13 setembro 2013

Manifestações públicas, rostos cobertos e responsabilidades políticas

A Lei n. 6.528/2013 do estado do Rio de Janeiro, votada em 11.9.2013, que proíbe o uso de máscaras e adereços que impeçam a identificação visual dos indivíduos em manifestações públicas, devido à sua importância política, seja em termos teóricos, seja devido à sua repercussão nacional, conduziu-me a algumas reflexões, que exponho abaixo.

Estamos em um regime de liberdades e em uma república. Quem se manifesta tem que se responsabilizar pelo que se manifesta. Assim como a manifestação é pública, a responsabilização tem que ser pública. Tapar o rosto é impedir que se identifique o manifestante, ou seja, é permitir uma espécie de anonimato na manifestação política.

Assim como se exigiu - corretamente - que os parlamentares do Congresso Nacional tenham seus votos abertos, deve-se exigir que os manifestantes tenham seus rostos abertos. Na verdade, não faz sentido e não é aceitável que a sociedade que se representa a si mesma por meio de manifestações de rua queira responsabilizar-se menos por suas opiniões que os seus representantes, que ela (a sociedade) exigiu que se responsabilizassem por suas opiniões.

Não me parece justificável, de maneira alguma, o suposto privilégio de os manifestantes populares poderem esconder o rosto. Como comentei há pouco, isso é uma forma de anonimato, que é politicamente imoral em um regime de liberdades, mas, de qualquer maneira, torna-se ainda menos defensável e ainda mais incoerente agora que se obteve, após mais de 120 anos de República no Brasil, a publicidade dos votos dos parlamentares.

Não estamos nem em regime de exceção nem em regime de força: vivemos em uma "democracia". Os discursos contrários ao capitalismo, de inspiração marxista, servem apenas como cortina de fumaça para a necessidade da publicidade das ações políticas, ao sugerirem uma eterna perseguição. A perseguição, aliás, existe para aqueles que se negam a identificar-se e para aqueles que se valem precisamente do anonimato para a depredação e para o vandalismo: em outras palavras, ocorre perseguição para quem é contra a publicação e o pacifismo das manifestações, dois dos princípios basilares da política republicana.

Mesmo que, em tese, estivéssemos sob um regime de força, seria um regime de força bastante curioso, pois é um regime que tolera manifestações maciças e alastradas por todo o país, que paralisam vias públicas durante várias horas e ocupam órgãos públicos durante semanas. 

Mas em regimes de força a importância da identificação, isto é, da responsabilização é ainda maior: o sacrifício pessoal inspira e é capaz de mobilizar muito mais as mudanças sociais. As manifestações de massa contrárias ao regime militar de 1964 eram todas feitas com o rosto descoberto e não se pode esquecer o jovem chinês que em 1989 desafiou, também de rosto descoberto, os tanques na Praça da Paz Celestial.

12 setembro 2013

História da laicidade no Brasil - apontamentos esquemáticos

No dia 12 de setembro de 2013 participei de uma mesa-redonda na UFPR, promovida pela "Marcha pela Laicidade do Estado"; na ocasião tratei da história da laicidade do Brasil.

Para colaborar com os debates e as pesquisas sobre o tema - em particular porque há poucos debates, poucas pesquisas e porque não há nenhum texto sobre a história da laicidade em nosso país -, transcrevo abaixo as modestas notas que elaborei como roteiro para minha exposição.

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História da laicidade no Brasil - apontamentos esquemáticos


(1) Impropriedade do título da palestra: “história da laicidade” é exagerado; são mais apontamentos sobre a história da laicidade

(2) Uma definição preliminar: a laicidade consiste em um Estado não seguir nenhuma doutrina oficial, no sentido de que seus cidadãos não precisam perfilhar nenhuma doutrina a fim de terem o status político-jurídico de cidadãos; por outro lado, nenhuma igreja ou doutrina é beneficiada pelo Estado

(3) Quatro pólos sócio-políticos para análise e estudo:
- Estado
- Igreja Católica
- Sociedade civil
- Religiões acatólicas
- Por que esses quatro pólos? Porque a laicidade não ocorre no vazio: é necessário que a sociedade e os políticos apóiem-na e defendam-na
- À medida que (i) há mais atores (em termos numéricos) e (ii) há mais atores dispostos a defender a laicidade (como prática política e social), ela tem mais e mais legitimidade e, portanto, ela vige mais, isto é, ela pode ser efetivamente invocada como princípio ordenador da pólis
- É necessário notar que muito da história da laicidade no Brasil passa pela história das relações entre a ICAR e o Estado, seja temporalmente, seja politicamente

(4) Em termos básicos, a laicidade no Brasil tem duas grandes fases: antes e depois da Proclamação da República (15 de novembro de 1889), ou do Decreto n. 119-A (7 de janeiro de 1890), ou da Constituição de 1891 (Art. 11, inc. 1º)
- Antes de 1889-1891: catolicismo como religião de Estado (no regime do padroado)
- Após 1889-1891: laicidade no Brasil, com enormes variações ao longo do tempo

(5) Antes de 1889-1891: dois momentos: Colônia (1500-1822) e Império (1822-1889)
- Regime do padroado: monarquia bragantina como protetora da Igreja por determinação papal; Igreja como integrante da estrutura estatal, ou seja, padres como servidores públicos
- Colônia: Igreja como agente da colonização
- Império: religião católica como religião oficial do Estado; liberdade religiosa desde que privada, com cultos sem forma exterior de templos, sem críticas à religião oficial e sem ofensa à moral e aos bons costumes
- Igreja como controladora das instituições de ensino, dos registros de nascimento (batismo), de morte, de casamento, dos cemitérios; controle do calendário de festividades; consagração do regime
- Imigração luterana e calvinista no Sul (RS, SC, RJ), de falantes de alemão
- Cerceamento da Igreja pelo Estado com base no regalismo ao longo de todo o Império (inclusive durante a regência una do Padre Feijó)
- No II Império: apoio do Imperador a vários protestantismos (vistos como promotores do progresso); difusão do Positivismo; maçonaria
- 1873-1875: questão religiosa: ultramontanismo versus regalismo e maçonaria
- Ultramontanismo: tendência reacionária da ICAR existente desde o fim do século XVIII, consubstanciada na encíclica Quanta Cura e seu anexo, a Syllabus (1864)
- Existência do catolicismo popular e do forte sincretismo religioso

(6) O período 1889-1891:
- A separação entre Igreja e Estado era uma das maiores preocupações do movimento republicano
- Em 7 de janeiro de 1890 expediu-se o Decreto 119-A, que realizou a separação entre Igreja e Estado
- A Constituição de 1891 reafirmou o Decreto 119-A, além de instituir o casamento civil e prever os cemitérios leigos
- A laicidade era respeitada como valor e como princípio, especialmente pelos republicanos históricos, fosse no Rio de Janeiro, fosse nos estados; isso não quer dizer que não houvesse desrespeitos práticos a ela
- Exemplo de respeito à laicidade: em 1925 Sebastião Leme sugeriu a Artur Bernardes, por ocasião da reforma constitucional, que se incluísse na constituição que o catolicismo era a “religião da população brasileira”

(7) Após 1889-1891: quatro fases: neocristandade e Era Vargas (1916-1945); república populista (1946-1964); regime militar (1964-1985); Constituição de 1988 em diante

(7.1) Neocristandade e Era Vargas:
- O período entre 1891 e 1916 foi usado para a reorganização burocrático-administrativa e financeira da ICAR no Brasil, com a estadualização das dioceses, a aproximação com as elites estaduais, o oferecimento de serviços pedagógicos às elites
- Em 1931, quando da inauguração do Cristo Redentor, já Cardeal, Sebastião Leme disse a Getúlio Vargas e a Osvaldo Aranha: “ou o Estado reconhece o deus do povo ou o povo não reconhecerá o Estado”
- Ativismo político: Liga Eleitoral Católica, Ação Católica Brasileira, Círculos Operários
- Na Constituição de 1934 a palavra “deus” aparece no “Prefácio”, prevê-se o ensino religioso facultativo no horário escolar e prevê-se a colaboração Igreja-Estado no “interesse público”
- com exceção da palavra “deus” (que não aparecerá em 1937), todas as demais previsões reaparecerão nas outras constituições
- Desenvolve-se um forte processo de recatolicização das elites; afirma-se o mito da “nação cristã”
- Criminalização dos cultos afrobrasileiros e do espiritismo; intolerância aos protestantismos

(7.2) República populista:
- Constituição de 1946: reafirmação da liberdade religiosa e da laicidade do Estado, ressalvada a colaboração em nome do “interesse público”; aulas de religião no horário regular; capelões
- Enfraquecimento da ICAR, com perda de força do projeto elitista da neocristandade
- aumento da concorrência dos protestantismos e dos marxismos
- aumento do pluralismo religioso e ideológico na sociedade
- Persistência do mito da “nação cristã”: “Brasil como país cristão contra o comunismo ateu”
- Politização dos católicos, retraimento dos protestantes
- Secularização e esquerdização da intelectualidade
- 1952: criação da CNBB, como órgão dos católicos “progressistas”
- 1961-1965: Concílio Vaticano II à em tese, uma reversão do viés ultramontano das bulas Quanta Cura e Syllabus (1865)
- ICAR como “terceira via” à anticomunista, em todo caso

(7.3) Regime militar:
- Apoio inicial da ICAR ao regime: com base no anticomunismo, Paulo Evaristo Arns ofereceu apoio espiritual a Olímpio Mourão Filho em 31.3.1964
- Em seguida, distanciou-se do regime e passou a condenar as violências e as torturas, tornando-se forte crítico do regime à como um todo a ICAR tornou-se opositora do regime
- Como alternativa de legitimação, os militares procuraram apoio dos protestantes, que, a partir da década de 1970, passaram a receber benefícios do Estado e a serem prestigiados por ele à politização dos protestantes, em particular dos evangélicos
- Apoio da ICAR à transição democrática à afastamento em relação ao Estado
- Em 1986: inscrição nas cédulas “deus seja louvado”
- Em 1989: apoio da ICAR a Lula; rejeição dos evangélicos a Lula e apoio maciço a Collor

