18 dezembro 2024

Espontaneidade e instintos dos animais, dignidade humana e animal

Espontaneidade e instintos dos animais, dignidade humana e animal

O trecho abaixo é belíssimo: essa é a melhor maneira de descrevê-lo. Escrito por Augusto Comte no capítulo 3 e final do v. 1 do Sistema de política positiva, de 1851, ele apresenta com clareza o estilo de Augusto Comte, que extrai múltiplas reflexões, inter-relacionadas, a partir de uma discussão inicial, o que ao mesmo tempo evidencia seu aspecto sintético, sua assombrosa cultura científica, histórica, filosófica, moral e artística e a aplicação simultânea de critérios morais, intelectuais e práticos em todas as suas apreciações.

O trecho abaixo, em particular, aborda as caraterísticas próprias aos animais e que, por extensão, são compartilhadas pelo ser humano; além disso, também se afirma que essas características realizam-se naturalmente, independentemente de estímulos exteriores. Assim, por um lado tem-se os instintos; por outro lado, tem-se a espontaneidade desses instintos. A caracterização do funcionamento dos instintos não se encontra no trecho abaixo (em particular contra uma interpretação muito comum – aliás, comum mesmo hoje em dia – segundo a qual a mera existência dos instintos implica comportamentos específicos e atos concretos[1]); a afirmação dos instintos no trecho abaixo é importante para afirmar, por um lado, que eles são compartilhados, em diferentes graus, com os seres humanos e, por outro lado, que eles são espontâneos. A espontaneidade dos instintos, por sua vez, é afirmada para combater a concepção mecanicista dos animais (que, mais uma vez, com freqüência e mesmo nos dias atuais, é estendida para os seres humanos), segundo a qual o comportamento animal resume-se a reações mecânicas, robóticas, a impulsos ambientais.

A extensão dos instintos aos seres humanos e a afirmação da espontaneidade dos instintos (contra a hipótese mecanicista) têm como conseqüência o entendimento de que o ser humano existe em linha de continuidade com o conjunto dos seres vivos e, de maneira mais ampla, com a realidade cósmica; em outras palavras, o ser humano não existe sozinho, isolado e alienado do mundo, em um mundo que teria sido criado apenas para ele e para seu usufruto absoluto. Uma outra conseqüência das reflexões anteriores é que a afirmação da linha de continuidade entre o ser humano e os animais valoriza os últimos, que são “nossos companheiros de misérias e de trabalhos”.

Descartes não era contrário aos animais nem aos seres humanos, não há dúvida; entretanto, suas concepções mecanicistas acabaram tendo o efeito de desenvolver concepções, sentimentos e práticas contrárias ao respeito e à dignidade de seres humanos e animais. Aliás, antes de Descartes, fundamentando sua concepção e tendo ecos e atualizações bem posteriores, a hipótese mecanicista baseia-se na famosa separação entre “corpo e alma”, de origem teológica; é tal separação que justifica os “privilégios absolutos da nossa espécie estimulados pelo orgulho e pela ignorância”. De acordo com essa concepção, apenas o ser humano teria alma (ou inteligência, ou sentimentos, ou consciência etc.); é isso que tornaria o ser humano uma espécie única – e, mais importante nessa concepção, uma espécie privilegiada. Os privilégios humanos incluiriam, então, uma existência à parte do mundo, sem vínculos outros além da mera vida no mundo e do usufruto dos seus recursos. Essa mentalidade, de origem teológica e mantida sob as dissoluções metafísicas, vige ainda hoje; é ela que fundamenta o negacionismo climático de evangélicos estadunidenses, assim como ela integra a filosofia mais ampla dos pensadores da metafísica alemã neokantiana (como W. Dilthey e Max Weber); a hipótese mecanicista foi retomada no século XX pelo zoólogo (ou “etólogo”) B. Skinner e em seguida estendida por ele aos seres humanos. Por outro lado, no que se refere aos atributos humanos que são compartilhados com os animais, a crítica de Augusto Comte e o elogio aos animais foram retomados nos últimos anos pelo “etólogo” e filósofo neerlandês Frans de Waal[2] (embora esse autor, como sói ocorrer nos ambientes universitários, lamentavelmente não tenha a menor consciência disso).

