Vários anos atrás - em 2005, para ser mais preciso -, após ter estudado as relações ocorridas entre Brasil e Estados Unidos ao longo dos séculos XIX e XX e, portanto, após ter estudado a atuação internacional dos EUA, decidi redigir um pequeno texto sobre as percepções havidas sobre esse país.
Minhas reflexões foram publicadas na extinta revista eletrônica Autor (São Paulo, v. 5,
n. 50, 2005). Como foi escrito há mais de dez anos, é natural que uma coisa ou outra fosse alterada, caso escrito hoje (fevereiro de 2016), tanto em termos de estilo quanto de conteúdo.
Ainda assim, ele mantém-se atual em sua maior parte, se não em sua totalidade; dessa forma, creio que vale a pena publicar novamente estes meus comentários, que trago a público neste blogue sem alterações (exceto no que se refere ao meu currículo acadêmico, presente na nota n. 1, abaixo).
* * *
Problemas de (má) percepção e de valores a respeito
dos Estados Unidos no mundo
Gustavo Biscaia de Lacerda
I. INTRODUÇÃO
Falar sobre os Estados Unidos
atualmente é despertar paixões. Na verdade, desde há um bom tempo – talvez
desde finais do século XIX, no caso do Brasil – esse tema é apaixonante e o
debate, na medida em que há algum, é apaixonado. Há assuntos que provocam vivas
reações de maneira “unívoca”: as pesquisas com células-tronco, nos dias atuais,
seriam um exemplo disso, pois a clivagem entre favoráveis e contrários
baseia-se em questões de pesquisa médica (favoráveis) ou em um certo respeito à
vida (contrários); além disso, as discussões não são passíveis de outras
posições que não as favoráveis e as contrárias.
Relativamente aos Estados
Unidos, a situação é diversa, pois as clivagens são inúmeras, assim como as
posições e mesmo os graus em que cada posição é possível. Alguém pode
radicalmente ser favorável a eles porque os considera a terra da liberdade ou o
bastião do anticomunismo ou a terra do individualismo ou mesmo porque o
idealismo (e as versões religiosas originárias desse traço de comportamento, o
moralismo e
o messianismo) sempre teve grande importância em sua vida, interna ou externa.
Quem é contrário a esse país pode sê-lo pelos mesmos motivos porque alguém lhe
é favorável, isto é, porque lá há a prevalência do material no lugar do
espiritual, porque lá se é individualista em detrimento do coletivismo ou de um
“socialismo” ou porque lá a religião assume importância exagerada na vida social
e política. É claro que há quem os condene por serem a única superpotência
mundial, adotando as condutas adequadas à manutenção de tal condição, ou por
adotarem um comportamento mais prepotente, desconsiderando fóruns multilaterais
em função da certeza própria aos iluminados. Por fim, há a possibilidade de
fórmulas intermediárias, em termos substantivos (“isto é bom, aquilo é ruim”) e
em termos metodológicos (“prefiro registrar os fatos”). Os métodos analíticos
também variam: há quem prefira uma abordagem estruturalista, outros preferem o
materialismo, outros são mais simpáticos a um certo “conjunturalismo” e assim
por diante.
O que comentei é o óbvio,
mais ou menos sabido por todos. Todavia, em diversas ocasiões é necessário
dizer-se o óbvio para poder-se ir adiante – e o “ir adiante” no presente caso
significa apresentar algumas questões relacionadas aos Estados Unidos com um
mínimo de independência, sem constrangimentos político-“ideológicos”. Ou
melhor: não tanto ao país em si como em relação à percepção que dele vários
têm.
