propostas de José Bonifácio, Teixeira Mendes demonstra que reconhece a
centralização política como o instrumento, de caráter transitório, encontrado
naquele momento para (1) obter-se a independência das pátrias brasileiras, (2)
de maneira pacífica (fosse mais ou menos em relação a Portugal, fosse das
províncias entre si, fosse mesmo do Brasil em relação aos países vizinhos); da
mesma forma, essa centralização seria aceitável desde que respeitasse as
liberdades civis, políticas e sociais (o que foi prometido em 1822, mas
desrespeitado no período posterior a 1823 (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p.
12-13)).
4. Comentários finais
Em virtude do tamanho
necessariamente reduzido deste artigo, a exposição das concepções sociais e
políticas dos positivistas ortodoxos – que compendiamos na categoria “teoria do
Brasil” – tiveram que se limitar a apenas dois elementos, ainda que amplos: a
formação étnica e o processo de independência. Muitas outras questões ainda
poderiam ser incluídas na rubrica da “teoria do Brasil”: a crítica à Guerra da
Tríplice Aliança; a defesa do abolicionismo; a incorporação dos índios à
sociedade brasileira; a incorporação do proletariado à sociedade; a defesa de
uma política externa brasileira e de uma política internacional pacíficas; a
separação entre igreja e Estado; a defesa de um imaginário especificamente
republicano, humanista e fraterno para a República brasileira após 1889.
Seja com base nos
elementos expostos neste artigo, seja com base em pesquisas prévias (LACERDA,
2013a; 2013b), parece-nos que é possível tirar algumas conclusões e (re)afirmar
algumas considerações, incluindo uma clara defesa da produção intelectual e
política dos positivistas ortodoxos brasileiros.
A primeira consideração
diz respeito ao título “ortodoxo” e à conotação usual de que a ortodoxia
corresponderia a um engessamento mental, ou mesmo a um reacionarismo
intelectual e/ou político. Miguel Lemos e Teixeira Mendes, seguindo as
orientações de Augusto Comte (cf., p. ex., COMTE, 1929, v. I-IV, prefácios),
definiam-se como “ortodoxos” em virtude de aceitarem a integralidade da obra de
Comte, ou seja, por incluírem em suas reflexões os livros políticos e
religiosos do fundador do Positivismo, em vez de limitarem-se ao exame
preliminar que Comte fez das ciências e das filosofias das ciências. Dessa
forma, o serem “ortodoxos” não os impedia de interpretarem a realidade, em
particular a realidade nacional. Aliás, bem vistas as coisas, nem haveria
motivos epistemológicos para tal impossibilidade, na medida em que, como se
sabe – e como o próprio Comte afirmava, em contraposição aos empiristas
radicais –, qualquer exame da realidade requer um conjunto preliminar de idéias
e hipóteses: o Positivismo, mais que um mero “conjunto preliminar de idéias e
hipóteses”, apresenta uma visão geral da realidade, abrangendo valores morais,
métodos de pesquisa e categorias analíticas, que permitem ter uma visão de
conjunto da história e, com base nela, descer aos detalhes e às
particularidades nacionais. Pode-se gostar ou não das análises dos positivistas
ortodoxos, pode-se concordar ou não com elas: em todo caso, conforme já
defendemos anteriormente (LACERDA, 2013a), parece difícil que uma leitura
cuidadosa e honesta de seus escritos corrobore a famosa tese exposta por Sérgio
Buarque de Hollanda em Raízes do Brasil,
tantas vezes repetida de diferentes formas por muitos autores, segundo a qual
os positivistas teriam um “secreto horror à realidade”.