*   *   *

Todas as principais características que o orgulho e a ignorância erigem em privilégios absolutos de nossa espécie apresentam-se também então, em um estado mais ou menos rudimentar, entre a maior parte dos animais superiores. Ali mesmo onde eles são menos desenvolvidos, sua apreciação normal, ainda que com freqüência difícil, torna-se indispensável para sistematizar a verdadeira concepção da animalidade. Sem esses diversos atributos interiores, cujo conjunto constitui a vaga noção de instinto, nós não podemos compreender nenhuma existência animal. Pois seria então necessário supor sempre direta a relação entre as impressões exteriores e as reações musculares. Ora, essa hipótese destruiria essencialmente a espontaneidade animal, que consiste sobretudo em ser determinado por motivos interiores. Isso seria, no fundo, restabelecer o automatismo cartesiano, que, excluído pelos fatos, vicia ainda, sob outras formas, as altas teorias zoológicas, falto de ter sido sistematicamente discutido. Apenas o regime enciclopédico emanado da nova religião [a Religião da Humanidade, ou seja, o Positivismo] poderá retificar definitivamente essas graves aberrações, que atrapalham ao mesmo tempo nossos sentimentos e nossos pensamentos. Na ordem intelectual, elas rompem em sua origem a cadeia fundamental que une a humanidade ao conjunto das existências reais. Mas sua influência moral é ainda mais prejudicial, ao justificar o desprezo, a ingratidão e mesmo a crueldade a respeito dos companheiros de nossas misérias e também de nossos trabalhos. A verdadeira religião deverá então reparar cuidadosamente esses funestos resultados do regime teológico-metafísico após a queda do politeísmo. Mais real e mais completo que o fetichismo, o Positivismo saberá ainda melhor que ele afirmar a dignidade animal.

(Augusto Comte, Sistema de política positiva, Paris, L. Mathiaz, 1851; v. 1, cap. 3 (“Introdução direta, naturalmente sintética, ou Biologia”), p. 602.)



[1] Reflexões nesse sentido podem ser lidas no Sistema de filosofia positiva, v. 3, lição 45; algumas delas foram traduzidas por Teixeira Mendes em seu belíssimo volume O ano sem par (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 5-6, 9). Esses trechos, por sua vez, foram publicados em nosso blogue, na postagem intitulada “Instintos e genética não são fatalidades”, disponível aqui: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2024/05/instintos-e-genetica-nao-sao-fatalidades.html.

[2] Um livro de Waal que apresenta de maneira clara reflexões nesse sentido é Somos inteligentes o bastante para saber quão inteligentes são os animais? (Rio de Janeiro, Zahar, 2022).

17 dezembro 2024

Sobre a espontaneidade

No dia 16 de Bichat de 170 (16.12.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Apelo aos conservadores (em particular da sua "Introdução").

Na seqüência, apresentamos a programação de final e de início de ano:

  • 16 de Bichat (17.12): última prédica positiva de 170 (2024)
  • Segundo dia adicional (31.12): celebração da Festa das Mulheres Santas, por Hernani G. Costa
  • 1º de Moisés (1.1): celebração da Festa da Humanidade
  • 19 de Moisés (19.1): celebração do nascimento de Augusto Comte (1798)
  • 7 de Homero (4.2): primeira prédica positiva de 171 (2025)

Em seguida fizemos nosso sermão, abordando a espontaneidade.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://youtube.com/live/PrwX1F7Q_0k) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://www.facebook.com/IgrejaPositivistaVirtual/videos/566203556164256).