Os Estados Unidos despertam
paixões. As paixões, em si, não nos interessam nem são propriamente
problemáticas: todos sabemos como a política (e a própria vida) é feita de
paixões, algumas maiores, outras menores. O que é problemático no presente caso
é que as paixões relativas aos Estados Unidos, muitas justificadas, outras nem
tanto, freqüentemente atrapalham análises minimamente cuidadosas de sua posição
no mundo, seja a favor, seja contra. Na verdade, indo diretamente ao ponto, o
fato é que a quantidade de bobagens que se repete a respeito dos Estados Unidos
é enorme e, na maioria das vezes, ao invés de buscar-se um conhecimento
positivo a respeito da realidade desse país, repete-se esse pseudoconhecimento,
considerado correto porque legitimado pelos preconceitos políticos correntes,
de direita ou, mais facilmente, de esquerda.
II. DOIS AUTORES FALAM DOS
EUA: ARON E HOBSBAWM
Uma comparação entre
abordagens pode ilustrar com clareza meu ponto. Por motivos específicos li
recentemente dois livros de história do século XX, um escrito no já distante
ano de 1973, de Raymond Aron (1975): A
república imperial – os Estados Unidos no pós-guerra (1945-1970); o outro
de Eric Hobsbawm (1999), escrito em 1993: A
Era dos Extremos – o breve século XX (1914-1991). A posição de Aron a
respeito era muito clara ao notar que a potência tem um projeto de poder e
adota os meios considerados em cada momento adequados à consecução de seus
objetivos – e também sem deixar de notar que, no contexto da Guerra Fria,
tendo que escolher entre o comunismo e as democracias liberais, a opção era
clara: a aceitação da liderança norte-americana era a única opção crível –,
considerando, de qualquer forma, que a história humana, em que pesem as
mudanças por que passa cada sociedade, é muito a disputa entre os homens por
poder, honra e glória (como diriam Maquiavel e Hobbes).
Aron era um francês que
não escondia sua viva antipatia pelo comunismo e pelo perigo que a União
Soviética representava para a Europa e que, ao mesmo tempo, percebia nos
Estados Unidos inúmeros valores respeitáveis e outros tantos condenáveis ou
desprezíveis; em outras palavras, reconhecendo a natureza humana e a natureza
das relações internacionais, fazia sua escolha, sem deixar de indicar as condutas
francamente condenáveis da parte dos Estados Unidos – mas também sem fazer a
apologia desses mesmos comportamentos.
A questão aqui, portanto, é notar que
Aron apresentava a atuação norte-americana no mundo, tendo claro que vários de
seus comportamentos eram – como são – condenáveis, ao mesmo tempo em que outros
tantos não o eram (como não o são); além disso, entre duas potências que
adota(va)m comportamentos semelhantes – devido ao simples fato de serem
potências –, o autor preferia aquela que defendia valores mais próximos aos
seus próprios, sem ingenuidades. A questão, assim, era: sem ingenuidades em
relação aos norte-americanos nem em relação à (então existente) União
Soviética, qual das duas potências é a preferível, qual é a que perfilha
valores mais próximos aos nossos? A resposta a essa pergunta por certo que
influenciou o livro, mas parece-me que o tipo de raciocínio dessa pergunta era
o que constituía o fundamento metodológico do livro e, portanto, a postura
intelectual do autor.
Hobsbawm, ao contrário,
põe-se em uma posição claramente contrária aos Estados Unidos; lendo, por
exemplo, o capítulo 8 de seu livro (“Guerra Fria”), claramente o autor
considera os Estados Unidos os causadores da Guerra Fria e os beligerantes que
insistiam em opor-se à União Soviética mesmo quando não eram provocados (e
jamais teriam sido provocados!) por uma União Soviética que, acima de tudo, era
pacífica e desejava a paz e a calma para construção de seu “socialismo em um só
país”.
