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28 junho 2020

Ainda o relativismo histórico, o anti-racismo e as memórias históricas


Em postagem anterior, intitulada “Relativismo histórico, anti-racismo e memórias históricas”, indiquei vários motivos que justificam a preservação de estátuas comemorativas de personagens como Winston Churchill (no mundo inteiro) e a manutenção do nome de Woodrow Wilson na Escola de Relações Internacionais da Universidade Princeton (nos Estados Unidos). Embora essa postagem tenha sido extensa e tenha coberto uma ampla gama de temas, uma nova reflexão levou-me a perceber que eu não havia esgotado o tema e que há, portanto, outros aspectos que merecem ser apresentados. De maneira específica, quero comentar pelo menos mais dois aspectos: (1) o caráter metafísico e (2) o antiprogressivismo do combate às memórias históricas; o segundo aspecto é uma decorrência do primeiro, embora ambos sejam em si mesmos distintos um do outro.

No Positivismo, na Religião da Humanidade, o que se opõe ao “relativo” é o “absoluto”. O absoluto é a forma de encarar a realidade, o mundo, o ser humano, que pretende que tudo isso seja entendido de uma vez por todas, por todo o sempre; em oposição ao que é “relativo”, o absoluto rejeita relações, vínculos; assim, o absoluto permitiria a compreensão de tudo a partir de algum princípio externo ao que existe e que não dependeria de nada para existir e para permitir o entendimento. De maneira exemplar, a concepção de uma divindade, em particular no monoteísmo, representa(ria) a concepção do absoluto: supostamente o deus monoteísta existe em si e para si, independentemente de quem e do que quer que seja, mas, por outro lado, tudo o que existe, existiu e existirá depende dele e por ele seria explicado. As perguntas finalísticas – “de onde viemos?”, “para onde vamos”, “por que existimos?” – são as questões que dão origem à concepção teológica e suas respostas conduzem ao absoluto.

Ora, como vimos, o absoluto tem sua melhor representação na teologia, em particular no monoteísmo. Como Augusto Comte indicou desde o início de sua carreira, as idéias são históricas e alteram-se ao longo do tempo; essas alterações de cada concepção seguem uma evolução específica, que consiste na passagem da teologia para a sua concepção corrompida, que é a metafísica; da metafísica (que possui um caráter meramente transitório) passa-se à positividade, cuja grande característica é o relativismo. (Não é necessário insistir em que a transição do absolutismo teológico-metafísico para o relativismo positivo é uma verdadeira revolução mental e moral, com um caráter extremamente profundo e, por isso mesmo, de realização complicada.)

A metafísica, portanto, é absoluta; ela visa a responder de uma vez por todas as questões que considera. Mas, como indicamos, a metafísica também é mera transição entre a teologia e a positividade; essa transição em particular assume a característica de ser “crítica”, isto é, destruidora, corrosiva. Ainda mais: embora compartilhe com a teologia seu caráter absoluto, a metafísica opõe-se à teologia, em particular assumindo-se o título de “progressista” contra o “conservadorismo” imputado à teologia. Em face da metafísica, não há dúvida de que a teologia torna-se realmente conservadora; além disso, quando surge, a metafísica consiste na própria realização do progresso, na medida em que a decomposição da teologia em direção à positividade é a própria marcha do progresso.

O conservadorismo teológico e o progressivismo metafísico são ambos absolutos; eles afirmam seus princípios de uma vez por todas e rejeitando as concepções de vínculos, de relações, de limitações, de contextos. Quando a metafísica passa a atuar sobre e contra a teologia, logo se instala uma dinâmica (os marxistas e os hegelianos diriam uma “dialética”) que opõe a ordem e o progresso, comprometendo tanto a ordem quanto o progresso, em que a ordem torna-se reacionária e o progresso torna-se anárquico. O que está em questão nessa dinâmica, portanto, é o papel concedido à liberdade e, em decorrência disso, a forma como a sociedade organiza-se (se de maneira espontânea, se de maneira forçada; se com princípios compartilhados, se sem tais princípios).

