§ 1º – Otimismo e
altruísmo, duas categorias esquecidas pelas Ciências Sociais
"Otimismo" e "altruísmo"
são duas categorias esquecidas pelas Ciências Sociais; de modo geral prefere-se
o pessimismo e o egoísmo. A cientificidade também é uma categoria esquecida.
Mas “esquecidas” talvez não seja a melhor palavra: “desprezadas” talvez seja
mais adequada.
As Ciências Sociais percebem-se com
enorme freqüência como disciplinas institucionalizadas cuja “função social” é
investigar para então denunciar as usurpações e os crimes que os fortes e os
ricos (por vezes também os estrangeiros e “o moderno”) realizam sobre os fracos
e os ricos (e autóctones e “o tradicional”); seu caráter deve ser “crítico”,
muito mais que “científico”, pois a própria preocupação com a ciência pode
esconder uma tentação ou uma intenção dominadora. Dessa forma, as “Ciências”
Sociais não são “ciências”, são “técnicas” “críticas” voltadas para a pesquisa
de maquinações, esquemas, estruturas que dominam e oprimem. Esse aspecto
negativo é completado por um aspecto positivo que procura afirmar e restituir
os valores e práticas negados ou dominados dos pobres e fracos (e autóctones e “o
tradicional”).
Apresentando dessa forma, o
maniqueísmo dessa concepção fica evidente: o pólo dominado é “bom”, o pólo
dominador é “mal”. Por mais ingênua que seja, essa concepção subjaz a uma
quantidade enorme de estudos, de teorias e de áreas disciplinares. No que se
refere às categorias indicadas acima – “altruísmo” e “otimismo” –, elas não são
propriamente levadas a sério; são como que categorias residuais, imputadas
automaticamente ao pólo positivo por oposição ao pólo negativo. Os conceitos
verdadeiramente elaborados são os negativos: egoísmo, pessimismo. Ao
discutir-se o valor moral e epistemológico de teorias, é comum a acusação de
que teorias que afirmam o altruísmo e/ou o otimismo são “idealistas” ou “utópicas”
e que as afirmadoras do egoísmo e/ou do pessimismo são “realistas” (e,
portanto, “científicas” ou mais "críticas").
É bem verdade que há teorias que
são efetivamente idealistas: Hegel, por exemplo, seguindo a trilha platônica,
acreditava na realidade das Idéias e postulava que o mundo em que vivemos é um
decalque do mundo das Idéias. Não há o que argumentar a esse respeito: puro
idealismo, nada de realismo, nada de cientificidade. As sociedades fantásticas,
como as dos chamados “socialistas utópicos”, também carecem de realidade: são puramente
quiméricas, anarquistas no sentido etimológico da palavra, ou seja, a
justaposição de indivíduos que se relacionam entre si como puros indivíduos,
sem nenhuma estrutura social.
Mas é digno de nota que as
teorias ditas realistas são aquelas que afirmam o pessimismo e/ou o egoísmo. Um
caso exemplar é o ocorrido na história das teorias das Relações Internacionais:
embora o chamado “idealismo”, elaborado nos anos subseqüentes à I Guerra
Mundial fosse mais ou menos puramente uma doutrina moral, baseado na pregação
religiosa do então Presidente dos Estados Unidos Woodrow Wilson, o “realismo” elaborado
após a II Guerra Mundial por Hans Morgenthau elaborou-se em reação ao idealismo
afirmando com todas as letras o egoísmo nacional, que por sua vez baseava-se no
egoísmo individual.
Outro exemplo: Maquiavel teria
fundado a “Ciência Política”, ou o estudo moderno da política, ao defender o “realismo”
na análise das relações de poder: no caso, o realismo metodológico a aplicar-se
seria deixar de lado as prescrições morais e perceber os seres humanos como
egoístas que lutam entre si pelo poder, pela fortuna e pela glória – formulação
não muito diferente da de Hobbes, aliás.
Mas, entre as duas categorias, o
fato é que na verdade o “otimismo” apresenta uma situação menos problemática.
Sem dúvida alguma, houve momentos e ambientes em que era crime intelectual – em
outras palavras, heresia – falar-se em ou praticar-se o otimismo: nos anos 1970
brasileiros ou no seio da Escola de Frankfurt, entre as décadas de 1930 e 1960.
Períodos de guerra, de tiranias, de dominação desautorizam ou pelo menos
dificultam o otimismo. Os estudos sobre as relações de trabalho, de modo geral,
e os voltados à globalização também costumam ser pessimistas, mesmo quando os
dados empíricos pelo menos sugerem algum
otimismo. Além disso, há teorias que adotam perspectivas por assim dizer ambivalentes
a respeito do otimismo: o marxismo, por exemplo, é pessimista no curto prazo,
mas fortemente otimista a longo (ou longuíssimo) prazo.
Entretanto, com o fim do nazismo
e do comunismo (em âmbito mundial) e com o restabelecimento do Estado democrático
de Direito (no âmbito brasileiro), desde há mais ou menos duas décadas exige-se
dos cientistas sociais que trabalhem ativamente para a elaboração, para o
acompanhamento e para a avaliação de políticas públicas: os pesquisadores
envolvidos com tais atividades têm como dever de ofício verificar as
possibilidades concretas de realização de suas propostas, o que implica
minimamente o otimismo.
Já no caso do altruísmo a
situação é bem diferente, para pior. Os pressupostos generalizados nas Ciências
Sociais são de que as motivações humanas são egoístas; de que os móveis
altruístas são passíveis de redução lógica e prática ao egoísmo ou que escondem
móveis egoístas; de que o altruísmo reside apenas no pólo dominado – e,
portanto, passivo – da sociedade; de que o altruísmo consiste em alguma forma
de autonegação (individual e/ou coletiva), implicando com isso também alguma
forma de automutilação; por fim, de que o altruísmo é piegas.