(7.4) Da Constituição de 1988 em diante:
- Situação por assim dizer paradoxal: por um lado, fortalecimento da sociedade civil, em um sentido que é secular e laico; por outro lado, uma “confessionalização” da política, que vem desde os anos 1980 (ou melhor, desde sempre)
- Deve-se notar, em todo caso, que parte da sociedade civil organizada surgida desde os anos 1980 foi apoiada pela ICAR, o que impõe sérios obstáculos à laicidade
- Constituição de 1988: reafirmação da liberdade religiosa e da laicidade do Estado, ressalvada a colaboração em nome do “interesse público”; aulas de religião no horário regular; capelões
- LDB de 1996: aula de ensino religioso sem gastos públicos; lei de 1997: aula pago pelo Estado
- Pluralismo social fortíssimo à ativismo social muito marcado à defesa da liberdade de pensamento
- Afirmação dos cultos afrobrasileiros; crescimento do espiritismo; crescimento do ateísmo e do agnosticismo; crescimento dos evangélicos
- Plataforma política dos evangélicos: agressiva e prioritariamente religiosa, especialmente em alguns estados, como no Rio de Janeiro
- Se a ICAR não fala mais em “nação cristã” (em seu benefício), ela realiza freqüentes alianças com os evangélicos em temas de seu interesse
- “Confessionalização” das eleições: “crente vota em crente”; “vote no evangelho”; “vote para Jesus”; contra o aborto etc. etc.
- Ambigüidade de Lula: eleito pelo PT (partido do catolicismo “progressista”), desde 1992 prestigia a Igreja Universal do Reino de Deus e seu dono
- 2008: Concordata entre Brasil e Vaticano
- busca de uma trava externa para a política interna
- reafirmando privilégios, criando novos privilégios, garantindo o ensino da religião católica nas escolas públicas, o pagamento do laudêmio, a existência de capelanias
- foi aprovada no Congresso Nacional em troca de uma “Lei Geral das Religiões” (versão estendida e evangélica da Concordata), mas que até o momento não se realizou
- Eleições presidenciais de 2010: a Concordata não foi discutida mas temas “religiosos” invadiram o debate do segundo turno (entre Dilma e Serra), como aborto, kit gay e casamento gay
- 2012-2013: PEC-99 e Estatuto do Nascituro à exemplos de coalizões entre católicos e evangélicos (“bancada do crucifixo”), que vão contra a laicidade

Constituições que se referem a deus: 1824 (“santíssima trindade”), 1934, 1946, 1967, 1988
Constituições que não se referem a deus: 1891, 1937

Referências bibliográficas mínimas
BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. CASA CIVIL. SUBCHEFIA PARA ASSUNTOS JURÍDICOS. s/d-a. Constituições anteriores. Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-historica/constituicoes-anteriores-1. Acesso em: 11.set.2013.
BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. CASA CIVIL. SUBCHEFIA PARA ASSUNTOS JURÍDICOS. s/d-a. Constituições da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 11.set.2013.
CUNHA, L. A. 2007. Sintonia oscilante: religião, moral e civismo no Brasil – 1931-1997. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 131, p. 285-302, ago.
CUNHA, L. A. 2009. A educação na Concordata Brasil-Vaticano. Educação e Sociedade, Campinas, v. 30, n. 106, p. 263-280, abr.
DELLA CAVA, R. 1975. Igreja e Estado no Brasil do século XX: sete monografias recentes sobre o catolicismo brasileiro, 1916/1964. Estudos Cebrap, n. 12, p. 5-52, abr.-jun. Disponível em: http://www.cebrap.org.br/v1/upload/biblioteca_virtual/igreja_e_estado_no_brasil.pdf. Acesso em: 11.set.2013.
LACERDA, G. B. 2008. Problemas do Estado laico brasileiro: a Universidade (Confessional) Federal do Paraná. Disponível em: http://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com.br/2008/10/problemas-do-estado-laico-brasileiro.html. Acesso em: 11.set.2013.
LACERDA, G. B. 2009. Laicidade(s) e república(s): as liberdades face à religião e ao Estado. Artigo apresentado no 33º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, ocorrido em Caxambu (Minas Gerais). Digit. Disponível em: http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=2204&Itemid=229. Acesso em: 11.set.2013.
MARIANO, R. 2002. Secularização do Estado, liberdades e pluralismo religioso. Disponível em: http://www.naya.org.ar/congreso2002/ponencias/ricardo_mariano.htm. Acesso em: 11.9.2013.
MICELI, S. 2011. A elite eclesiástica brasileira (1890-1930). 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras.

SCAMPINI, J. 1978. A liberdade religiosa nas constituições brasileiras. Petrópolis: Vozes.

06 setembro 2013

No aniversário de morte de Augusto Comte


No dia 5 de setembro comemora-se o aniversário de falecimento de Augusto Comte (1798-1857), o grande fundador do Positivismo e da Religião da Humanidade. Isso exige pelo menos duas ordens de considerações: sobre comemorar a morte e sobre a Religião da Humanidade.
Fará sentido comemorar a morte? Por certo que não celebramos o fato de alguém morrer; o desaparecimento de uma pessoa costuma ser motivo de profunda tristeza, tanto para aqueles que o cercam quanto aqueles que o admiram e respeitam. Mas a morte faz parte do ciclo da vida; embora não saibamos disso ao nascer, à medida que crescemos e amadurecemos, vamos descobrindo que nossa vida é finita e que importa torná-la significativa; na verdade, bem vistas as coisas, muito do amadurecimento consiste nessa lenta constatação e resignação.
Ao mesmo tempo, não vivemos sozinhos: nem para nós, nem por nós; vivemos em sociedade e apenas em sociedade – em família, entre amigos, em clubes, em escolas, entre livros – é que podemos ser felizes. Se amadurecer significa, em parte, resignar-se que um dia morreremos (ou morrerei), em parte significa também perceber que a felicidade consiste em viver entre e para os demais, isto é, sendo altruísta, cooperando, melhorando as condições de vida da sociedade, desenvolvendo novas tecnologias, sugerindo novas idéias, participando da vida em sociedade – ou, simplesmente, realizando o trabalho humilde do cotidiano.
Assim como vivemos e somos felizes entre e para os demais, nossa vida permanece entre os demais: quando morremos, a memória de nossas ações perdura; com freqüência, podemos dizer que até aumenta, pois as imperfeições dos nossos defeitos vão esvanecendo-se e nossas qualidades vão destacando-se.
Nesses termos, não comemoramos a morte: comemoramos uma vida plena de sentido, dedicada aos demais; celebramos a memória de alguém e, com isso, embora objetivamente esse alguém não exista mais, subjetivamente ele – ou ela – encontra-se entre nós.
Augusto Comte foi o fundador da Religião da Humanidade, isto é, do grande sistema que afirma o ser humano, o altruísmo e a ação social, política, industrial e ambiental esclarecida e cuidadosa. A religião para Comte consiste nas diversas formas que o ser humano elabora, ao longo do tempo, para entender e regular sua realidade cósmica, social e individual; dessa forma, como o ser humano em sua totalidade já foi um dia fetichista e muitas populações ainda são monoteístas, ele tende cada vez mais a ser plenamente positivo, ou seja, a reconhecer apenas as verdades relativas, a recusar o absoluto, a afirmar apenas o humano, a celebrar a liberdade, a buscar a paz e o amor.
É por esses motivos – e muitos outros mais – que neste dia 5 de setembro faço esta pequena mas sincera homenagem a esse grande homem, Augusto Comte.

29 julho 2013

Ativista pela república na Inglaterra

Matéria publicada na Folha de S. Paulo de 28.7.2013 (o original encontra-se disponível aqui.)

É importante notar que a Inglaterra - bem como todas as monarquias - são essencialmente teológicas e, por definição, têm religião oficial de Estado. Em outras palavras, são por definição atrasadas. Como diria Augusto Comte, o seu atraso torna-as ao mesmo tempo retrógradas (ao insistirem em instituições atrasadas) e anárquicas (ao promoverem hábitos sociais e intelectuais contrários ao mesmo tempo à ordem e ao progresso).

Por fim: muito do prestígio das monarquias deve-se a um saudosismo por ordens sociais antigas e por um certo fascínio pela vida dos "ricos e famosos". É mais ou menos uma combinação "socialmente perversa" da mentalidade da "Caverna do Dragão" com a mentalidade da revista Caras

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O plebeu contra o bebê
Ativista que luta pelo fim da monarquia britânica protestou em prol da causa na porta do hospital onde nasceu George
BERNARDO MELLO FRANCODE LONDRES
Enquanto a maior parte do Reino Unido celebrava a chegada do bebê real, um ativista deu plantão diante do palácio de Buckingham e do hospital onde nasceu o príncipe George para defender o fim da monarquia.
Diretor do grupo Republic, o ativista Graham Smith, 39, passou os últimos dias diante de microfones e câmeras de TV. Ele fez uma cruzada pessoal para que o noticiário incluísse críticas à realeza.
Sem medo de ser do contra, Smith aproveitou o momento de festa dos súditos para empunhar a bandeira republicana. A causa é apoiada por apenas 17% dos britânicos, segundo pesquisa do instituto Ipsos-Mori.
"Nossa luta é pela abolição da monarquia", diz o ativista à Folha. "Acreditamos que toda criança deveria nascer igual. O chefe de Estado tem que ser escolhido pelo voto."
O nascimento do novo herdeiro do trono dominou a mídia do Reino Unido durante toda a semana. O assunto continuou no ar mesmo quando não havia notícia, como chegou a admitir ao vivo um âncora da BBC.
"O interesse na monarquia é muito inflado pela mídia. A TV abandonou qualquer pretensão de fazer jornalismo para simplesmente celebrar a instituição", ataca Smith.
Pelo Twitter, ele incentivou os mais de 10 mil seguidores do Republic a enviarem reclamações contra a overdose de bebê real ao órgão que regula os meios de comunicação.
A BBC respondeu com números. Na segunda-feira, dia em que George nasceu, seu site bateu o recorde histórico de visitas. Foi um fenômeno: 19,4 milhões de acessos únicos em todo o mundo.
"Nossa cobertura do bebê real foi extremamente popular", afirmou a rede, citando entrevistas com o próprio Smith ao sustentar que o "outro lado" também foi ouvido.
"Estamos satisfeitos porque nossa audiência teve a melhor cobertura de um evento histórico importante: o nascimento de um novo herdeiro do trono", prosseguiu a nota da emissora.
O argumento não convenceu o ativista republicano, que acusa a TV pública de ter embarcado no clima de exaltação à realeza.
"A BBC é muito relutante em assumir seus erros. Muita gente ficou irritada e desligou a televisão", afirma.
Não é fácil ser republicano na terra da rainha, uma figura onipresente no país, do hino às notas de libra esterlina. No Parlamento, todos os grandes partidos juram fidelidade ao regime.
"Ninguém levanta a questão por medo de perder votos. Há um acordo entre a elite política e a monarquia", diz o diretor do Republic.
Sem escritório próprio, ele trabalha de casa, numa pequena cidade ao norte de Londres, e usa as redes sociais para fazer propaganda. Anteontem, recebeu a reportagem de meias e sem largar o iPhone usado para trocar mensagens com aliados.
"Eu ficaria muito feliz em participar de um debate ao vivo na TV com o príncipe Charles ou com William", diz.
"Perguntaria por que eles acham que têm o direito de estar lá sem que o povo seja consultado. É uma questão simples, mas eles teriam dificuldade para responder."
No debate com os súditos, o ativista admite que as reações nem sempre são boas. "Tem gente que discute, fica irritada. Mas é a minoria" diz. "Em geral as pessoas se interessam, vêm conversar."
Na contramão da maioria, Smith diz torcer para que o pequeno George nunca se torne rei. Ele diz que a realeza terá problemas na sucessão da rainha Elizabeth 2ª.
"Com Charles como rei, eles vão se tornar um alvo mais fácil", afirma o ativista.
Apesar de as pesquisas indicarem o contrário, ele diz que a série de comemorações dos últimos três anos, em que a realeza festejou casamento, jubileu da rainha e bebê, não foi ruim para sua causa. "Tudo isso serviu para que mais gente nos desse atenção. Então, que venham mais casamentos e mais bebês!"