Assim, embora ela inicialmente ela corresponda ao progresso e afirme-se como sendo a representante do progresso, entregue a si mesma a metafísica acaba agindo de tal maneira que combate exatamente aquilo que afirma defender. Entretanto, o problema vai mesmo além da dinâmica suicida entre a ordem retrógrada e o progresso anárquico: fiel ao seu caráter dissolvente, ou, para usar uma palavra que todos conhecem, empregam e mais ou menos entendem, fiel ao seu caráter crítico, a metafísica é incapaz de manter quaisquer instituições, quaisquer conquistas. Em outras palavras, por si mesma a metafísica acaba resultando no fim do mesmo progresso que ela supostamente representa e defende.

Trazendo essas reflexões filosóficas e sociológicas para o caso que consideramos anteriormente – as estátuas e as homenagens a tipos considerados atualmente como racistas –, o resultado é que a falta de relativismo histórico a respeito dessas personagens deve-se antes de mais nada a seu caráter metafísico, crítico, destruidor, absoluto. Deseja-se de uma vez por todas, de maneira radical, ou melhor, de maneira brutal avaliar todas as carreiras desses tipos, baseando-se em parâmetros estritamente atuais e desprezando-se as atuações dessas personagens nos momentos em que viveram e, de modo específico, pelas quais tornaram-se famosas. Não há dúvida de que é motivo do mais profundo pesar, do mais profundo lamento, que Churchill e Wilson – para ficarmos nas duas personagens que estou considerando de maneira particular – tenham sido racistas; esse traço constitui uma nódoa profunda na biografia de cada um: ainda assim, a despeito disso, nenhum dos dois é lembrado, celebrado, cultuado devido ao racismo, mas devido às suas decisivas ações políticas ao longo do século XX – ações aliás francamente progressistas e libertárias. Aparentemente, há bustos e estátuas de outras personagens cujas carreiras consistiram basicamente no comércio de escravos, na manutenção da escravidão: nesse caso, não há atenuantes, não há justificativas plausíveis para a celebração de suas memórias; mas, como argumentamos, são muito diferentes as situações de personagens como Churchill, Wilson e vários outros.

Doravante, quando nos referirmos ao ex-primeiro-ministro britânico e ao ex-presidente estadunidense (e a muitos, muitos outros), teremos que indicar claramente seus lamentáveis racismos, com bem mais que eventuais notas de rodapé: isso, entretanto, é muito diferente de desprezar suas importantes ações devido ao racismo; no final das contas, empregar o racismo como critério único para julgar a inteireza da vida de alguém não deixa de ser uma inesperada e lamentável vitória do próprio racismo sobre a liberdade, a fraternidade e a tolerância.

19 janeiro 2020

19 de janeiro, aniversário de Augusto Comte, o fundador da Religião da Humanidade


No dia 19 de janeiro comemora-se o aniversário de nascimento de Augusto Comte (1798-1857), o fundador da Sociologia, da Moral Positiva, da História das Ciências e, mais importante que isso, da Religião da Humanidade.

Busto de Augusto Comte em frente à Universidade Sorbonne, em Paris.
Abaixo do nome está escrito "Merci par tout!" ("Obrigado por tudo!").

A Religião da Humanidade, ou simplesmente “Positivismo”, é uma religião humana e humanista, que busca harmonizar as várias facetas da natureza humana, entendendo que essa natureza compõe-se de três elementos – os sentimentos, a inteligência e a ação prática –; esses elementos, por sua vez, atuam tanto nos indivíduos quanto na vida coletiva. Assim, os seres humanos são sempre motivados pelos sentimentos, que podem ser altruístas ou egoístas; para viverem, devem conhecer a realidade que os cerca e, a partir disso, agem nas sociedades.

Augusto Comte percebeu que a moralidade humana consiste em agir sempre com vistas ao altruísmo, ou seja, em benefício dos demais, mesmo quando cada indivíduo e cada sociedade tem que satisfazer as suas próprias necessidades particulares. Esse princípio fundamental da moralidade é também o que permite que os seres humanos sejam felizes e, ao mesmo tempo, é o que permite que as concepções que cada um tem da realidade – a filosofia, a ciência – sejam organizadas de maneira racional e coerente. Por fim, todos sabemos que ao longo de nossas vidas enfrentamos inúmeros desafios, que exigem de cada um respostas intelectuais e práticas; como se diz, viver em sociedade não é fácil: a moralidade positiva, baseada na realização do altruísmo, permite que essas dificuldades sejam diminuídas e adequadamente tratadas, minorando os sofrimentos humanos e permitindo o máximo de justiça.

