31 outubro 2012

Permanência do espírito absoluto disseminando o ateísmo

O espírito absoluto que reinava - e, a bem da verdade, ainda reina - nas ciências naturais faz delas um âmbito privilegiado para o desenvolvimento do ateísmo. Ora, o ateísmo é uma forma de teologia, embora pela via negativa: rigorosamente, o ateísmo nega a única resposta possível ("deus") para a pergunta que continua fazendo ("quem, ou o quê, criou o universo?"). 

A perspectiva relativa, ou positiva, é deixar de lado tal gênero de indagações: em vez de negar a única resposta possível, deve-se deixar de lado a própria pergunta; o tipo de raciocínio desenvolvido na pergunta teológica ("por quê?"; a investigação das causas) deve ser substituído pelo tipo de raciocínio próprio à positividade e à relatividade ("como?"; a investigação das relações entre os fatos observáveis, ou seja, das leis).

Assim, a manutenção do espírito absoluto nas ciências naturais de uma única vez apresenta três conseqüências nefastas: mantém as investigações de caráter teológico, estimula o ateísmo e, por fim, rejeita o espírito relativo e positivo.

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“C’est là surtout que réside l’athéisme proprement dit, plus hostile aujourd’hui à la vraie philosophie qu’aucun autre théologisme, comme l’explique mon Discours préliminaire. Le matérialisme y puise aussi ses principales forces intellectuelles, quoique la biologie dévellope davantage ses dangers moraux” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 456).

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Tradução para o português:


"É sobretudo aí que reside o ateísmo propriamente dito, mais hostil hoje à verdadeira filosofia que qualquer outro teologismo, como o explica meu Discurso preliminar. O materialismo possui aí suas principais forças intelectuais, ainda que a Biologia desenvolva mais seus perigos morais" (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 456).

Crítica ao espírito absoluto das ciências naturais

Comenta-se com grande freqüência - quando não se acusa - que o Positivismo é cientificista, que introduz nas ciências humanas a lógica das ciências naturais e, principalmente, que faz a apologia da ciência - apologia que, não raro, é considerada acrítica. (Pós-modernos, adeptos da "Teoria Crítica", "hermenêuticos", marxistas, feministas e "reflexivos" são alguns que repetem, com grande satisfação, tais comentários.)

Pois bem: a passagem abaixo evidencia com clareza meridiana o quanto as observações acima são incorretas. (São tão incorretas que é chocante perceber que elas sejam tão repetidas. Cabe aí, sem dúvida, uma sociologia do conhecimento e, ainda mais, uma sociologia da ideologia.)

Para Augusto Comte, embora as ciências naturais sejam a base lógica e teórica do Positivismo, elas não são nem um pouco infensas a críticas nem são totalmente modelos de pensamento. Na verdade, como estão longe da Humanidade, isto é, como estão distantes do que se chama atualmente de "ciências humanas", as ciências naturais estão mais sujeitas a desvios teóricos de origem metodológica e moral. Quais são esses desvios? Por um lado, eles consistem na preservação do espírito absoluto nas ciências; por outro lado, como conseqüência do problema anterior, as ciências naturais são mais dispersivas, são mais avessas a qualquer disciplina intelectual, são menos preocupadas com o bem-estar coletivo: em suma, elas afirmam a ciência pela ciência, como se a ciência pudesse ser uma justificativa para si própria, sem preocupações morais mais profundas.

Por fim, cabe notar que as críticas de Augusto Comte ao absoluto na(s) ciência(s) rejeitam a "separação entre fato e valor" e a completa desvinculação das pesquisas científicas com respeito às questões sociais. Disso se seguem duas observações:

1) Exatamente porque conhecia com profundidade a ciência - sua história, sua lógica, seus encadeamentos - é que Augusto Comte pôde fazer tais críticas, ao contrário dos filósofos que pelo menos desde fins do século XIX tentam criticar a ciência (Nietzsche, Bergson, Macintyre, Sheldon Wolin, Charles Taylor, Adorno & Horkheimer etc. etc. etc.).

2) No Brasil do final do século XIX e do início do século XX, as preocupações morais e sociais do Positivismo eram vistas como obstáculos a pesquisas científicas: os cientistas nacionais - em particular os matemáticos - afirmavam a ciência pela ciência, as pesquisas feitas sem outras preocupações que não aquelas vinculadas a vasculhar cada vez mais sobre aspectos cada vez mais especializados da realidade. A ciência, para tais pesquisadores, seria uma prática voltada para si própria, um conhecimento esotérico. Hoje, no início do século XXI, tal perspectiva não é mais aceita, não é mais vista como legítima: mas o Positivismo continua sendo mal-visto e, por mais espantoso que seja, a ele são creditados os problemas que ele mesmo combatia.

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Plus indépendantes que toutes les autres, moins liées à l’Humanité, et comportant, avec une extension indéfinie, une culture plus facile et plus parfaite, les études cosmologiques sont à la fois les plus rebelles à toute saine discipline et celles que en ont le plus besoin. Après avoir longtemps fourni les sources exclusives de la véritable philosophie, elles constituent aujourd’hui le principal obstacle à sa systématisation finale. L’esprit absolu y trouve indirectement ses seuls appuis sérieux, plus nuisibles au vrai régime logique que les illusions directes d’une métaphysique discréditée. Par une étrange inversion, la nouvelle méthode subjective est, au fond, plus relative que l’ancienne méthode objective, qui doit lui emprunter aujourd’hui un caractére d’abord émané d’elle-même. Les divagations scientifiques de la cosmologie actuelle correspondent trop exactement à ses déviations logiques. Des recherches puériles et incohérents, inspirées par des conceptions antipositives, y dénaturent de plus en plus toutes les notions essentielles, que cette anarchie expose même à une prochaine décomposition” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 455-456).

30 outubro 2012

Nova edição parcial do "Sistema de filosofia positiva"


Uma boa notícia: o Michel Bourdeau, que é um especialista sério no pensamento de Augusto Comte, está co-organizando uma nova edição do "Sistema de filosofia positiva" (vulgarmente conhecido como "Curso de filosofia positiva"). Essa edição, no entanto, é parcial, pois cobre apenas os capítulos 46 a 51 da "Filosofia", correspondentes a algumas lições sobre a Sociologia comtiana (as do v. IV da obra).

Reproduzo a notícia divulgada no blogue Positivists (http://positivists.org/blog/archives/477):



New edition of Auguste Comte’s ‘Cours de philosophie positive’, Lessons 46-51 (1830-42)


The volume contains Comte’s first six lessons on sociology edited and freshly annotated by Michel Bourdeau, Laurent Clauzade, and Frédéric Dupin.
  1. Political arguments showing the necessity and timeliness of the science of society
  2. Survey of the main philosophical attempts already made in order to create a social science
  3. The most important features of the positive method in the rational study of social phenomena
  4. Necessary relations between social physics and the other parts of positive philosophy.
  5. Preliminary considerations about social static : the general theory of the spontaneous order of human societies
  6. Fundamental laws of social dynamics : the general theory of the natural progress of mankind
Éditions Hermann, Paris, 2012, 480 pages, 17 x 24 cm, 48 €, publishers page for detailed information.

25 outubro 2012

Lógica positiva e moralidade


O caráter moral da lógica positiva é afirmado abaixo: a criação da Sociologia incorpora as idéias de sociabilidade e de altruísmo; tais idéias, de caráter relativo, influenciam a própria moral, que se torna relativa e, portanto, claramente direcionada para o ser humano. O estudo relativo das leis naturais – ou seja, das relações entre fenômenos – deixa para trás a pesquisa absoluta das causas – ou seja, das questões do tipo “de onde viemos?”, “quem criou o universo?” – e permite que se investigue as possibilidades e os graus de mudança no ser humano, o que conduz ao aperfeiçoamento moral.

Como se vê, não há nada de “separação entre fato e valor” aí, muito menos de “tecnocracia” ou de “reificação da realidade”. O que há, de fato, é preocupação com o ser humano e com o conhecimento (útil) da realidade.