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   * 

Sobre a espontaneidade

(16.Bichat.170/17.12.2024) 

1.       Invocação inicial

2.       Exortações iniciais

2.1.1. Sejamos altruístas!

2.1.2. Façamos orações!

2.1.3. Como Igreja Positivista Virtual, ministramos os sacramentos positivos a quem tem interesse

2.1.4. Para apoiar as atividades dos nossos canais e da Igreja Positivista Virtual: façam o Pix da Positividade! (Chave Pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

3.       Efemérides

3.1.    Dia 16 de Bichat (17.12): transformação de Eduardo de Sá (1940)

3.2.    Dia 20 de Bichat (21.12): início do verão

4.       Programação de final e início de ano:

4.1.    Dia 16 de Bichat (17.12): última prédica positiva de 170 (2024)

4.2.    Segundo dia adicional (31.12): celebração da Festa das Mulheres Santas, por Hernani G. Costa

4.3.    Dia 1º de Moisés (1.1): celebração da Festa da Humanidade

4.4.    Dia 19 de Moisés (19.1): celebração do nascimento de Augusto Comte (1798)

4.5.    Dia 7 de Homero (4.2): primeira prédica positiva de 171 (2025)

5.       Leitura comentada do Apelo aos conservadores

5.1.    Antes de mais nada, devemos recordar algumas considerações sobre o Apelo:

5.1.1. O Apelo é um manifesto político e dirige-se não a quaisquer pessoas ou grupos, mas a um grupo específico: são os líderes políticos e industriais que tendem para a defesa da ordem (e que tendem para a defesa da ordem até mesmo devido à sua atuação como líderes políticos e industriais), mas que, ao mesmo tempo, reconhecem a necessidade do progresso (a começar pela república): são esses os “conservadores” a que Augusto Comte apela

5.1.1.1.             O Apelo, portanto, adota uma linguagem e um formato adequados ao público a que se dirige

5.1.1.2.             Empregamos a expressão “líderes industriais” no lugar de “líderes econômicos”, por ser mais específica e mais adequada ao Positivismo: a “sociedade industrial” não se refere às manufaturas, mas à atividade pacífica, construtiva, colaborativa, oposta à guerra

5.1.2. Como nosso amigo Hernani G. Costa sempre realça, é necessário insistir em uma idéia que o materialismo e o ceticismo contemporâneos desprezam: não é possível entender a política proposta pelo Positivismo isoladamente da Religião da Humanidade

5.1.2.1.             Aliás, o desejo de separar a política dos valores e das concepções gerais de fundo é precisamente um dos problemas contemporâneos, é precisamente um dos sintomas da anarquia contemporânea

5.1.3. A religião estabelece parâmetros morais, intelectuais e práticos para a existência humana e, portanto, orienta a política, estabelece as suas metas, as suas possibilidades e os seus limites

5.1.3.1.             Outro lembrete: a religião, conforme o Positivismo estabelece, não é sinônima de “teologia”

5.2.    Últimas observações preliminares:

5.2.1. Uma versão digitalizada da tradução brasileira desse livro, feita por Miguel Lemos e publicada em 1899, está disponível no Internet Archive: https://archive.org/details/augustocomteapeloaosconservadores

5.2.2. O capítulo em que estamos é a “Introdução”, cujo subtítulo é “Advento dos verdadeiros conservadores”

5.3.    Passemos, então, à leitura comentada do Apelo aos conservadores!

6.       Sermão: sobre a espontaneidade

6.1.    O sermão desta semana foi sugerido pelo nosso confrade Eugênio Macedo – na verdade, foi sugerido publicamente por ele, em uma consulta que fiz (e que mantenho) à comunidade

6.1.1. Ao justificar esse tema, Eugênio lembrou que ele é um ator e que a espontaneidade é algo importante em sua profissão

6.1.2. Essa é uma justificativa importante: a relação das artes com o que é espontâneo – mas é claro que a espontaneidade é importante em todos os aspectos da vida

6.2.    A espontaneidade é um tema realmente desafiador, na medida em que ela é um aspecto da vida de todos e cada um de nós, mas, ao mesmo tempo, oferece algumas dificuldades para conceituar, por ser um pouco diáfana

6.3.    Como podemos entender a espontaneidade? Uma primeira abordagem sugere que é espontâneo é aquilo que ocorre naturalmente, isto é, sem um esforço (interno ou externo), a partir de impulsos internos

6.3.1. Essa definição inicial já indica que a espontaneidade tem íntimas vinculações com as artes – entretanto, não abordaremos tais relações nesta exposição

6.3.2. Há muitas situações em que a espontaneidade é altamente valorizada; geralmente são as situações em que manifestamos atributos afetivos e/ou altruístas: generosidade, respeito, apoio, alegria, simpatia etc.