A Religião da Humanidade é uma “religião”: é um sistema de coordenação das concepções e dos comportamentos humanos. Ela não é uma teologia, pois não usa como princípio regulador máximo nenhuma entidade sobrenatural (os deuses); apesar disso, a Religião da Humanidade tem um símbolo maior, que representa os grandes valores humanos, resumidos no amor: é a própria Humanidade, representada por uma moça de cerca de 30 anos tendo em seu colo uma criança... a Humanidade cuidando e preparando, com amor, as gerações futuras.

Eduardo de Sá - A Humanidade

Estátua da Humanidade, Igreja Positivista do Brasil.

A história da humanidade é a grande escola de que dispomos. Graças ao lento acúmulo de pequenas e grandes modificações ocorridas ao longo dos anos, dos séculos, dos milênios, o ser humano pode erguer-se das pequenas famílias que viviam nas cavernas, com medo de tudo, até a grande civilização mundial que busca, cada vez mais, a paz entre todos os povos, o respeito a todas as culturas e todos os grupos, o trabalho digno, a justiça social. Também é graças à historicidade humana que a concepção de uma religião positiva, humana, foi possível, após o desenvolvimento das religiões fetichistas, politeístas e monoteístas: assumindo a liderança do ser humano, a Religião da Humanidade respeita, glorifica e agradece o serviço prestado por essas religiões anteriores. Por fim, também é graças à  historicidade humana que foi possível conhecermos o mundo que nos cerca e a realidade de que fazemos parte – cósmica, social e individual. A própria Religião da Humanidade é um fruto da historicidade do ser humano.

A Religião da Humanidade valoriza profundamente a subjetividade, isto é, os sentimentos, as crenças íntimas. Mas essa subjetividade também tem que ser regulada: o mundo existe objetivamente, com as suas regularidades que não dependem das nossas crenças nem dos nossos sentimentos. Entender que a mais rica subjetividade não pode negar a objetividade das leis naturais também é fonte de felicidade.

O reconhecimento de que a realidade tem seus princípios próprios, que o próprio ser humano tem um funcionamento específico, leva-nos a mais uma das características da Religião da Humanidade, o seu relativismo. O relativismo positivo não significa que “qualquer coisa vale”; ele significa que o ser humano não pode explicar toda a realidade a partir de um único princípio, de um único conceito, que explicaria tudo de uma única vez e sem fosse necessário referir-se a mais nada. Assim, no que Comte chamava de "síntese subjetiva", a Religião da Humanidade abandona e rejeita as concepções absolutas.

A Religião da Humanidade foi criada em 1848 por Augusto Comte sob a influência de sua esposa subjetiva, a sofrida Clotilde de Vaux (1815-1846). Após uma vida de dificuldades e sacrifícios, Augusto Comte apaixonou-se pela jovem Clotilde, cuja vida também se caracterizava por sacrifícios e dificuldades imensos; o apoio de Clotilde às reflexões de Comte permitiram a ele que entendesse profundamente o quanto o amor é poderoso... o amor de Comte por Clotilde permitiu ao filósofo perceber que o verdadeiro fundamento do ser humano, da moralidade real, é mesmo o amor, que é uma outra forma de denominar o altruísmo.

Busto de Clotilde, de Décio Villares.

Retrato de Clotilde, de Etex.

Todas essas concepções belas e reais foram condensadas na profissão de fé de um dos mais ilustres positivistas e mais ilustres cidadãos brasileiros, o Marechal Rondon:

 
Marechal Rondon

Eu Creio:

Que o homem e o mundo são governados por leis naturais.

Que a Ciência integrou o homem ao Universo, alargando a unidade constituída pela mulher, criando, assim, modesta e sublime: simpatia para com todos os seres de quem, como Poverello, se sente irmão.

Que a Ciência, estabelecendo a inateidade do amor, como a do egoísmo, deu ao homem a posse de si mesmo. E os meios de se transformar e de se aperfeiçoar.

Que a Ciência, a Arte e a Indústria hão de transformar a Terra em Paraíso, para todos os homens, sem distinção de raças, crenças,: nações – banido os espectros da guerra, da miséria, da moléstia.