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“Mais la supériorité morale de la nouvelle logique religieuse est encore plus directe et plus profonde que sa préeminence intellectuelle ; car la subjectivité positive est nécessairement sociale, en vertu de sa réalité, tandis que la subjectivité théologique fut toujours personnelle, d’après son caractère absolu. Celle-ci concevait l’ensemble des êtres comme créé pour l’homme, tandis que celle-là destine l’humanité à perfectionner la faible portion de l’ordre universel qui comporte notre intervention. Or, si cette appréciation finale surpasse l’autre en rationalité, elle lui est encore plus supérieure en moralité. La première nous ayant seule gouvernés jusqu’ici, il a bien fallu y rattacher la culture des sentiments comme celle des pensées ; et même son règne affectif a dû se prolonger davantage que sa prépondérance spéculative, toujours compromise par l’activité pratique. Mais le privilége de sentimentalité ainsi attribué à l’ancienne logique religieuse ne repose que sur une appréciation empirique, qui, depuis longtemps, a cessé d’être vraie. Le déclin politique du monothéisme permit de sentir partout que sa morale tant vantée consistait nécessairement en un immense égoïsme, directement opposé à toute vraie sociabilité. Dans la nouvelle logique religieuse, la substitution spéculative du relatif à l’absolu et la substitution affective de l’humanité à l’homme sont toujours la suite naturelle l’une de l’autre” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 452-453).

Historicidade da lógica positiva (objetividade+subjetividade)


A passagem abaixo evidencia o quanto a lógica positiva, que combina a objetividade com a subjetividade, é histórica. Mas “histórica” não no sentido de ser passageira, fugaz: histórica no sentido de que exigiu uma série de preparações intelectuais, morais e políticas para constituir-se. Por um lado, foi necessário que a objetividade das ciências naturais conhecesse o mundo e controlasse a subjetividade humana; por outro lado, a criação da Sociologia permite que a subjetividade torne-se relativa e incorpore a afetividade.
Assim, a historicidade da lógica positiva evidencia o quanto o “historicismo radical” contemporâneo, que afirma que há apenas rupturas históricas e que o ser humano é incapaz de acumular idéias e de transmitir valores, é falho.

Ao mesmo tempo, a lógica positiva afirma que os conhecimentos humanos devem ter um caráter sintético: não há “ciências históricas” (ou “ciências do espírito”) em contraposição às “ciências naturais”; há o conhecimento humano, que começa objetivo e analítico e, ao chegar à Sociologia (ou melhor, à Biologia), passa a ser sintético e também claramente subjetivo.

Em vez de “duas culturas” (científica versus humanística) ou “três culturas” (científica versus humanístico-literária versus sociológica), há apenas uma cultura: a síntese subjetiva.

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“Malgré ces divers indices de son aptitude immédiate, la vraie logique religieuse, à la fois objective et subjetive, ne fait certainement que de la naître. Tout son essor caractéristique appartient au prochain avenir. Son élément rationnel, seul cultivé jusqu’ici, ne pouvait être dignement conçu, faute d’une connaissance réelle des lois intellectuelles, seulement appréciables dans l’évolution scientifique de l’humanité. Aussi cette élaboration méthaphysique n’a-t-elle jamais abouti qu’à des préceptes vagues et stériles, même quand elle ne se préoccupait plus de formalités puériles ou vicieuses. Mais la logique affective dut encore moins avancer, puisque les phénomènes correspondants furent toujours regardés comme soustraits à toute loi. Elle ne fut sérieusement cultivée que dans le moyen âge, sous l’impulsion catholique, dont le déclin en suscita encore d’admirables essais, chez les principaux mystiques. A ces premiers rudiments empiriques, le positivisme peut seul faire succéder un vaste essor systématique, puisqu’il s’établit surtout dans l’ancien domaine de la grâce, désormais ramenée à des lois appréciables, sources nécessaires de prévision et d’action. 

[...]

Cette double aptitude fondamental du régime final repose entièrement sur le caractère positif de la nouvelle méthode subjective. Par cela seul que l’ancienne était théologique, ou même métaphysique, elle restait inconciliable avec la méthode objective, qui dut toujours être positive, pour fournir des prévisions réelles, propres à guider une activité efficace. Tandis que la subjectivité poussait l’esprit à l’absolu, l’objectivité le ramenait au relatif. Ce tiraillement continu ne permettait aucun équilibre logique. La cohérence mentale éxigeait d’abord l’homogénéité des méthodes. Or, la pratique ne pouvant renoncer à la marche objective, il fallait bien que la théorie abondonnât la marche subjective, du moins tant que dura l’évolution préparatoire. Ce préambule, désormais complet, a conduit l’essor analytique jusqu’à fournir, par la fondation de la sociologie, la base d’une nouvelle synthèse. Dés lors, la méthode subjective, appuyée sur le sentiment direct du Grand-Être, devient aussi relative que la méthode objective, coordonée d’après la conception générale de l’ordre extérieur. Ainsi s’organise notre vrai régime intellectuel, en rapport avec notre véritable destinée sociale. La pleine harmonie mentale n’aurait pu surgir auparavant, que si la philosophie théologique était devenue réellement objective ; ce qui fut toujours impossible, même sous le polythéisme” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 451-452).

Utilização sistemática da subjetividade como instrumento analítico


Ao contrário de ser apologista da objetividade e do objetivismo, a obra de Comte erige a subjetividade como instrumento contínuo para compreensão da realidade. Aliás, bem mais do que isso: a subjetividade é entendida como um instrumento da “lógica positiva”, constituída pela lógica dos sentimentos, das imagens e dos sinais (esta última sendo a tradicional “lógica”, que atua nas elaborações científicas, filosóficas e técnicas). O que ocorre é que para Comte a subjetividade tem que ser regulada, em termos morais e intelectuais, pela objetividade: em caso contrário, fica sem parâmetro algum.

Nos termos das teorias sociológicas atuais, a combinação das lógicas objetiva e subjetiva permite “compreender” as ações humanas individuais e “explicar” seus encadeamentos. Não há aí nenhuma forma de misticismo.

Assim, é difícil levar a sério as afirmações das escolas “compreensivas”, “críticas”, pós-modernas e por aí vai segundo as quais o Positivismo negaria a subjetividade ou que ele reificaria uma sociedade “sem alma” – mesmo a despeito da fama e do prestígio de que tais escolas gozam. Afirmações desse tipo têm origem ou na ignorância ou na má-fé (ou em ambas).

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“Ainsi se réalise déjà l’annonce placée au début de ce chapitre quant à la conciliation normale entre la logique de l’esprit, guidée surtout par les signes artificiels, et la logique du cœur, fondée sur la connexité directe des émotions. Quoique celle-ci, essentiellement subjective, ne semble d’abord convenir qu’à la culture morale, on vient de reconnaître combien elle peut s’adapter à l’élaboration intellectuelle, et toute la suite de ce traité le constatera de plus en plus. De même, l’autre, principalement objective, n’est pas nécessairement bornée à sa destination rationnelle ; elle comportera désormais une haute efficacité affective. Chacun peut déjà l’appliquer au culte des souvenirs intimes, qui deviennent à la fois plus nets et plus fixes quand on détermine assez le milieu interte avant d’y placer la vivant image. Ni l’esprit ni le cœur ne peuvent développer une paisible activité sans ce concours continu, instinctif ou systématique, entre la logique du sentiment et celle de la raison. J’ai expliqué, dans la préface finale de mon premier traité, comment j’eus le bonheur d’obtenir, dès mon début, cette harmonie décisive. Elle suivit nécessairement ma découverte initiale des lois sociologiques, qui fit dès lors converger toujours mes impulsions politiques et mes tendances scientifiques, d’abord indépendantes. C’est d’un tel équilibre primitif que j’ai tiré le privilège philosophique de consacrer tour à tour ma jeunesse et ma maturité à deux grandes élaborations réciproques, dont chacune semblait réservée à l’autre âge. Ainsi s’explique aussi la puissante réaction mentale que je dus à ma sainte compagne éternelle, et qui constitue une vérification décisive de cette harmonie nécessaire entre les deux méthodes universelles” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 450).

