06 junho 2024

Do antropocentrismo teológico ao antropocentrismo positivo

No dia 16 de São Paulo de 170 (4.6.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos os conceitos de antropocentrismo, indicando em particular a passagem das concepções antropocêntricas teológicas para a positiva.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/pYrMT) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/ONHAK).

O sermão iniciou-se em 1h 00 min 42 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

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Do antropocentrismo teológico ao antropocentrismo positivo 

-        A prédica de hoje abordará um tema por assim dizer “transversal”, que é a concepção que temos do ser humano no mundo

o   A reflexão sobre isso em si mesma é relativamente simples, mas, em todo caso, ela é plena de conseqüências e, mais importante, ela costuma ser mais implícita que explícita

§  Assim, vale a pena refletirmos explicitamente sobre isso e examinarmos algumas dessas conseqüências

o   Mesmo para quem não conhece muito o Positivismo parece bastante claro que Augusto Comte propôs um novo, ou um renovado, antropocentrismo; assim, esse tema é realmente importante

o   Além disso, a noção – ou melhor, uma determinada noção – de antropocentrismo foi recentemente retomada e criticada

§  Como veremos, essa retomada foi feita pela igreja católica, pelo Papa Francisco, em 2015

-        Comecemos pelo início: antes de mais nada, o que é o antropocentrismo?

o   De uma forma bem simples e direta, o antropocentrismo consiste em considerar que o ser humano é o centro ou está no centro de alguma concepção

o   Mas é necessário definir os parâmetros de tal centralidade:

§  O ser humano é o centro efetivamente do quê: das reflexões, do Universo...?

§  Também é necessário determinar se essa centralidade é entendida em termos objetivos ou subjetivos

§  Por fim, é necessário determinar em quais âmbitos tal centralidade atua principal ou primeiramente: moral, intelectual, prático

-        Utilizando esses parâmetros e aplicando-os à história da humanidade, vemos que de modo geral o antropocentrismo sempre esteve em vigorpelo menos em termos morais e subjetivos

o   No fetichismo, o ser humano não é entendido objetivamente como o centro do universo, além de não se adotar um antropocentrismo prático; mas como no fetichismo o ser humano atribui a todos os corpos – animados ou inanimados – as mesmas qualidades morais e intelectuais próprias ao ser humano, o que há é um antropocentrismo “epistemológico”, em que a natureza humana é disseminada e, daí, o ser humano não é exatamente o centro da existência

§  Uma conseqüência dessa “generalização do ser humano” e do entendimento de que tudo é dotado da afetividade e da inteligência humanas é que os seres humanos tendem a respeitar as coisas e o meio ambiente

§  Augusto Comte observava que o fetichismo é espontâneo e até ingênuo; assim, esse antropocentrismo epistemológico é altamente implícito

o   Com a passagem do fetichismo para a teologia propriamente dita, o tipo humano é claramente eleito como o parâmetro de avaliação e de entendimento do mundo; ao mesmo tempo, como o movimento do mundo passa a ser causado pela vontade dos deuses, os corpos naturais passam a ser entendidos como desprovidos de movimento e, para o que nos interessa, também deixam de compartilhar conosco nossa afetividade e nossa inteligência

§  No politeísmo o ser humano é o centro da existência, seja porque, no âmbito da narrativa teológica, considera que o ser humano foi feito pelos deuses à sua semelhança, seja porque, em termos sociológicos, os deuses refletem – em graus pronunciados e sem controle – os traços da natureza humana e nossas atividades

·         No politeísmo o mundo é entendido como estando em interação com o ser humano; nós somos centrais, mas disso não se segue que devamos acabar com os recursos naturais – aliás, não há nem mesmo as condições técnicas e sociais para isso

o   Evidentemente, em diversos momentos ocorreram esgotamentos locais de recursos naturais, como nos casos de esgotamentos de minas, devastações de florestas ou esgotamento de solos

o   Tais esgotamentos locais deveram-se à finitude dos recursos (minas), à imprevidência (florestas) ou à ignorância das leis naturais (solos)

·         Vale lembrar que, claro, há vários politeísmos: os mesopotâmicos, o egípcio, o hindu, o grego, o romano e muitos outros

o   Nossa reflexão concentra-se na Grécia e em Roma

·         A centralidade moral e prática do ser humano no antropocentrismo politeísta apresenta-se com clareza na fórmula de Terêncio: “Homo sum; humani nil a me alienum puto” (“Sou humano, nada do que é humano me é estranho”)

·         Do ponto de vista intelectual, o politeísmo pode permitir um afastamento do antropocentrismo, no sentido da objetividade: as pesquisas científicas gregas ilustram bem isso, como comprovam os cálculos de Eratóstenes sobre a medida da circunferência da Terra (e, antes, também sobre o caráter esférico da Terra)

·         Disso resulta que no politeísmo o antropocentrismo basicamente é implícito, mas às vezes pode tornar-se explícito e até ser posto de lado

·         Vale notar que esse “pôr de lado” o antropocentrismo corresponde ao desenvolvimento do método objetivo

§  No monoteísmo o antropocentrismo curiosamente assume um grau máximo

·         Antes de mais nada: consideramos que, basicamente, há três monoteísmos (judaico, católico, islâmico)

o   Nossas reflexões concentrar-se-ão no catolicismo

·         Esse antropocentrismo, todavia, é tanto subjetivo quanto, principalmente, objetivo: atribui-se ao ser humano a centralidade do Universo, no sentido de que o Universo foi criado por uma divindade objetiva para usufruto humano