6.3.2.1.             Inversamente, a falta de espontaneidade com freqüência é desvalorizada e entendida como um comportamento frio, mecânico, apático, ou mesmo puritano ou reprimido

6.3.3. A noção de espontaneidade como ação baseada em impulsos internos, sem esforço (e, em particular, sem força externa), indica imediatamente que o ser humano – e, na verdade, todo animal – age de fato a partir de motivações internas, sejam elas ou não devidas a reações ao ambiente

6.3.3.1.             Essas motivações internas com freqüência são chamadas de “instintos”

6.3.3.1.1.                   Os instintos, por sua vez, são orientações gerais em determinadas direções, com freqüência são potencialidades e mudam de intensidade ao longo da vida; assim, os instintos não são fatalidades nem implicam comportamentos e ações específicos

6.3.3.2.             Essas motivações internas rejeitam a tese do automatismo (como proposta por Descartes, afirmada por Hobbes e, no século XX, retomada por B. Skinner), como se os seres humanos e os animais fossem máquinas que apenas reagem passivamente a estímulos ambientais

6.3.3.3.             Isso, é claro, não significa que não ajamos de maneira espontânea em reação a estímulos externos aplicados sobre cada um de nós: a dor e o medo são exemplos fáceis, mas o carinho, a simpatia, o respeito, a honra também são estímulos exteriores que podem resultar em reações mais ou menos espontâneas

6.3.4. Em suma: a espontaneidade, então, consiste em manifestarmos externamente e com facilidade atributos internos

6.3.5. É importante notar que a espontaneidade pura e descontrolada não “funciona”, ou seja, não tem resultados adequados e satisfatórios para os indivíduos e a sociedade, não é adequada nem à felicidade individual nem ao bem-estar coletivo: dessa forma, todos precisamos de autocontrole sobre nossos instintos

6.3.5.1.             Isso se vê com clareza nas crianças, em que uma parte importante da educação consiste precisamente em desenvolver e aplicar o autocontrole

6.3.5.2.             A necessidade de controle e orientação dos impulsos (e, portanto, da espontaneidade) torna-se evidente quando consideramos que permanentemente é necessário o estímulo do altruísmo e a subordinação a ele do egoísmo

6.3.5.3.             Além disso, diferentes sociedades, em diferentes épocas, estimulam o autocontrole de alguns impulsos e, inversamente, estimulam a maior espontaneidade de outros impulsos: em outras palavras, há diferentes maneiras de conduzir e de lidar com os impulsos

6.3.5.3.1.                   Ao mesmo tempo, em toda sociedade há um sem-número de situações em que manifestamos de maneira obrigatória nossos sentimentos (o choro no funeral) ou em que somos proibidos de manifestar esses sentimentos (o riso alegre no funeral)

6.3.5.3.2.                   O resultado disso é que diferentes sociedades orientam diferentemente as espontaneidades

6.3.5.4.             Considerando as restrições e os estímulos sociais, podemos considerar que o que chamamos de espontaneidade refere-se, então, de maneira específica, à manifestação de nossas características (especialmente dos sentimentos) no dia a dia, na vida cotidiana, em que agimos mais ou menos sem provocação externa

6.4.    Precisamos insistir sobre as características sociais da espontaneidade; o processo da educação e as variações sociais já indicam então que a espontaneidade é bem mais que a mera manifestação de impulsos internos