23 outubro 2012

Criação do método subjetivo

Citação bastante grande que trata inicialmente do dualismo homem-mundo, das leis naturais e das leis lógicas (ou seja, epistemológicas), para em seguida tratar do que realmente interessa no capítulo I do v. I do Sistema de política positiva: a criação do método subjetivo positivo. Ele é o fundamento da Religião da Humanidade - e, como se pode constatar facilmente a partir da leitura dos trechos abaixo, não há absolutamente nada de misticismo nele; ao contrário, há preocupações sociais, morais, há a consciência das limitações humanas e dos meios de que dispomos para superá-las.

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“Toutes les spéculations positives reposent donc, en dernier ressort, sur un concours continu entre la fatalité et la spontanéité, sources respectives de constance et de variation. Le dogme fondamental du positivisme consiste ainsi dans l’harmonie universelle entre deux sortes de lois, à la fois antagonistes et solidaires, les unes extérieures ou physiques, les autres intérieures ou logiques. En termes plus généraux, et pourtant mieux définis, la constance des relations naturelles résulte de la conciliation permanente des lois biologiques avec les lois cosmologiques.

A travers les nuages métaphysiques, les vrais penseurs ont toujours pressenti, plus ou moins confusément, ce grande dualisme, base nécessaire de toutes nos connaissances. Surtout depuis Kant, on a compris que les lois physiques supposent des lois logiques, comme en sens inverse. Mais la saine philosophie biologique pouvait seule procurer une vraie consistance à ce premier aperçu, où d’abord les fonctions intellectuelles se trouvaient irrationnellement isolées des autres fonctions vitales. On a dès lors reconnu qu’une telle harmonie, nullement absolue, est toujours doublement relative à la nature de l’organisme et à celle du milieu. Elle varie, donc, même sur notre planète, entre les divers modes ou degrés d’animalité, quoique ses variations ne soient jamais arbitraires. Les spéculations humaines se présentent ainsi comme consistant surtout à concevoir cet ordre relatif, autant que le comporte notre nature et que l’exige notre situation. Mais ce dogme fondamental ne pouvait être pleinement compris, ni même purifié de toute tendance absolue, tant que la notion générale des lois biologiques proprement dites n’était pas complétée et systématisée par celle des lois sociologiques. Depuis cette fondation décisive, le système des notions humaines se trouve assujetti à une dernière classe de variations regulières, indépendantes de notre nature comme de notre situation, et seulement relatives à l’évolution sociale. Sa considération continue est tellement indispensable pour concevoir la marche véritable de nos pensées, que, sans elle, on ne saurait expliquer ni leurs caractères propres ni leur enchaînement mutuel, successif ou même simultané. D’un autre côté, si les lois correspondantes pouvaient nous être assez connues, elles seules suffiraient pour remplacer toutes les autres, sauf les difficultés de déduction. Car toutes nos découvertes, quoique accomplies toujours par des organes individuels, sont, au fond, des actes de l’Humanité, et dès lors régies directement par les lois propres au Grand-Être, de manière à comporter des prévisions sociologiques. Mais, d’une autre part, ces lois suprêmes de la philosophie relative se trouvent nécessairement subordonnées aux deux ordres de lois préliminaires, extérieures et intérieures. Ainsi, sans insister sur des hypothèses où il ne faut voir que d’utiles artifices didactiques, le système définitif de nos conceptions positives consiste à lier convenablement la notion de l’Humanité au dualisme préalable entre le monde et la vie.
Les deux éléments de ce grand dualisme sont donc à la fois plus distincts et plus inséparables que ne l’indique jusqu’ici leur étude respective. Pour se mieux représenter leur diversité et leur solidarité, il suffit de considérer la manière dont nous apprécierions la vie dans un milieu accessible seulement à notre lointaine mais complète exploration visuelle. Nous n’y apercevrions d’abord, comme envers nos planètes actuelles, que sa simple existence inorganique, qui absorberait les phénomènes biologiques. Mais leur propre réaction sur le milieu nous ferait ensuite distinguer ces événements moins prononcés, appartenant à des êtres plus complexes et plus variables. L’étude totale se décomposerait alors en deux, l’une inorganique, l’autre organique, qui deviendraient également indisciplinables à la vraie conception du système exploré. C’est à peu près ainsi, quoique à un degré beaucoup moindre, que nos procédons de loin à la découverte d’une nouvelle existence animale, ou même humaine. Le milieu seul nous frappe d’abord, et peu à peu nous en distinguons l’être sans cesser de l’y subordonner.
Ayant ainsi caracterisé l’harmonie nécessaire entre les deux parties essentielles de la philosophie naturelle, il faut apprécier l’ordre fondamental de leur succession, destinée surtout à fournir la base rationnelle de la philosophie sociale.
Cette commune destination détermine aussitôt la marche systématique des deux études préliminaires. En effet, les mêmes motifs généraux, soit scientifiques, soit logiques, qui nous ont d’abord représenté la cosmologie et la biologie comme devant précéder la sociologie, nous conduisent maintenant à reconnaître aussi que la cosmologie doit préparer la biologie.
Il n’y a donc aucune hésitation possible aujourd’hui entre les deux méthodes opposées que semble comporter la formation totale de la philosophie naturelle. La méthode objective, qui procède du dehors au dedans, du monde à la vie, peut seule convenir à une telle élaboration, tant systématique que spontanée. Mais il reste pourtant à déterminer aussi la participation finale de la méthode inverse ou subjective, qui va du dedans au dehors, de la vie au monde. Puisque l’Humanité lui dut son premier essor mental, il faut bien que, régénérée d’après un autre principe, elle concoure à fonder l’état normal de notre intelligence. Telles sont les deux grandes explications qui doivent compléter ce chapitre, suivant l’ébauche déjà présentée dans le discours préliminaire, d’après les bases posées par mon ouvrage fondamental.
Ce premier traité a tellement établi la vraie hiérarchie des sciences que je puis ici me dispenser de revenir sur une loi encyclopédique maintenant admise partout. On sait qu’elle résulte de la généralité décroissante et de la dépendance croissante des phénomènes correspondants. Ces deux principes, nécessairement équivalents, déterminent finalement la dignité graduelle des diverses sciences abstraites, d’après leur relation plus ou moins directe avec les phénomènes de l’humanité, moins généraux et plus dépendants que tous les autres.
Les lois cosmologiques sont essentiellement indépendantes des lois biologiques, qui n’y apportent que des modifications secondaires, presque toujours négligeables envers le milieu inerte, quoique indispensables à l’être vivant. Au contraire, l’existence organique se trouve intimement subordonnée à l’existence inorganique, même planétaire ; en sorte que quelques changements fort simples dans la constitution d’un astre empêchent d’y concevoir la vie. La généralité supérieure des lois cosmologiques est encore plus évidente, puisque les corps qu’elles régissent exclusivement prédominent au point de sembler réduire la vitalité à une sorte d’exception. Sur notre propre planète, la seule où nous puissions connaître les lois biologiques, la vie n’est possible que dans les couches superficielles ; et, même là, la masse totale des êtres correspondants ne constitue qu’une petite fraction de la masse inerte.
Ainsi, sous l’aspect scientifique, l’étude positive de la biologie exige une profonde connaissance générale de la cosmologie, dont les principales lois dominent toujours les diverses fonctions vitales. La subordination logique est encore moins contestable, puisque la simplicité des phénomènes inorganiques, suite nécessaire de leur généralité, les rend seuls propres à l’élaboration fondamentale de la méthode universelle.
Sous ses deux faces rationnelles, la coordination systématique des études préliminaires se trouve donc conforme à leur enchaînement spontané, en vertu des mêmes motifs essentiels, dont la prépondérance est à la fois dogmatique et historique. Cette coïncidence n’offre rien d’accidentel, d’après la similitude inévitabel entre l’initiation individuelle et l’évolution collective.