·         Assim, no monoteísmo, o antropocentrismo é fortemente implícito e atua nos âmbitos moral, intelectual e prático; além disso, ele é entendido como objetivo

·         Como, a partir da Bíblia, considera-se que a Terra foi feita para o ser humano, a conseqüência é que os recursos naturais podem ser utilizados à vontade, sem limitações

o   A noção de “esgotamento dos recursos” (além de não ocorrer com facilidade na prática) não se apresenta por definição, na medida em que a divindade provê ao ser humano tudo de que ele precisa

o   Além disso, também se considera que, no caso do esgotamento dos recursos e/ou dos desastres naturais, essas adversidades correspondem à vontade divina, seja porque a divindade “escreve reto por linhas tortas”, seja porque se trata de punições por algum pecado

·         Esse antropocentrismo objetivo também separa radicalmente o ser humano do resto dos animais (somente o ser humano teria “alma”) e considera que, literalmente, o ser humano é o centro do Universo (concepção geocêntrica)

o   Saindo da teologia e considerando o desenvolvimento do espírito positivo, este implica diversas mudanças, cujo resultado geral vai na direção do relativismo, do pacifismo e da noção de Humanidade

§  Esse desenvolvimento, como sabemos, com freqüência deu-se por meio da crítica destrutiva das concepções e da sensibilidade teológica – e, portanto, com o rompimento e a crítica dos antropocentrismos próprios à teologia

§  As centralidades moral e prática do ser humano permanecem constantes

§  Já a centralidade intelectual do ser humano sofre sucessivos abalos, na medida em que a postulação de que o Universo e a Terra foram criados exclusivamente para o ser humano é criticada

·         Como notava Augusto Comte, a hipótese heliocêntrica de Copérnico desferiu no século XVI o mais duro e mortal golpe contra esse antropocentrismo teológico

o   Quase como um jogo de dominó, a partir do heliocentrismo (por mais que ele teórica e empiricamente seja errado) todas as concepções teológicas ruíram

o   Não por acaso Galileu foi perseguido pela Igreja Católica: os inquisidores, especialmente os jesuítas, perceberam com clareza que a hipótese heliocêntrica, esposada por Galileu (aliás, propositalmente de maneira ruidosa) não era apenas uma hipótese científica, mas que tinha amplas e devastadoras conseqüências intelectuais e morais para a teologia e, por extensão, para a própria Igreja

·         A outra série de críticas ao dogma teológico foi desferida no âmbito biológico, referente à natureza humana

·         A noção de que apenas o ser humano tem “alma” foi duplamente destruída pelas pesquisas biológicas e “neurocientíficas” de Bichat e Gall-Spurzheim, na passagem do século XVIII para o XIX, quando eles desenvolveram uma teoria unificada da vida, indicaram que a “alma” é o conjunto das funções cerebrais e que os animais possuem essas funções tanto quanto o ser humano (apenas com importantes diferenças de grau)

o   Vale notar que, embora em si mesma a teoria de Darwin tenha contribuído bem pouco para esse desenvolvimento científico, a fortíssima resistência que ele enfrentou na Inglaterra vitoriana indica o quanto ainda a teologia era forte naquele país e o evidente estrago que o antropocentrismo teológico sofreria com essas concepções

·         A rejeição do antropocentrismo teológico implícito passou a dar lugar a um antropocentrismo positivante explícito, como as artes do chamado Renascimento indicam: pensemos na cena da Capela Sixtina pintada por Miquelângelo e no desenho do “Homem Vitruviano”, de Leonardo da Vinci

o   Considerando diretamente a ciência: em si mesma, ela tende a rejeitar o antropocentrismo, em nome de uma objetividade naturalizante

§  A rejeição cientificista do antropocentrismo segue o impulso do desenvolvimento das ciências inferiores (ou seja, das chamadas “ciências naturais”) e do método objetivo, em que de fato é necessário que se examinem as coisas como elas são e não como gostaríamos que elas fossem

§  Esse objetivismo baseia-se, sem dúvida, em necessidades intelectuais imperiosas, mas ao mesmo tempo estimula tendências muito daninhas

·         Por um lado, esse objetivismo que rejeita o antropocentrismo é a idéia da “ciência neutra”, ou da “ciência sem valores”

·         Por outro lado, ao necessário afastamento do antropocentrismo teológico uniu-se um espírito crítico, destruidor, anti-histórico e antifilosófico, que postula que qualquer antropocentrismo seria necessariamente do tipo teológico

·         Além disso, exagerando não a duração da destruição, mas, sim, a necessidade de objetividade, há muitos que consideram que a ciência tem que ser neutra, não pode ter valores etc.

o   Esse erro verifica-se mesmo nas ciências superiores, ou seja, na Sociologia (Durkheim, Weber) e na “Psicologia” (B. Skinner)

·         Uma outra forma de verificar-se a recusa do antropocentrismo nas ciências é o impulso “antissocial”, no sentido de que se busca uma ciência despreocupada de sua utilidade

o   Esse caráter “antissocial” da ciência verifica-se nas postulações de uma ciência “pura”; solidifica-se na famosa “torre de marfim”; é comprovada pelas reiteradas cobranças de que os projetos de pesquisa têm que indicar a... sua utilidade social

o   O resultado disso tudo é que, contemporaneamente, conforme o caráter anárquico da nossa época (ou seja, sem um parâmetro geral dominante), convivem parâmetros opostos, contraditórios e incoerentes de antropocentrismo, às vezes afirmando o seu viés teológico, às vezes recusando qualquer antropocentrismo em nome da objetividade etc. etc.