6.4.1. De modo geral, a ausência de esforço que caracteriza a espontaneidade pode ocorrer devido à natureza das coisas ou então devido a um aprendizado (ou seja, a hábitos que foram internalizados) – ou a uma combinação dessas duas possibilidades

6.4.2. Os hábitos criados e internalizados não criam nenhuma habilidade que já não exista no ser humano (seja no ser humano individual, seja na espécie); o processo de educação apenas estimula e regula aquilo que já existe em nós, na forma de potencialidades

6.4.3. Além disso, muitas dessas potencialidades manifestam-se sozinhas ao longo do tempo da vida de uma pessoa: o processo de estímulo e orientação dos nossos instintos variam de acordo com a idade da pessoa

6.4.3.1.             Esse é um dos motivos por que a verdadeira educação não se limita à infância, mas é um processo que se estende ao longo de toda a vida

6.5.    Nos termos apresentados acima, torna-se claro que a espontaneidade aproxima-se da chamada “intuição”

6.5.1. A intuição refere-se ao conhecimento, enquanto a espontaneidade refere-se a todos os impulsos internos: a intuição são idéias e processos mentais que se tornam tão automáticos, exigem tão pouco esforço, que parece que não exigem esforço nenhum e que “sempre estiveram lá”

6.5.2. Assim, podemos dizer que a intuição são os processos especificamente intelectuais aprendidos que se tornaram espontâneos devido a um longo treinamento

6.6.    O que expusemos até agora se resume no seguinte:

6.6.1. A partir da natureza humana geral, cada indivíduo tem uma espontaneidade “geral”, básica, comum a todos os seres humanos, além de espontaneidades específicas

6.6.2. Essas diversas espontaneidades, que correspondem à manifestação de atributos e potencialidades, são estimuladas, controladas e orientadas de diferentes maneiras nas diferentes sociedades: essa orientação social dos atributos individuais corresponde à subordinação da Moral à Sociologia, na escala enciclopédica

6.7.    O que comentamos até agora sobre a espontaneidade refere-se aos atributos individuais, que são estimulados, controlados e orientados pela sociedade: mas há também a espontaneidade propriamente social, ou sociológica

6.7.1. As sociedades têm estruturas, funcionamentos e resultados específicos e diferentes dos dos indivíduos: é devido a essa realidade que se pode falar verdadeiramente em “leis sociológicas” e em Sociologia (em vez de tratarmos a sociedade como uma justaposição de indivíduos)

6.7.2. Toda sociedade tem, naturalmente, uma estrutura, que em seus elementos mínimos é estudada pela Estática Social: espontaneamente toda sociedade tem no mínimo linguagem, governo, família, religião e propriedade

6.7.3. Da mesma forma, toda sociedade desenvolve-se ao longo do tempo; esse desenvolvimento é estudado pela Dinâmica Social e, em linhas gerais, segue as leis sociológicas dinâmicas, isto é, as três leis dos três estados

6.7.4. Vale notar que o estímulo, controle e orientação social dos instintos individuais corresponde à espontaneidade social conduzindo a espontaneidade individual

6.7.5. Por que eu comecei a falar da espontaneidade individual antes da social, se a social precede a individual? Simplesmente porque a espontaneidade individual é mais fácil de tratar, pois é ela que vem à mente quando tratamos da espontaneidade

6.8.    Tudo o que falamos até agora se baseia no Positivismo e em reflexões filosóficas e sociológicas; mas como o Positivismo aborda esse tema de maneira mais direta e sistemática?