La méthode objetive doit donc prévaloir autant dans l’ordre dogmatique des connaissances réelles que dans leur filiation historique. Elle seule peut établir solidement le dogme fondamental des lois naturelles, en appréciant d’abord les cas les plus aptes à manifester l’invariabilité des relations. Si, au contraire, la méthode subjective dut présider à notre enfance intellectuelle, c’est uniquement d’après sa convenance exclusive envers la conception des causes proprement dites, sur laquelle devaient se concentrer nos premiers efforts. La simple opposition de ces deux marches, suivant leurs destinations caractéristiques, constitue la vraie source générale de l’antagonisme radical entre la philosophie positive et la philosophie théologique.
Mais cette immense lutte préliminaire, qui domina l’ensemble du passé, est maintenant terminée, puisque le positivisme, enfim complet, constitue irrévocablement la seule religion normale. Dès lors, il faut revenir sur l’exclusion provisoire de la méthode subjective par l’élaboration scientifique. Car cette marche possède, en elle-même, d’immuables propriétés, qui peuvent seules compenser les inconvénients du mode objectif. Notre constitution logique ne saurait être complète et durable que d’après une intime combinaison des deux méthodes. Le passé ne nous autorise nullement à les regarder comme radicalement inconciliables, pourvu que toutes deux soient systématiquement régénérées, suivant leur commune destination, à la fois mentale et sociale. Il serait tout aussi empirique d’attribuer à la théologie un privilège exclusif envers la méthode subjective que d’y voir la seule source de l’aptitude vraiment religieuse. Si désormais la sociologie s’est pleinement emparée de ce dernier attribut, elle peut également s’approprier l’autre, d’après leur intime connexité.
Pour cela, il suffit que la méthode subjective, renonçant à la vaine recherche des causes, tende directement, comme la méthode objective, vers la seule découverte des lois, afin d’améliorer notre condition et notre nature. En un mot, il faut qu’elle devienne sociologique, au lieu de rester théologique. Or, cette transformation finale, auparavant impossible, résulte spontanément de la récente extension des théories positives à l’évolution fondamentale de l’humanité.
En effet, cette conquête décisive termine enfin le régime provisoire de notre intelligence, et installe aussitôt son régime définitif. Jusqu’alors, l’esprit positif n’avait pu qu’élaborer instinctivement des matériaux, sans concevoir l’ensemble de l’édifice correspondant. Désormais, en reprenant, pour l’éducation dogmatique, ce préambule indispensable de l’évolution historique, sa marche deviendra pleinement rationnelle, d’après une constante appréciation de la construction finale qu’il doit préparer. La fondation de la sociologie permet à la méthode subjective d’acquérir enfin la positivité qui lui manquait, en nous plaçant irrévocablement au point de vue vraiment universel. Ainsi régénérée, cette méthode doit mieux développer son éminente aptitude exclusive à faire directement prévaloir la considération de l’ensemble, que seul est pleinement réel. Sans son ascendant normal sur la méthode objective, celle-ci ne pourrait assez éviter les aberrations théoriques qui lui sont propres, soit par divagations, soit par illusion.
Notre vraie constitution logique résulte donc d’un concours définitif entre la méthode subjective et la méthode objective, respectivement consacrées à diriger l’esprit d’ensemble et l’esprit de détail, également indispensables à nos constructions réelles. C’est à la première qu’il appartient désormais d’instituer toujours la seconde, qui, en retour, améliorera sans cesse ses matériaux dogmatiques. Leur ensemble fonde la logique vraimente religieuse, qui consacre, en les régénérant, les deux voies opposées que suivirent la théologie et la science pour préparer, chacune à sa manière, notre état définitif. Dans toute recherche ultérieure, le Grand-Être, enfin dégagé de ses divers précurseurs, posera directement chaque question, et instituera l’ensemble de la solution, en réservant l’élaboration à ses dignes organes individuels.
Je ne crains pas de citer ici mon exemple personnel, comme très-propre à eclaircir cette difficile appréciation. L’ensemble de mes travaux philosophiques confirme directement cette pleine conciliation finale entre la méthode objective et la méthode subjective, qui auront ainsi dirigé tour à tour mes deux élaborations principales. Dans mon traité fondamental, la première domine évidemment, au point de sembler tendre vers une prépondérance exclusive et irrévocable. Mais cet ascendant était alors conforme à la nature d’une opération philosophique où la saine analyse posait peu à peu les diverses bases essentielles d’une vraie synthèse. Ce premier travail aboutit enfin à permettre la régénération directe de la méthode subjective, par la fondation de la sociologie. Ainsi devenue aussi positive que l’autre, cette marche plus rationelle préside maintenant à mon second grand ouvrage. Je l’y ai déjà employée souvent, soit dans le discours préliminaire, soit même dans ce chapitre, pour systématiser davantage des conceptions dogmatiques qui d’abord émanèrent de la méthode objective. Cette explication directe de sa prépondérance normale me permettra désormais d’en mieux utiliser les hautes propriétés intellectuelles et morales.
L’accord naturel des deux méthodes se trouve ici constaté directement, puisque l’ordre dogmatique des sciences, déterminé d’abord par la méthode objective d’après leur simple enchaînement rationnel, vient d’être consacré par la méthode subjective au nom de leur destination religieuse. Cette concordance décisive deviendra encore plus sensible dans les deux chapitres suivants, où la même marche synthétique établira la constitution définitive de la cosmologie et de la biologie, que l’élaboration analytique put seulement ébaucher, ou plutôt préparer. Mon ouvrage fondamental fit graduellement converger les diverses théories positives vers un ensemble d’abord confus. D’après cette construction, le traité actuel fera directement réagir cet ensemble pour la systématisation finale des conceptions préliminaires que concoururent à le former. En un mot, l’un a tiré de la science une philosophie, que l’autre convertit en religion complète et définitive.
C’est ainsi que l’harmonie fondamentale des deux méthodes objective et subjective constitue enfin la vraie logique humaine, c’est-à-dire l’ensemble des moyens propres à nous dévoiler les vérités qui nous conviennent. Une telle construction était impossible jusqu’ici, soit faut d’un suffisant développement des divers procédés intellectuels, soit parce que leur commune destination sociale restait trop peu caracterisée. Mais par l’irrévocable substitution de la sociologie à la théologie pour le gouvernement religieux de l’humanité, l’esprit d’ensemble et l’esprit de détail, convenablement régénérés, se consacrent également au service continu du vrai Grand-Être. La longue antipathie entre l’analyse et la synthèse se chance en un éternel concours, où chaque méthode suppléera, suivant sa nature, aux principales imperfections de l’autre. Isolément employée, la marche objective, même systématisée, ne conviendrait qu’à la saine élaboration des éléments, mais en exposant toujours à méconnaître l’ensemble, ou du moins en plaçant sa conception générale à la fin d’une immense évolution, qui aurait presque épuisé l’essor mental. Réciproquement, l’usage exclusif de la marche subjective n’aboutirait qu’à faire toujours prévaloir la considération directe du système, mais sans laisser à l’esprit assez de liberté pour préparer dignement les matériaux d’une construction inébranlable. L’heureux concours de ces deux voies alternatives, dont chacune commence où l’autre finit, permet seul de réparer leur épuisement respectif, afin d’utiliser autant que possible nos chétives forces mentales, naturellement si inférieures aux difficultés de leur destination sociale. Aucun dogme de la religion finale ne saurait être assez établi qu’après avoir été démontré par les deux méthodes, quelle que soit celle d’où il émane d’abord. Sans cette confirmation décisive, la nouvelle foi surmonterait trop peu l’esprit de discussion habituelle, inhérent à la nature des convictions qui lui sont propres” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 441-449).

Contra o academicismo


Não deixa de ser curioso afirmar-se que o Positivismo é a filosofia acadêmica (ou academicista) por excelência, haja vista a forte crítica feita por Augusto Comte precisamente ao academicismo, isto é, ao hábito intelectual e institucional de fazer pesquisas sem maiores preocupações que com a pura curiosidade. Para Comte, ao contrário, o conhecimento deve servir para o aperfeiçoamento humano; ao contrário que as filosofias “críticas” afirmam, esse aperfeiçoamento é antes e acima de tudo moral. O academicismo é um perigo que sempre ronda as elaborações teóricas, mesmo as das ciências humanas, quando não se tem em vista a melhoria do ser humano.