Em certa medida, é compreensível
essa dificuldade em assimilar-se conceitualmente o altruísmo: afinal de contas,
o egoísmo é mesmo mais forte que o altruísmo e mesmo que um indivíduo ou um
grupo não seja altruísta (o que, apesar do que pode parecer, é impossível), não
há como não ser egoísta. Além disso, para definir-se o egoísmo e o altruísmo é
necessária alguma concepção sobre a natureza humana: a teologia, seguindo São
Paulo, concebe o ser humano como inerentemente egoísta (o altruísmo – a “caridade”
– só é obtida por meio da graça divina); a metafísica de Hobbes percebe o ser
humano como perfeitamente egoísta, resultando na guerra de todos contra todos –
no que foi seguido por Marx, com a diferença de que Marx aplica o egoísmo às
classes e não aos indivíduos (com a conseqüência da luta de classes). Importa
notar que, mais recentemente, os estudos “críticos” e muitos pós-modernos
rejeitam qualquer concepção do ser humano a título de combaterem “essencializações”,
“fundacionalismos”, “biologizações” etc. – ou melhor, rejeitam qualquer
concepção exceto uma: a de que o ser humano é infinitamente plástico, pois
estudar seriamente as relações entre o biológico e as amplíssimas modificações
realizadas pelo moral e pelo social no biológico no caso do ser humano é
ilegítimo, pois conduz às tais “essencializações” etc. Enfim: o fato é que os
cientistas sociais, tendo que escolher entre egoísmo e altruísmo, preferem o
egoísmo, considerando-o aposta certa.
Ora, caracterizar a sociedade
humana pelo egoísmo é reduzi-la à mais tosca animalidade e não compreender um
dos seus traços mais fundamentais. Se o ser humano é somente egoísmo, qualquer
associação que perdure é ou pura violência ou mera aliança episódica, baseada
no jogo dos interesses oscilantes das várias paixões egoístas. Mesmo que uma
paixão seja tornada preponderante, como propôs Montesquieu, toda e qualquer
associação "social" consiste apenas na capacidade inerentemente
instável de um indivíduo impor aos demais o seu egoísmo. Nesse caso, aliás, é
evidente que não há como se falar em “otimismo”.
A idéia da sociedade como
reunião, ou melhor, de justaposição de egoísmos não precisa ser hobbesiana em
tão alto grau, apesar de a concepção de Hobbes ser uma das mais simples do
gênero. Variações dessa idéia são a de que a história é “som e fúria” ou de que
a história consiste na “vontade do poder”: bem
vistas as coisas, essas concepções são equivalentes entre si, embora afirmem o
egoísmo e a violência nas relações humanas de diferentes maneiras. Shakespeare,
como se sabe, não tinha uma concepção tão estreita da vida quanto a de que ela
é somente “som e fúria”, mas Nietzsche e Foucault compraziam-se em afirmar a “vontade
do poder”.
Retornemos a Hobbes: a
prevalência do egoísmo – ou, o que dá no mesmo para os fins da presente
argumentação, a ausência de altruísmo – resulta na ausência de sociedade e no primado
da violência, o que equivale à aniquilação do ser humano. Torna-se chocante,
dessa forma, que filósofos e analistas sociais falem e repitam que o ser humano
é acima de tudo egoísmo; mais assustador é que os cientistas sociais, quem
supostamente deveriam estudar o ser humano de maneira comparativa e entender as
suas possibilidades morais, assumam a inexistência do altruísmo como hipótese
operacional de trabalho, ignorando ou fingindo ignorar as conseqüências
práticas dessa inexistência.
Cabe notar, neste momento, que “otimismo”
e “altruísmo” são categorias que se associam com facilidade, da mesma forma (e
pelos mesmos motivos) que “pessimismo” e “egoísmo” aproximam-se entre si. O
otimismo refere-se às possibilidades de realização de eventos no futuro;
liga-se às nossas esperanças práticas, a partir de nossas concepções
intelectuais. Na verdade, o otimismo não é somente a maior ou menor
possibilidade de realização de um evento ou de um conjunto de eventos, mas a atitude subjetiva que adotamos a
respeito dessas possibilidades: as possibilidades de algo bom ocorrer podem ser
altíssimas, mas caso tenhamos a esse respeito uma postura “negativa” seremos
pessimistas; caso a postura seja “positiva”, seremos otimistas. A postura
positiva consiste em considerar – em “crer” – que o evento ocorrerá; a postura
negativa, inversamente, é a crença em que o evento não ocorrerá.
O altruísmo vincula-se à
preocupação com os outros – sejam eles iguais, superiores ou inferiores (no
tempo e/ou no espaço) –; ele desenvolve atitudes simpáticas, o que em termos de
disposições subjetivas associa-se com facilidade ao otimismo. Qualquer melhoria
social implica a possibilidade humana de melhoramento, isto é, não é possível
melhorar o que não apresenta um “potencial de melhoria”; esse “potencial de
melhoria” é diferente do egoísmo e, para os nossos fins, pode ser entendido
como altruísmo ou como desenvolvimento do altruísmo. Se o ser humano dispõe
desse “potencial de melhoria”, o otimismo é perfeitamente aceitável e, em
inúmeras ocasiões, é necessário.
Pois bem: o caso de Augusto
Comte é exemplar a respeito de ambas as categorias, “otimismo” e “altruísmo”.
Possivelmente o Positivismo foi a primeira filosofia e – importa indicar com
todas as letras – a primeira teoria sociológica positiva a incluir o altruísmo
em suas lucubrações. Criador da palavra “altruísmo”, Augusto Comte procurou com
ela designar o conjunto das disposições humanas sociáveis e, de modo geral,
favoráveis aos outros seres. A inclusão do altruísmo no Positivismo deu-se com
base nos estudos de anátomo-fisiologia cerebral:
afinal de contas, se o altruísmo existe como uma propensão da natureza humana,
ele deve ter alguma sede no cérebro; ao mesmo tempo, se o altruísmo existe na
natureza humana, ele manifesta-se nas diversas sociedades ao longo da história:
assim, é possível e é necessário fazer uma Sociologia Histórica
(necessariamente comparativa) do altruísmo. Ora, o altruísmo não existe
separado do egoísmo; dependendo da sociedade, ele conforma-se de uma forma ou
de outra; mas, além disso, o desenvolvimento histórico permite que o altruísmo
conforme as sociedades de uma forma ou de outra.