6.8.1. O dogma fundamental do Positivismo – isto é, a concepção intelectual fundamental do Positivismo – é a das leis naturais, das relações constantes de coexistência ou sucessão

6.8.2. A partir das leis naturais, o que o Positivismo faz é sistematizar a realidade (e a atividade) espontânea do mundo – o que equivale a dizer que a espontaneidade é pressuposta pelo Positivismo

6.8.3. Na verdade a idéia de que a matéria tem movimento espontâneo é uma das mais importantes, fundamentais e difíceis de ser apreendida:

6.8.3.1.             O fetichismo considera que tudo tem movimento espontâneo, ou seja, autônomo; o fetichismo vincula esse movimento à vida (no sentido de que tudo move-se porque tudo é vivo)

6.8.3.2.             A teologia substitui o fetichismo; em tal substituição, acaba com a concepção de que tudo move-se espontaneamente (porque tudo estaria vivo) e passa a pressupor que tudo o que se move deve o seu movimento a forças externas (que são os deuses)

6.8.3.2.1.                   Tal substituição empobreceu o entendimento afetivo e intelectual da realidade; mas, por outro lado, ela foi necessária para o começo da pesquisa das leis naturais (disfarçada sob a teologia pela pesquisa das causas)

6.8.3.3.             Aos poucos, a ciência – a ciência moderna – retomou a concepção do movimento espontâneo da matéria, ao mesmo tempo que abandonava as noções de deuses e de causas

6.8.3.4.             O desenvolvimento completo das leis naturais básicas (com a constituição da escala enciclopédica) e o estabelecimento do relativismo foram sistematizados pelo Positivismo, que completou esses aspectos pela necessária incorporação positivada do fetichismo

6.8.3.5.             A noção de que a matéria tem atividade espontânea, isto é, atividade própria independente de impulsos externos, começa na Cosmologia, passa para a Biologia e daí segue para a Sociologia e a Moral; em outras palavras, a atividade espontânea é de fato uma concepção geral do dogma positivo, pressuposta pela noção de leis naturais

6.9.    O Positivismo afirma a importância e a necessidade da espontaneidade na fórmula “agir por afeição e pensar para agir”

6.9.1. A espontaneidade está implícita na fórmula acima

6.9.2. Augusto Comte apresentou essa fórmula em duas passagens: a primeira no v. III da Política positiva (p. 78-79), de 1853, a segunda no Catecismo positivista (p. 67-68[1]), de 1852; das duas, a que nos interessa diretamente é a do Catecismo:

O verdadeiro espírito filosófico consiste, de fato, como o simples bom senso, em conhecer o que é, para prever o que há de ser, a fim de o aperfeiçoar tanto quanto possível. Um dos melhores preceitos positivistas declara, até, viciosa, ou, pelo menos, prematura, toda sistematização que não for precedida e preparada por um suficiente surto[2] espontâneo. Esta regra resulta logo do verso dogmático com que o Positivismo caracteriza o conjunto de nossa existência:

Agir por afeição e pensar para agir.

O primeiro hemistíquio[3] corresponde à espontaneidade e o segundo à sistematização consecutiva. Quaisquer que sejam os inconvenientes que a atividade irrefletida suscite, só ela pode ordinariamente fornecer os primeiros materiais de uma meditação eficaz que permitirá agir melhor.

6.10.                     Em suma:

6.10.1.   A espontaneidade, como manifestação dos sentimentos (em particular dos sentimentos altruístas), é efetivamente um valor a ser buscado

6.10.1.1.          A espontaneidade é necessária em termos afetivos, práticos e até intelectuais

6.10.1.2.          A espontaneidade é a atividade própria, interna, aos corpos; no caso dos animais e do ser humano, é chamada de “instintos”

6.10.2.   Devemos lembrar, entretanto, que assim como a espontaneidade é importante e necessária, o autocontrole e o controle social dos impulsos também é importante e necessário

6.10.2.1.          O estímulo do altruísmo e o controle e a orientação altruística do egoísmo é o melhor exemplo dessa necessidade

7.       Exortações finais

8.       Invocação final



[1] Augusto Comte, Catecismo positivista, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 4ª ed., 1934.

[2] “Surto”, aqui, significa “desenvolvimento”.

[3] Hemistíquio é cada uma das metades de um verso.