O contraste entre ambos os
autores não poderia ser maior. Aceitando a sinceridade dos formuladores da
política externa dos Estados Unidos, percebe em suas ações hesitações e
dúvidas, contradições e tensões – e, também, hipocrisia – Aron reconhecia a
diversidade de sistemas sociais e políticos, a diversidade de interesses e
histórias mas afirmava, subjacente à exposição, a importância de um defensor da
Europa e dos valores europeus (comungados, em maior ou menor proporção, pelos
Estados Unidos). Poder-se-ia dizer que ele defendia os Estados Unidos porque
era favorável ao capitalismo, mas tal afirmação não faria sentido para um
intelectual do tipo de Aron, que não tinha uma posição simples (ou simplista) a
respeito de tais temas. Hobsbawm, ao contrário, é muito claro em seus juízos
sobre os Estados Unidos e a União Soviética mas não evidencia suas preferências
filosóficas primeiras: rejeição do capitalismo (e do Estado que o representa,
defende e fomenta), simpatia pela União Soviética (que o fez suavizar notável e
espantosamente o autoritarismo soviético posterior a Stálin) e adesão ao
marxismo, isto é, ao materialismo histórico, à luta de classes e aos interesses
inconciliáveis que influenciam (quando não deformam) o conhecimento conforme a
classe social de quem fala.
Nada disso é novidade para nenhum
leitor mas, como diria Nelson Rodrigues, esse é o óbvio ululante: ninguém o vê
– ou ninguém se “lembra” de vê-lo. À parte as condições do mercado editorial
brasileiro, as referências editoriais de ambos os livros servem como um índice
precioso desse “esquecimento ululante”: enquanto o livro de Aron – que é
extremamente informativo, muito mais que opinativo – teve apenas uma edição em
1975, o livro de Hobsbawm já está pelo menos na décima edição, menos de dez
anos após seus lançamento no Brasil. Não é à toa que o discurso sobre os
Estados Unidos pode ser tão enviesado...
III. PROBLEMAS DE (MÁ)
PERCEPÇÃO E DE VALORES
Abstraindo o debate,
parece-me que as dificuldades para falar de (ou, antes, para pensar) os EUA
residem em três ou quatro pontos principais. Em primeiro lugar, sua atuação não
é unívoca. Eles têm um projeto nacional, que é mais ou menos seguido; após a II
Guerra Mundial, podendo escolher entre manterem-se dominantes no mundo ou
recolherem-se em seu isolacionismo prévio, preferiram a atuação global, em uma
posição em que se mantêm até os dias atuais e cada vez mais, adotando as
medidas que, certas ou erradas, são conforme o projeto que fazem para si e para
o mundo. Em segundo lugar, sua atuação é diferente conforme a área geográfica a
que se refere: por exemplo, o isolacionismo por eles praticado após a I Guerra
Mundial referia-se à Europa, mas de maneira alguma à América Latina, onde,
desde o início do século XX até princípios dos anos 1930, um grande ciclo de
intervencionismo militar e econômico teve lugar.
Em terceiro lugar, o juízo
que deles fazemos é marcado pela política atual, isto é, mesmo não sendo
possível julgar a política desenvolvida por um país sem se recuar no tempo para
considerar também os movimentos anteriores, julga-se o antes pelo atual – e
como o atual nunca é bom, tudo sempre foi e é ruim. O erro de anacronismo fica
patente aí, embora não se faça questão, de modo geral, de corrigi-lo. Last but not the least, as preferências
políticas – ou, se se preferir, as preferências “ideológicas” – de quem fala
têm que ser levadas em conta: notadamente a esquerda, embora também a direita
em algumas situações, é
contrária aos Estados Unidos pelo duplo motivo de ser um país capitalista –
talvez o país capitalista por excelência, de onde Max Weber tirou elementos
empíricos para sua famosa obra sobre o “espírito” do capitalismo – e de ter
enfrentado (com sucesso) a União Soviética (o grande bastião do comunismo,
afinal de contas) durante a Guerra Fria. Freqüentemente os juízos a respeito dos
Estados Unidos misturam elementos desses quatro fatores, que separei por
motivos de ordenamento lógico; se se prestar atenção, os quatro motivos foram
agrupados em dois grupos de dois: o primeiro grupo refere-se a questões de
fato, a problemas históricos e sociológicos; o segundo grupo vincula-se a
questões intelectuais, no sentido de que se referem ao mundo das idéias, sejam
elas metodológicas, sejam de preferências pessoais.
III.1. Potências boas?