Exatamente porque Augusto Comte incluía
o altruísmo em suas elaborações, isto é, exatamente porque percebia com clareza
que a sociedade não existe sem pendores inatos a favor dos demais – pendores
que podem e devem ser estimulados e que podem e devem disciplinar o egoísmo – é
que ele era otimista. A obra de Comte é ao mesmo tempo: uma Sociologia Histórica,
uma Sociologia da Ciência, uma Sociologia da Religião, uma Sociologia do Conhecimento,
uma Biologia do Conhecimento, uma Epistemologia Histórica e, sem exaurir suas
imbricações, uma Pedagogia Histórico-Comparativa. Para os temas que estamos
discutindo, Comte tinha perfeita clareza a respeito de que o Positivismo só
poderia ter surgido na Europa posterior à Revolução Francesa e posterior a
estudos mínimos da anátomo-fisiologia cerebral: somente aquele ambiente,
gozando de um acúmulo específico de conhecimentos científicos sobre o cérebro
humano, caracterizado por um impulso sociopolítico específico para a reforma
social radical e com um conhecimento amplo da sua própria história e também de
inúmeras outras sociedades, é que poderia produzir uma concepção positiva sobre
o altruísmo e sobre a história.
Sem ter ilusões quanto à
inexistência e à inocorrência de conflitos sociais mais ou menos sérios, Comte
era otimista a respeito do futuro da Humanidade, pois percebia o
desenvolvimento dos pendores altruístas do ser humano. É neste ponto que a
ligação entre altruísmo e otimismo torna-se mais evidente: ao levar-se
seriamente em consideração o altruísmo, o otimismo é uma conseqüência lógica;
inversamente, para que se possa ser otimista com seriedade, é necessário
levar-se em consideração o altruísmo e o seu desenvolvimento. Além disso, todos
precisamos de uma concepção qualquer da realidade social: ao idealizarmos o
futuro, ou consideramos o altruísmo ou não o consideramos; caso consideremo-lo,
temos que o considerar atuando, isto é, desenvolvendo-se – e, nesse caso, é
necessário o otimismo.
A relação entre realismo e
altruísmo (e otimismo) vem ao caso. Indicamos antes que se considera de modo
geral que as teorias chamadas de “realistas” são aquelas que postulam o egoísmo
e que negam o altruísmo; nesse sentido, elas são pessimistas a respeito da
natureza humana. Elas seriam “realistas” porque corresponderiam à realidade;
para elas, a realidade seria que o ser humano é egoísta, ao contrário de um ser
por assim dizer “ético”. Ora, o ser humano apresenta elementos egoístas e
altruístas e, de fato, o egoísmo é mesmo mais forte que o altruísmo: mas isso
não equivale a dizer que o altruísmo inexiste. Uma concepção plenamente
coerente consigo própria que postule o ser humano puramente egoísta seguirá em
linhas gerais a guerra de todos contra todos, defendida por Hobbes e que
lembramos acima; a partir do momento em que o estado de guerra não vige e que
se considera que existe altruísmo, as concepções teóricas que desconsideram o
altruísmo não podem ser percebidas como “realistas”.
Mais do que isso. O altruísmo
liga-se a um certo otimismo; não um otimismo desenfreado, que ignora os limites
da realidade, a existência do egoísmo e assim por diante, mas, de qualquer
forma, otimismo ainda assim, isto é, uma concepção geral positiva e simpática
da realidade e do ser humano. Sub-repticiamente incluímos na argumentação acima
o termo “violência” ao tratarmos de egoísmo e pessimismo: não são termos
equivalentes nem é uma associação necessária; todavia, as relações inversas são
mais fortes: o altruísmo (universal) liga-se a otimismo e a pacifismo. Não é
raro encontrar textos social-científicos, filosóficos, artísticos que sugerem
ou afirmam com clareza que o pacifismo é idealista e piegas e que uma
perspectiva um tanto beligerante é mais realista e moralmente mais sólida. Ou,
ainda, que o altruísmo é sinônimo de passividade ou de inocência manipulável. O
que todas essas concepções sugerem é que é melhor, mais correto, moralmente
mais acertado, socialmente mais adequado adotar-se um comportamento mais
agressivo, mais egoísta, menos simpático.
É difícil exagerar as
conseqüências sociais e políticas desse gênero de concepção, que se pode
encontrar em modelos vinculados à “escolha racional” ou nas idéias de Marx, de
Nietzsche, de Foucault, além de na de vários outros pensadores e escolas. O que
urge é valorizar teórica e politicamente o altruísmo, reabilitando o otimismo a
ele associado e eliminando o ranço moral de considerar-se o pacifismo e a
fraternidade universal metas "piegas". Uma sociedade que realmente
preze a paz e o altruísmo tem que cultivar teorias realistas e valores que
reconheçam a existência e as condições de realização da paz e do altruísmo, ao
mesmo tempo que valorize os pensadores pacifistas e altruístas. Inversamente,
não é por acaso que uma sociedade que mitifica a luta de classes e a vontade de
poder considera piegas a fraternidade universal e o altruísmo.
§ 2º – A fraca
epistemologia de Max Weber: ou a epistemologia do wishful thinking
Max Weber, como se sabe, não
gostava de tratar de epistemologia e de metodologia das Ciências Sociais;
comenta-se que ele escrevia os artigos a esse respeito com grande má vontade, apenas
quando era obrigado a isso. Ao mesmo tempo, costuma-se considerar que seus “ensaios
metodológicos” são peças intelectuais imponentes, importantes, profundamente
refletidas e que exigem grande habilidade para debater-se com elas. Parece-nos
que há mais mistificação que verdade em tais observações; na verdade,
parece-nos que há falhas profundas nesses textos –, devidas ou não à má vontade
de Weber ao escrevê-los, não sabemos –, embora os cientistas sociais não
costumem prestar atenção em tais falhas, seja por ignorância, seja por
incapacidade, seja por terem sido seduzidos pela mitificação da "imponente
erudição weberiana", seja pelo desejo de concordarem com a idéia das “Ciências
do Espírito”. Senão, vejamos.
Weber postulava, seguindo
Dilthey, que há uma diferença radical entre as áreas que estudam o que é
próprio à natureza e o que é próprio ao ser humano: umas são as “Ciências
Naturais”, que buscam “explicar” os fenômenos, por meio de esquemas causais objetivos
(leis naturais); as outras buscam “compreender” os “sentidos” subjetivos das
ações, no que ele chamava de “Ciências do Espírito”. As relações estabelecidas
pelas Ciências Naturais são “determinísticas”, ao passo que as propostas pelas “Ciências
do Espírito” são “probabilísticas”.