-        Após essa breve retrospectiva histórico-filosófica, passemos diretamente para o Positivismo: o Positivismo claramente restabelece o antropocentrismo em termos morais, intelectuais e práticos

o   Esse renovado, ou novo, antropocentrismo positivista é explícito mas é subjetivo

§  Na verdade, é um antropocentrismo inicialmente explícito que, sendo adotado como parâmetro, logo e propositalmente se converte em implícito

§  A subjetividade do antropocentrismo positivista é dupla: por um lado, assumimos que o ser humano é o centro da realidade em termos intelectuais e morais; por outro lado, reconhecemos que, sendo nós humanos, temos necessariamente que ser o centro de nossas atenções

o   A subjetividade do antropocentrismo positivista significa também que ele não é objetivo (como é o antropocentrismo teológico); em outras palavras, reconhecemos que não somos donos do planeta, nem que o mundo (e o meio ambiente) existem apenas para nós

o   Portanto, o antropocentrismo positivista é relativo: nós reconhecemos e afirmamos nossas limitações e a necessidade de vincular o ser humano a inúmeros outros aspectos da realidade

§  Nós reconhecemos e valorizamos a frase de Francis Bacon: nós modificamos a natureza submetendo-nos a ela

o   Desenvolvendo e aprofundando o subjetivismo e o relativismo do antropocentrismo positivista, Augusto Comte afirmou que seria necessário que o positivismo final incluísse conscientemente o fetichismo inicial

§  Com a incorporação do fetichismo no Positivismo, ao mesmo tempo desenvolvemos mais e melhor nossos sentimentos, regulamos nossos pensamentos e aperfeiçoamos nossas atividades

§  A incorporação do fetichismo permitiu a elaboração da Trindade Positiva, que é composta pelo Grão Meio (o Espaço), o Grão Fetiche (a Terra) e o Grão Ser (a Humanidade)

§  Cumpre lembrar que a noção de Humanidade implica, necessariamente, também a participação dos animais úteis (em particular os domésticos)

·         Assim, o antropocentrismo positivo, além de ser subjetivo e relativo, é não exclusivista, na medida em que reconhecemos e valorizamos inúmeros outros âmbitos da realidade além do próprio ser humano

o   O antropocentrismo positivista fica evidente na expressão “Religião da Humanidade” e, como vimos acima, no conjunto das nossas concepções

o   Além disso, o antropocentrismo positivista condensa-se no “método subjetivo”, que consiste precisamente na aplicação de parâmetros humanos (relativos, subjetivos, altruístas) ao conjunto de nossa existência (moral, intelectual, prática – ou seja: sentimentos, filosofia, ciência, arte, política, economia, relações familiares, relações profissionais, relações gerais)

-        Podemos passar agora para uma outra ordem de considerações, relativa a uma passagem concreta mas altamente implícita, do antropocentrismo teológico para o antropocentrismo positivo

o   Isso se deu em uma encíclica do atual papa, Francisco, intitulada Laudato Si’, de 2015

o   Francisco afirma que é necessário abandonarmos os vícios do “antropocentrismo” e da “tecnocracia” e adotarmos uma “ecologia integral”

§  No pólo positivo, a “ecologia integral” significa o respeito ao meio ambiente, à flora, à fauna e também aos povos indígenas

§  No pólo negativo, o “antropocentrismo” e a “tecnocracia” correspondem à idéia de que o ser humano é dono do universo e que pode, com o uso da tecnologia, destruir o meio ambiente e esgotar os recursos naturais; a tecnocracia também significa o capitalismo e os cálculos que desprezam a realidade e consideram que tudo (seres humanos, meio ambiente) são apenas insumos para serem manipulados com vistas ao lucro

o   Essa proposta de Francisco é absolutamente inovadora; por assim dizer, é o primeiro manifesto ecológico da Igreja Católica

§  Não por acaso o jesuíta Jorge Mario Bergoglio escolheu Francisco de Assis como seu patrono

§  Isso é de uma importância suprema, em particular quando se nota que, com esse tipo de pregação, Francisco afirma o papado em sua função de poder espiritual, isto é, de educador e conselheiro

·         Seguindo a orientação católica, Francisco definiu os crimes ambientais como pecados

o   Ao mesmo tempo, além do ineditismo da proposta, vale notar que Francisco exorta a Igreja, na prática, a repudiar a concepção de mundo que orientou a existência da própria igreja em seus 1.700 anos

§  Essa concepção, vigente entre os católicos até há dez anos, é a que prevalece entre inúmeros grupos protestantes e que, assim, ajuda a apoiar o negacionismo climático, as devastações de florestas etc., no Brasil, nos Estados Unidos e em outros lugares

o   Entretanto, devemos notar que, se os traços gerais da proposta de Francisco são totalmente admiráveis e respeitáveis, os termos específicos que ele escolheu são bastante ruins:

§  A “ecologia integral” é uma expressão que impressiona e que evidencia e propõe com clareza o respeito a fauna, flora e povos indígenas, mas, no final das contas, é uma concepção meramente científica, ou melhor, cientificista, sem caráter moral e que propositalmente deixa de lado o papel do ser humano – incluindo aí a solução dos problemas ambientais que põem em xeque a sobrevivência do ser humano

·         Se tiver algum sentido que ultrapasse o cientificismo, a “ecologia integral” acaba assumindo um aspecto necessariamente abstrato e vago, ou seja, místico

o   A igreja católica, seguindo o caráter do seu dogma, considera que o misticismo é algo bom – o que, evidentemente, prejudica bastante suas concepções e sugere, mais uma vez, a necessidade de ultrapassar e deixar de lado a teologia, seu absolutismo e sua vagueza

§  Por outro lado, as palavras “antropocentrismo” e “tecnocracia” têm múltiplos sentidos:

·         De fato, há a crítica ao antropocentrismo teológico e à exploração capitalista do mundo

·         Mas a referência ao antropocentrismo refere-se diretamente ao ser humano, ou seja, é uma crítica ao humanismo

o   Não há como diminuir o erro, a má vontade, a má fé dessa crítica intencional e inequívoca

·         Além de criticar o humanismo e o ser humano, a igreja católica critica o antropocentrismo em geral e com isso finge que a concepção que critica não é o antropocentrismo teológico, defendido pela própria igreja e pelo monoteísmo cristão

o   Insistamos: a encíclica omite, proposital e conscientemente, o fato de que é o antropocentrismo teológico que deve ser duramente criticado, rejeitado e superado (e, como vimos antes, superado em favor de um renovado antropocentrismo, de caráter positivo)

o   Além disso, a despeito da crítica venenosa feita ao “antropocentrismo”, a encíclica propositalmente não reconhece que a concepção que ela defende, na verdade, é a concepção humanista, subjetiva, relativa e altruísta, ou seja, é a concepção positivista

·         Da mesma forma, a referência crítica e genérica ao antropocentrismo e à “tecnocracia” implica também uma crítica à secularização, ou melhor, à positivação do mundo, realizada em parte importante pelos conhecimentos técnico-científicos

·         Assim, ao usar as expressões “antropocentrismo” e “tecnocracia”, o que Francisco deseja fazer, no fundo, é criticar a decadência irrevogável da teologia, a afirmação da Humanidade e o papel da ciência nesse processo – e, pior, vincula-os à exploração da natureza e do ser humano

-        Em suma:

o   O antropocentrismo considera que o ser humano é o centro das concepções

o   Ao longo da história, o ser humano sempre foi o centro moral e intelectual de suas concepções, em termos subjetivos e de maneira pelo menos implícita

o   Há concepções objetivistas do antropocentrismo:

§  Em um gênero delas, considera-se o ser humano como o centro do Universo, dando uma suposta permissão para a destruição do meio ambiente: esse é o caso do antropocentrismo teológico

§  Um outro gênero de objetivismo é afirmado pela ciência: embora ela tenha-se constituído seguindo o desenvolvimento do método objetivo, a afirmação exagerada e “acrítica” da objetividade conduz a propostas de uma ciência “neutra” e “sem valores”, além da ciência despreocupada de fins sociais – tudo isso em nome da rejeição do antropocentrismo, em que se subentende ao mesmo tempo que o antropocentrismo é subjetivista (portanto, seria arbitrário e incoerente) e que todo antropocentrismo seria teológico

o   É imperativo afirmar um renovado, ou um novo, antropocentrismo, necessariamente subjetivo, altruísta, relativo – ou seja, trata-se precisamente da proposta positivista, corporificada na Religião da Humanidade e no método subjetivo

o   A igreja católica recentemente rejeitou uma das conseqüências nefastas do seu antropocentrismo teológico, ao afirmar que o meio ambiente não existe para ser explorado, esgotado e desprezado pelo ser humano

§  Entretanto, embora tenha criticado algumas das conseqüências nefastas do seu antropocentrismo teológico, na encíclica Laudato Si’ a igreja católica omite o fato de que essas conseqüências derivam precisamente de suas concepções fundamentais

§  Ao mesmo tempo, a igreja católica atribui ao antropocentrismo em geral, ou seja, em seu esquema mental, ela atribui às concepções humanistas e positivas a origem dos problemas que critica

§  Em outras palavras: os problemas criticados pela igreja católica são corretamente criticados; mas a origem desses problemas a igreja finge que não é culpa dela mesma e da teologia, atribuindo essa responsabilidade a quem busca de fato evitá-los e resolvê-los


01 junho 2024

Fenômenos MAIS modificáveis são MENOS irresistíveis

Fenômenos mais modificáveis são menos irresistíveis

O trecho abaixo é notável em sua importância epistemológica e em sua aplicação pedagógica. Comentando as críticas sofridas pelas teorias de Gall e Spurtzheim sobre o cérebro e seu funcionamento, Augusto Comte nota que uma delas em particular, conquanto errada em si mesma, permitiu lançar luz sobre questões importantes – daí a conveniência de examinar tal crítica. Essa crítica afirma que a noção de leis naturais (e, mais particularmente, a noção de que os fenômenos cerebrais seguem, também, leis naturais) impede a liberdade humana e torna a educação irrelevante ou inútil.