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“Ce n’est point une vaine curiosité qui doit présider à l’étude directe du vrai Grand-Être ; comme partout ailleurs, le sentiment y doit toujours dominer l’intelligence, sous peine de compromettre la moralité fondamentale. Sans doute, le grand phénomène du développement social constitue le plus admirable de tous les spectacles réels, et même, par suite, idéaux. Mais la noble satisfaction mentale attachée à sa pure contemplation ne doit jamais faire méconnaître ou négliger sa sainte destination. Au fond, nous ne devons étudier le véritable Être-Suprême que pour le mieux servir et l’aimer davantage. Notre principale récompense personnelle, dans une telle étude, résulte des nouveaux perfectionnements de tous genres, et sourtout moraux, qu’elle nous procure nécessairement. Or, sans une constante discipline religieuse, où le public assistera le sacerdoce, l’élaboration de cette science finale pourrait dégénérer en travaux académiques, autant qu’envers les sciences préliminaires. Quoique ces divagations offrissent plus d’intérêt théorique, elles ne comporteraient guère plus d’efficacité morale ni mentale. Leur danger deviendrait même supérieur, parce que là le point de vue concret diffère davantage de l’abstrait, de manière à exiger de puissants efforts, dont la stérilité nuirait à de meilleurs services. C’est pourquoi là, plus qu’ailleurs, l’élaboration concrète doit toujours se rapporter aux vraies exigences pratiques, en comprimant tout écart théorique. Il n’y a ici d’autre différence essentielle avec les cas ordinaires sinon que les philosophes y sont eux-mêmes les principaux ingénieures de l’art correspondant, dont la pratique doit être universelle. Mais cette distinction n’influe nullement sur la nature des saines études concrètes ni sur leur sage subordination continue aux besoins pratiques” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 435-436)

22 outubro 2012

Teoria e prática, leis gerais e aplicações específicas

Mais uma citação longa, mas muito interessante. Ela apresenta inúmeros elementos da epistemologia comtiana: relações entre teoria e prática, entre conhecimentos abstratos e concretos, entre leis gerais e aplicações específicas, entre empirismo e dogmatismo (ou "racionalismo").

Essas páginas do Sistema de política positiva permitem claramente diálogos com todas as teorias epistemológicas contemporâneas, sem dever nada a nenhuma delas, quer sejam das Ciências Naturais, quer sejam das Ciências Humanas. Entretanto, o que se conhece como "epistemologia comtiana" reduz-se apenas aos dois primeiros capítulos do Sistema de filosofia positiva (também conhecidos como duas primeiras lições do Curso de filosofia positiva). Repito duas observações feitas em outros momentos: essa ignorância não é acidental e nem o Sistema de política é produto de "delírio". Basta ler os trechos abaixo para comprovar-se isso.

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“La sagesse vulgaire a toujours reconnu qu’il n’existe point de règle sans exception; mais, en même temps, la raison philosophique n’a cessé d’aspirer à des régles invariables. Ces deux appréciations, qui semblent incompatibles, sont pourtant également saines, en se plaçant au point de vue convenable. Leur conciliation naturelle résulte toujours de la distinction précédent, entre les lois abstraites ou simples et les lois concrètes ou composées. Celles-ci ne peuvent êtres que particulières, tandis que les autres comportent une pleine généralité, qui constitue leur vrai mérite. Tous les divers éléments de chaque existence sont respectivement assujettis à d’invariables lois, communes aux êtres quelconques où se retrouve le même événement. Au fond, c’est en cela que consiste surtout l’ordre naturel, dont la vraie notion, nullement déductive, résume toujours les inductions correspondantes, assitées des analogies convenables. Si les lois élémentaires d’où résulte n’étaient pas entièrement générales, nos prévisions rationnelles ne comporteraient aucune sécurité. Mais cette indispensable généralité, seule source d’une précieuse cohérence, ne s’obtient jamais que d’après une abstraction qui altère plus ou moins la réalité de nos conceptions théoriques. Les événements ne pouvant s’étudier que dans des êtres, il faut, en effet, écarter les circonstances propres à chaque cas pour y saisir la loi commune. C’est ainsi, par exemple, que nous ignorerions encore les lois dynamiques de la pesanteur, si nous n’avions pas fait d’abord abstraction de la résistance et de l’agitation des milieux. Même envers les moindres phénomènes, nous sommes donc obligés de décomposer pour abstraire avant de pouvoir obtenir cette réduction de la varieté à la constance que poursuivent toujours nos saines méditations. Or ces simplifications préalables, sans lesquelles la vraie science n’existerait jamais, exigent partout des restitutions correspondantes, quand il s’agit de prévisions réelles. Ce passage de l’abstration au concret constitue la principale difficulté des applications positives, et la source nécessaire des restrictions finales que comportent toutes les indications théoriques. Alors surgissent d’énormes déceptions, comme celles que le tir effectif des projectiles présente aux orgueilleux calculs des purs géomètres. Voilà d’où provient, dans la vie pratique, l’alternative habituelle des meilleurs esprits théoriques entre l’hésitation et la méprise. C’est l’un des motifs essentiels de leur inaptitude notoire aux affaires temporelles.
L’entière généralité est donc incompatible avec une parfaite réalité. Notre vraie régime logique exige que ces deux conditions également indispensables soient d’abord séparées convenablement pour être ensuite sagement combinées. Toute notre conduite normale institue ainsi un hereux concours final entre le dogmatisme et l’empirisme, qui seraient également incapables de la diriger isolément, l’un par illusion, l’autre par imprévoyence. Des lois purement empiriques ne conviendraient qu’aux cas qui les auraient fournis, et elles y constitueraient une stérile érudition, très-différent de la vraie science. Quelque complètes qu’elles fussent, la diversité nécessaire des circonstances concrètes empêcherait d’en déduire de nouvelles prévisions, où réside toute l’efficacité de nos spéculations positives. Mais, à son tour, le pur dogmatisme abstrait ne nous serait pas moins funeste, quoique d’une autre manière. L’entière généralité et la liaison parfaite de ses conceptions ne se rapporteraient qu’à une stérile existence ascétique. Dans la vie réelle, ses présompteuses prévisions nous exposeraient sans cesse aux plus graves aberrations.
Cette conciliation normale entre le dogmatisme et l’empirisme était incompatible avec la nature absolue du théologisme, sous lequel ces deux marches coexistèrent forcément, mais sans aucune harmonie. La source divine des préceptes théoriques ne comportait pas d’exceptions, et l’indivisibilité des notions pratiques interdisait toute généralisation réelle. Ce conflit logique, propre à notre enfance mentale, reste encore très-sensible envers les sujets, surtout moraux et politiques, où cette enfance à dû persister davantage. On y flotte souvent entre l’évidente nécessité pratique qui impose des exceptions et l’impérieuse exigence théorique qui prescrit l’inflexibilité : en sorte que les règles de conduite y deviennent presque toujours ou impraticables par sévérité ou impuissantes par concession.
Il en sera tout autrement sous le régime positif, comme l’indiquent déjà les cas préliminaires où il a pu être partiellement ébauché. La nature tourjours realtive du nouveau dogmatisme le rend aisément conciliable avec un empirisme qui, de son côté, s’est élevé. D’une part, on écarte la vaine recherche des causes ; de l’autre, on ne se borne plus à la stérile étude des faits. Le génie théorique et le génie pratique se sentent également appelés à découvrir les lois, c’est-à-dire les relations, seules conformes à nos moyens réels et aussi à nos vrais besoins. Ils ne diffèrent plus qu’en ce que le premier cherche les lois générales de chaque classe d’événements possibles et le second les lois spéciales de chaque être existant. Mais cette distinction se réduit, au fond, à une simples division fondamentale, à la fois spontanée et systématique, de l’ensemble du travail humain, dont la nature et le but sont partout les mêmes. Car, nous n’étudions les événements qu’afin d’améliorer les êtres. Notre providence ne peut devenir rationnelle que par une suffisante prévision, qui exige des lois générales. Or cette généralité suppose toujours la décomposition préalable des existences particulières en phénomènes universels, seuls susceptibles de règles invariables. C’est ainsi que la saine constitution logique repose sur la distinction générale entre l’étude abstraite et l’étude concrète.
Voilà comment la religion finale consacre et discipline à la fois le dogmatisme et l’empirisme, par leur concours continu à l’harmonie du Grand-Être. Tous deux ont également participé à sa conception fondamentale ; car toute induction réelle est empirique dans sa source et dogmatique dans son terme. Quelque éminent que soit enfim devenu l’esprit positif, il ne doit jamais oublier qu’il émana partout de l’activité pratique, substituant graduellement l’étude des lois à celles des causes. Le principe universel de l’invariabilité des relations naturelles, sur lequel repose toute notre rationalité, est une acquisition essentiellement empirique. Au lieu d’être inspirée par le dogmatisme primitif, il lui était directement contraire, ce qui explique assez sa formation lente et graduelle, qui n’est complète que depuis la récente fondation de la sociologie. Mais, d’un autre côté, la science abstraite pouvait seule fournir la première conception générale de l’Humanité. Le plus tendre empirisme s’arrête à la considération de la famille, et s’élève très-difficilement à celle de la Patrie, même fort restreinte d’abord. Quelque réel que soit le nouvel Être-Suprême, sa nature collective exige beaucoup d’abstractions préalables. Pour comprendre dignement cette immense et éternelle existence, l’appréciation, seule directe, de ses nombreux éléments, simultanés et successifs, doit d’abord être purifiée de tous leurs conflits partiels.
Cette éminente difficulté, que exige aujourd’hui un concours familier entre le sentiment et la raison, ne constitue que le plus haut degré de celle qu’offre partout l’abstraction théorique indispensable à la généralité de nos conceptions positives. Dans toute la hiérarchie scientifique, la pensée abstraite diffère davantage de la pensée concrète et s’en sépare plus péniblement, à mesure que les phénomènes deviennent moins généraux et plus dépendants. Cette difficulté augmente tellement qu’il serait bientôt impossible de la surmonter assez par l’étude isolée des effets correspondants. Mais leur propre dépendance envers les phénomènes antérieurs fournit naturellement une précieuse assistance théorique, sans laquelle on ne pourrait distinguer suffisamment entre les circonstances à écarter et celles à conserver. C’est seulement ainsi qu’on parvient, envers les plus éminents sujets, à constituer des abstractions tout ainsi positives que celles dont les spéculations mathématiques comportent si aisément la formation. Il s’agit partout d’éviter à la fois les entités nominales et les réalités entièrement isolées. Or, cela n’est presque jamais possible qu’autant que les déductions antérieures viennent convenablement assister les inductions directes. Leur sage concours permet enfin de discerner, au milieu des circonstances accesoires ou indifférentes, le principal phénomène, qui devient alors la base d’une saine abstraction” (Comte, Systéme de politique positive, v. I, p. 425-430).