Além disso, o ser humano
caracteriza-se, caracterizava-se e sempre se caracterizará pela multiplicidade
de perspectivas, que nunca poderão unificar-se ou chegar a um verdadeiro
consenso: tal multiplicidade era chamada por ele de “politeísmo de valores”.
Diga-se de passagem que esse “politeísmo de valores” ele estendia até mesmo à
ciência, ao afirmar que uma verdade aceita hoje será amanhã considerada errada
e, assim, rejeitada.
Devemos começar pela divisão
entre “Ciências Naturais” e “Ciências do Espírito”. Evidentemente, Weber tinha
uma certa razão ao separar os diferentes objetos em diferentes ciências e
também ao considerar que alguns são mais próximos do ser humano (mais
subjetivas, portanto) e outros são mais distantes (mais objetivas, portanto) do
ser humano. Mas são dois os procedimentos
sucessivamente adotados aí: em um primeiro momento, cumpre perceber que
diferentes objetos resultam em diferentes ciências; em segundo momento,
diferentes ciências têm, ou podem ter, diferentes graus de proximidade
subjetiva com o ser humano.
A idéia de “diferentes objetos”
parece inicialmente simples, mas na verdade ela é bastante complicada. Um “objeto
científico” não é a mesma coisa que um “objeto natural”; quando, como sociólogo,
falo de “sociedade”, não me refiro à mesma coisa que um advogado quando fala em
“sociedade (comercial)”, por exemplo. O objetivo científico é abstrato; ele origina-se de alguma coisa
existente na realidade concreta, mas ele é somente uma idéia, existente na
cabeça do(s) cientista(s), que considera alguns atributos específicos do objeto
concreto e despreza todos os demais; os atributos específicos considerados são
como que “aperfeiçoados”, isto é, os graus de impureza, as sujeiras, as
imperfeições, os eventuais “desvios” e “falhas” são desconsiderados; a partir
de uma realidade empírica, o cientista manipula idéias, isto é, relaciona uma
idéia a outra(s), tira conseqüências e verifica se o resultado ideal
corresponde ou não à realidade. Assim, um mesmo “objeto natural” (ou, para
simplificar e evitar ambigüidades desnecessárias, um “corpo”) pode ser encarado
como diversos “objetos científicos”: o tipo e o grau de abstração que
realizamos, bem como o tipo de relação entre as idéias que estabelecemos,
define o tipo de análise científica que desenvolvemos. Um copo, por exemplo,
pode ser um objeto matemático, astronômico, físico, químico, biológico, sociológico
ou moral. Dessa forma, não é propriamente o objeto natural que determina a
ciência em questão – embora possamos conceder que isso facilite um pouco o
raciocínio e que ordinariamente todos tratemos as coisas aproximadamente dessa
maneira. Mas, para distinguirmos as ciências entre si, o que importa é o tipo
de análise desenvolvida em cada uma delas; nesse sentido, dependendo da
perspectiva, isto é, dependendo da ciência, um ser humano pode ser analisado
sob as mesmíssimas luzes que um copo de cristal ou uma baleia.
Algumas análises são mais
simples que outras: não no que se refere aos corpos, mas na quantidade de
variáveis e pressupostos implicados. De um ponto de vista matemático, por
exemplo, eu sou um indivíduo, tenho
determinada "X" altura, determinada "Y" massa, ocupo neste
exato instante determinado o lugar "Z" no espaço. Da contagem à
determinação da minha geometria houve uma complicação; se eu passar disso para
as relações – digamos, químicas – que eu estabeleço com o ambiente à minha
volta, a complicação será bem maior, pois terei que conhecer as leis gerais da
combinação da matéria (Química), das reações dos corpos uns sobre os outros
(Astronomia e Física) e, claro, terei que realizar cálculos mais refinados
(Matemática), sem contar que talvez precise saber quais as trocas gasosas
ocorridas no interior do meu corpo (Bioquímica). Assim, parece claro que se
pode entender as ciências de acordo com contínuos de crescimento de
complicação, ou seja, de aumento de variáveis envolvidas: cada ciência possui
suas leis próprias, mas pressupõe também as leis das ciências mais simples.
A análise científica é um
processo subjetivo. Os corpos, isto é, os “objetos naturais”, existem
naturalmente, objetivamente: o copo está na mesa à minha frente, eu estou
sentado na cadeira em frente à mesa, a baleia do exemplo acima está no Oceano
Atlântico etc. Mas para estudarmos cientificamente, como objetos científicos
cada um desses corpos – e, como é fácil perceber, qualquer outro corpo
existente no universo –, temos que abstrair, temos que pensar, temos que
imaginar. As idéias são criadas; elas existem na cabeça de cada ser humano, mas
não surgem sozinhas: elas desenvolvem-se historicamente, de acordo com as
condições sociais de cada grupo e indivíduo.
Perceba-se: as ciências ditas
naturais têm elementos “subjetivos” tanto quanto elementos “objetivos”. Os seus
elementos “objetivos” sãos os corpos que dão origem aos seus objetos teóricos;
mas, a partir do momento em que se constituem os objetos teóricos, a
subjetividade entra em ação, pois os objetos teóricos existem apenas em termos
subjetivos, apenas em termos ideais. Além disso, a forma como os objetos serão
entendidos – ou seja, quais as propriedades que se deve atribuir-lhes, quais as
conseqüências que se deve esperar deles, quais as relações possíveis etc. – é
um procedimento parcialmente subjetivo, parcialmente objetivo: parcialmente
objetivo porque várias das propriedades concretas das coisas são observáveis
empiricamente e os objetos teóricos têm que os levar em consideração de alguma
forma e em alguma medida; parcialmente subjetivo porque cabe a cada
pesquisador, a cada comunidade de cientistas, a cada sociedade imaginar os
modelos, suas propriedades e conseqüências, ou seja, cabe-lhes interpretar.