Que ao lado das forças egoístas – a serem reduzidas a meios de conservar o indivíduo e a espécie – existem no coração do homem: tesouros de amor que a vida em sociedade sublimará cada vez mais.

Nas leis da Sociologia, fundada por Augusto Comte, e por que a missão dos intelectuais é, sobretudo, o preparo das massas humanas: desfavorecidas, para que se elevem, para que se possam incorporar à Sociedade.

Que, sendo, incompatíveis às vezes os interesses da Ordem com os do Progresso, cumpre tudo ser resolvido à luz do Amor.

Que a ordem material deve ser mantida, sobretudo, por causa das mulheres, a melhor parte de todas as pátrias e das crianças, as pátrias do futuro.

Que no estado de ansiedade atual, a solução é deixando o pensamento livre como a respiração, promover a Liga Religiosa,: convergindo todos para o Amor, o Bem Comum, postas de lado as divergências que ficarão em cada um como questões de foro íntimo, sem perturbar a esplêndida unidade – que é a verdadeira felicidade.

27 janeiro 2017

Historicidade para o progresso

Há uma frase de Karl Marx, repetida à exaustão, segundo a qual "as gerações passadas oprimem os cérebros dos vivos". Ela está logo no início do 18 Brumário de Luís Bonaparte e já assumiu o caráter de frase pop de todo indivíduo que quer exibir alguma atitude "crítica", "política", "engajada", "histórica" etc., incluindo aí intelectuais, professores universitários, doutores e assim por diante.

Em contraposição a essa frase de Marx, há uma outra, agora de Augusto Comte, muito mais interessante:

"Os verdadeiros partidários do progresso social não tardarão em reconhecer que a insurreição dos vivos contra o conjunto dos mortos é contraditória com a digna preparação de um futuro que supõe o passado" (Augusto Comte, Apelo aos conservadores, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1899, p. 135).

Progresso de verdade é isso - e pressupõe uma historicidade real. O resto é lenga-lenga para impressionar e causar sensação.

23 janeiro 2013

Biologia, Sociologia e necessidade de uma ciência específica para o ser humano


Ao avaliar a Biologia, Augusto Comte afirma com enorme clareza dois fatos: por um lado, que o estudo do ser humano baseia-se no estudo das relações vitais; por outro lado, que, em virtude das características específicas da humanidade, é necessária uma ciência radicalmente diferente da Biologia a fim de estudar-se o ser humano.
Entretanto, quais são os motivos que exigem uma ciência "radicalmente diferente" exclusiva para o ser humano? São várias razões, de diferentes ordens. Inicialmente, o fato de que o ser humano é um ser caracterizado pela continuidade, o que, no vocabulário cifrado de Comte, quer dizer que o ser humano é um ser histórico. Em segundo lugar, a coordenação dos conhecimentos humanos exige uma perspectiva subjetiva (ou seja, do método subjetivo), que só pode ser fornecida pela ciência que conheça o próprio ser humano, ou seja, a Sociologia (e, nos volumes seguintes do Sistema de política positiva, também a Moral). Em terceiro lugar, a própria Biologia necessita da perspectiva humana para estruturar-se, seja por ter uma referência teórica (o ser humano), seja para justificar seus estudos específicos.
Deixando de lado a avaliação comtiana da Biologia, o trecho abaixo evidencia o quanto são radicalmente erradas as afirmações – comuns, é verdade – de que o Positivismo e Comte teriam reduzido a Sociologia à Biologia, ou seja, que eles esposariam uma perspectiva biologizante do ser humano. Nada mais errado que isso.