As discussões dos
positivistas ortodoxos conjugavam exposições da história nacional com interpretações
originais, por meio da aplicação de perspectivas teórico-metodológicas
delimitadas, começando por um conceito de historicidade que poderíamos
denominar de “historicidade profunda”, ou, de acordo com a terminologia
proposta por A. Comte, de “filiação histórica” (COMTE, 2012): cada época tem
suas condições sociais preparadas e definidas pelas épocas prévias, ao mesmo
tempo em que preparam e definem as condições para os períodos seguintes; da
mesma forma, o “social” das “condições sociais” tem que ser entendido de
maneira ampla, abrangendo a política e a economia, mas também a filosofia, a
moral, as artes (que geralmente são compendiadas nos rótulos gerais de “ideologia”
e/ou “cultura”), resultando em uma exposição que em suas linhas mais grosseiras
é simples, mas que se complica e ramifica-se à medida que se realiza o ajuste
fino da análise. A definição e a aplicação desses procedimentos
teórico-metodológicos resultam em que a narrativa histórico-sociológica dos
positivistas ortodoxos conjuga a todo instante as “estruturas” com a “agência”:
em cada momento, em cada configuração social, os indivíduos agem de acordo com
as possibilidades e os limites das configurações anteriores, conformando as
configurações seguintes. As várias ações dos indivíduos são feitas ativamente e
é função tanto de seus resultados coletivos e históricos quanto de suas
intenções que esses indivíduos são avaliados.
Por fim, importa notar que
os positivistas ortodoxos defendiam um modelo de organização social e política
ideal, ou seja, uma utopia. Esse modelo, conforme a definição de Augusto Comte,
em termos sociais era a “sociocracia” e, em termos políticos, era a república.
Neste artigo apresentamos apenas alguns elementos tanto de uma quanto de outra,
mas em outros artigos (cf. p. ex., LACERDA, 2010; 2013b) apresentamos de
maneira mais completa, e complexa, tais concepções: o seu conjunto revela um
modelo que poderíamos qualificar de “modelo denso de república”, bem como um
“modelo denso de sociedade”. Embora seja hábito corrente nos meios acadêmicos o
ridicularizar e o sugerir que tais propostas seriam liberticidas, em outra
ocasião argumentamos (LACERDA, 2009) que tais observações costumam basear-se
seja em um completo desconhecimento das idéias de Comte, seja em preconceitos
intelectuais e políticos, seja na prática do double standart, isto é, nos “dois pesos e duas medidas”. Assim, o
resultado é que as propostas de Comte, consubstanciadas em termos políticos na
república sociocrática, são válidas e dignas de atenção, reflexão e, a partir
daí, de aplicação prática: as amplas e longas aplicações que delas fizeram os
positivistas ortodoxos brasileiros são um exemplo disso.
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[1] Gustavo Biscaia de Lacerda (GBLacerda@gmail.com) é Doutor em Sociologia
Política e “pós-doutor” em Teoria Política, ambos pela UFSC, e sociólogo da
UFPR.
[2] Entre esses vários estudos, podemos
citar as recensões de Alonso (1996) e Trindade (2007); as exposições de João C.
O. Torres (1943), Cruz Costa (1956), Soares (1998) e Lins (2009), além das
pesquisas de Carvalho (1990), Graebin e Leal (1998), Maio (2004), Maestri
(2010; 2011) e Ribeiro (2012).
[3] Entre outras características, os
opúsculos da IPB eram numerados em ordem seqüencial desde que começaram a ser
publicados, em 1881; além disso, seus títulos e subtítulos são bastante
explicativos: dessa forma, com uma dessas publicações em mãos, é possível tanto
saber quantos foram publicados até aquela data quanto saber com grande clareza
o assunto de que trata. É em virtude da numeração contínua que sabemos que
foram publicados mais de 500 textos desde 1881 até, pelo menos, 1930; por outro
lado, como em meados de 2013 tínhamos acesso a apenas cerca de 350 dos títulos
do acervo, limitamos então a classificação a esse conjunto.
[4] Na verdade, desejávamos também
apresentar neste artigo algumas observações a respeito da implantação da
república no Brasil; todavia, em virtude das limitações de espaço, tivemos que
suprimir esse tópico.
[5] Essa observação parece evidente, mas na
verdade não é. O esquema geral das
idéias históricas de Augusto Comte é claro e pode ser exposto em relativamente
poucas linhas; entretanto, à medida que se entra nos detalhes referentes tanto
aos vários períodos do desenvolvimento histórico (particularmente ocidental)
quanto aos vários lugares que passam por esse desenvolvimento, a exposição
ganha detalhes e o esquema geral complica-se. Devido à obrigatória brevidade
deste artigo, não é possível descer a muitos detalhes.