07 julho 2013

Notícia sobre mesa-redonda sobre laicidade

A mesa-redonda "Laicidade em ação" foi noticiada com foto pela UFPR alguns dias após sua realização. Eis a matéria. (O original encontra-se disponível aqui.)

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3 de julho de 2013

Estado laico não é Estado ateu, ressalta cientista político

Por Celsina Favorito
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Mesa redonda sobre estado laico, no Anfiteatro 100, no complexo da Reitoria - Foto: Rodrigo Juste Duarte
Todos os cidadãos ficam, ou devem ficar, pelo menos 5 horas diárias durante 200 dias por ano durante 13 anos na escola. Em função desta permanência constante e longa dos alunos no ambiente educacional , como fica a questão da laicidade? ( Estado não impor aos cidadãos crenças, doutrinas, nem pressionar a sociedade).
Segundo a professora de políticas públicas, Maria Tarcisa Silva Bega, que participou da mesa redonda: “Laicidade em ação: princípios e políticas públicas” realizada na UFPR no último dia 27, a Lei de Diretrizes e Base (LDB) determina, através de legislação específica, que cabe ao Estado oferecer o ensino religioso.
O cientista político Gustavo Biscaia, no entanto, ressalta que os princípios gerais das políticas públicas são democráticos, republicanos, laicos etc., mas sua aplicação, na ponta do serviço e na prática, é problemática. No caso de desejar-se o ensino religioso, ele deve ser obrigatório ou facultativo? Se for obrigatório, deve ser proselitista ou histórico?, questiona o cientista.
Saúde X Crença
Além do aspecto educacional, também foi abordado no debate questões relacionadas às políticas de saúde, em que muitas vezes as crenças religiosas impedem que os agentes de saúde vejam os pacientes como pacientes, como pessoas que necessitam de serviços específicos. Elas são vistas, explica Gustavo, “pelos agentes como pessoas que aderem a determinadas crenças ou que são “do demônio”, como são exemplos gays, lésbicas, ateus e agnósticos”.
Mesa redonda sobre estado laico, no Anfiteatro 100, no complexo da Reitoria - Foto: Rodrigo Juste Duarte
Uma questão interessante, destaca Gustavo, apresentada pelos participantes do debate foi: se o Estado é laico, pode um estabelecimento comercial privado ser proibido de adotar símbolos religiosos e a ser laico? Para o cientista político da UFPR, a resposta é não, não pode ser proibido. A explicação para a não adoção de símbolos na decoração do estabelecimento é, segundo Gustavo, devido ao fato da sociedade ser secularizada e plural, e a presença dos símbolos afastarem os clientes.
Relações Problemáticas
Segundo Gustavo, atualmente pós-doutorando em Teoria Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, “no Brasil, desde sempre, as relações entre Igreja e Estado são problemáticas, seja porque a Igreja impunha-se com o poder do Estado, seja porque o Estado costuma intrometer-se nos assuntos das religiões e/ou beneficiar-se das religiões”.
Nos últimos anos, explica o cientista, essa relação tornou-se mais problemática devido a, pelo menos, três grandes acontecimentos notáveis: (1) a Concordata, isto é, o acordo diplomático entre o Brasil e a Igreja Católica, ambiguamente com o Vaticano; (2) a afirmação de perspectivas e temas religiosos na campanha presidencial de 2010 (perspectivas e temas que se têm repetido desde então); (3) a eleição do pastor-deputado Marcos Feliciano para Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.
O evento foi promovido pelo Setor de Ciências Humanas e Aliança Estudantil Secularista da UFPR.
Celsina Favorito

Princípios da laicidade - roteiro da apresentação

Na noite do dia 27 de junho de 2013, quinta-feira, teve lugar uma mesa-redonda no anfiteatro 100 da Reitoria da UFPR sobre a laicidade do Estado. O evento, intitulado "Laicidade em ação: princípios e políticas públicas", ocorreu graças à Aliança Estudantil Secular de Curitiba e ao Setor de Ciências Humanas; teve como palestrantes Gustavo Biscaia de Lacerda e Maria Tarcisa Silva Bega.

Minha exposição seguiu o roteiro abaixo: 

1. Observações preliminares: exposição de conceitos teóricos de origem histórica
1.1. Conceitos gerais: por falta de tempo, não é possível abordar em profundidade a história da laicidade no Brasil

2. Definição básica: separação entre Igreja(s) e Estado, em que o Estado não se intromete na organização interna das igrejas e as igrejas não se valem do Estado para imporem suas doutrinas
2.1. Idéia do "muro de separação", de Thomas Jefferson
2.2. Ausência do crime de heresia
2.3. Estado laico não é Estado ateu

3. Processos sociais subjacentes:
3.1. Secularização: grosso modo, perda de validade social dos valores e das referências religiosas (ou teológicas); ação cada vez mais humana
3.2. Em parte como conseqüência da secularização, em parte devido a uma dinâmica própria: pluralização das crenças

4. Esboço da laicidade na Idade Média
4.1. Separação entre os dois poderes (temporal e espiritual), via choques entre Papado e Império no século XIII
4.2. Deve-se notar que não era uma sociedade secularizada

5. Categorias teórico-históricas de Catherine Kintzler:
5.1. Tolerância restrita: John Locke: deve-se tolerar todas as religiões, menos os ateus, vistos como incapazes de respeitarem pactos
5.2. Tolerância ampliada: Pierre Bayle: deve-se tolerar todas as religiões, incluindo os ateus, vistos como especialmente capazes de respeitarem pactos
5.3. Laicidade propriamente dita: Condorcet: o Estado abstém-se de professar doutrinas e as igrejas não podem usar o Estado; cria-se um espaço de liberdade (liberdades de pensamento, de expressão, de associação)

6. Modelos "nacionais" de laicidade
6.1. Modelo estadunidense: "pela via negativa": o Estado é laico porque não há uma seita predominante sobre as demais
6.2. Modelo francês (de Condorcet): "pela via positiva": o Estado é laico para garantir as liberdades de pensamento, de expressão etc.
6.2.1. Ambigüidade atual da expressão "laicidade francesa": intromissão do Estado na esfera individual (proibição do uso dos véus islâmicos em espaços públicos) -> negação da laicidade
6.3. Modelo brasileiro: realização da proposta de Condorcet, entre 1890 e 1930

É desnecessário dizer que, em linhas gerais, minha exposição, defendendo a laicidade, segue as idéias de Augusto Comte a respeito.

12 maio 2013

Fotos sobre Positivismo em Paris

As imagens abaixo são digitalizações de cartões postais impressos pela Igreja Positivista do Brasil nas primeiras décadas do século XX. 

A foto à esquerda é uma visão panorâmica da Praça da Sorbonne, em Paris, com a estátua (busto, sendo mais preciso) de Augusto Comte bem no centro. Como esse busto foi inaugurado em 1902, o cartão deve ser dos anos seguintes.

A foto à direita corresponde à Capela da Humanidade, de propriedade da Igreja Positivista do Brasil. Nesse prédio, na rua Payenne, n. 5 (também em Paris), morou Clotilde de Vaux, esposa subjetiva de Augusto Comte e considerada por ele cofundadora da Religião da Humanidade. Em 1904 a Igreja Positivista comprou o prédio e transformou-o em Capela, aberta à visitação e com cultos semanais.





Por fim, é possível observar várias fotos do busto de Augusto Comte na Praça da Sorbonne e do interior da Casa de Augusto Comte (na rua Monsieur le Prince, n. 10, em Paris) neste endereço do flickr:

http://www.flickr.com/photos/dalbera/2424895170/in/photostream/

"Por que sou rondoniano", de Mércio Pereira Gomes


Há várias décadas a Antropologia brasileira despreza Rondon e sua atuação como indigenista; seu projeto, seus resultados, seus valores são desvalorizados, a que se soma o fato de ele ter sido positivista ortodoxo, membro da Igreja Positivista. 

É claro que há muito, muito de moda, de modismo, nisso, além de preconceito e ignorância. Pois bem: há alguns anos um antropólogo carioca, ex-Presidente da Funai, publicou um artigo defendendo Rondon e sua atuação - o que, por tabela, consiste também em uma defesa do projeto indigenista e civilizatório do Positivismo.

O texto, da autoria de Mércio Pereira Gomes, está disponível aqui:


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25 abril 2013

Aforismas sociológicos VII



§ 1º – Otimismo e altruísmo, duas categorias esquecidas pelas Ciências Sociais

"Otimismo" e "altruísmo" são duas categorias esquecidas pelas Ciências Sociais; de modo geral prefere-se o pessimismo e o egoísmo. A cientificidade também é uma categoria esquecida. Mas “esquecidas” talvez não seja a melhor palavra: “desprezadas” talvez seja mais adequada.
As Ciências Sociais percebem-se com enorme freqüência como disciplinas institucionalizadas cuja “função social” é investigar para então denunciar as usurpações e os crimes que os fortes e os ricos (por vezes também os estrangeiros e “o moderno”) realizam sobre os fracos e os ricos (e autóctones e “o tradicional”); seu caráter deve ser “crítico”, muito mais que “científico”, pois a própria preocupação com a ciência pode esconder uma tentação ou uma intenção dominadora. Dessa forma, as “Ciências” Sociais não são “ciências”, são “técnicas” “críticas” voltadas para a pesquisa de maquinações, esquemas, estruturas que dominam e oprimem. Esse aspecto negativo é completado por um aspecto positivo que procura afirmar e restituir os valores e práticas negados ou dominados dos pobres e fracos (e autóctones e “o tradicional”).
Apresentando dessa forma, o maniqueísmo dessa concepção fica evidente: o pólo dominado é “bom”, o pólo dominador é “mal”. Por mais ingênua que seja, essa concepção subjaz a uma quantidade enorme de estudos, de teorias e de áreas disciplinares. No que se refere às categorias indicadas acima – “altruísmo” e “otimismo” –, elas não são propriamente levadas a sério; são como que categorias residuais, imputadas automaticamente ao pólo positivo por oposição ao pólo negativo. Os conceitos verdadeiramente elaborados são os negativos: egoísmo, pessimismo. Ao discutir-se o valor moral e epistemológico de teorias, é comum a acusação de que teorias que afirmam o altruísmo e/ou o otimismo são “idealistas” ou “utópicas” e que as afirmadoras do egoísmo e/ou do pessimismo são “realistas” (e, portanto, “científicas” ou mais "críticas").
É bem verdade que há teorias que são efetivamente idealistas: Hegel, por exemplo, seguindo a trilha platônica, acreditava na realidade das Idéias e postulava que o mundo em que vivemos é um decalque do mundo das Idéias. Não há o que argumentar a esse respeito: puro idealismo, nada de realismo, nada de cientificidade. As sociedades fantásticas, como as dos chamados “socialistas utópicos”, também carecem de realidade: são puramente quiméricas, anarquistas no sentido etimológico da palavra, ou seja, a justaposição de indivíduos que se relacionam entre si como puros indivíduos, sem nenhuma estrutura social.
Mas é digno de nota que as teorias ditas realistas são aquelas que afirmam o pessimismo e/ou o egoísmo. Um caso exemplar é o ocorrido na história das teorias das Relações Internacionais: embora o chamado “idealismo”, elaborado nos anos subseqüentes à I Guerra Mundial fosse mais ou menos puramente uma doutrina moral, baseado na pregação religiosa do então Presidente dos Estados Unidos Woodrow Wilson, o “realismo” elaborado após a II Guerra Mundial por Hans Morgenthau elaborou-se em reação ao idealismo afirmando com todas as letras o egoísmo nacional, que por sua vez baseava-se no egoísmo individual[1].
Outro exemplo: Maquiavel teria fundado a “Ciência Política”, ou o estudo moderno da política, ao defender o “realismo” na análise das relações de poder: no caso, o realismo metodológico a aplicar-se seria deixar de lado as prescrições morais e perceber os seres humanos como egoístas que lutam entre si pelo poder, pela fortuna e pela glória – formulação não muito diferente da de Hobbes, aliás.
Mas, entre as duas categorias, o fato é que na verdade o “otimismo” apresenta uma situação menos problemática. Sem dúvida alguma, houve momentos e ambientes em que era crime intelectual – em outras palavras, heresia – falar-se em ou praticar-se o otimismo: nos anos 1970 brasileiros ou no seio da Escola de Frankfurt, entre as décadas de 1930 e 1960. Períodos de guerra, de tiranias, de dominação desautorizam ou pelo menos dificultam o otimismo. Os estudos sobre as relações de trabalho, de modo geral, e os voltados à globalização também costumam ser pessimistas, mesmo quando os dados empíricos pelo menos sugerem algum otimismo. Além disso, há teorias que adotam perspectivas por assim dizer ambivalentes a respeito do otimismo: o marxismo, por exemplo, é pessimista no curto prazo, mas fortemente otimista a longo (ou longuíssimo) prazo.
Entretanto, com o fim do nazismo e do comunismo (em âmbito mundial) e com o restabelecimento do Estado democrático de Direito (no âmbito brasileiro), desde há mais ou menos duas décadas exige-se dos cientistas sociais que trabalhem ativamente para a elaboração, para o acompanhamento e para a avaliação de políticas públicas: os pesquisadores envolvidos com tais atividades têm como dever de ofício verificar as possibilidades concretas de realização de suas propostas, o que implica minimamente o otimismo.
Já no caso do altruísmo a situação é bem diferente, para pior. Os pressupostos generalizados nas Ciências Sociais são de que as motivações humanas são egoístas; de que os móveis altruístas são passíveis de redução lógica e prática ao egoísmo ou que escondem móveis egoístas; de que o altruísmo reside apenas no pólo dominado – e, portanto, passivo – da sociedade; de que o altruísmo consiste em alguma forma de autonegação (individual e/ou coletiva), implicando com isso também alguma forma de automutilação; por fim, de que o altruísmo é piegas.
Em certa medida, é compreensível essa dificuldade em assimilar-se conceitualmente o altruísmo: afinal de contas, o egoísmo é mesmo mais forte que o altruísmo e mesmo que um indivíduo ou um grupo não seja altruísta (o que, apesar do que pode parecer, é impossível), não há como não ser egoísta. Além disso, para definir-se o egoísmo e o altruísmo é necessária alguma concepção sobre a natureza humana: a teologia, seguindo São Paulo, concebe o ser humano como inerentemente egoísta (o altruísmo – a “caridade” – só é obtida por meio da graça divina); a metafísica de Hobbes percebe o ser humano como perfeitamente egoísta, resultando na guerra de todos contra todos – no que foi seguido por Marx, com a diferença de que Marx aplica o egoísmo às classes e não aos indivíduos (com a conseqüência da luta de classes). Importa notar que, mais recentemente, os estudos “críticos” e muitos pós-modernos rejeitam qualquer concepção do ser humano a título de combaterem “essencializações”, “fundacionalismos”, “biologizações” etc. – ou melhor, rejeitam qualquer concepção exceto uma: a de que o ser humano é infinitamente plástico, pois estudar seriamente as relações entre o biológico e as amplíssimas modificações realizadas pelo moral e pelo social no biológico no caso do ser humano é ilegítimo, pois conduz às tais “essencializações” etc. Enfim: o fato é que os cientistas sociais, tendo que escolher entre egoísmo e altruísmo, preferem o egoísmo, considerando-o aposta certa.
Ora, caracterizar a sociedade humana pelo egoísmo é reduzi-la à mais tosca animalidade e não compreender um dos seus traços mais fundamentais. Se o ser humano é somente egoísmo, qualquer associação que perdure é ou pura violência ou mera aliança episódica, baseada no jogo dos interesses oscilantes das várias paixões egoístas. Mesmo que uma paixão seja tornada preponderante, como propôs Montesquieu, toda e qualquer associação "social" consiste apenas na capacidade inerentemente instável de um indivíduo impor aos demais o seu egoísmo. Nesse caso, aliás, é evidente que não há como se falar em “otimismo”.
A idéia da sociedade como reunião, ou melhor, de justaposição de egoísmos não precisa ser hobbesiana em tão alto grau, apesar de a concepção de Hobbes ser uma das mais simples do gênero. Variações dessa idéia são a de que a história é “som e fúria” ou de que a história consiste na “vontade do poder”[2]: bem vistas as coisas, essas concepções são equivalentes entre si, embora afirmem o egoísmo e a violência nas relações humanas de diferentes maneiras. Shakespeare, como se sabe, não tinha uma concepção tão estreita da vida quanto a de que ela é somente “som e fúria”, mas Nietzsche e Foucault compraziam-se em afirmar a “vontade do poder”.
Retornemos a Hobbes: a prevalência do egoísmo – ou, o que dá no mesmo para os fins da presente argumentação, a ausência de altruísmo – resulta na ausência de sociedade e no primado da violência, o que equivale à aniquilação do ser humano. Torna-se chocante, dessa forma, que filósofos e analistas sociais falem e repitam que o ser humano é acima de tudo egoísmo; mais assustador é que os cientistas sociais, quem supostamente deveriam estudar o ser humano de maneira comparativa e entender as suas possibilidades morais, assumam a inexistência do altruísmo como hipótese operacional de trabalho, ignorando ou fingindo ignorar as conseqüências práticas dessa inexistência.
Cabe notar, neste momento, que “otimismo” e “altruísmo” são categorias que se associam com facilidade, da mesma forma (e pelos mesmos motivos) que “pessimismo” e “egoísmo” aproximam-se entre si. O otimismo refere-se às possibilidades de realização de eventos no futuro; liga-se às nossas esperanças práticas, a partir de nossas concepções intelectuais. Na verdade, o otimismo não é somente a maior ou menor possibilidade de realização de um evento ou de um conjunto de eventos, mas a atitude subjetiva que adotamos a respeito dessas possibilidades: as possibilidades de algo bom ocorrer podem ser altíssimas, mas caso tenhamos a esse respeito uma postura “negativa” seremos pessimistas; caso a postura seja “positiva”, seremos otimistas. A postura positiva consiste em considerar – em “crer” – que o evento ocorrerá; a postura negativa, inversamente, é a crença em que o evento não ocorrerá[3].
O altruísmo vincula-se à preocupação com os outros – sejam eles iguais, superiores ou inferiores (no tempo e/ou no espaço) –; ele desenvolve atitudes simpáticas, o que em termos de disposições subjetivas associa-se com facilidade ao otimismo. Qualquer melhoria social implica a possibilidade humana de melhoramento, isto é, não é possível melhorar o que não apresenta um “potencial de melhoria”; esse “potencial de melhoria” é diferente do egoísmo e, para os nossos fins, pode ser entendido como altruísmo ou como desenvolvimento do altruísmo. Se o ser humano dispõe desse “potencial de melhoria”, o otimismo é perfeitamente aceitável e, em inúmeras ocasiões, é necessário[4].
Pois bem: o caso de Augusto Comte é exemplar a respeito de ambas as categorias, “otimismo” e “altruísmo”. Possivelmente o Positivismo foi a primeira filosofia e – importa indicar com todas as letras – a primeira teoria sociológica positiva a incluir o altruísmo em suas lucubrações. Criador da palavra “altruísmo”, Augusto Comte procurou com ela designar o conjunto das disposições humanas sociáveis e, de modo geral, favoráveis aos outros seres. A inclusão do altruísmo no Positivismo deu-se com base nos estudos de anátomo-fisiologia cerebral[5]: afinal de contas, se o altruísmo existe como uma propensão da natureza humana, ele deve ter alguma sede no cérebro; ao mesmo tempo, se o altruísmo existe na natureza humana, ele manifesta-se nas diversas sociedades ao longo da história: assim, é possível e é necessário fazer uma Sociologia Histórica (necessariamente comparativa) do altruísmo. Ora, o altruísmo não existe separado do egoísmo; dependendo da sociedade, ele conforma-se de uma forma ou de outra; mas, além disso, o desenvolvimento histórico permite que o altruísmo conforme as sociedades de uma forma ou de outra.
Exatamente porque Augusto Comte incluía o altruísmo em suas elaborações, isto é, exatamente porque percebia com clareza que a sociedade não existe sem pendores inatos a favor dos demais – pendores que podem e devem ser estimulados e que podem e devem disciplinar o egoísmo – é que ele era otimista. A obra de Comte é ao mesmo tempo: uma Sociologia Histórica, uma Sociologia da Ciência, uma Sociologia da Religião, uma Sociologia do Conhecimento, uma Biologia do Conhecimento, uma Epistemologia Histórica e, sem exaurir suas imbricações, uma Pedagogia Histórico-Comparativa. Para os temas que estamos discutindo, Comte tinha perfeita clareza a respeito de que o Positivismo só poderia ter surgido na Europa posterior à Revolução Francesa e posterior a estudos mínimos da anátomo-fisiologia cerebral: somente aquele ambiente, gozando de um acúmulo específico de conhecimentos científicos sobre o cérebro humano, caracterizado por um impulso sociopolítico específico para a reforma social radical e com um conhecimento amplo da sua própria história e também de inúmeras outras sociedades, é que poderia produzir uma concepção positiva sobre o altruísmo e sobre a história.
Sem ter ilusões quanto à inexistência e à inocorrência de conflitos sociais mais ou menos sérios, Comte era otimista a respeito do futuro da Humanidade, pois percebia o desenvolvimento dos pendores altruístas do ser humano. É neste ponto que a ligação entre altruísmo e otimismo torna-se mais evidente: ao levar-se seriamente em consideração o altruísmo, o otimismo é uma conseqüência lógica; inversamente, para que se possa ser otimista com seriedade, é necessário levar-se em consideração o altruísmo e o seu desenvolvimento. Além disso, todos precisamos de uma concepção qualquer da realidade social: ao idealizarmos o futuro, ou consideramos o altruísmo ou não o consideramos; caso consideremo-lo, temos que o considerar atuando, isto é, desenvolvendo-se – e, nesse caso, é necessário o otimismo.
A relação entre realismo e altruísmo (e otimismo) vem ao caso. Indicamos antes que se considera de modo geral que as teorias chamadas de “realistas” são aquelas que postulam o egoísmo e que negam o altruísmo; nesse sentido, elas são pessimistas a respeito da natureza humana. Elas seriam “realistas” porque corresponderiam à realidade; para elas, a realidade seria que o ser humano é egoísta, ao contrário de um ser por assim dizer “ético”. Ora, o ser humano apresenta elementos egoístas e altruístas e, de fato, o egoísmo é mesmo mais forte que o altruísmo: mas isso não equivale a dizer que o altruísmo inexiste. Uma concepção plenamente coerente consigo própria que postule o ser humano puramente egoísta seguirá em linhas gerais a guerra de todos contra todos, defendida por Hobbes e que lembramos acima; a partir do momento em que o estado de guerra não vige e que se considera que existe altruísmo, as concepções teóricas que desconsideram o altruísmo não podem ser percebidas como “realistas”.
Mais do que isso. O altruísmo liga-se a um certo otimismo; não um otimismo desenfreado, que ignora os limites da realidade, a existência do egoísmo e assim por diante, mas, de qualquer forma, otimismo ainda assim, isto é, uma concepção geral positiva e simpática da realidade e do ser humano. Sub-repticiamente incluímos na argumentação acima o termo “violência” ao tratarmos de egoísmo e pessimismo: não são termos equivalentes nem é uma associação necessária; todavia, as relações inversas são mais fortes: o altruísmo (universal) liga-se a otimismo e a pacifismo. Não é raro encontrar textos social-científicos, filosóficos, artísticos que sugerem ou afirmam com clareza que o pacifismo é idealista e piegas e que uma perspectiva um tanto beligerante é mais realista e moralmente mais sólida. Ou, ainda, que o altruísmo é sinônimo de passividade ou de inocência manipulável. O que todas essas concepções sugerem é que é melhor, mais correto, moralmente mais acertado, socialmente mais adequado adotar-se um comportamento mais agressivo, mais egoísta, menos simpático.
É difícil exagerar as conseqüências sociais e políticas desse gênero de concepção, que se pode encontrar em modelos vinculados à “escolha racional” ou nas idéias de Marx, de Nietzsche, de Foucault, além de na de vários outros pensadores e escolas. O que urge é valorizar teórica e politicamente o altruísmo, reabilitando o otimismo a ele associado e eliminando o ranço moral de considerar-se o pacifismo e a fraternidade universal metas "piegas". Uma sociedade que realmente preze a paz e o altruísmo tem que cultivar teorias realistas e valores que reconheçam a existência e as condições de realização da paz e do altruísmo, ao mesmo tempo que valorize os pensadores pacifistas e altruístas. Inversamente, não é por acaso que uma sociedade que mitifica a luta de classes e a vontade de poder considera piegas a fraternidade universal e o altruísmo.