Para responder a essa crítica, Augusto Comte observa que os fenômenos mais complicados (e mais específicos) são os mais modificáveis e, inversamente, que os mais simples (e mais gerais) são os menos modificáveis. Além disso, o fundador da Sociologia nota que o aumento da complicação e da especificidade implica um acréscimo contínuo de novas leis naturais específicas, cada qual com suas próprias variações: esse acúmulo paulatino de novas variações acarreta nos fenômenos mais complicados maiores graus de variação, ou, nos termos abaixo, menores graus de irresistibilidade, sem que isso acarrete, de qualquer maneira, a negação da noção de leis naturais próprias a cada fenômeno. No que se refere à educação, a menor irresistibilidade juntamente com as leis naturais específicas resultam em que há grande espaço para a educação, o que não significa, todavia, que leis e instituições possam, por si sós, pura e simplesmente fazer o que quiser com o ser humano, da mesma forma que não podem criar gênios.

Em termos epistemológicos, esse trecho é importantíssimo porque esclarece, mais uma vez, o que significa a expressão “maior complicação, maior modificabilidade”. Do ponto de vista pedagógico – mas também da política prática –, esse trecho é importantíssimo porque assenta que o ser humano não é infinitamente maleável nem que é maleável conforme vontades arbitrárias e caprichosas[1].

De modo geral o trecho é autoexplicativo. Convém notar, entretanto, que Augusto Comte critica a “ideologia francesa” e a “psicologia germânica”: no primeiro caso, a referência é à “Ideologia” e aos ideólogos, que se constituíram nos intelectuais franceses de maior nomeada após o Iluminismo e a Revolução Francesa; Comte considera em particular as obras de Étienne de Condillac e Claude-Adrien Helvétius. No que se refere à “psicologia”, eu não sei identificar por ora a quem ele referia-se especificamente. De qualquer maneira, tanto em um caso quanto no outro, para Comte as doutrinas ideológicas e psicológicas eram profundamente metafísicas, afirmando concepções degradadas da teologia, como a noção de “alma”, ou a de “eu” unitário[2]. Em contraposição a tais doutrinas, Augusto Comte elogia o estudo empírico do cérebro, com a busca da determinação tanto das funções cerebrais elementares quanto dos órgãos cerebrais específicos[3] – e, a partir daí, estabelecendo as bases positivas para o estudo e a compreensão da subjetividade do ser humano. Assim, o elogio que Augusto Comte faz à frenologia, a Gall e a Spurtzheim considera as importantes pesquisas empíricas de neuroanatomia e de neurofisiologia, que estabeleceram indiscutivelmente as bases realmente elementares do que se chama nos dias de hoje de “neurociência”; essas pesquisas têm valor por si sós, independentes das aplicações posteriores e/ou de exageros interpretativos, que Augusto Comte criticava ou que deixava de lado[4].

* * *

“Entre as inúmeras objeções que foram sucessivamente levantadas contra essa bela doutrina, considerada sempre unicamente nas suas disposições fundamentais, e continuando a eliminar toda especialização, só uma merece ser assinada aqui, tanto pela sua alta importância, como pela nova luz que a sua inteira resolução fez jorrar sobre o espírito da teoria. Consiste ela na pretensa irresistibilidade que juízes irrefletidos creram dever assim ser atribuída às ações humanas, e que é necessário examinar sumariamente do ponto de vista geral peculiar à filosofia positiva.