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“Ainsi, la suprême vitalité, particulière au Grand-Être, se lie encore mieux à la vitalité intermédiaire des animaux que celle-ci à la vitalité fondamentale des végétaux. Cette progression nécessaire complète le dualisme élémentaire da la philosophie naturelle entre le monde et la vie, en le rattachant étroitement à la seule source possible d'une synthèse réelle. Mais, malgré l'intime connexité de notre existence sociale avec la simple existence animale, son étude directe exige une science radicalement distincte. Ayant pour base objective l'ensemble hiérarchique des autres théories abstraites, elle constitue, au point de vue subjectif, l'unique régulateur commun de leurs méthodes et de leurs doctrines. Le concours général, dans l'espace et dans le temps, des organes qui composent l'être immense et éternel, demande une appréciation spéciale, à la fois statique et dynamique, à laquelle la biologie ne peut davantage suppléer que la cosmologie, quoique toutes deux lui fournissent un préambule nécessaire. C'est, au contraire, à la sociologie que la biologie doit demander la véritable théorie des plus hautes fonctions de l'animalité. Il faut, en effet, que chaque classe de phénomènes s'étudie surtout dans les êtres où elle se développe le mieux, et d'où l'on passe ensuite aux cas moins prononcés. Or, ces attributs supérieurs, soit intellectuels, soit moraux, quoique plus complets chez notre espèce, ne s'y caractérisent assez que par l'existence sociale. Sans la solidarité, et surtout la continuité, qui la rendent si supérieure à toute autre, ses principales aptitudes y seraient presque aussi équivoques que dans les races voisines, où l'on tenta de les rapporter au pur automatisme. Ainsi, les mêmes motifs, logiques et scientifiques, qui réservent à la végétalité l'étude fondamentale de la vie de nutrition, représentent notre socialité comme pouvant seule manifester les plus nobles lois de la vie de relation. Cette nécessité philosophique explique l'extrême imperfection de la théorie générale des fonctions intellectuelles et morales, même depuis que Gall et Cabanis ont tenté d'en exclure toute métaphysique en la rattachant à l'ensemble de la biologie. Leurs lois réelles ne peuvent être découvertes et établies que par la sociologie, quoique sa propre fondation ait d'abord exigé l'usage provisoire des meilleures ébauches antérieures. Quelque utile que doive devenir, à cet égard, l'étude positive des animaux, elle ne comportera jamais qu'un office secondaire, à titre de contrôle naturel des conceptions sociologiques dont elle ne saurait dispenser. Son efficacité ultérieure restera donc essentiellement analogue à la précieuse réaction critique qu'elle exerça récemment contre les hypothèses théologico-métaphysiques. En un mot, la biologie ne peut cultiver dignement ce grand sujet qu'en s'y subordonnant à la sociologie, qui seule y est vraiment compétent” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 621-622).

06 janeiro 2013

Necessidade de vistas gerais e históricas para o estudo de qualquer ciência


Na passagem abaixo, Comte evidencia que não se pode estudar uma ciência por ela mesma: é necessário que esse estudo esteja vinculado à visão de conjunto, ou seja, às ciências anteriores e, principalmente, às ciências finais (Sociologia e Moral).
Ora, a relação de cada ciência com as demais e com a Sociologia e a Moral, além de conferir pleno sentido (ou, simplesmente, sentido efetivo) às concepções de cada ciência, tem duas outras conseqüências importantes. Por um lado, a relação com a Moral indica os limites de cada ciência, evitando o cientificismo e o academicismo, em que a ciência vale por si própria, sem qualquer outra consideração; em outras palavras, evita-se a absolutização da ciência.
Por outro lado, a referência à Sociologia indica o caráter histórico de cada ciência, esclarecendo não apenas a marcha do pensamento para cada concepção específica, mas também a do conjunto da ciência.
Essas observações, por fim, têm uma outra importante conseqüência:  nenhuma concepção isolada faz sentido se não se considerar o conjunto das especulações (científicas e filosóficas) e nenhum ramo da disciplina científica História faz sentido se não se relacionar à História geral da Humanidade.