Dissemos há pouco que as
ciências, isto é, as idéias que se tem a respeito da realidade mudam
historicamente. Isso significa duas coisas: por um lado, que com o passar do
tempo as teorias científicas modificam-se; por outro lado, que com o passar do
tempo novos campos científicos surgem. Qualquer que seja a teoria adotada a
respeito de qualquer objeto, o procedimento geral será sempre o mesmo:
abstração, manipulação, prova empírica etc.; a abstração, a manipulação, a
proposição de novas idéias etc. será sempre subjetiva, sujeita à interpretação
individual e coletiva: não importa se o objeto natural é uma sociedade humana,
um grande líder, um átomo de hidrogênio ou uma cadela vira-lata.
O que observamos até aqui serviu,
por um lado, para indicar a metodologia geral das ciências: não indicamos
nenhum procedimento específico a nenhuma ciência, nem apregoamos nenhuma
fórmula a que a ciência deve aferrar-se, mas também procuramos não deixar de
lado nenhum traço básico da ciência. Por outro lado, insistimos na idéia de que
os procedimentos para estudar-se a realidade “natural” e a realidade “humana”
são muitas vezes próximos entre si.
Feitas essas considerações
preliminares, podemos passar diretamente à discussão das idéias de Weber.
Max Weber propunha a radical
separação entre as “Ciências Naturais” e as “Ciências do Espírito”, baseado na
concepção de que os objetos seriam diferentes e, portanto, os procedimentos
deveriam ser diferentes. Por “Ciências Naturais” ele entendia a Matemática, a
Astronomia, a Física, a Química, a Biologia e o sem-número de técnicas e
estudos empíricos e eruditos rigorosos, como a Medicina, a Geologia etc.; as “Ciências
do Espírito” seriam a Sociologia, a Psicologia, a Teologia, a Jurisprudência e
disciplinas semelhantes. Os objetos seriam diferentes porque, em um caso,
pertenceriam à “natureza” e, no outro caso, pertenceriam ao “ser humano”; como lembramos
antes, os métodos seriam diferentes, um buscando “explicar” e o outro, “compreender”.
A divisão entre “Ciências
Naturais” e “Ciências do Espírito” é profundamente arbitrária, irracional e sem
sentido. Em primeiro lugar, ela baseia-se em uma confusão entre os objetos
naturais e os objetos teóricos, ou seja, ela não distingue o que é concreto do
que é abstrato e, a partir disso, estabelece uma separação rígida entre os
objetos naturais: a Matemática e a Física seriam Ciências Naturais porque
tratam dos copos, das canetas, das árvores; a Sociologia seria uma "Ciência
do Espírito" porque trata do ser humano. Em segundo lugar, as “Ciências do
Espírito” incluem disciplinas universitárias que apenas de um ponto de vista
institucional – ou seja, puramente formal – podem ser entendidas como
"ciências", como é o caso da Teologia, que por definição não pode ser
enquadrada como “ciência”, isto é, como conhecimento abstrato e comprovável das
relações entre aquilo que existe: a Teologia é, na melhor das hipóteses, pura
especulação arbitrária, variável de acordo com tradições culturais locais e com
inspirações individuais. Em terceiro lugar, as “Ciências do Espírito” querem
advogar para si um método exclusivo, a “compreensão” (ou “interpretação”),
relegando para as “Ciências Naturais” outro método exclusivo, a “explicação”:
como vimos, isso é sem sentido, pois as explicações das Ciências Naturais
requerem tanta “compreensão” ou “interpretação” quanto as “Ciências do
Espírito”.
Em quarto lugar, a separação entre as “Ciências do Espírito” e as “Ciências
Naturais” é tão radical que introduz um abismo separando o ser humano dos
demais seres vivos, em particular os mamíferos superiores (e mesmo muitas
aves): haveria uma radical solução de continuidade entre o ser humano e todo o
resto do planeta Terra, o que é profundamente falso: as “Ciências do Espírito”
postulam, implícita ou explicitamente, que a inteligência e os sentimentos são
exclusivos do ser humano, o que qualquer pessoa que tenha um bicho de estimação
sabe ser uma arrematada bobagem.
Na verdade, bem vistas as
coisas, com a distinção entre “Ciências do Espírito” e “Ciências Naturais”
Weber e Dilthey procuraram dar uma resposta alemã – desesperada, sem dúvida –
ao progresso das ciências ocorrido nos países europeus mais desenvolvidos à sua
época, nomeadamente a França e a Inglaterra. Essa resposta alemã retomava a
antiga tradição dicotômica de tradição germânica entre Kultur e Zivilitation,
isto é, entre as coisas do “espírito” e as coisas “materiais”. Norbert Elias,
em O processo civilizador, traça o
que chamou de “sociogênese” de tais categorias, contrapostas às francesas culture e civilisation; o que se evidencia é que, ao longo dos séculos XVI,
XVII, XVIII e grande parte do XIX, enquanto a França era um país crescentemente
homogêneo, centralizado, em que a unidade territorial e política era
acompanhada por uma certa unidade cultural e lingüística, não havia “Alemanha”,
mas apenas “países germânicos”, caracterizados por uma fortíssima dispersão
religiosa e política (quando não pela disputa militar "intestina"):
só era possível falar em “Alemanha” de um ponto de vista estritamente
lingüístico. Assim, enquanto na França os aspectos materiais e espirituais de
sua sociedade andavam de mãos dadas, nos países germanófonos eles
dissociavam-se; apenas a vida do espírito, apenas os elementos mais idealizados
eram passíveis de alguma unidade. Em uma reedição do platonismo, a vida do espírito
seria superior: a Kultur; os aspectos
materiais da sociedade seriam menos importantes ou, quem sabe, vis: a Zivilitation. A
essa dicotomia corresponde a dicotomia “Ciências do Espírito”-“Ciências
Naturais”: aplicar os mesmos critérios das Ciências Naturais às “Ciências do
Espírito”, acima de tudo, é desvalorizar e macular o que é “ideal”, o que é
superior. O que se evidencia dessa contraposição é que o “espírito” claramente
é uma entidade metafísica; é o “sopro” que “preenche” o “corpo”, é a “alma” que
anima a “matéria”.