Só uma profunda ignorância do verdadeiro espírito da filosofia natural poderia fazer confundir, em princípio, a subordinação de acontecimentos quaisquer a leis invariáveis, com a irresistível consumação necessária deles. No conjunto do mundo real, orgânico ou inorgânico, é evidente, como já o estabeleci, que os fenômenos das diversas ordens são tanto menos modificáveis, e determinam tendências tanto mais irresistíveis, quanto mais simples e mais gerais são ao mesmo tempo eles. Sob este aspecto, os atos da gravidade, por serem relativos à mais geral e a mais simples de todas as leis naturais, são os únicos que possamos conceber como plenamente e necessariamente irresistíveis, pois que não podem jamais ser inteiramente suspensos; eles se fazem sempre sentir, de uma maneira qualquer, já por um movimento, já por uma pressão. Mas a medida que os fenômenos se complicam, a sua produção exigindo o concurso indispensável de um número sempre crescente de influências distintas e independentes, eles se tornam, só por isso, cada vez mais modificáveis, ou, em outros termos, a sua consumação se faz cada vez menos irresistível. Isso resulta das combinações cada vez mais variadas que comportam as diversas condições necessárias, cada uma das quais continua todavia a ser isoladamente sujeita às suas leis fundamentais, sem as quais a concepção geral da natureza ficaria nesse estado arbitrário e desordenado que a filosofia teológica é diretamente destinada a representar. É assim que os fenômenos físicos, e sobretudo os fenômenos químicos, comportam modificações continuamente mais profundas, e apresentam, por conseqüência, uma irresistibilidade sempre menor, como tive o cuidado de explicá-lo. Notamos igualmente que, em virtude da sua complicação e da sua especialidade superiores, os fenômenos fisiológicos são os mais modificáveis e os menos irresistíveis de todos, conquanto sempre submetidos, na sua consumação, a leis naturais invariáveis. Por uma conseqüência evidente da mesma noção filosófica, é claro que os fenômenos da vida animal, em razão da sua menor indispensabilidade e da sua inevitável intermitência, devem realmente ser encarados como mais modificáveis e menos irresistíveis ainda do que os da vida orgânica propriamente dita. Enfim, os fenômenos intelectuais e morais, que, pela sua natureza, são a um tempo mais complicados e mais especiais do que todos os outros fenômenos precedentes, devem evidentemente comportar mais importantes modificações e manifestar, portanto, uma irresistibilidade muito menor. Mas por isso cada uma das numerosas influências elementares que concorrem para eles não cessa de obedecer, no seu exercício espontâneo, a leis rigorosamente invariáveis, apesar do mais das vezes desconhecidas até ao presente. É o que Gall e Spurtzheim verificaram diretamente no caso atual, da maneira menos indubitável, por uma luminosa argumentação. Bastou-lhes, depois de ter lembrado que os atos reais dependem quase sempre da ação combinada de várias faculdades fundamentais, observar, em primeiro lugar, que o exercício pode desenvolver muito cada faculdade qualquer, como a inatividade tende a atrofiá-la; e, em segundo lugar, que as faculdade intelectuais diretamente destinada, pela sua natureza, a modificar a conduta geral do animal segundo as exigências variáveis da situação dele, podem alterar muito a influência prática de todas as outras faculdades. Em virtude desse pulo princípio, não pode haver verdadeira irresistibilidade, e por conseqüência irresponsabilidade necessária, conforme as indicações gerais da razão pública, senão nos casos de mania propriamente dita. Nestes a preponderância exagerada de uma faculdade determinada, proveniente da inflamação ou da hipertrofia do órgão correspondente, reduza de alguma sorte o organismo ao estado de simplicidade e de fatalidade da natureza inerte. É pois bem vãmente, e com leviandade bem superficial, que se acusou a fisiologia cerebral de menosprezar a alta influência da educação, e da legislação que constitui o prolongamento necessário desta, porque fixou judiciosamente os verdadeiros limites gerais de ambas. Por haver negado, contra a ideologia francesa, a possibilidade de converter, à vontade, mediante instituições convenientes, todo os homens em outros tantos Sócrates, Homeros, ou Arquimedes, e, contra a psicologia germânica, o império absoluto, muito mais absurdo ainda, que a energia do eu exerceria para transformar, ao seu sabor, a sua natureza moral, a doutrina frenológica foi representada como radicalmente destrutiva de toda liberdade razoável, e de todo aperfeiçoamento do homem por meio de uma educação bem concebida e sabiamente dirigida! É todavia evidente, só pela definição geral da educação, que essa incontestável perfectibilidade supõe necessariamente a existência fundamental de predisposições convenientes, e, demais, que cada uma delas é submetida a leis determinadas. Sem estas não se poderia conceber que se tornasse possível exercer sobre o conjunto das nossas disposições influência alguma verdadeiramente sistemática. De sorte que é precisamente, pelo contrário, à fisiologia cerebral que pertence exclusivamente a posição racional do problema filosófico da educação. Enfim, segundo uma última consideração mais especial, essa fisiologia erige em princípio incontestável que os homens são, de ordinário, essencialmente medíocres, tanto para o bem como para o mal, na sua dupla natureza afetiva e intelectual. Isto é, a fisiologia cerebral mostra que, afastando um pequeníssimo número de organizações excepcionais, cada um deles possui, em grau pouco pronunciado, todos os instintos, todos os sentimentos, e todas as aptidões elementares, sem que a maioria das vezes faculdade alguma seja, em si mesma, altamente preponderante. É portanto claro que o mais vasto campo acha-se assim diretamente aberto à educação para modificar, quase em todos os sentidos, organismos tão flexíveis; embora, quanto ao grau, o seu desenvolvimento deva sempre ficar nesse estado pouco assinalada que basta plenamente para a boa harmonia social, como o explicarei mais tarde”.

(Augusto Comte, Sistema de filosofia positiva, v. 3, lição 45, p. 808-813, apud Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 14-17; itálicos de Teixeira Mendes. Esse trecho pode ser lido no original aqui: https://archive.org/details/bub_gb_i-cx5K6kWVMC/page/807/mode/2up?view=theater.)



[1] Uma aplicação política imediata dessas reflexões pedagógicas é no sentido de pôr por terra a noção pós-moderna e identitária, ao mesmo tempo vulgar, falsa e errada, tão comum nos dias atuais, segundo a qual “tudo é social”, no sentido de que tudo seria “socialmente construído”, ou seja, de que tudo seria passível de manipulação (e destruição) intencional e caprichosa.

[2] Mesmo hoje, essa noção metafísica continua exercendo profunda influência entre inúmeros pensadores, em virtude de sua filiação com a teologia. As doutrinas psicológicas, especialmente as de origem alemã (a psicanálise à frente), também são profundamente metafísicas, embora com freqüência devido a outros motivos.

[3] A noção de que o cérebro na verdade é um aparelho e não um órgão unitário, era bastante clara para Comte, a partir das pesquisas precisamente de Gall e Spurtzheim.

[4] Entre as aplicações posteriores e/ou os exageros que A. Comte criticava ou deixava de lado estão a “craniometria”, a busca (e a suposta determinação) do “órgão do roubo”, do “órgão do assassinato” etc. (Cf. Augusto Comte, Sistema de filosofia positiva, v. 3, lição 45, p. 797-798, apud Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 9, nota de rodapé. Disponível na postagem “Instintos e genética não são fatalidades” (https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2024/05/instintos-e-genetica-nao-sao-fatalidades.html).)