§ 2º – A fraca epistemologia de Max Weber: ou a epistemologia do wishful thinking

Max Weber, como se sabe, não gostava de tratar de epistemologia e de metodologia das Ciências Sociais; comenta-se que ele escrevia os artigos a esse respeito com grande má vontade, apenas quando era obrigado a isso. Ao mesmo tempo, costuma-se considerar que seus “ensaios metodológicos” são peças intelectuais imponentes, importantes, profundamente refletidas e que exigem grande habilidade para debater-se com elas. Parece-nos que há mais mistificação que verdade em tais observações; na verdade, parece-nos que há falhas profundas nesses textos –, devidas ou não à má vontade de Weber ao escrevê-los, não sabemos –, embora os cientistas sociais não costumem prestar atenção em tais falhas, seja por ignorância, seja por incapacidade, seja por terem sido seduzidos pela mitificação da "imponente erudição weberiana", seja pelo desejo de concordarem com a idéia das “Ciências do Espírito”. Senão, vejamos.
Weber postulava, seguindo Dilthey, que há uma diferença radical entre as áreas que estudam o que é próprio à natureza e o que é próprio ao ser humano: umas são as “Ciências Naturais”, que buscam “explicar” os fenômenos, por meio de esquemas causais objetivos (leis naturais); as outras buscam “compreender” os “sentidos” subjetivos das ações, no que ele chamava de “Ciências do Espírito”. As relações estabelecidas pelas Ciências Naturais são “determinísticas”, ao passo que as propostas pelas “Ciências do Espírito” são “probabilísticas”.
Além disso, o ser humano caracteriza-se, caracterizava-se e sempre se caracterizará pela multiplicidade de perspectivas, que nunca poderão unificar-se ou chegar a um verdadeiro consenso: tal multiplicidade era chamada por ele de “politeísmo de valores”. Diga-se de passagem que esse “politeísmo de valores” ele estendia até mesmo à ciência, ao afirmar que uma verdade aceita hoje será amanhã considerada errada e, assim, rejeitada.
Devemos começar pela divisão entre “Ciências Naturais” e “Ciências do Espírito”. Evidentemente, Weber tinha uma certa razão ao separar os diferentes objetos em diferentes ciências e também ao considerar que alguns são mais próximos do ser humano (mais subjetivas, portanto) e outros são mais distantes (mais objetivas, portanto) do ser humano. Mas são dois os procedimentos sucessivamente adotados aí: em um primeiro momento, cumpre perceber que diferentes objetos resultam em diferentes ciências; em segundo momento, diferentes ciências têm, ou podem ter, diferentes graus de proximidade subjetiva com o ser humano.
A idéia de “diferentes objetos” parece inicialmente simples, mas na verdade ela é bastante complicada. Um “objeto científico” não é a mesma coisa que um “objeto natural”; quando, como sociólogo, falo de “sociedade”, não me refiro à mesma coisa que um advogado quando fala em “sociedade (comercial)”, por exemplo. O objetivo científico é abstrato; ele origina-se de alguma coisa existente na realidade concreta, mas ele é somente uma idéia, existente na cabeça do(s) cientista(s), que considera alguns atributos específicos do objeto concreto e despreza todos os demais; os atributos específicos considerados são como que “aperfeiçoados”, isto é, os graus de impureza, as sujeiras, as imperfeições, os eventuais “desvios” e “falhas” são desconsiderados; a partir de uma realidade empírica, o cientista manipula idéias, isto é, relaciona uma idéia a outra(s), tira conseqüências e verifica se o resultado ideal corresponde ou não à realidade. Assim, um mesmo “objeto natural” (ou, para simplificar e evitar ambigüidades desnecessárias, um “corpo”) pode ser encarado como diversos “objetos científicos”: o tipo e o grau de abstração que realizamos, bem como o tipo de relação entre as idéias que estabelecemos, define o tipo de análise científica que desenvolvemos. Um copo, por exemplo, pode ser um objeto matemático, astronômico, físico, químico, biológico, sociológico ou moral. Dessa forma, não é propriamente o objeto natural que determina a ciência em questão – embora possamos conceder que isso facilite um pouco o raciocínio e que ordinariamente todos tratemos as coisas aproximadamente dessa maneira. Mas, para distinguirmos as ciências entre si, o que importa é o tipo de análise desenvolvida em cada uma delas; nesse sentido, dependendo da perspectiva, isto é, dependendo da ciência, um ser humano pode ser analisado sob as mesmíssimas luzes que um copo de cristal ou uma baleia.
Algumas análises são mais simples que outras: não no que se refere aos corpos, mas na quantidade de variáveis e pressupostos implicados. De um ponto de vista matemático, por exemplo, eu sou um indivíduo, tenho determinada "X" altura, determinada "Y" massa, ocupo neste exato instante determinado o lugar "Z" no espaço. Da contagem à determinação da minha geometria houve uma complicação; se eu passar disso para as relações – digamos, químicas – que eu estabeleço com o ambiente à minha volta, a complicação será bem maior, pois terei que conhecer as leis gerais da combinação da matéria (Química), das reações dos corpos uns sobre os outros (Astronomia e Física) e, claro, terei que realizar cálculos mais refinados (Matemática), sem contar que talvez precise saber quais as trocas gasosas ocorridas no interior do meu corpo (Bioquímica). Assim, parece claro que se pode entender as ciências de acordo com contínuos de crescimento de complicação, ou seja, de aumento de variáveis envolvidas: cada ciência possui suas leis próprias, mas pressupõe também as leis das ciências mais simples.
A análise científica é um processo subjetivo. Os corpos, isto é, os “objetos naturais”, existem naturalmente, objetivamente: o copo está na mesa à minha frente, eu estou sentado na cadeira em frente à mesa, a baleia do exemplo acima está no Oceano Atlântico etc. Mas para estudarmos cientificamente, como objetos científicos cada um desses corpos – e, como é fácil perceber, qualquer outro corpo existente no universo –, temos que abstrair, temos que pensar, temos que imaginar. As idéias são criadas; elas existem na cabeça de cada ser humano, mas não surgem sozinhas: elas desenvolvem-se historicamente, de acordo com as condições sociais de cada grupo e indivíduo.
Perceba-se: as ciências ditas naturais têm elementos “subjetivos” tanto quanto elementos “objetivos”. Os seus elementos “objetivos” sãos os corpos que dão origem aos seus objetos teóricos; mas, a partir do momento em que se constituem os objetos teóricos, a subjetividade entra em ação, pois os objetos teóricos existem apenas em termos subjetivos, apenas em termos ideais. Além disso, a forma como os objetos serão entendidos – ou seja, quais as propriedades que se deve atribuir-lhes, quais as conseqüências que se deve esperar deles, quais as relações possíveis etc. – é um procedimento parcialmente subjetivo, parcialmente objetivo: parcialmente objetivo porque várias das propriedades concretas das coisas são observáveis empiricamente e os objetos teóricos têm que os levar em consideração de alguma forma e em alguma medida; parcialmente subjetivo porque cabe a cada pesquisador, a cada comunidade de cientistas, a cada sociedade imaginar os modelos, suas propriedades e conseqüências, ou seja, cabe-lhes interpretar.
Dissemos há pouco que as ciências, isto é, as idéias que se tem a respeito da realidade mudam historicamente. Isso significa duas coisas: por um lado, que com o passar do tempo as teorias científicas modificam-se; por outro lado, que com o passar do tempo novos campos científicos surgem. Qualquer que seja a teoria adotada a respeito de qualquer objeto, o procedimento geral será sempre o mesmo: abstração, manipulação, prova empírica etc.; a abstração, a manipulação, a proposição de novas idéias etc. será sempre subjetiva, sujeita à interpretação individual e coletiva: não importa se o objeto natural é uma sociedade humana, um grande líder, um átomo de hidrogênio ou uma cadela vira-lata.
O que observamos até aqui serviu, por um lado, para indicar a metodologia geral das ciências: não indicamos nenhum procedimento específico a nenhuma ciência, nem apregoamos nenhuma fórmula a que a ciência deve aferrar-se, mas também procuramos não deixar de lado nenhum traço básico da ciência. Por outro lado, insistimos na idéia de que os procedimentos para estudar-se a realidade “natural” e a realidade “humana” são muitas vezes próximos entre si.
Feitas essas considerações preliminares, podemos passar diretamente à discussão das idéias de Weber.
Max Weber propunha a radical separação entre as “Ciências Naturais” e as “Ciências do Espírito”, baseado na concepção de que os objetos seriam diferentes e, portanto, os procedimentos deveriam ser diferentes. Por “Ciências Naturais” ele entendia a Matemática, a Astronomia, a Física, a Química, a Biologia e o sem-número de técnicas e estudos empíricos e eruditos rigorosos, como a Medicina, a Geologia etc.; as “Ciências do Espírito” seriam a Sociologia, a Psicologia, a Teologia, a Jurisprudência e disciplinas semelhantes. Os objetos seriam diferentes porque, em um caso, pertenceriam à “natureza” e, no outro caso, pertenceriam ao “ser humano”; como lembramos antes, os métodos seriam diferentes, um buscando “explicar” e o outro, “compreender”.
A divisão entre “Ciências Naturais” e “Ciências do Espírito” é profundamente arbitrária, irracional e sem sentido. Em primeiro lugar, ela baseia-se em uma confusão entre os objetos naturais e os objetos teóricos, ou seja, ela não distingue o que é concreto do que é abstrato e, a partir disso, estabelece uma separação rígida entre os objetos naturais: a Matemática e a Física seriam Ciências Naturais porque tratam dos copos, das canetas, das árvores; a Sociologia seria uma "Ciência do Espírito" porque trata do ser humano. Em segundo lugar, as “Ciências do Espírito” incluem disciplinas universitárias que apenas de um ponto de vista institucional – ou seja, puramente formal – podem ser entendidas como "ciências", como é o caso da Teologia, que por definição não pode ser enquadrada como “ciência”, isto é, como conhecimento abstrato e comprovável das relações entre aquilo que existe: a Teologia é, na melhor das hipóteses, pura especulação arbitrária, variável de acordo com tradições culturais locais e com inspirações individuais. Em terceiro lugar, as “Ciências do Espírito” querem advogar para si um método exclusivo, a “compreensão” (ou “interpretação”), relegando para as “Ciências Naturais” outro método exclusivo, a “explicação”: como vimos, isso é sem sentido, pois as explicações das Ciências Naturais requerem tanta “compreensão” ou “interpretação” quanto as “Ciências do Espírito”[6]. Em quarto lugar, a separação entre as “Ciências do Espírito” e as “Ciências Naturais” é tão radical que introduz um abismo separando o ser humano dos demais seres vivos, em particular os mamíferos superiores (e mesmo muitas aves): haveria uma radical solução de continuidade entre o ser humano e todo o resto do planeta Terra, o que é profundamente falso: as “Ciências do Espírito” postulam, implícita ou explicitamente, que a inteligência e os sentimentos são exclusivos do ser humano, o que qualquer pessoa que tenha um bicho de estimação sabe ser uma arrematada bobagem.