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“En achevant d’apprécier une telle restriction systématique de chaque science préliminaire à l’essor nécessaire pour constituer la suivante, on reconnait aisément la profonde rationalité de cette discipline. Car, l’étude directe d’une science quelconque ne peut jamais être que provisoire, même enver ses propres conceptions. Leur principale appréciation résulte toujours, et surtout en mathématique, de leurs rélations essentielles avec les théories supérieures, puisque les sciences ne s’unissent que par leurs grandes faces. Il faut donc hâter le plus possible ces indispensables préparations, pour s’établir au seul poste d’où l’on puisse embrasser réellement tous les aspects thériques. Ainsi, la discipline sociologique doit être aussi invoquée au nom même de la vraie dignité scientifique. C’est seulement en statique sociale que l’on commence à sentir la véritable grandeur des diverses théories préliminaires d’après leurs relations mutuelles, qui ne pouvaient assez surgir auparavant. Mais cette appréciation ne devient même complète que dans la sociologie dynamique, qui les caractérise mieux par leur filiation historique. Aucune science ne peut être dignement comprise sans son histoire essentielle, et aucune véritable histoire spéciale n’est possible que d’après l’histoire générale. De vrais sociologistes sont donc seuls capables de bien connaître la mathématique, dont les meilleurs géomètres n’ont pu concevoir l’ensemble. Lagrange en a mieux approché qu’aucun autre, parce que ses principales méditations ont été aussi profondément historiques que son temps le permettait. Pour sentir l’intime réalité d’une telle maxime philosophique, il suffit de reconnaître qu’aucun astronome n’a jamais pu s’expliquer pourquoi Hipparque ne découvrit point les lois de Kepler. Quelque simple que paraisse une telle question, la sociologie peute seule y répondre, parce qu’elle dépend de la marche réelle de l’évolution humaine, tant sociale que mentale” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 475).

25 outubro 2012

Historicidade da lógica positiva (objetividade+subjetividade)


A passagem abaixo evidencia o quanto a lógica positiva, que combina a objetividade com a subjetividade, é histórica. Mas “histórica” não no sentido de ser passageira, fugaz: histórica no sentido de que exigiu uma série de preparações intelectuais, morais e políticas para constituir-se. Por um lado, foi necessário que a objetividade das ciências naturais conhecesse o mundo e controlasse a subjetividade humana; por outro lado, a criação da Sociologia permite que a subjetividade torne-se relativa e incorpore a afetividade.
Assim, a historicidade da lógica positiva evidencia o quanto o “historicismo radical” contemporâneo, que afirma que há apenas rupturas históricas e que o ser humano é incapaz de acumular idéias e de transmitir valores, é falho.

Ao mesmo tempo, a lógica positiva afirma que os conhecimentos humanos devem ter um caráter sintético: não há “ciências históricas” (ou “ciências do espírito”) em contraposição às “ciências naturais”; há o conhecimento humano, que começa objetivo e analítico e, ao chegar à Sociologia (ou melhor, à Biologia), passa a ser sintético e também claramente subjetivo.

Em vez de “duas culturas” (científica versus humanística) ou “três culturas” (científica versus humanístico-literária versus sociológica), há apenas uma cultura: a síntese subjetiva.

*   *   *

“Malgré ces divers indices de son aptitude immédiate, la vraie logique religieuse, à la fois objective et subjetive, ne fait certainement que de la naître. Tout son essor caractéristique appartient au prochain avenir. Son élément rationnel, seul cultivé jusqu’ici, ne pouvait être dignement conçu, faute d’une connaissance réelle des lois intellectuelles, seulement appréciables dans l’évolution scientifique de l’humanité. Aussi cette élaboration méthaphysique n’a-t-elle jamais abouti qu’à des préceptes vagues et stériles, même quand elle ne se préoccupait plus de formalités puériles ou vicieuses. Mais la logique affective dut encore moins avancer, puisque les phénomènes correspondants furent toujours regardés comme soustraits à toute loi. Elle ne fut sérieusement cultivée que dans le moyen âge, sous l’impulsion catholique, dont le déclin en suscita encore d’admirables essais, chez les principaux mystiques. A ces premiers rudiments empiriques, le positivisme peut seul faire succéder un vaste essor systématique, puisqu’il s’établit surtout dans l’ancien domaine de la grâce, désormais ramenée à des lois appréciables, sources nécessaires de prévision et d’action. 

[...]

Cette double aptitude fondamental du régime final repose entièrement sur le caractère positif de la nouvelle méthode subjective. Par cela seul que l’ancienne était théologique, ou même métaphysique, elle restait inconciliable avec la méthode objective, qui dut toujours être positive, pour fournir des prévisions réelles, propres à guider une activité efficace. Tandis que la subjectivité poussait l’esprit à l’absolu, l’objectivité le ramenait au relatif. Ce tiraillement continu ne permettait aucun équilibre logique. La cohérence mentale éxigeait d’abord l’homogénéité des méthodes. Or, la pratique ne pouvant renoncer à la marche objective, il fallait bien que la théorie abondonnât la marche subjective, du moins tant que dura l’évolution préparatoire. Ce préambule, désormais complet, a conduit l’essor analytique jusqu’à fournir, par la fondation de la sociologie, la base d’une nouvelle synthèse. Dés lors, la méthode subjective, appuyée sur le sentiment direct du Grand-Être, devient aussi relative que la méthode objective, coordonée d’après la conception générale de l’ordre extérieur. Ainsi s’organise notre vrai régime intellectuel, en rapport avec notre véritable destinée sociale. La pleine harmonie mentale n’aurait pu surgir auparavant, que si la philosophie théologique était devenue réellement objective ; ce qui fut toujours impossible, même sous le polythéisme” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 451-452).