30 maio 2024

Instintos e genética não são fatalidades

Instintos e genética não são fatalidades

Os trechos abaixo são particularmente impressionantes. Escritos originalmente em 1838, no volume III do Sistema de filosofia positiva, eles integram o capítulo dedicado ao exame das investigações sobre o cérebro, especificamente sobre as funções e os órgãos do cérebro[1]. Naquele momento do desenvolvimento da carreira filosófica de Augusto Comte, esse exame constituía a última etapa lógica e teórica no exame das ciências antes de avançar para a fundação direta e imediata da Sociologia (que, por sua vez, realizar-se-ia nos três volumes seguintes da Filosofia positiva, da Lição 46 à Lição 60).

Nesses dois trechos, após passar em revista as concepções teológicas e metafísicas sobre a natureza humana, Augusto Comte examina as investigações mais positivas à sua época e que, em sua opinião, eram as de Joseph Gall e seu assistente e colaborador Johann Spurtzheim; esse exame, também vale notar, era elogioso, o que não equivale a dizer “desprovido de críticas” e/ou de retificações mais ou menos importantes.

Os teológicos e os metafísicos partiam da noção de “alma”, que seria uma graça concedida pela divindade para animar os corpos dos seres humanos e dotá-los de inteligência. Com isso, eles consideravam que a inteligência seria um atributo exclusivo do ser humano, da mesma forma que o ser humano teria uma sempre e necessária unidade subjetiva, um núcleo duro e profundo de si mesmo irredutível de um ser humano para outro. Daí se seguia, como se segue, que haveria uma divisão radical, profunda e intransponível entre o ser humano e os “animais”; que o ser humano seria um ser principalmente raciocinante; que cada ser humano é um mundo radicalmente à parte dos demais. Essas concepções, embora tenham sido criticadas pelas mais elementares pesquisas da “neurociência” e da filosofia desde o final do século XVIII, ainda hoje impregnam os debates e as reflexões científicos, filosóficos, morais, políticos – e até midiáticos (como se vê nos filmes e seriados estadunidenses).

Além dessas concepções evidentemente de origem teológica, Augusto Comte também comenta concepções mais claramente metafísicas, que chamaríamos hoje em dia de “mecanicistas”, ou “fatalistas”, ou – como são popularmente denominadas, mesmo no âmbito acadêmico – “deterministas”. Essas outras concepções postulam que os animais (e, às vezes, o ser humano) possuem “instintos” e que esses instintos conduzem sempre, necessariamente, a comportamentos específicos automáticos. Isso corresponde às noções de que somente o ser humano é “racional” (ou seja, que somente ele controlaria seu comportamento) e que, portanto, os animais agem sempre sem nenhum autocontrole.

A concepção mecanicista-fatalista do instinto, quando transposta para o ser humano, conduz igualmente à noção de que o ser humano, como seria um “animal”, seria incapaz de controlar-se, de aprender, de modificar seu comportamento conforme as circunstâncias, as conveniências, os valores. A esse respeito, o comentário específico de Augusto Comte, nesse caso, consiste em uma nota de rodapé em sua apreciação da obra de Joseph Gall e de Johann Spurtzheim, valorizando uma retificação, ou uma correção, feita por este último às concepções do primeiro: a existência de órgãos específicos não conduz a comportamentos específicos (além de que, de qualquer maneira, não há órgãos para o roubo, para o assassinato etc.).

Novamente: esses comentários foram feitos há quase 200 anos, em 1838, como preparatórios para a Sociologia. Talvez pareçam meras curiosidades filosóficas – afinal, sendo tão antigos, não teriam valor “científico” –; talvez pareçam curiosidades históricas – afinal, sendo tão antigos, seriam “peças de museu”. De fato, muito da mentalidade contemporânea aponta para essas maneiras de ver, tanto a partir da ciência quanto do frenesi tecnológico atual, ambos cultores de um degradante “presentismo”, de um culto ao presente, ao que é “atual” (e que, por ser “atual”, seria “moderno”, “melhor”).

Mas, deixando de lado esses preconceitos presentistas, academicistas, cientificistas e tecnologistas, o fato é que esses comentários são profundamente, são radicalmente atuais. Em apenas dois parágrafos, a partir das pesquisas científicas anteriores (não somente biológicos e/ou de “neurociência”, mas do conjunto da produção científica) e de sua reflexão autônoma, Augusto Comte faz o seguinte:

1)      Define (e reafirma) o que é instinto e inteligência

2)      Define (e reafirma) que os instintos e a inteligência são comuns aos seres humanos e aos animais

a.       Define (e reafirma) que, portanto, os animais também são inteligentes e que, assim, não faz nenhum sentido estabelecer uma divisão radical, profunda e intransponível entre seres humanos e animais

3)      Define (e reafirma) que a inteligência é um atributo relacional, dos animais em relação ao ambiente que os cerca

a.       Define (e reafirma) que a inteligência – e a razão – é a capacidade de mudar o comportamento, conforme as circunstâncias

4)      Define (e reafirma) que os instintos são apenas disposições inatas que buscam alguma satisfação

a.       Define (e reafirma), portanto, que os instintos não correspondem a fatalismos comportamentais

5)      Define (e reafirma) que a presença de determinados órgãos não implica necessariamente determinados comportamentos

a.       Define (e reafirma) que os comportamentos concretos dependem das disposições internas aos seres vivos (o que inclui, evidentemente, a inteligência), e das circunstâncias ambientais (ou seja, do “contexto”), incluindo-se aí também os variados processos de educação

Todos esses aspectos têm que afirmados e reafirmados constantemente; eles têm influências profundas sobre as concepções sobre os animais e sobre o ser humano (e este em termos coletivos e individuais).