16 dezembro 2024

Programação de final e início de ano (2024-2025)

Programação de final e início de ano (2024-2025)

Considerando a necessidade de férias, faremos uma pausa nas atividades da Igreja Positivista Virtual entre dezembro de 2024 e janeiro de 2025. Entretanto, isso não equivale a ausência total de atividades; eis a nossa programação para esse período:

 

  • 16 de Bichat (17.12): última prédica positiva de 170 (2024) (às 19h)
  • Segundo dia neutro (31.12): celebração da Festa das Mulheres Santas, por Hernani G. Costa (às 19h)
  • 1º de Moisés (1.1): celebração da Festa da Humanidade (às 19h)
  • 19 de Moisés (19.1): celebração do nascimento de Augusto Comte (1798) (às 19h)
  • 7 de Homero (4.2): início das prédicas positivas em 171 (2025) (às 19h)

10 dezembro 2024

Monitor Mercantil: "Cultura política, STF e laicidade"

No dia 9.12.2024 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou um artigo de nossa autoria intitulado "Cultura política, STF e laicidade".

O original da publicação está disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/cultura-politica-stf-e-laicidade/.

O texto está reproduzido abaixo.

*   *   *

Cultura política, STF e laicidade

É quase senso comum considerar que sem o apoio generalizado e difuso da sociedade, nenhum regime político pode manter-se. Isso se refere tanto ao apoio consciente ao regime quanto aos pequenos hábitos e comportamentos do dia a dia, incluindo aí as formas como agimos e as maneiras que rejeitamos para agir. Assim, todo regime apresenta um aspecto cultural; dito de outra maneira, toda cultura tem um aspecto político que se corporifica no regime político, que cria e que sustenta as instituições.

Vale notar que as instituições importam, e muito, mas seu funcionamento adequado depende do apoio social que o conjunto da sociedade fornece, da legitimidade que as instituições têm para agir da maneira adequada e, não menos importante, das convicções íntimas que os agentes públicos e os cidadãos têm para fazer valer as funções das instituições. Em outras palavras, sem a cultura política sustentando as instituições, estas não passam de cascas vazias e letras mortas.

A relevância dessas afirmações, aparentemente tão simples, pôde ser comprovada ao longo da última década, a partir de diferentes exemplos. O primeiro exemplo é o mais fácil de citar; trata-se da série crise de legitimidade com que as instituições políticas representativas têm-se defrontado faz tempo. Não se trata apenas de um sentimento difuso e difundido de que “os políticos não nos representam”. Isso por si só já seria bastante grave, mas em si gera mais apatia e cinismo que qualquer outra coisa: ora, a crise de legitimidade que temos visto desde pelo menos 2013 tem resultado em um ativo comportamento autoritário. Em vez de as instituições republicanas (nas equívocas formas “democrático-liberais”) perderem apoio por si sós, o que se tem visto é que essa perda tem sido trocada por um apoio a práticas e a propostas institucionais autoritárias, violentas, iliberais. O apelo democrático é o mesmo: é sempre a soberania popular que justifica essas propostas; como, supostamente, a vontade popular nunca erra (afinal, vox populi vox dei), muitos consideram que o misticismo saudosista do regime militar seria aceitável.

Essas concepções antirrepublicanas têm sido defendidas por muitos grupos sociais e políticos que tentam implementá-las por meio de duas estratégias complementares: (1) desgastando as instituições vigentes, corroendo sua autoridade e/ou mantendo-as inertes (ou melhor, omissas); (2) tentando a mudança total de uma única vez. A primeira estratégia come pelas beiradas, a segunda consiste em um ataque direto ao conjunto das instituições.

Ora, a partir de um sentimento social difuso e difundido, não necessariamente espontâneo, entre 2019 e 2022 o que se viu foi o seguinte: o poder Executivo buscou e apoiou o golpismo militarista, o poder Legislativo foi inicialmente um anteparo a isso (entre 2019 e 2020, com Rodrigo Maia à frente da Câmara dos Deputados) e depois foi um esteio dessas ambições (em 2021 e 2022, com Artur Lira como Presidente da Câmara) e a Procuradoria-Geral da República (PGR) exibiu uma omissão cúmplice: o grande anteparo dessa longa ofensiva foi o Supremo Tribunal Federal (STF), na figura de Alexandre de Moraes secundado pelos outros dez ministros.