Façamos uma revisão de cada
um desses motivos. Em relação ao primeiro: uma grande potência pode não lançar
mão dos instrumentos necessários para manter-se como uma grande potência?
Aliás, existem “boas” grandes potências? Subjaz aqui a pretensão de que, fôra
outro o país dominante, suas ações seriam diversas das adotadas pela potência
atualmente dominante. Mas será isso fato ou será mero wishful thinking? À parte o problema metodológico de que não se
pode pesquisar o que não aconteceu – embora seja um recurso comum ao tratar-se
de problemas políticos que estão na ordem do dia –, o fato é que,
historicamente, as grandes potências, se desejam manter-se como grandes ou,
pelo menos, como potências, adotam os comportamentos que julgam necessários
independentemente de considerações “éticas” ou morais. Em termos acadêmicos
isso nos leva à discussão clássica de se é possível existir, de alguma forma,
uma ordem internacional mais justa ou menos predatória, em que as dignidades
nacionais não tenham que sucumbir aos desígnios de países mais fortes. Pode-se
lamentar, sem dúvida alguma, esse estado de coisas, mas pelo menos desde a
Guerra do Peloponeso até o momento, o discurso dos atenienses aos mélios, nesse
sentido, permanece mais ou menos verdadeiro.
Essas observações levam-nos a
algumas outras. A agenda internacional implementada pelos Estados Unidos desde o
final da II Guerra Mundial – desejos de dominação à parte – é “boa” ou “ruim”?
A contenção do comunismo e o combate à União Soviética; a instituição de uma
ordem econômica tendencialmente liberal, em que é (ou será) possível uma
integração das várias economias nacionais em um único sistema mundial; a
criação de uma organização que congrega todos, ou quase todos, os países do
mundo, capaz de coordenar ações globais de interesse da humanidade: isso não é
pouco, não é desprezível e decididamente não é ruim. “Um outro mundo é
possível”: pois bem, qual? O comunista (ou o socialista, tanto faz)? Projetos
de ordenamento mundial têm que ser levados a cabo por grandes potências e, bem
ou mal, creio que o atual projeto é
melhor que os seus pretensos rivais.
Ora, os Estados Unidos não
são santos nem são ingênuos. Embora o idealismo, não raras vezes eivado de
elementos teológicos, seja uma característica de sua política externa, a
questão que se apresenta é a seguinte: qual outro país poderia sucedê-lo para o
ordenamento mundial? Em minhas preferências pessoais por países, sou mais pela
França que pelos Estados Unidos, mas a verdade é que, infelizmente, a corrida
colonial que os europeus levaram a cabo no século XIX foi um projeto basicamente
francês, secundado por ingleses, belgas, holandeses, alemães e italianos.
Talvez a Rússia pudesse ser um bom país para conduzir o ordenamento mundial?
Isso está extremamente longe de ser verdade, ao menos para as tradições de
racionalismo e liberdade que o Ocidente constituiu ao longo dos séculos. O
mesmo aplica-se à China.
Alternativamente, cabe com
franqueza a pergunta: caso nós, brasileiros, estivéssemos no lugar dos
estadunidenses, será que agiríamos de maneira diferente? Duvido muito,
especialmente porque o Brasil gosta de pensar que é uma “grande potência”
(“país do futuro”, “de dimensões continentais” etc.) e, é claro, o samba e o
carnaval não são propriamente instrumentos de convencimento político. Em suma:
ao acusarmos os Estados Unidos de perceberem o mundo de sua própria forma, de
serem uma grande potência e de usarem os instrumentos necessários para tanto,
somos indulgentes com nós mesmos, como se, caso estivéssemos no lugar deles,
agíssemos de maneira diversa, com maior “generosidade”, “magnanimidade” ou
qualidades semelhantes.