Conhecimento de leis naturais e "planificação" da vida

Costuma-se impingir ao "Positivismo" - e, claro, a Augusto Comte - duas idéias estreitamente relacionadas: por um lado, a de que seria possível descobrir todas as leis naturais, incluindo aí as leis concretas; por outro lado, que seria possível regular toda a vida humana, no sentido de que seria possível predizê-la e conformá-la às regras pré-estabelecidas, como se a vida humana fosse uma planilha.

Ora, a seguinte citação - extensa, é verdade - põe por terra ambas as presunções acima: Comte afirma com todas as letras que as leis naturais são poucas, são abstratas e que, portanto, não é possível "planificar" a vida humana nos mínimos detalhes. (Essa é uma forma, indireta, de evidenciar o quanto Augusto Comte estava distante da tecnocracia.)

Dessas duas observações, segue-se que para Comte há necessariamente espaço para as ações livres, para a vontade humana. Claro está que essa vontade não é todo-poderosa: a vontade que não conhece limites é arbitrária e absoluta, sendo própria à teologia e à metafísica.

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“La grande construction théorique qui doit fonder la religion démontrée peut donc se borner au système des conceptions abstraites, pourvu qu’il embrasse tous les genres de phénomènes. Car, ainsi constituée, elle fournira une base rationnelle à l’ensemble de la sagesse humaine, toujours assurée dès lors de posséder d’exactes notions systématiques sur les lois élémentaires qui coopèrent à chaque résultat.
Quelque difficile que soit souvent la découverte de ces lois fondamentales, leur petit nombre permet d’en espérer une suffisante appréciation, déjà fort avancée envers les phénomènes inorganiques. Au contraire, il n’y a aucun espoir raisonnable de connaître jamais la plupart des lois concrètes résultées de leurs innombrables combinaisons. Mais aussi nous n’en avons, au fond, aucun vrai besoin. Pour diriger notre conduit pratique, même envers nos plus éminents phénomènes, il suffit toujours que les indications générales de la science abstraite viennent guider et coordonner les divers renseignements directs que fournit, en chaque cas, un judicieux empirisme. Le projet de soummettre nos actes quelconques à une discipline purement systématique, indépendante de toute appréciation spéciale, n’est qu’une irrationnelle utopie de l’orgueil spéculatif. On peut assurer qu’elle ne deviendra jamais réalisable, même envers les arts mathématiques et astronomiques, où la pratique prévaudra toujours, quelque précieux usage qu’elle y doive faire de plus en plus des lumières théoriques.
Il n’y a donc que la science abstraite qui puisse et qui doive être systématisée, par la coordination religieuse de tous ses éléments sous la présidance de la sociologie, qui en est le centre nécessaire” (Comte, Système de politique positive, v.  I, p. 424-425).

Unidade subjetiva da ciência via Sociologia e Moral

Afirma-se muito amiúde que Augusto Comte - e, por metonímia, o "positivismo" - reduziu as ciências humanas às ciências naturais, "naturalizando" a Sociologia. Isso é de uma tolice sem par: bastaria ler-se o próprio Comte para saber-se o quanto isso é tolo.

Vivemos, além disso, em uma época de desconstruções e desmistificações. Assim, com o intuito de ajudar na desconstrução de um mito extremamente difundido - mito cômodo, aliás, pois fornece a priori o "outro" teórico, a ser combatido, negado e rejeitado -, apresentamos abaixo uma citação de clareza meridiana a respeito da subordinação das ciências naturais às ciências humanas, bem como da possibilidade de unidade teórica apenas por via subjetiva e, por fim, da importância principalmente afetiva (mais que intelectual) de tal procedimento.

Convém notar, além disso, que esta passagem, cujas importância e atualidade teóricas são enormes, é da obra religiosa de Comte, justamente aquela que, também a priori, não é lida mas é rejeitada por ser "misticismo" ou "loucura".

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“La science inorganique semblerait comporter une constitution propre, indépendante de la sociologie, puisque son objet théorique pourrait être conçu sans aucune relation à l’homme, autrement que comme spectateur. Mais, outre que la sociabilité réprouvera de plus en plus cette utopie des géomètres, sa rationalité ne serait qu’apparente. Car ici l’immensité naturelle du domaine spéculatif y susciterait des divagations indéfinies qui, outre leur profonde stérelité, deviendraient bientôt contraires à toute systématisations. L’unité objective y est nécessairement impossible, comme l’ont confirmé  les vains efforts des deux dernières siècles. Elles ne comportent, par leur nature, qu’une simple unité subjective, par la commune prépondérance du point de vue humain, c’est-à-dire social. Ce seul lien universel de leurs doctrines, et même de leurs méthodes, constitue l’unique moyen d’y réduire chaque sujet, isolément inépuisable, à ce que réclame la destination sacrée de tous nos efforts quelconques au service continu du Grand-Être.

Mais cette restriction normale des sciences préliminaires au simple caractère de préambule fondamental de la science finale, importe encore plus au sentiment qu’à raison et à l’activité” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 420).

21 outubro 2012

Subjetividade necessária na Sociologia e nas Ciências Naturais

Mais um mito sobre o Positivismo e sobre Comte: a ausência de subjetividade em sua Sociologia e a suposta separação entre fato e valor. Na passagem abaixo, Comte afirma de maneira cristalina que os sentimentos não somente são necessários às reflexões como, inversamente, as reflexões têm que ser estimuladas pelos sentimentos e estimulantes do altruísmo.