Vimos, então, a cultura política em ação, seja no seu aspecto difuso, social, seja no seu aspecto concreto, institucional e individual; um intenso ativismo social apoiou e foi apoiado por um ativismo institucional contra o conjunto das instituições, parte das quais apresentou uma omissão conivente contra esse mesmo conjunto; uma instituição central em particular opôs-se a isso e evitou o triunfo da maré antirrepublicana.

Esse resultado é notável e torna-se ainda mais impressionante quando se o compara com o outro exemplo que queremos comentar. Os atores envolvidos são os mesmos (sociedade civil, os três poderes, PGR); a fundamentação filosófico-moral é a mesma (valores sociais compartilhados, caráter “democrático” das instituições), a tramitação é a mesma (propostas dos poderes Executivo e/ou Legislativo avaliadas pelo Judiciário); os casos que nos interessam agora também se referem a aspectos centrais e fundamentais da República: mas o resultado é inverso ao anterior. As questões são relativas à laicidade do Estado.

Desde 1890 o Estado brasileiro é laico. Isso deveria significar que o Estado não tem doutrina oficial nem que as doutrinas/igrejas não se valem do Estado para imporem-se sobre os cidadãos. O Estado mais ou menos não tem doutrina; mas as doutrinas/igrejas usam, sim, o Estado para imporem-se e querem, cada vez mais, que o Estado apóie ativamente esse uso. Nesse quadro, as instituições deveriam apoiar o que é uma disposição política e constitucional desde o início da República: mas o poder Legislativo tenta criar brechas o tempo todo; o Executivo é omisso ou partícipe ativo dessas iniciativas; o Ministério Público é igualmente omisso. Restaria o Judiciário, mas decisões tomadas nos últimos anos indicam que o STF também apóia o desprezo à laicidade. E, pior, esse desprezo manifesta-se pelo mesmo Ministro – infelizmente, Alexandre de Moraes.

Em 2017, Alexandre de Moraes pôs-se contra Roberto Barroso, foi favorável a que as escolas públicas tenham ensino religioso confessional e foi o autor do voto vencedor nessa questão. Para Moraes, é lícito ao Estado pagar sacerdotes para que eles imponham sobre os estudantes suas doutrinas, em caráter oficial (com a fantasiosa possibilidade de opção). Agora em 2024, o mesmo Moraes julgou que os crucifixos em órgãos públicos não ofendem a laicidade do Estado, ou seja, símbolos de uma doutrina específica podem ser exibidos em caráter oficial (e obrigatório) para todos os cidadãos, mesmo acima dos símbolos da República!

O argumento empregado nos dois casos pelo Ministro Moraes é o mesmo empregado pelo ex-Presidente que tentou dar um golpe militar durante quatro anos: trata-se de que, “se o Estado é laico, a população é cristã”. A laicidade tem que se dobrar a uma crença compartilhada e pode ser negada. Não se pode argumentar ignorância ou má fé do Ministro Moraes, nem mesmo tibieza ou medo: ele não é o tipo de pessoa que se dobra a pressões externas por medo. São convicções íntimas, compartilhadas pela maioria do STF em 2017 e novamente em 2024.

O problema, então, é de cultura política – e de filosofia política. Trata-se de considerar que as opiniões são secundárias e que a força, a violência do Estado é só o que importa. Um Estado autoritário é um grave problema e deve ser evitado, sem dúvida: essa é a opinião do STF e de metade da população brasileira. Mas um Estado que impõe doutrinas e símbolos – na verdade, de maneira ainda mais dura e agressiva que em um Estado autoritário –, isso não é problema, pois “a população é cristã” e é lícito que o Estado pague servidores públicos para pregação religiosa.

São opções filosóficas e morais incoerentes, na verdade incompatíveis. Essas opções revelam e conduzem a uma cultura política que é mais que incompatível: ela é suicida.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.