Se afirmarem, de qualquer
forma, que se deseja uma ordem multipolar, em que não haja a tirania de um país
sobre os demais, isso será bem mais aceitável; na verdade, isso me parece
desejável. Por outro lado, que não se tenha ilusões: a política internacional é
oligárquica – são poucos os que têm efetivamente poder – e, acima de tudo, a
arquitetura mundial baseada no projeto e nas instituições que os Estados Unidos
constituíram após a II Guerra Mundial ainda é a melhor solução.
III.2. Atuação diversa conforme a região
O segundo motivo de rejeição
aos norte-americanos não é sofístico ou resultado de miopia política e
sociológica, como o primeiro. Conforme a área geográfica do mundo, o
comportamento norte-americano varia bastante, indo da preocupação generosa
(interessada, se se desejar) à má vontade ou, simplesmente, à completa
ignorância. Podemos facilmente pensar na África, tantas vezes deixada de lado
nas questões mundiais, mas os exemplos da Europa e da América Latina podem
ilustrar melhor o argumento. Enquanto norte-americanos e europeus mantiveram
uma relação de grande proximidade após a II Guerra Mundial, com o guarda-chuva
nuclear e econômico estadunidense protegendo a constituição da comunidade
econômica européia, a América Latina ficou largada à própria sorte, sem
estímulos econômicos para o crescimento, apesar da propalada “amizade” entre o
subcontinente e seu vizinho ao Norte. Aliás, mesmo o isolacionismo
norte-americano prévio à II Guerra Mundial era apenas em relação à Europa,
tendo sofrido a América Latina cerca de 35 anos de intervencionismo e invasões
militares, entre 1898 e 1934, com o objetivo de manter os “valores da
civilização” e a segurança dos investimentos norte-americanos na região.
Como latino-americano não
posso deixar de reconhecer: a ação dos Estados Unidos em inúmeros momentos foi
extremamente predatória sobre nossa região, justificando uma reserva em relação
ao país do Norte que já vem desde Bolívar. Creio que não há necessidade de
estender-me sobre o assunto; os exemplos poderiam multiplicar-se enormemente,
juntamente com a indignação; quando os nacionalistas latino-americanos
denunciam esse comportamento norte-americano, estão corretíssimos.
Apenas é necessário perceber que, embora o nacionalismo freqüentemente possa
vir acompanhado pelo marxismo, uma e outra coisa são diferentes e sua mistura
(ou, mais adequadamente, confusão), embora possível no discurso político do
dia-a-dia, não o é na prática científica.
De qualquer maneira, é
importante notar que o padrão de intervencionismo não foi constante e que
sofreu alterações importantes ao longo da história: ao longo do século XIX não
houve intervenções (especialmente na América do Sul), a Política da Boa
Vizinhança, de Franklin D. Roosevelt, foi uma reversão nas invasões e, por fim,
a Aliança para o Progresso foi uma tentativa de conquistar a boa vontade
latino-americana em um período em que o desenvolvimentismo era a ordem do dia
aqui.
III.3. Anacronismo na análise
As duas objeções examinadas
acima referem-se a questões de fato: como é que as grandes potências atuam no
mundo? Mais particularmente, como é que os Estados Unidos comportaram-se em
relação à América Latina? Sem dúvida que as interpretações possíveis variam
muito, mas qualquer discussão sobre o assunto, nesses casos, tem que se referir
a questões de fato e não a formulações teóricas mais ou menos gerais e mais ou
menos separadas da realidade. Os outros dois motivos referem-se a questões ou
de ordem metodológica (como encarar a realidade?) ou de ordem “ideológica”
(qual o sistema social que se prefere?). Vejamos agora o problema metodológico.
É um erro comum de percepção,
embora básico e até grosseiro, julgar o passado com os critérios de hoje. É
claro que não me refiro a orientar a pesquisa histórica pelas preocupações
atuais; penso, mais precisamente, no erro de desconsiderar os fatos anteriores
e suas características pela aplicação mecânica dos nossos critérios ao passado;
é estar imbuído de um espírito de absoluto e de negar a necessária relatividade
para a compreensão do mundo (natural e humano).