Esse mito, convém notar, foi difundido pelas abordagens "críticas" (escola de Frankfurt, pós-modernos), "dialéticas" (marxismos variados) e também pelas "compreensivas" (Weber e os interpretativistas). Pura retórica, é claro - mas, infelizmente, a academia é um ambiente em que as modas e os preconceitos abundam e produzem seus efeitos.

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“La réaction mentale du sentiment n’a guère besoin d’être spécialement invoquée dans l’étude finale de la sociologie, où la nature du sujet l’introduit nécessairement. Il en doit être autrement envers les sciences préliminaires, dont les spéculations plus abstraites et moins nobles paraissent repousser un tel secours. Cette influence universelle y devient pourtant plus indispensable, surtout aujourd’hui, pour y faire prévaloir leur vrai caractère et leur destination réelle, que l’esprit théorique y est plus disposé à méconnaître ou à négliger. Au fond, la systématisation qu’il faut ici leur appliquer consiste surtout à y ramener dignement l’intelligence au service continu de la sociabilité [...]” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 407-408)

20 outubro 2012

Aforismas sociológicos VI




§ 1º – Historicidade de Augusto Comte (e dos seus críticos contextualistas)

A leitura de Augusto Comte conduz com muita intensidade à noção de historicidade do ser humano. O seu Positivismo, ao contrário do que argumentam os seus críticos e ao contrário do que argumentam os críticos do “positivismo”, tem como pressuposto a noção de que o ser humano é antes e acima de tudo um ser histórico: não é possível falar em humanidade sem levar em consideração a historicidade. Na verdade, precisamente nesse sentido, o que distingue a espécie humana das outras espécies animais – e que, aliás, exige uma ciência específica para si, a Sociologia – é o caráter social do ser humano, o que, como dito há pouco, equivale no pensamento comtiano à historicidade.

Ora, não deixa de ser profundamente irônico que justamente os autores que postulam um historicismo radical, a partir da concepção de que é necessário compreender cada ação humana em seu contexto específico, proponham no final uma concepção fragmentária da realidade humana. A “história” é apenas a sucessão de “contextos”, justapostos cronologicamente. Essa concepção, por outro lado, lembra bastante a que Weber tinha a respeito da sociedade: para ele, não existe um agregado supra-individual, mas apenas relações individuais. Sem dúvida alguma, há perdas importantes de racionalidade – de “compreensão” da realidade humana – com cada uma dessas perspectivas (a do historicismo radical e a da sociologia weberiana): o que se perde é a compreensão de que o ser humano é histórico.

Inversamente, é claro, tais perspectivas, fragmentadoras, afirmam que somente elas são “históricas”, que somente elas acedem a verdadeira natureza humana. O que ocorre é que o contextualismo histórico, sacrificando a visão de conjunto, é útil para pesquisas empíricas, localizadas; a suposta ausência de pressuposições, que a perspectiva fenomenológica esposada por tais perspectivas advoga, permite que se acumulem observações empíricas indefinidamente, sem preocupações com uma inteligibilidade histórica mais ampla – que é descartada a priori, aliás. O resultado é que as perspectivas contextualistas são, supostamente, úteis para a historiografia porque – justamente ao contrário do Positivismo e ao contrário da auto-imagem propalada – são ultra-empíricos (“empiricistas”). (“Supostamente” porque elas apenas acumulam fatos e interpretações empíricas, mas sacrificam totalmente a compreensão mais ampla, isto é, a grande interpretação macro-histórica; além disso, há um orgulho na multiplicação de abordagens “micro-históricas” e um completo desdém pela possibilidade de síntese entre essas diversas perspectivas. É uma espécie de “capitalismo selvagem intelectual”, com um culto à anarquia e à dispersão.)


§ 2° Abordagens “historicamente informadas” na Sociologia e generalizações

Quando se fala em “abordagem histórica” para as teorias sociológicas (incluindo aí, é claro, as politológicas), há evidentemente inúmeras formas de encarar essa “historicidade”. Uma delas é aplicar os raciocínios e métodos próprios à disciplina acadêmica chamada História: nesse caso, a Sociologia torna-se uma província da História e, no fundo, não se vê em que é que a Sociologia distingue-se da História, exceto, talvez – e o “talvez” deve ser bastante enfatizado –, por um certo caráter comparativo. As abordagens contextualistas têm este viés: não existe propriamente Sociologia, mas apenas historiografia e uma infinidade de histórias.

Uma outra forma é entender que Sociologia e História, embora tenham mais ou menos o mesmo objeto, mantêm entre si relações diversas, pois seus objetivos são variados e, portanto, seus métodos também o são: neste último caso, a Sociologia pode (e, na verdade, deve) assumir que um dos elementos fundamentais do ser humano é seu caráter histórico e, a partir daí, elaborar suas pesquisas. Mas a Sociologia assumir que o ser humano é histórico não é o mesmo que assumir que a própria Sociologia deve subsumir-se à História: significa, muito diferentemente, que as sociedades acumulam materiais afetivos, intelectuais, políticos geração após geração e que cada geração tem que lidar criativamente com esses materiais, que serão passados adiante. Uma teoria “historicamente informada” na Sociologia que não seja uma forma diferente de fazer historiografia pode assumir que o ser humano caracteriza-se pela historicidade e, a partir daí, entender as várias formas de organizar-se e relacionar-se; nesse caso, a disciplina da História fornece materiais empíricos para a produção Sociológica, que tem o papel de coordenar e interpretar esses dados empíricos. Que as interpretações sociológicas dos materiais historiográficos sejam interpretações de segundo nível não há problema: pode-se pensar nos níveis teóricos da Antropologia: etnografia, etnologia e antropologia. Nessa escala, a interpretação maior caberia à Sociologia (antropologia, na seqüência anterior) e as interpretações iniciais, ou intermediárias, caberiam à História (etnologia, na seqüência anterior).

A História trata dos trajetos específicos de cada sociedade; a Sociologia, por outro lado, procura comparar os diversos trajetos, sejam eles momentos diferentes da mesma sociedade, sejam eles sociedades diferentes no mesmo momento, sejam, por fim, momentos diferentes de diferentes sociedades. A História, portanto, trata do que é específico; mesmo que ela faça comparações, seu objetivo é sempre o específico (Weber aplicou esse método à Sociologia, mas no final somente reafirmou a História, ou melhor, a metodologia historiográfica, em completo detrimento da Sociologia). Ora, o específico é interessante e em inúmeros casos pode ser politicamente importante, mas o fato é que o específico trata sempre de um único caso; o específico não diz nada a respeito das possibilidades de variação, das rotas opcionais, das grandes marchas: isso é possível somente via comparação, ou melhor, via generalização. “Compreender” o ser humano implica conhecer essas diversas possibilidades teóricas: em outras palavras, só se pode conhecer efetivamente o ser humano a partir das generalizações.

24 setembro 2012

Busto de Augusto Comte na Sorbonne


Foto tirada por Nelson Rosário de Souza, entre 20 e 23 de setembro de 2012.
Abaixo do nome de Augusto Comte está a pichação "merci pour tout", ou seja, "obrigado por tudo".

17 setembro 2012

Kuhn derruba as barreiras entre ciências e humanidades - mas Augusto Comte não?

Kuhn derruba as barreiras entre ciências e humanidades. Augusto Comte não?


Na edição 296 da revista Ciência Hoje foi publicada a matéria “A queda do muro entre ciências e humanidades”, referindo-se ao cinqüentenário da publicação original do livro A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn, em que se apresenta uma interpretação sociológica e histórica das ciências[1]. Segundo os autores, uma das maiores contribuições desse livro teria sido mostrar que as ciências naturais são tão sociais e históricas quanto as ciências humanas e, portanto, seriam possíveis análises (teórica, metodológica e epistemológica) das ciências naturais de maneira integrada às ciências humanas.

Comemorar os 50 anos de publicação do livro de Thomas Kuhn é interessante; mas afirmar que ele é importante porque teria “rompido as barreiras entre as Ciências Humanas e Naturais” é um exagero despropositado – e, pior, ignorante e preconceituoso. (Deixando de lado, é claro, os inúmeros problemas e inconsistências teóricos da obra de Kuhn. Mas isso não vem ao caso.)