Na verdade, bem vistas as coisas, com a distinção entre “Ciências do Espírito” e “Ciências Naturais” Weber e Dilthey procuraram dar uma resposta alemã – desesperada, sem dúvida – ao progresso das ciências ocorrido nos países europeus mais desenvolvidos à sua época, nomeadamente a França e a Inglaterra. Essa resposta alemã retomava a antiga tradição dicotômica de tradição germânica entre Kultur e Zivilitation, isto é, entre as coisas do “espírito” e as coisas “materiais”. Norbert Elias, em O processo civilizador, traça o que chamou de “sociogênese” de tais categorias, contrapostas às francesas culture e civilisation; o que se evidencia é que, ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII e grande parte do XIX, enquanto a França era um país crescentemente homogêneo, centralizado, em que a unidade territorial e política era acompanhada por uma certa unidade cultural e lingüística, não havia “Alemanha”, mas apenas “países germânicos”, caracterizados por uma fortíssima dispersão religiosa e política (quando não pela disputa militar "intestina"): só era possível falar em “Alemanha” de um ponto de vista estritamente lingüístico. Assim, enquanto na França os aspectos materiais e espirituais de sua sociedade andavam de mãos dadas, nos países germanófonos eles dissociavam-se; apenas a vida do espírito, apenas os elementos mais idealizados eram passíveis de alguma unidade. Em uma reedição do platonismo, a vida do espírito seria superior: a Kultur; os aspectos materiais da sociedade seriam menos importantes ou, quem sabe, vis: a Zivilitation[7]. A essa dicotomia corresponde a dicotomia “Ciências do Espírito”-“Ciências Naturais”: aplicar os mesmos critérios das Ciências Naturais às “Ciências do Espírito”, acima de tudo, é desvalorizar e macular o que é “ideal”, o que é superior. O que se evidencia dessa contraposição é que o “espírito” claramente é uma entidade metafísica; é o “sopro” que “preenche” o “corpo”, é a “alma” que anima a “matéria”[8].
Ora, sem dúvida alguma que entre as Ciências Naturais e as Ciências Sociais há diferenças de objeto e, portanto, devem existir diferenças de método. Essa observação é trivial: no âmbito das Ciências Naturais, por exemplo, qualquer pesquisador admitirá com a maior tranqüilidade que a Física e a Biologia adotam procedimentos específicos distintos, em virtude de suas diferenças concretas. Mas em termos gerais há uma lógica subjacente à Física e à Química, assim como a todas as Ciências Naturais – e também às Ciências Sociais –: como indicamos antes, o processo de abstração, que permite que se distinga o objeto científico do objeto natural; a investigação de determinadas propriedades abstratas; o relacionamento entre essas propriedades; a dedução de novas propriedades. Esses procedimentos descritos acima são empíricos, isto é, históricos: em outras palavras, eles foram constituídos historicamente, ao longo do tempo, por meio de tentativas e erros e da reflexão sistemática dos resultados e dos procedimentos adotados. Inversamente, a distinção entre Ciências Naturais e “Ciências do Espírito” não é histórica nem é empírica: ela é idealista e completamente apriorística. Ou melhor, até é possível aceitar-se seu caráter histórico, no sentido de que é possível contextualizá-la historicamente; mas, como vimos há pouco, ela foi estabelecida por pensadores do mundo germanófono, como reflexo e como reação à sua condição sócio-política, a fim de valorizarem-se como pensadores que se viam isolados política e economicamente, e não como o resultado de uma reflexão mais sistemática sobre o conjunto da produção científica.
Diferentes objetos científicos requerem diferentes métodos de pesquisa e sugerem diferentes ciências: o ser humano considerado em sociedade e, a partir daí, individualmente sugere as “Ciências Humanas”. Para fins da presente argumentação, fiquemos com as Ciências Sociais, isto é, com o ser humano tomado coletivamenteHu.
Costuma-se argumentar que as metodologias que não são as próximas às “Ciências do Espírito” são “cientificistas” ou “naturalizantes”. Convém esclarecermos esse ponto desde já. Qualquer metodologia ou filosofia que rejeite explicações sobrenaturais – sejam elas teológicas, sejam elas metafísicas – será “naturalista”: “natural”, nesse caso, contrapõe-se a “sobrenatural”. Entretanto, com intenções polêmicas, os cultores das “Ciências do Espírito” afirmam que seus adversários são “cientifistas” ou “naturalistas”: com isso querem dar a entender que seus oponentes querem reduzir, ou reduzem de fato, o ser humano a coisas, a meros objetos, sem subjetividade. Não se repete com enorme freqüência a famosa regra de Durkheim, “Tratar os fatos sociais como coisas”?
Esse tipo de comentário é especioso e, no fundo, falacioso. Vimos há pouco que, por um lado, os cultores das “Ciências do Espírito” têm sérios problemas com a cientificidade: não distinguem o concreto do abstrato, não distinguem o objeto natural do objeto científico, as disciplinas incluídas em sua rubrica são um apanhado incoerente e irracional teórica e metodologicamente e seu conceito básico ("espírito") é pura metafísica. Mas, por outro lado, importa saber se de fato as “Ciências do Espírito” detêm ou não o monopólio do tratamento “humano” das Ciências Humanas e Sociais.
Antes de seguirmos adiante com a argumentação, devemos esclarecer a perspectiva que adotaremos: será a do Positivismo, ou seja, a vinculada à obra de Augusto Comte. Bem vistas as coisas, essa perspectiva subjaz ao presente texto desde o seu início, mas neste ponto convém explicitá-lo por pelo menos dois motivos. Por um lado, julgamos que o gênero de reflexão que desenvolveremos não é isolável de alguma filosofia da ciência específica; mas, principalmente, porque, por outro lado, temos clareza de que, mesmo as acusações feitas pelas “Ciências do Espírito” contra as Ciências Sociais sendo incorretas, há de fato algumas filosofias da ciência e algumas filosofias das Ciências Humanas que podem efetivamente ser denominadas de “cientificistas”[9].
Vimos acima que não é necessário recorrer-se às “Ciências do Espírito” para que se constituam ciências especificamente sobre os fatos do ser humano: o que é necessário é que haja objetos científicos específicos e metodologias adequadas ao seu estudo. Como o ser humano não tem acesso ao absoluto, a ciência busca apenas o relativo: mais especificamente, busca as relações constantes entre os fenômenos abstratos (as “leis naturais”); essas relações podem ser de sucessão ou de coexistência. As relações podem ser determinadas por meio da observação dos “fatos” humanos, isto é, das diversas interações humanas; conforme as reflexões comtianas, essas observações podem ocorrer por meio de três grandes procedimentos básicos: a observação direta, a comparação e, em particular, a investigação histórica, que é a específica à realidade humana.
O verbo “observar”, aqui, não deve ser entendido de maneira ingênua; não se trata, como a crítica profissionalizou-se em repetir, que é apenas passar os olhos e/ou coletar “dados” ou “fatos” “puros” para daí fazer generalizações empíricas: Comte estabelece desde o início uma refinada teoria do conhecimento (ao mesmo tempo histórica, sociológica e neurológica) que estabelece que só podemos investigar a realidade dispondo de uma descrição preliminar dessa mesma realidade, indicando quais são os elementos e as relações importantes.
Os três procedimentos de observação sociológica oferecem cada um suas vantagens e desvantagens, tanto operacionais quanto teóricas, mas é a pesquisa histórica a mais importante. Ela combina a observação dos seres humanos com a possibilidade de comparação dos grupos sociais ao longo do tempo (e, claro: dispondo-se de várias histórias locais, é possível compará-las também em função do espaço); ela indica quais são os traços da natureza humana, quais são as suas possibilidades de combinação e quais as suas possibilidades de desenvolvimento – aliás, os resultados das pesquisas sobre a natureza humana referem-se aos seres humanos tomados individual e coletivamente[10] –; por fim, ela evidencia o traço que distingue o ser humano dos demais seres, a sua historicidade, ou seja, a influência cumulativa das gerações passadas sobre as presentes e as gerações futuras.
De modo mais específico, Comte determinou três grandes relações de sucessão histórica, que consistem em três “leis dos três estados”: uma para a inteligência, uma para a atividade prática, uma para os sentimentos sociais. A da inteligência é a mais famosa e estabelece que as concepções quaisquer atravessam três fases sucessivas: teológica, metafísica e positiva. Essa lei é complementada pela classificação das ciências (ou seja, dos grandes conjuntos de conhecimentos de relações abstratas): quanto mais geral e simples o conhecimento em questão, mais rapidamente ele tornar-se-á positivo; inversamente, quanto mais específico e mais complexo, mais demorará para alcançar a positividade. Daí a chamada “escala enciclopédica”, com as sete ciências: Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia e Moral.
A lei dos três estados da atividade prática estabelece que, ao longo dos séculos, uma civilização desenvolve inicialmente uma atividade militar conquistadora; em seguida, uma atividade militar de defesa; por fim, a atividade torna-se industrial e pacífica. Já a lei dos três estados dos sentimentos sociais postula que os seres humanos – mais uma vez: ao longo dos séculos – organizam-se em sociedades cujos escopos são inicialmente familiares; depois se ampliam para as pátrias; por fim tomam por meta a Humanidade como um todo.
Embora haja correspondências lógicas, teóricas e práticas entre cada uma dessas três leis, seus ritmos são diferenciados e, claro, dependem dos contextos específicos das várias sociedades e civilizações, o que amplia bastante as combinações possíveis. Além disso, elas não são “lineares”, no sentido de que recuos relativos sejam impossíveis: elas indicam tendências gerais, a partir da interação do ser humano com o ambiente que cria e em que vive[11].