Em relação às disputas
políticas, passadas para a academia no assunto que nos interessa, esse erro
consiste em atribuir ao passado as preocupações do presente, pura e
simplesmente julgando o que se fez antes pelo que se faz atualmente (ou que se
pensa fazer atualmente). É claro que, geralmente, o que acontece é que se põe
na “lata do lixo da história” aquilo de que não se gosta. Assim, no caso que
nos interessa, porque atualmente George W. Bush é o Presidente dos Estados
Unidos e porque ele é reconhecidamente belicista e simpático a causas no mínimo
“discutíveis”, então nada na política externa dos Estados Unidos presta ou
prestou e eles sempre foram detestáveis e desprezíveis. Embora em termos metodológicos
esse tipo de afirmação apresente problemas complicadíssimos, o fato é que, em
termos políticos mais diretos, essa frase é simplesmente um casuísmo enorme.
III.4. Disputas político-ideológicas
A última fonte de percepções
erradas sobre os Estados Unidos reside nas posições políticas de quem fala.
Coloquei-a em último lugar não porque a julgo desimportante, mas porque,
parece-me, ela é a principal, a fonte de todas as demais, na medida em que
justifica ou acoberta todos os outros erros. Bem percebidas as coisas, ao longo
de minha argumentação prévia apresentei vários elementos que sugeriam essas
disputas; assim, aqui apenas explicitarei e consolidarei esses argumentos.
A posição dos Estados Unidos
no mundo, desde o término da II Guerra Mundial e a partir da Guerra Fria, em
1947, foi de defensor do capitalismo. Pessoalmente não levo muito a sério o
conceito de “capitalismo” – pois ele cumpre uma função teórica muito específica
e muito clara no pensamento marxista, condenando por definição e à partida a
sociedade contemporânea –, mas é assim que geralmente se percebe sua atuação no
mundo e é por esse metro que se mede seu comportamento.
Ora, esse simples motivo condena-os inapelavelmente ao mais profundo abismo
infernal, na medida em que, como o capitalismo é ruim, seus defensores devem
ser ainda piores. Considerações a respeito das instituições multilaterais
(políticas e econômicas), que os EUA criaram a partir de 1945; da ampla
liberdade de pensamento e de expressão; da vitalidade de sua economia; de sua
estabilidade política; da subordinação da política à moral – nada disso é
percebido. Ao mesmo tempo, uma admiração velada pelo comunismo sempre está
presente, embora não se escreva nem uma linha a respeito de como o socialismo
dito “real” funcionou ou funciona (nos casos chinês, cubano e norte-coreano):
nada da enorme literatura – filosófica, científica e jornalística – a respeito
do que era (e é) o comunismo aparece nesses debates, apenas a mesma cantilena
condenando o capitalismo... é claro que esses autores que condenam o
capitalismo vivem em sociedades que se beneficiaram e beneficiam-se enormemente
do fato de serem capitalistas.
Importa insistir: a partir da
oposição entre o capitalismo (sempre claramente condenado) e o comunismo (ou
socialismo ou “um outro mundo possível”, sempre admirado de maneira
subjacente), tudo é possível, pois tudo é válido na luta do bem contra o mal,
na luta pela redenção humana. Há claramente uma confusão entre os critérios
políticos e os intelectuais, em que os últimos subordinam-se, de maneira vil,
aos primeiros: a inteligência torna-se um simples instrumento da ação prática,
não se concedendo papel algum à investigação concreta da realidade que possa,
de alguma forma, fugir dos esquemas pré-determinados de pensamento. Em outras
palavras, a razão é submetida pela fé: não é à toa que o marxismo e o comunismo
são freqüentemente comparados a uma nova teologia.
Reforço aqui a observação
apresentada na seção II: a literatura “crítica” aos Estados Unidos, procedente
da esquerda (isto é, marxista), é muitíssimo maior que a “crítica”
não-marxista. Tem-se a ilusão, dessa forma, que ser contrário aos Estados
Unidos é ser de esquerda ou, inversamente, que reconhecer alguns méritos nos
EUA é o mesmo que justificar suas atitudes e o capitalismo.