Por exemplo: a Biologia, a Sociologia e a Moral (chamada contemporaneamente de “Psicologia”), a partir das concepções teológico-metafísicas criticadas em 1838 por Augusto Comte, hoje em dia mantêm acirradas polêmicas sobre as relações entre a “natureza” e a “cultura”, discutindo se a herança genética é ou não um fatalismo, ou seja a educação serve ou não para mudar as disposições genéticas, ou se a educação (no caso do ser humano) não tem que se preocupar em absoluto com as disposições genéticas.

Para facilitar a identificação e o entendimento das passagens citadas, incluí pequenos títulos descritivos antes de cada uma delas.

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Definições de “instintos”, “inteligência” e “razão”

“Conquanto, pelos motivos precedentemente indicados, as diversas escolas psicológicas ou ideológicas tenham estado de acordo em descurar essencialmente o estudo intelectual e moral dos animais, felizmente abandonado, desde a origem imediata da filosofia moderna, aos puros naturalistas, importa assinalar aqui a influência funesta que as concepções metafísicas exerceram todavia também, a este respeito, de uma maneira indireta, pela sua vaga e obscura distinção entre a inteligência e o instinto, estabelecendo, da natureza humana para a natureza animal, uma ideal separação, da qual os zoologistas não se libertaram ainda suficientemente, mesmo hoje. A palavra instinto não tem, em si mesma, outra acepção fundamental senão de designar todo impulso espontâneo para uma direção determinada, independentemente de alguma influência estranha. Nesse sentido primitivo, tal termo aplica-se evidentemente à atividade peculiar e direta de qualquer faculdade, tanto das faculdades intelectuais quanto das faculdades afetivas; ele não contrasta então de modo algum com o nome de inteligência, como se vê tantas vezes quando se fala daqueles que, sem nenhuma educação, manifestam um talento pronunciado para a musica, para a pintura, para as matemáticas etc. Sob esse ponto de vista, há certamente instinto, ou antes instintos, tanto ou mesmo mais no homem do que nos animais. Caracterizando, por outro lado, a inteligência mediante a aptidão de modificar a sua conduta conforme as circunstância de cada caso, o que constitui, com efeito, o principal atributo prático da razão propriamente dita, é ainda evidente que, a esse respeito, como pelo motivo precedente, não há lugar de estabelecer realmente, entre a humanidade e a animalidade, nenhuma outra diferença essencial senão a do grau mais ou menos pronunciado de que é suscetível o desenvolvimento de uma faculdade, necessariamente comum, pela sua natureza, a toda vida animal, e sem a qual não se pode mesmo conceber a existência desta”.

(Augusto Comte, Sistema de filosofia positiva, v. 3, lição 45, apud Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 5-6[2]; itálicos do próprio Augusto Comte.)

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Os instintos e a presença de órgãos não implicam fatalmente comportamentos

 “Aqueles dos meus leitores que não considerarem esta teoria senão na sua fonte mais pura, isto é, na grande obra de Gall, não devem esquecer um indispensável aperfeiçoamento geral introduzido por Spurtzheim, conquanto, penetrando-se o fundo do pensamento de Gall, se deva achar talvez que tal progresso concerne antes as simples denominações do que as próprias idéias. Seja como for, esse melhoramento consiste em reconhecer que as diversas faculdades fundamentais não conduzem a atos, e sobretudo a modos e graus de ação, necessariamente determinados, como Gall parecia estabelecer a princípio; mas que os atos efetivos dependem, em geral, da associação de certas faculdades, e do conjunto das circunstâncias correspondentes. É assim que não pode existir, propriamente falando, nenhum órgão do roubo, pois que tal ato não é senão uma aberração do sentimento da propriedade, quando o seu exagero não é suficientemente contido pela moral e pela reflexão; o mesmo dá-se com o pretenso órgão do assassinato, comparado com o instinto geral da destruição. Igual consideração aplica-se, com mais forte razão, às faculdades intelectuais, que, por si mesmas, só determinam tendências, e de modo algum resultados acabados”.

(Augusto Comte, Sistema de filosofia positiva, v. 3, lição 45, apud Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 9, nota de rodapé[3].)



[1] Deve-se ter claro, então, que o cérebro é um órgão composto, ou seja, na verdade ele é um verdadeiro aparelho, composto por uma pluralidade de órgãos, cada um responsável por diferentes funções. O capítulo em questão é o último capítulo do v. III da Filosofia positiva, ou seja, é a Lição 45.

[2] Nesta versão eletrônica – facsimilar da primeira edição do livro –, pode-se ler a passagem acima nas páginas 783 a 785: https://archive.org/details/bub_gb_i-cx5K6kWVMC/page/783/mode/2up?view=theater.

[3] Pode-se ler a passagem acima nas páginas 796 e 797 desta versão eletrônica: https://archive.org/details/bub_gb_i-cx5K6kWVMC/page/797/mode/2up?view=theater.