Essas três leis são relações de sucessão[12]; embora a idéia de maior ou menor velocidade sugira uma possível medição quantitativa, no fundo elas são qualitativas: “teologia”, “metafísica”, “positividade”; “atividade militar conquistadora”, “atividade militar defensiva”, “atividade pacífico-industrial”; “sociabilidade familista”, “sociabilidade pátria”, “sociabilidade universal”: essas três trincas são qualidades, são categorias que se relacionam entre si mas que são irredutíveis umas às outras e que são irredutíveis à forma numérica. Aliás, por que são “irredutíveis à forma numérica”? Porque elas desenvolvem-se em função da capacidade humana de reflexão, de compreensão de seu ambiente (social e natural), do estímulo sofrido pelos interesses, pelas paixões e pelos sentimentos.
Concebidas as Ciências Sociais e a história dessa forma, a busca de relações de sucessão ou de coexistência fica longe de ser “objetivista”, “cientificista”, “naturalista”, “quantitativista” ou destituída de “reflexividade”; como nota o próprio Comte, bem vistas as coisas, a identidade entre objeto de estudo e sujeito do conhecimento concede ao pesquisador uma perspectiva privilegiada de análise e de... compreensão. A possibilidade de os analistas poderem experimentar sentimentos e idéias análogos em situações semelhantes aos vividos por outros seres humanos fornece provas adicionais às elaboradas racionalmente nas investigações sociológicas.
Na verdade, ao longo de sua carreira Comte desenvolveu cada vez mais a perspectiva subjetivante. Para ele, o ser humano naturalmente percebe a realidade de um ponto de vista subjetivo, o que equivale a dizer que as primeiras representações feitas pelo ser humano são necessariamente antropomórficas. Para evitar esse viés excessivamente subjetivo e, em particular, absoluto, a perspectiva objetivante é necessária: daí o desenvolvimento das Ciências Naturais, que deve avançar, é claro, o domínio da realidade humana.
A realidade humana é a mais importante; sem dúvida alguma que conhecer Matemática é interessante, por vezes divertido e muitas vezes útil; o mesmo pode ser dito a respeito da Química, da Biologia, da Astronomia, da Física: mas todas essas ciências têm alguma relevância somente se estiverem subordinadas ao ser humano, isto é, às preocupações humanas, à concepção de ser humano. As Ciências Naturais, assim, desenvolvem diversos atributos lógicos e teóricos: concepções de ordem, de progresso, de dedução, de indução etc.; elas também ensinam o ser humano a controlar o excesso de subjetividade em sua relação ao mundo – por exemplo, impondo-nos a concepção simples, mas decisiva, de que existe uma ordem exterior a nós mesmos, a que temos que nos submeter caso queiramos sobreviver e caso queiramos modificá-la. As mesmas idéias de uma ordem externa ao ser humano e de leis naturais são aplicáveis no âmbito das Ciências Humanas: mas nesses domínios, como indicamos, uma vez a subjetividade disciplinada – sendo mais precisos: tornada relativa –, ela pode atuar de volta não apenas nas próprias Ciências Humanas, como também nas Ciências Naturais e nos demais domínios da realidade humana (artes, política, indústria, vida cotidiana); esse uso ampliado e generalizado da subjetividade relativa é o que Augusto Comte chama de “método subjetivo”. No caso específico das ciências, o método subjetivo consiste na proposição de novas hipóteses, novas imagens para raciocínio e em critérios gerais para disciplina das pesquisas.
Uma outra acusação assaz comum feita pelas “Ciências do Espírito” às Ciências Sociais é a idéia do “determinismo” supostamente subjacente à concepção de “leis naturais”. Essa acusação também é sofística, mas de modo geral se baseia em desconhecimento das concepções de leis naturais próprias às várias ciências, igualando a Sociologia e a Moral à Matemática e à Física.
A escala enciclopédica estabelece-se a partir de dois critérios: complexidade crescente e generalidade decrescente[13]. Cada “degrau” adicional acrescenta um pouco de complexidade, ou seja, pressupõe as relações abstratas prévias, a que se subordina, mas acrescenta suas próprias novas relações abstratas, que são irredutíveis às anteriores. Assim, na epistemologia comtiana, subordinação não implica redução: "subordinação" quer dizer pressuposição de relações logicamente anteriores, que estabelecem limites e condições para as relações posteriores (ou “superiores”, ou “mais nobres”, como ele dizia). A Sociologia pressupõe a Biologia: o ser humano só pode viver em sociedade, isto é, só pode viver historicamente, se for um ser vivo, ou seja, se seguir as leis da vida. Disso se deduz que a Sociologia é uma Biologia diferente? Não, pois as interações que o ser humano estabelece não são redutíveis à Biologia, como as produções culturais facilmente comprovam. Voltando ao tema do aumento da complexidade: a Sociologia pressupõe cinco níveis prévios de complexidade, a que acrescenta o seu próprio. Isso quer dizer que as possibilidades de combinações aumentam exponencialmente, ou seja, as variáveis implicadas no estudo das sociedades são inúmeras.
A Matemática, a partir de estudos empíricos, elaborou suas fórmulas e relações; a despeito disso, em certo sentido elas são puramente intelectuais. A Astronomia, ao desenvolver suas leis, observou a regularidade dos astros e, desprezando algumas irregularidades, chegou às leis da Mecânica Celeste[14]. A Física, da mesma forma, ao abstrair, tem que desconsiderar vários outros elementos e imperfeições da realidade e, inversamente, tem que pressupor uma série de condições para que suas generalizações sejam válidas: o mesmo acontece, em maior grau, isto é, com maior intensidade, na Química e, ainda mais, na Biologia. Por que seria diferente, mutatis mutandis, na Sociologia?
Tais observações foram feitas pelo próprio Augusto Comte. O aumento de complexidade à medida que se avança na escala enciclopédica significa, então, o aumento de pressupostos e de idealização, assim como a maior possibilidade da distância efetiva entre o que é teorizado e a realidade experimentada (ou “observada”). Isso quer dizer que a teoria é "errada"? Não; quer dizer apenas que a teoria é... “teórica”, isto é, que ela é um construto mental para apreendermos as múltiplas relações que se dão na realidade. As previsões científicas, nesse sentido, são antecipações tentativas, são apalpadelas que sucessivamente elaboramos, de modo a melhorar o mais possível, considerando as necessidades intelectuais e práticas do ser humano, os construtos intelectuais e a realidade experimentada.
Augusto Comte não levava a sério o chamado “determinismo científico”, pois literalmente ele nivela por baixo todas as ciências, ignorando as particularidades epistemológicas de cada uma, bem como o papel desempenhado pela ciência na economia geral do ser humano. Em vez de “determinismo científico”, Augusto Comte usava a expressão muito mais operacional de “fatalidades modificáveis” – expressão que conjuga a variabilidade superior das ciências à medida que se avança na escala enciclopédica com a derivada capacidade humana de intervenção na realidade.
Do ponto de vista intelectual, ele propunha que se “concebam como invariáveis as relações observadas”: a palavra-chave aí é “conceber”, que denota entender de maneira conscientemente provisória as relações observadas; para evitar fragilidades intelectuais, para que as relações tenham sentido, elas devem ser entendidas – ou melhor: concebidas – como invariáveis. Mais uma vez: o construto mental deve estabelecer relações invariáveis, mas devemos ter clareza de que o construto pode ter que ser modificado em função da experiência concreta.
As observações acima põem por terra a acusação usual de que o Positivismo é “determinista”, que deseja descobrir relações tão automáticas quanto as da Física ou da Matemática – ou melhor, que deseja estabelecer automatismos sociais. Mas podemos ir além: as observações acima nos permitem perceber como são tolas as propostas weberianas de que a “Sociologia Compreensiva” é “probabilística” e baseada em “tipos ideais”. Tanto o probabilismo quanto os tipos ideais de Weber baseiam-se em confusões a respeito do papel das abstrações e da epistemologia das Ciências Sociais. Weber definia os tipos ideais como a abstração de certos aspectos da realidade, em que determinados traços eram exagerados e outros eram diminuídos; um tipo ideal não seria “certo” ou “errado”, mas apenas mais ou menos “útil”. Ora, como vimos, a abstração da realidade, com o isolamento de determinadas características e o exagero de outras, corresponde pura e simplesmente ao processo de elaboração dos objetos científicos, que é um procedimento utilizado por... qualquer ciência. Por outro lado, a alegação de que os tipos ideais são mais ou menos “úteis” e que não faz sentido criticá-los pela ausência de “realidade” é ao mesmo tempo uma platitude e uma tolice: é uma platitude porque o objeto científico é de fato um exagero de determinados aspectos da realidade cuja função é ser intelectualmente útil, isto é, operacional; é uma tolice porque, se não é um "reflexo" da realidade, nem por isso o conceito abstrato pode ser desvinculado da própria realidade, ou seja, tem que guardar pelo menos alguma relação com a realidade que substitui intelectualmente.
Quanto ao “probabilismo” de Weber, ele só tem alguma relevância quando contraposto ao alegado “determinismo” de outras sociologias: mas se não faz sentido falar-se em “determinismo” na Sociologia, igualmente não faz sentido algum falar-se em “probabilismo”.
O conjunto das observações acima servem para pelo menos dois objetivos: por um lado, para desmistificar a pretensa superioridade da Sociologia weberiana, calcada nas “Ciências do Espírito”, como paradigma de pesquisa histórico-social; por outro lado, para evidenciar o quanto a Sociologia e a epistemologia das Ciências Sociais de Comte é negligenciada e desvalorizada. Nenhum desses dois objetivos é secundário ou de pequena monta: afinal, é voz corrente nas academias que Weber teria elaborado uma Sociologia com uma epistemologia específica para as Ciências Sociais, irredutível às Ciências Naturais, da mesma forma como é voz corrente que, para entender-se Comte, basta igualar sua Sociologia às Ciências Naturais. Ainda mais: mesmo artigos polêmicos, que buscam pôr em questão tais sensos comuns, são assustadoramente rápidos na explicação das epistemologias verdadeiramente científicas, embora estendam-se longamente a respeito das “Ciências do Espírito”: como se a metafísica das “Ciências do Espírito” fosse de fato consciente de si própria e como se ela permitisse que o ser humano seja estudado e entendido. Como vimos, isso é um grande equívoco, difundido e mantido com grande sucesso há muito tempo.