Ora, sem dúvida alguma que entre
as Ciências Naturais e as Ciências Sociais há diferenças de objeto e, portanto,
devem existir diferenças de método. Essa observação é trivial: no âmbito das Ciências
Naturais, por exemplo, qualquer pesquisador admitirá com a maior tranqüilidade
que a Física e a Biologia adotam procedimentos específicos distintos, em
virtude de suas diferenças concretas. Mas em termos gerais há uma lógica
subjacente à Física e à Química, assim como a todas as Ciências Naturais – e
também às Ciências Sociais –: como indicamos antes, o processo de abstração,
que permite que se distinga o objeto científico do objeto natural; a
investigação de determinadas propriedades abstratas; o relacionamento entre
essas propriedades; a dedução de novas propriedades. Esses procedimentos
descritos acima são empíricos, isto é, históricos: em outras palavras, eles
foram constituídos historicamente, ao longo do tempo, por meio de tentativas e
erros e da reflexão sistemática dos resultados e dos procedimentos adotados.
Inversamente, a distinção entre Ciências Naturais e “Ciências do Espírito” não
é histórica nem é empírica: ela é idealista e completamente apriorística. Ou
melhor, até é possível aceitar-se seu caráter histórico, no sentido de que é
possível contextualizá-la historicamente; mas, como vimos há pouco, ela foi
estabelecida por pensadores do mundo germanófono, como reflexo e como reação à
sua condição sócio-política, a fim de valorizarem-se como pensadores que se
viam isolados política e economicamente, e não como o resultado de uma reflexão
mais sistemática sobre o conjunto da produção científica.
Diferentes objetos científicos
requerem diferentes métodos de pesquisa e sugerem diferentes ciências: o ser
humano considerado em sociedade e, a partir daí, individualmente sugere as
“Ciências Humanas”. Para fins da presente argumentação, fiquemos com as
Ciências Sociais, isto é, com o ser humano tomado coletivamenteHu.
Costuma-se argumentar que as
metodologias que não são as próximas às “Ciências do Espírito” são
“cientificistas” ou “naturalizantes”. Convém esclarecermos esse ponto desde já.
Qualquer metodologia ou filosofia que
rejeite explicações sobrenaturais – sejam elas teológicas, sejam elas
metafísicas – será “naturalista”: “natural”, nesse caso, contrapõe-se a
“sobrenatural”. Entretanto, com intenções polêmicas, os cultores das “Ciências
do Espírito” afirmam que seus adversários são “cientifistas” ou “naturalistas”:
com isso querem dar a entender que seus oponentes querem reduzir, ou reduzem de
fato, o ser humano a coisas, a meros objetos, sem subjetividade. Não se repete
com enorme freqüência a famosa regra de Durkheim, “Tratar os fatos sociais como
coisas”?
Esse tipo de comentário é
especioso e, no fundo, falacioso. Vimos há pouco que, por um lado, os cultores
das “Ciências do Espírito” têm sérios problemas com a cientificidade: não
distinguem o concreto do abstrato, não distinguem o objeto natural do objeto
científico, as disciplinas incluídas em sua rubrica são um apanhado incoerente
e irracional teórica e metodologicamente e seu conceito básico ("espírito")
é pura metafísica. Mas, por outro lado, importa saber se de fato as “Ciências
do Espírito” detêm ou não o monopólio do tratamento “humano” das Ciências Humanas
e Sociais.
Antes de seguirmos adiante com a
argumentação, devemos esclarecer a perspectiva que adotaremos: será a do
Positivismo, ou seja, a vinculada à obra de Augusto Comte. Bem vistas as
coisas, essa perspectiva subjaz ao presente texto desde o seu início, mas neste
ponto convém explicitá-lo por pelo menos dois motivos. Por um lado, julgamos
que o gênero de reflexão que desenvolveremos não é isolável de alguma filosofia
da ciência específica; mas, principalmente, porque, por outro lado, temos
clareza de que, mesmo as acusações
feitas pelas “Ciências do Espírito” contra as Ciências Sociais sendo
incorretas, há de fato algumas filosofias da ciência e algumas filosofias das Ciências
Humanas que podem efetivamente ser denominadas de “cientificistas”.
Vimos acima que não é necessário
recorrer-se às “Ciências do Espírito” para que se constituam ciências
especificamente sobre os fatos do ser humano: o que é necessário é que haja
objetos científicos específicos e metodologias adequadas ao seu estudo. Como o
ser humano não tem acesso ao absoluto, a ciência busca apenas o relativo: mais
especificamente, busca as relações constantes entre os fenômenos abstratos (as
“leis naturais”); essas relações podem ser de sucessão ou de coexistência. As
relações podem ser determinadas por meio da observação dos “fatos” humanos,
isto é, das diversas interações humanas; conforme as reflexões comtianas, essas
observações podem ocorrer por meio de três grandes procedimentos básicos: a
observação direta, a comparação e, em particular, a investigação histórica, que
é a específica à realidade humana.
O verbo “observar”, aqui, não
deve ser entendido de maneira ingênua; não se trata, como a crítica
profissionalizou-se em repetir, que é apenas passar os olhos e/ou coletar
“dados” ou “fatos” “puros” para daí fazer generalizações empíricas: Comte
estabelece desde o início uma refinada teoria do conhecimento (ao mesmo tempo
histórica, sociológica e neurológica) que estabelece que só podemos investigar
a realidade dispondo de uma descrição preliminar dessa mesma realidade,
indicando quais são os elementos e as relações importantes.
Os três procedimentos de
observação sociológica oferecem cada um suas vantagens e desvantagens, tanto
operacionais quanto teóricas, mas é a pesquisa histórica a mais importante. Ela
combina a observação dos seres humanos com a possibilidade de comparação dos
grupos sociais ao longo do tempo (e, claro: dispondo-se de várias histórias
locais, é possível compará-las também em função do espaço); ela indica quais
são os traços da natureza humana, quais são as suas possibilidades de
combinação e quais as suas possibilidades de desenvolvimento – aliás, os
resultados das pesquisas sobre a natureza humana referem-se aos seres humanos
tomados individual e coletivamente
–; por fim, ela evidencia o traço que distingue o ser humano dos demais seres,
a sua historicidade, ou seja, a influência cumulativa das gerações passadas
sobre as presentes e as gerações futuras.