A integração entre Ciências Humanas e Naturais ocorreu precisamente ao mesmo tempo em que a Sociologia e a História das Ciências surgiram – ou seja, quando Augusto Comte, pai do Positivismo, criava a Sociologia de uma perspectiva histórica e concentrava grande atenção no desenvolvimento histórico das ciências, vistas como produto social.

A obra mais conhecida de Comte – e, no Brasil, mais ou menos a única que se conhece, embora reduzida aos dois primeiros capítulos[2] –, o Sistema de filosofia positiva (1830-1842) tratou de realizar uma avaliação geral dos principais resultados teóricos e metodológicos das várias ciências, a fim de elaborar as bases teóricas e metodológicas da Sociologia.

Já no Sistema de política positiva (1851-1854), especialmente em seus volumes I e III (respectivamente, de 1851 e 1853), Comte dedicou-se a insistir no caráter social e histórico das ciências (naturais e humanas), investigando como os ambientes sociais facilitaram (ou dificultaram) suas constituições. Aliás, muito mais do que isso, Comte nessa obra adotou uma perspectiva radicalmente relativa, humana e  histórica – em termos atuais: transdisciplinar – a fim de examinar como cada ciência contribui para o ser humano e para a sociedade. Essa perspectiva é o que ele chamava de “método subjetivo”.

Na verdade, o método subjetivo ia ainda mais fundo, afirmando que é necessário à ciência (e à política) reconhecer o valor lógico e teórico das artes (geralmente chamadas também de “humanidades”). Nesse sentido, por exemplo, Comte afirmava que se deve ampliar o conceito de “lógica”, deixando de restringi-lo à lógica matemática (a lógica dedutiva, chamada por ele de “lógica dos sinais”), para incorporar também a lógica das emoções e a lógica das imagens. “Lógica”, nesse sentido, significa formas gerais de o ser humano entender (i. e., observar, compreender e falar a respeito de) a realidade.

Entretanto, a filosofia criada por A. Comte chama-se “Positivismo”, cuja fortuna crítica posterior modificou radicalmente o sentido originalmente concedido pelo pensador francês. Além disso, o valor dessa palavra alterou-se bastante ao longo do tempo, passando de favorável a negativo. Os preconceitos contrários ao “Positivismo”, que abrangem a obra de Comte por pura metonímia, são amplamente compartilhados pelas Ciências Humanas desde há várias décadas, incluindo aí os profissionais da História das Ciências e da Filosofia das Ciências.

Historiadores da ciência que desconhecem a obra de Comte – que precedeu em muito mais de um século a obra de Kuhn – demonstram, portanto, não apenas ignorância da história da ciência, como preconceito: afinal, como é senso comum, “todos” “sabem” que o “Positivismo” é “cientificista”, anistórico e objetivista. Pena que ninguém lê A. Comte e todos repetem: “não li e não gostei”.





[1] “A queda do muro entre ciências e humanidades”, publicada em Ciência Hoje (São Paulo, v. 50, n. 296, p. 74-75, set.). Disponível em: http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2012/296/a-queda-do-muro-entre-ciencias-e-humanidades. Acesso em: 7.jan.2013.
[2] Convém notar que apenas 5% da obra de Comte estão traduzidos para o português, o que é altamente sintomático dos problemas indicados acima.

13 setembro 2012

Sobre a "higiene cerebral"

Em meados do século XIX Augusto Comte falava que era então necessária uma “higiene cerebral”. Ele percebia a grande multiplicação de livros, artigos, jornais, textos que ocorria naquela época; entretanto, essa multiplicação era freqüentemente apenas quantitativa, ou seja, somente era mais coisa publicada, sem haver um aumento concomitante de qualidade. Pior, muitas vezes o aumento na quantidade era acompanhado pela diminuição do nível desses textos. Face a tal realidade – e tendo plena consciência de que “falar mais” não equivale a “pensar melhor” (e, antes, a “amar mais” e/ou “agir melhor”) –, Comte recomendava que se limitasse severamente as leituras, escolhendo com muito cuidado o que ler e o que não ler. Com essa recomendação ele visava a um controle do tempo e, acima de tudo, um cuidado com a cultura intelectual e moral. É óbvio, todavia, que os comentadores de plantão criticaram com rapidez e superficialidade essa proposta, afirmando que se tratava de uma forma de alienação face ao mundo.

Entrementes, hoje em dia a realidade de enorme aumento de textos, artigos, livros não mudou; ou melhor, bem ao contrário, mudou, mas para pior: o desenvolvimento dos meios de comunicação, em particular com a TV e a internete, estimulam a produção e a disseminação de algo que não pode ser chamado senão de
 lixo intelectual[1]. O mercado editorial de maneira mais ampla também não colabora: livros de auto-ajuda, de misticismo e/ou de pura irracionalidade estão sempre nas listas dos “mais vendidos”[2].

A “academia”, ou seja, as universidades, os institutos de pesquisa e os governos, também dá sua poderosa contribuição à multiplicação de textos pela mera multiplicação. Trata-se do “produtivismo”, estimulado por uma competição internacional pela pura quantidade de textos e livros publicados, de acordo com o qual aquele que publica mais é “melhor” (em quê, afinal?).
 Como diria Comte, acumulam-se “verdades” da mesma forma que se acumulam riquezas no industrialismo selvagem (“capitalismo selvagem”, como gostam de dizer os marxistas): mas são verdades meramente acumuladas, no sentido de serem entulhadas, empilhadas, sem verdadeiro uso.

Esse produtivismo acadêmico, altamente dispersivo, ultra-especializante,
 incentiva também textos irracionais e/ou superficiais. Se pensarmos, por exemplo, no pós-modernismo, não é difícil perceber que sua tese da ausência de objetividade da realidade foi também estimulada pela necessidade de escrever por escrever, sem maiores compromissos com uma compreensão ao mesmo tempo real, útil e relativa para o ser humano. Um outro exemplo: as perspectivas irracionalistas e autoritárias de Nietzsche, Heidegger, Gadamer, Carl Schmitt, são celebradas como “desafiadoras”, em vez de serem percebidas como irracionalistas, autoritárias e absolutas (metafísicas ou teológicas); tais perspectivas são valorizadas porque “desafiam os valores fundamentais da sociedade ocidental”, ou seja, porque são contrárias à racionalidade, ao pacifismo, ao altruísmo. É claro que esse tipo de afirmação “desafiadora”, cultora da “violência viril”, encontra um amplo e obsequioso público, ou seja, vende bem entre o público acadêmico. Em outras palavras: o produtivismo acadêmico estimula o que há de pior no ser humano; estimula tudo aquilo que não é “positivo” (de acordo com a definição comtiana da palavra “positivo”).

Dessa forma, ficamos incapazes de apreender tudo o que se produz, ao mesmo tempo em que,
 ativamente, somos obrigados a continuar produzindo e, passivamente, somos cada vez mais expostos a todo tipo de “mensagem” (sob o duvidoso argumento de que temos que “ficar em dia”, “sabermos dos fatos”, “mantermo-nos informados”, “conhecer o ‘estado da arte’”). Cada vez mais gente fala (sobre qualquer coisa), mas cada vez menos gente ouve e, acima de tudo, cada vez menos gente pensa e reflete sobre o que ouve.

Assim, se em meados do século XIX a “higiene cerebral” era necessária (mas ironizada ou desprezada), ela é ainda mais necessária no início do século XXI. Felizmente há (algumas) pessoas que a
 reconhecem como sendo importante, hoje.


[1] O livro de Andrew Keen, O culto do amador (J. Zahar, 2009), é muito didático a respeito. Por outro lado, uma visão parecida, mas altamente aristocrática, irracionalista e preconceituosa, é a da Escola de Frankfurt, que tratou longamente da “indústria cultural”.

[2] Aliás, como se um livro ser o “mais vendido” indicasse alguma coisa além do fato evidente de que vende bastante. Isso transforma o livro em uma  commodity e deixa de lado o mais importa: algo ser lido por muita gente não significa que essa muita gente está lendo algo que preste, ou seja, que esclareça sobre a realidade, que a torne mais altruísta, mais convergente, mais propensa a lidar com realismo os problemas concretos.