Anexo
Reproduzimos abaixo as leis da "Filosofia Primeira", que correspondem à Epistemologia comtiana.

Quadro das quinze leis de filosofia primeira, ou
Princípios universais sobre os quais assenta o dogma positivo[15]

Primeiro grupo, tanto objetivo como subjetivo
1ª Formar a hipótese mais simples e mais simpática que comporta o conjunto dos dados a representar (I)
2ª Conceber como imutáveis as leis quaisquer que regem os seres pelos acontecimentos, posto que só a ordem abstrata permite apreciá-las (II)
3ª As modificações quaisquer da ordem universal limitam-se sempre à intensidade dos fenômenos, cujo arranjo permanece inalterável (III)

Segundo grupo, essencialmente subjetivo
1ª série: leis estáticas do entendimento
1ª Subordinar as construções subjetivas aos materiais objetivos (Aristóteles, Leibnitz, Kant) (IV)
2ª As imagens interiores são sempre menos vivas e menos nítidas que as impressões exteriores (V)
3ª A imagem normal deve ser preponderante sobre as que a agitação cerebral faz simultaneamente surgir (VI)
2ª série: leis dinâmicas do entendimento
1ª Cada entendimento oferece a sucessão dos três estados, fictício, abstrato e positivo, em relação às nossas concepções quaisquer, mas com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes (VII)
2ª A atividade é primeiro conquistadora, em seguida defensiva e enfim industrial (VIII)
3ª A sociabilidade é primeiro doméstica, em seguida cívica e enfim universal, segundo a natureza peculiar a cada um dos três instintos simpáticos [apego, veneração e bondade] (VIII)
Terceiro grupo, sobretudo objetivo
1ª série: a mais objetiva da filosofia primeira
1ª Todo estado, estático ou dinâmico, tende a persistir espontaneamente sem nenhuma alteração, resistindo às perturbações exteriores (IX)
2ª Um sistema mantém sua constituição ativa ou passiva quando seus elementos experimentam mutações simultâneas, contanto que sejam exatamente comuns (X)
3ª Existe por toda parte uma equivalência necessária entre a ação e a reação, se a intensidade de ambas for medida conformemente à natureza de cada conflito (XII)
2ª série: mais subjetiva que a precedente
1ª Subordinar por toda parte a teoria do movimento à da existência, concebendo todo progresso como o desenvolvimento da ordem correspondente, cujas condições quaisquer regem as mutações que constituem a evolução (XIII)
2ª Todo classamento positivo procede segundo a generalidade crescente ou decrescente, tanto subjetiva como objetiva (XIV)
3ª Todo intermediário deve ser subordinado aos dois extremos cuja ligação opera (XV).


[1] O autodenominado “socialismo científico”, por sua vez, era profundamente quimérico em suas escassas propostas de sociedade “sem classes e sem Estado”; mas sua cientificidade proviria, conforme indicado em inúmeras ocasiões pelo próprio Marx, pela sua concepção de que a sociedade caracteriza-se pelas relações materiais e pela luta de classes – em outras palavras, pelos conflitos entre os egoísmos individuais e coletivos.
Também convém notar que, a despeito de edulcorados relatos correntes, Marx era agressivo, violento e muito simpático ao militarismo; ao falar em “luta de classes”, ele pensava literalmente em “guerra de classes”, em vez de em uma disputa simbólica ou metafórica, ou mesmo em algo mais ameno, como uma simples negociação salarial.
[2] A “vontade do poder” é uma das categorias centrais da confusa e preconceituosa antropologia de Nietzsche, que foi avidamente adotada pelo “pós-estruturalista” e pós-moderno Foucault. A literatura não costuma evidenciar o quanto Nietzsche considerava que o altruísmo e o pacifismo são características desprezíveis, próprias de gente dominada e apassivada, que merece a dominação e a apassivação; inversamente, as virtudes “autênticas” são as próximas ao militarismo, isto é, à violência, à força bruta.
[3] Talvez possamos ser mais precisos ao considerar o otimismo como a disposição subjetiva geral favorável à realização de eventos e à afirmação (de fatos) da vida; o pessimismo seria a disposição subjetiva geral que tende a negar (os fatos d)a vida e a realização de eventos.
Já a idéia de “crença” é igualmente subjetiva; todavia, não se deve exagerar sua importância: o puro crer é um ato vazio e não deve ser valorizado por si mesmo; na verdade, a pura crença é irracional e tende ao absoluto, ao desconsiderar os fatos positivos. Assim, o otimismo que consiste também em uma crença na ocorrência futura de determinados fatos deve basear-se no conhecimento da realidade, isto é, no conhecimento das leis naturais, a partir de uma concepção relativa conhecimento.
[4] Sem dúvida alguma, em termos mais estritamente intelectuais é possível ser otimista a respeito do egoísmo e, de modo inverso, pessimista em relação ao altruísmo: poderíamos denominar a confiança intelectual no egoísmo de “otimismo intelectual”, em oposição ao “otimismo moral”, caracterizado pela confiança intelectual no altruísmo e também pela postura simpática de modo geral perante a vida. O “otimismo intelectual” é o mais comum nas Ciências Sociais e, parece-nos, é o que deve modificar-se, ao mesmo tempo em que deve ser substituído pelo otimismo moral.
[5] Para Comte a “natureza humana”, ou “alma humana”, tem um sentido muito específico e claro: é o conjunto de funções cerebrais. Assim, o ser humano pode ser e fazer muito, mas sempre dentro dos limites impostos a si pelo cérebro e nunca além do que o cérebro permite. Esses limites são passíveis de avaliação por meio de pesquisas laboratoriais, mas também – é importante ressaltar – por meio da investigação histórica, ou seja, por meio do exame das variações que o ser humano assume e assumiu individual e coletivamente ao longo do tempo e do espaço: esses dois procedimentos – laboratorial, mais próximo das atualmente chamadas “neurociências”, e histórico, ligado às Ciências Sociais – são complementares e deveriam ser assim percebidos por seus respectivos cultores.
[6] Na verdade, em inúmeros casos as Ciências Naturais exigem até mais interpretação que as “Ciências do Espírito”: afinal, enquanto é possível perguntar diretamente para um ser humano o que ele pensa a respeito de algo, o mesmo não é possível fazer, por exemplo, com um átomo.
[7] É fácil perceber como, por outro lado, o “materialismo histórico” de Marx é literalmente a inversão completa desse esquema explicativo (embora a inversão seja menos clara no que se refere aos valores morais adotados para julgar as idéias e as coisas concretas).
[8] Daí à teologia (cristã, por exemplo) é apenas um pequeno passo. Como diria Augusto Comte, uma das formas mais fáceis de reconhecer a metafísica é por meio de sua característica de teologia degradada.
[9] Um pouco por metonímia, um pouco por ignorância e muito adrede, essas outras filosofias da ciência que podem ser denominadas de “cientificistas” são também denominadas de “positivistas”, o que gera evidentes confusões. Deixando de lado a parte cabível à ignorância, parece-nos que não há muito de inocente em tais confusões, que beneficiam todos os adversários: teológicos (católicos, protestantes etc.), metafísicos (liberais, marxistas, ontologistas, pós-modernos etc.) e os teológico-metafísicos (como os membros da Escola de Frankfurt, quem citavam Marx ao mesmo tempo que rezavam para o deus judaico-cristão).
[10] Nesse sentido, é interessante notar que Comte propõe um método de investigação por assim dizer às avessas: é o que chama de “método patológico”: definindo as patologias como o desenvolvimento anormal dos órgãos, é possível investigar por via inversa o desenvolvimento normal dos órgãos ou, já em uma chave comparativa, os casos que consideramos moral e socialmente patológicas, como o nazismo, o comunismo, os campos de concentração etc.
De qualquer forma, cumpre notar que o próprio Comte era o primeiro a afirmar com todas as letras que os termos médico-biológicos eram tão-somente metáforas – não se tratando, portanto, de “biologização do social”.
[11] No amplo corpus comtiano, já diversos volumes que podem ser entendidos como tendo caracteres históricos, ao analisarem em detalhes as relações que os vários povos e civilizações mantiveram entre si, em função das categorias indicadas acima e de também de inúmeras outras, mais específicas. Tais volumes seriam principalmente os v. IV a VI do Sistema de filosofia positiva e III do Sistema de política positiva. Além dessas obras, inúmeros positivistas deram seguimento à obra de Comte, desenvolvendo e/ou explicando as análises históricas concretas: são os casos, por exemplo, dos inúmeros cursos públicos, gratuitos e populares de Pierre Laffitte.
[12] Sendo relações de sucessão, no caso social são leis plenamente históricas, enquadradas no que A. Comte denominava – à falta de melhor nome – de “Sociologia Dinâmica”, representantes do “progresso social”. Mas, também com base no exame histórico-comparativo, ele determinou relações de coexistência, integrantes da “Estática Social” (ou da “ordem social”): família, governo, linguagem, religião, propriedade. Os elementos da Estática evoluem ao longo do tempo, sendo a matéria-prima da Dinâmica.
[13] Uma precisão importante: à medida que se avança na escala enciclopédica ocorre um avanço na "generalidade decrescente" – todavia, trata-se da generalidade objetiva, pois os objetos estudados são cada vez mais específicos. Mas, por outro lado – e isto é decisivo –, há um aumento na generalidade subjetiva, pois que as ciências aproximam-se cada vez mais do ser humano.
[14] As leis da Mecânica Celeste que Augusto Comte considerava eram principalmente as de Kepler, Galileu e Newton – afinal, ele viveu entre 1798 e 1857, muito antes das pesquisas de Poincaré e Einstein.
[15] Fonte: Augusto Comte. 1934. Catecismo positivista ou sumária exposição da Religião da Humanidade. 4ª ed. Rio de Janeiro : Apostolado Positivista do Brasil, p. 479.