De modo mais específico, Comte
determinou três grandes relações de sucessão histórica, que consistem em três “leis
dos três estados”: uma para a inteligência, uma para a atividade prática, uma
para os sentimentos sociais. A da inteligência é a mais famosa e estabelece que
as concepções quaisquer atravessam três fases sucessivas: teológica, metafísica
e positiva. Essa lei é complementada pela classificação das ciências (ou seja,
dos grandes conjuntos de conhecimentos de relações abstratas): quanto mais
geral e simples o conhecimento em questão, mais rapidamente ele tornar-se-á
positivo; inversamente, quanto mais específico e mais complexo, mais demorará
para alcançar a positividade. Daí a chamada “escala enciclopédica”, com as sete
ciências: Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia e
Moral.
A lei dos três estados da
atividade prática estabelece que, ao longo dos séculos, uma civilização
desenvolve inicialmente uma atividade militar conquistadora; em seguida, uma
atividade militar de defesa; por fim, a atividade torna-se industrial e
pacífica. Já a lei dos três estados dos sentimentos sociais postula que os
seres humanos – mais uma vez: ao longo dos séculos – organizam-se em sociedades
cujos escopos são inicialmente familiares; depois se ampliam para as pátrias;
por fim tomam por meta a Humanidade como um todo.
Embora haja correspondências
lógicas, teóricas e práticas entre cada uma dessas três leis, seus ritmos são
diferenciados e, claro, dependem dos contextos específicos das várias
sociedades e civilizações, o que amplia bastante as combinações possíveis. Além
disso, elas não são “lineares”, no sentido de que recuos relativos sejam
impossíveis: elas indicam tendências
gerais, a partir da interação do ser humano com o ambiente que cria e em
que vive.
Essas três leis são relações de
sucessão; embora a idéia de maior
ou menor velocidade sugira uma possível medição quantitativa, no fundo elas são
qualitativas: “teologia”,
“metafísica”, “positividade”; “atividade militar conquistadora”, “atividade
militar defensiva”, “atividade pacífico-industrial”; “sociabilidade familista”,
“sociabilidade pátria”, “sociabilidade universal”: essas três trincas são
qualidades, são categorias que se relacionam entre si mas que são irredutíveis
umas às outras e que são irredutíveis à forma numérica. Aliás, por que são
“irredutíveis à forma numérica”? Porque elas desenvolvem-se em função da
capacidade humana de reflexão, de compreensão de seu ambiente (social e
natural), do estímulo sofrido pelos interesses, pelas paixões e pelos
sentimentos.
Concebidas as Ciências Sociais e
a história dessa forma, a busca de relações de sucessão ou de coexistência fica
longe de ser “objetivista”, “cientificista”, “naturalista”, “quantitativista”
ou destituída de “reflexividade”; como nota o próprio Comte, bem vistas as
coisas, a identidade entre objeto de estudo e sujeito do conhecimento concede
ao pesquisador uma perspectiva privilegiada de análise e de... compreensão. A
possibilidade de os analistas poderem experimentar sentimentos e idéias
análogos em situações semelhantes aos vividos por outros seres humanos fornece provas
adicionais às elaboradas racionalmente nas investigações sociológicas.
Na verdade, ao longo de sua
carreira Comte desenvolveu cada vez mais a perspectiva subjetivante. Para ele,
o ser humano naturalmente percebe a realidade de um ponto de vista subjetivo, o
que equivale a dizer que as primeiras representações feitas pelo ser humano são
necessariamente antropomórficas. Para evitar esse viés excessivamente subjetivo
e, em particular, absoluto, a perspectiva objetivante é necessária: daí o
desenvolvimento das Ciências Naturais, que deve avançar, é claro, o domínio da
realidade humana.
A realidade humana é a mais importante; sem dúvida alguma que conhecer
Matemática é interessante, por vezes divertido e muitas vezes útil; o mesmo
pode ser dito a respeito da Química, da Biologia, da Astronomia, da Física: mas
todas essas ciências têm alguma relevância somente se estiverem subordinadas ao
ser humano, isto é, às preocupações humanas, à concepção de ser humano. As Ciências
Naturais, assim, desenvolvem diversos atributos lógicos e teóricos: concepções
de ordem, de progresso, de dedução, de indução etc.; elas também ensinam o ser
humano a controlar o excesso de subjetividade em sua relação ao mundo – por
exemplo, impondo-nos a concepção simples, mas decisiva, de que existe uma ordem
exterior a nós mesmos, a que temos que nos submeter caso queiramos sobreviver e
caso queiramos modificá-la. As mesmas idéias de uma ordem externa ao ser humano
e de leis naturais são aplicáveis no âmbito das Ciências Humanas: mas nesses
domínios, como indicamos, uma vez a subjetividade disciplinada – sendo mais
precisos: tornada relativa –, ela
pode atuar de volta não apenas nas próprias Ciências Humanas, como também nas Ciências
Naturais e nos demais domínios da realidade humana (artes, política, indústria,
vida cotidiana); esse uso ampliado e generalizado da subjetividade relativa é o
que Augusto Comte chama de “método subjetivo”. No caso específico das ciências,
o método subjetivo consiste na proposição de novas hipóteses, novas imagens
para raciocínio e em critérios gerais para disciplina das pesquisas.
Uma outra acusação assaz comum
feita pelas “Ciências do Espírito” às Ciências Sociais é a idéia do
“determinismo” supostamente subjacente à concepção de “leis naturais”. Essa
acusação também é sofística, mas de modo geral se baseia em desconhecimento das
concepções de leis naturais próprias às várias ciências, igualando a Sociologia e a Moral à Matemática e à Física.
A escala enciclopédica
estabelece-se a partir de dois critérios: complexidade crescente e generalidade
decrescente. Cada “degrau” adicional
acrescenta um pouco de complexidade, ou seja, pressupõe as relações abstratas
prévias, a que se subordina, mas acrescenta suas próprias novas relações
abstratas, que são irredutíveis às anteriores. Assim, na epistemologia
comtiana, subordinação não implica
redução: "subordinação" quer dizer pressuposição de relações
logicamente anteriores, que estabelecem limites e condições para as relações
posteriores (ou “superiores”, ou “mais nobres”, como ele dizia). A Sociologia
pressupõe a Biologia: o ser humano só pode viver em sociedade, isto é, só pode
viver historicamente, se for um ser vivo, ou seja, se seguir as leis da vida.