Na verdade, há apenas uma
atualização de discursos longamente repetidos: assim como no século XIX e
início do século XX dizia-se que era a Inglaterra que não prestava porque era o
país bastião do capitalismo – independentemente dos méritos de sua sociedade –,
agora o discurso refere-se aos EUA. Lembrar que, por exemplo, os Estados Unidos
e a Inglaterra foram países “bons” entre 1942 e 1946 porque eram aliados da
União Soviética na “luta antifascista” também não é permitido –
pois, afinal, “desde sempre” e por definição os países capitalistas não
prestam.
Embora se possa afirmar que a
Guerra Fria já acabou e que, portanto, não fazem mais sentido as referências à
União Soviética, o fato é que o discurso anti-americano e a perspectiva adotada
de modo geral pela esquerda são caracteristicamente da Guerra Fria, com todos
os subterfúgios e técnicas adotados no período e, a bem da verdade, desde muito
antes. Para comprovar-se essa afirmação, basta ler os textos de autores do
século XIX, do início do século XX, da I Guerra Mundial, do período entre as
guerras, da II Guerra Mundial, da Guerra Fria e os mais recentes: são todos
variações sobre o mesmo tema; os mesmíssimos argumentos, com diferenças táticas
de nomes e expressões. A unidade de pensamento e de discurso, aliás, no que se
refere à condenação ao capitalismo e, por extensão, aos Estados Unidos, choca
quem ouve falar do tal do tão decantado “discurso único” neoliberal, tão
acremente condenado pela esquerda.
IV. FINAL DO TEXTO MAS NÃO DA
DISCUSSÃO
Retomo no final do artigo a
observação inicial: falar sobre os Estados Unidos é provocar paixões – paixões
ainda maiores se for para “defender” esse país. Dessa forma, é um terreno
espinhoso, que, apesar de sua importância, exige muito cuidado. A quantidade de
notas de rodapé deste pequeno artigo – cuja extensão ultrapassou em muito o que
planejara inicialmente – indicam os cuidados de que me cerquei ao escrevê-lo.
Claro está de que não se trataram especialmente de cuidados metodológicos, mas
de cuidados políticos: como argumentei ao longo do texto, falar dos Estados
Unidos parece fácil, pois “todos” falam, sem maiores preocupações com o rigor
da fala e permitindo-se os maiores erros do ponto de vista intelectual. O
esporte nacional no Brasil é o futebol: a “argumentação” relativa aos EUA
aproxima-se, talvez não por acaso, às brigas do torcida, tais as tolices que se
repete.
É claro que o debate não
acabou – mesmo porque, em se tratando de “debate”, isto é, de troca racional e
pacífica de idéias, em que cada parte aceita, sem segundas intenções e sem
hipocrisia, a real possibilidade de mudar de opinião no decorrer da
argumentação; em se tratando de “debate”, parece que ele mal começou.
Indiscutivelmente minha argumentação será mal compreendida ou simplesmente distorcida,
aparecendo este texto como “pró-americano”: na verdade, se for para tachar-me
de alguma coisa, prefiro pensar que sou “pró-pensamento correto” e
“pró-sociedade aberta e democrática”.
Como comentei antes, tantas são as tolices que se fala a respeito dos Estados
Unidos que é demasiado difícil argumentar racionalmente a respeito deles; ora,
dada a influência que esse país exerce no mundo – não apenas em termos
econômicos e militares, como também culturais –, não compreender os Estados
Unidos é também não compreender a maneira como o mundo organiza-se – com todos
os seus prós e contras.
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Gustavo Biscaia de Lacerda (gustavobiscaia@yahoo.com.br) é "pós-doutor"
e Doutor em Sociologia Política (UFSC), Mestre em Sociologia (UFPR) e sociólogo
da UFPR. Sua dissertação de Mestrado, defendida em maio de 2004, intitula-se Pan-americanismos entre a segurança e o
desenvolvimento: a Operação Panamericana e a Aliança para o Progresso.