[6] Como se sabe, a contraposição entre
os caracteres dos povos neolatinos aos anglossaxões (ou, de modo equivalente
para vários autores, das tradições católicas às protestantes) teve, como ainda
tem, uma grande carreira teórica. Teixeira Mendes, seguindo Comte, valoriza as
características neolatinas, em oposição aos anglossaxões. Uma perspectiva
bastante semelhante foi retomada nas últimas décadas por Richard Morse (1988) –
embora ele não deixe de referir-se de maneira zombeteira e superficial aos
positivistas –, em oposição a autores como Sérgio Buarque de Hollanda, que consideravam
negativamente a origem lusitana do Brasil (cf. MONTEIRO, 2009).
[7] O caráter ritual do catolicismo
praticado no Brasil reduzir-se-ia a mero fetichismo das celebrações: “Bem cedo
ficou ele [o catolicismo no Brasil] reduzido, como hoje [1892], a presidir às
cerimônias comoventes de um culto no qual o fetichismo medievo vinha
misturar-se com o fetichismo índio e africano” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p.
3)
[8] A partir do momento em que assumiram
a defesa do fim da escravidão, os positivistas ortodoxos foram sempre bastante
claros e sistemáticos a respeito. Alguns comentadores – como João Cruz Costa
(1956) – ironizam as proscrições que Miguel Lemos realizou no movimento
positivista logo que o assumiu, em 1880, mas deixam de notar, ou de enfatizar,
que algumas de tais proscrições eram devidas à exigência de os positivistas não
terem escravos, ou seja, era uma questão de coerência política.
De qualquer forma, Ribeiro (2012) recupera alguns dos
argumentos dos positivistas ortodoxos a respeito do abolicionismo, ainda que
sua pesquisa tente realizar um contraponto entre os positivistas (M. Lemos,
Teixeira Mendes) e os liberais (J. Nabuco) e, ao tratar dos positivistas, sua
narrativa seja monótona e sem vigor.
[9] Em termos dos estados brasileiros, a
sugestão de Comte corresponderia à variação havida entre o Espírito Santo (46,1
mil km2) e Pernambuco (98,3 mil km2), passando pelo Rio
de Janeiro, Rio Grande do Norte, Paraíba e Santa Catarina (cf. LACERDA, 2010,
p. 296-298).
[10] Augusto Comte considerava que, mesmo
antes da independência dos EUA, o processo de fragmentação das grandes nações
começou com a luta neerlandesa por sua independência em relação à Espanha, nos
séculos XVI e XVII. De qualquer forma, o caso dos Estados Unidos é mais
ilustrativo, pois tratou-se da separação entre dois povos de mesma língua,
mesma fé e mesma cultura (cf. COMTE, 1929, v. IV, p. 460-467; LACERDA, 2010, p.
352).
[11] Essa falta de coordenação entre os
núcleos de povoamento, nota de passagem T. Mendes, persistia até pelo menos o momento
em que redigia a biografia de Benjamin Constant, ou seja, até pelo menos
1891-1892: “[...] o Brasil não possuía então, como realmente não possui hoje,
uma verdadeira capital” (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 7).
[12] Mais adiante, Teixeira Mendes nota
que os novos países americanos surgiam como repúblicas, embora fossem
repúblicas muito imperfeitas: com
escravidão no caso dos Estados Unidos, com religião de Estado no caso dos
países hispano-americanos (“verdadeiras monarquias constitucionais sem rei”);
além disso, a instituição das repúblicas, novamente no caso da América
hispânica, deu-se com a ocorrência de grandes conflitos com a metrópole e,
depois, de guerras civis (TEIXEIRA MENDES, 1936 [1892], p. 9-10).
[13] O federalismo seria claramente
defendido no projeto de constituição federal apresentado por Miguel Lemos e
Teixeira Mendes em 1890, logo em seguida à Proclamação da República, no famoso
documento intitulado “Bases de uma Constituição
política ditatorial federativa para a república brasileira”. Sendo
mais específicos, nos artigos 1º e 2º, Lemos e Teixeira Mendes defendem tanto o
federalismo quanto o confederalismo: uma federação entre os “estados ocidentais
brasileiros” (as antigas províncias do Império) e os “estados americanos
brasileiros” (as tribos indígenas dispersas pelo território brasileiro) e uma
confederação entre os vários “estados ocidentais brasileiros”. Cf. Lemos e
Teixeira Mendes (1890).