Disso se deduz que a Sociologia é uma Biologia diferente? Não, pois as
interações que o ser humano estabelece não são redutíveis à Biologia, como as
produções culturais facilmente comprovam. Voltando ao tema do aumento da
complexidade: a Sociologia pressupõe cinco níveis prévios de complexidade, a
que acrescenta o seu próprio. Isso quer dizer que as possibilidades de
combinações aumentam exponencialmente, ou seja, as variáveis implicadas no
estudo das sociedades são inúmeras.
A Matemática, a partir de
estudos empíricos, elaborou suas fórmulas e relações; a despeito disso, em
certo sentido elas são puramente intelectuais. A Astronomia, ao desenvolver
suas leis, observou a regularidade dos astros e, desprezando algumas irregularidades, chegou às leis da Mecânica
Celeste. A
Física, da mesma forma, ao abstrair, tem que desconsiderar vários outros
elementos e imperfeições da realidade e, inversamente, tem que pressupor uma
série de condições para que suas generalizações sejam válidas: o mesmo
acontece, em maior grau, isto é, com maior intensidade, na Química e, ainda
mais, na Biologia. Por que seria diferente, mutatis
mutandis, na Sociologia?
Tais observações foram feitas
pelo próprio Augusto Comte. O aumento de complexidade à medida que se avança na
escala enciclopédica significa, então, o aumento de pressupostos e de
idealização, assim como a maior possibilidade da distância efetiva entre o que
é teorizado e a realidade experimentada (ou “observada”). Isso quer dizer que a
teoria é "errada"? Não; quer dizer apenas que a teoria é...
“teórica”, isto é, que ela é um construto mental para apreendermos as múltiplas
relações que se dão na realidade. As previsões científicas, nesse sentido, são
antecipações tentativas, são apalpadelas que sucessivamente elaboramos, de modo
a melhorar o mais possível, considerando as necessidades intelectuais e
práticas do ser humano, os construtos intelectuais e a realidade experimentada.
Augusto Comte não levava a sério
o chamado “determinismo científico”, pois literalmente ele nivela por baixo
todas as ciências, ignorando as particularidades epistemológicas de cada uma,
bem como o papel desempenhado pela ciência na economia geral do ser humano. Em
vez de “determinismo científico”, Augusto Comte usava a expressão muito mais
operacional de “fatalidades modificáveis” – expressão que conjuga a
variabilidade superior das ciências à medida que se avança na escala
enciclopédica com a derivada capacidade humana de intervenção na realidade.
Do ponto de vista intelectual,
ele propunha que se “concebam como invariáveis as relações observadas”: a
palavra-chave aí é “conceber”, que denota entender de maneira conscientemente
provisória as relações observadas; para evitar fragilidades intelectuais, para
que as relações tenham sentido, elas devem ser entendidas – ou melhor: concebidas – como invariáveis. Mais uma vez: o construto mental deve estabelecer
relações invariáveis, mas devemos ter clareza de que o construto pode ter que
ser modificado em função da experiência concreta.
As observações acima põem por
terra a acusação usual de que o Positivismo é “determinista”, que deseja descobrir
relações tão automáticas quanto as da Física ou da Matemática – ou melhor, que
deseja estabelecer automatismos sociais. Mas podemos ir além: as observações
acima nos permitem perceber como são tolas as propostas weberianas de que a “Sociologia
Compreensiva” é “probabilística” e baseada em “tipos ideais”. Tanto o
probabilismo quanto os tipos ideais de Weber baseiam-se em confusões a respeito
do papel das abstrações e da epistemologia das Ciências Sociais. Weber definia
os tipos ideais como a abstração de certos aspectos da realidade, em que
determinados traços eram exagerados e outros eram diminuídos; um tipo ideal não
seria “certo” ou “errado”, mas apenas mais ou menos “útil”. Ora, como vimos, a
abstração da realidade, com o isolamento de determinadas características e o
exagero de outras, corresponde pura e simplesmente ao processo de elaboração
dos objetos científicos, que é um procedimento utilizado por... qualquer ciência. Por outro lado, a
alegação de que os tipos ideais são mais ou menos “úteis” e que não faz sentido
criticá-los pela ausência de “realidade” é ao mesmo tempo uma platitude e uma
tolice: é uma platitude porque o objeto científico é de fato um exagero de
determinados aspectos da realidade cuja função é ser intelectualmente útil,
isto é, operacional; é uma tolice porque, se não é um "reflexo" da
realidade, nem por isso o conceito abstrato pode ser desvinculado da própria
realidade, ou seja, tem que guardar pelo menos alguma relação com a realidade
que substitui intelectualmente.
Quanto ao “probabilismo” de
Weber, ele só tem alguma relevância quando contraposto ao alegado
“determinismo” de outras sociologias: mas se não faz sentido falar-se em
“determinismo” na Sociologia, igualmente não faz sentido algum falar-se em “probabilismo”.
O conjunto das observações acima
servem para pelo menos dois objetivos: por um lado, para desmistificar a
pretensa superioridade da Sociologia weberiana, calcada nas “Ciências do
Espírito”, como paradigma de pesquisa histórico-social; por outro lado, para
evidenciar o quanto a Sociologia e a epistemologia das Ciências Sociais de
Comte é negligenciada e desvalorizada. Nenhum desses dois objetivos é
secundário ou de pequena monta: afinal, é voz corrente nas academias que Weber
teria elaborado uma Sociologia com uma epistemologia específica para as
Ciências Sociais, irredutível às Ciências Naturais, da mesma forma como é voz
corrente que, para entender-se Comte, basta igualar sua Sociologia às Ciências
Naturais. Ainda mais: mesmo artigos polêmicos, que buscam pôr em questão tais
sensos comuns, são assustadoramente rápidos na explicação das epistemologias
verdadeiramente científicas, embora estendam-se longamente a respeito das
“Ciências do Espírito”: como se a metafísica das “Ciências do Espírito” fosse
de fato consciente de si própria e como se ela permitisse que o ser humano seja
estudado e entendido. Como vimos, isso é um grande equívoco, difundido e
mantido com grande sucesso há muito tempo.
Anexo
Reproduzimos abaixo as leis da
"Filosofia Primeira", que correspondem à Epistemologia comtiana.