20 outubro 2012

Aforismas sociológicos VI




§ 1º – Historicidade de Augusto Comte (e dos seus críticos contextualistas)

A leitura de Augusto Comte conduz com muita intensidade à noção de historicidade do ser humano. O seu Positivismo, ao contrário do que argumentam os seus críticos e ao contrário do que argumentam os críticos do “positivismo”, tem como pressuposto a noção de que o ser humano é antes e acima de tudo um ser histórico: não é possível falar em humanidade sem levar em consideração a historicidade. Na verdade, precisamente nesse sentido, o que distingue a espécie humana das outras espécies animais – e que, aliás, exige uma ciência específica para si, a Sociologia – é o caráter social do ser humano, o que, como dito há pouco, equivale no pensamento comtiano à historicidade.

Ora, não deixa de ser profundamente irônico que justamente os autores que postulam um historicismo radical, a partir da concepção de que é necessário compreender cada ação humana em seu contexto específico, proponham no final uma concepção fragmentária da realidade humana. A “história” é apenas a sucessão de “contextos”, justapostos cronologicamente. Essa concepção, por outro lado, lembra bastante a que Weber tinha a respeito da sociedade: para ele, não existe um agregado supra-individual, mas apenas relações individuais. Sem dúvida alguma, há perdas importantes de racionalidade – de “compreensão” da realidade humana – com cada uma dessas perspectivas (a do historicismo radical e a da sociologia weberiana): o que se perde é a compreensão de que o ser humano é histórico.

Inversamente, é claro, tais perspectivas, fragmentadoras, afirmam que somente elas são “históricas”, que somente elas acedem a verdadeira natureza humana. O que ocorre é que o contextualismo histórico, sacrificando a visão de conjunto, é útil para pesquisas empíricas, localizadas; a suposta ausência de pressuposições, que a perspectiva fenomenológica esposada por tais perspectivas advoga, permite que se acumulem observações empíricas indefinidamente, sem preocupações com uma inteligibilidade histórica mais ampla – que é descartada a priori, aliás. O resultado é que as perspectivas contextualistas são, supostamente, úteis para a historiografia porque – justamente ao contrário do Positivismo e ao contrário da auto-imagem propalada – são ultra-empíricos (“empiricistas”). (“Supostamente” porque elas apenas acumulam fatos e interpretações empíricas, mas sacrificam totalmente a compreensão mais ampla, isto é, a grande interpretação macro-histórica; além disso, há um orgulho na multiplicação de abordagens “micro-históricas” e um completo desdém pela possibilidade de síntese entre essas diversas perspectivas. É uma espécie de “capitalismo selvagem intelectual”, com um culto à anarquia e à dispersão.)


§ 2° Abordagens “historicamente informadas” na Sociologia e generalizações

Quando se fala em “abordagem histórica” para as teorias sociológicas (incluindo aí, é claro, as politológicas), há evidentemente inúmeras formas de encarar essa “historicidade”. Uma delas é aplicar os raciocínios e métodos próprios à disciplina acadêmica chamada História: nesse caso, a Sociologia torna-se uma província da História e, no fundo, não se vê em que é que a Sociologia distingue-se da História, exceto, talvez – e o “talvez” deve ser bastante enfatizado –, por um certo caráter comparativo. As abordagens contextualistas têm este viés: não existe propriamente Sociologia, mas apenas historiografia e uma infinidade de histórias.

Uma outra forma é entender que Sociologia e História, embora tenham mais ou menos o mesmo objeto, mantêm entre si relações diversas, pois seus objetivos são variados e, portanto, seus métodos também o são: neste último caso, a Sociologia pode (e, na verdade, deve) assumir que um dos elementos fundamentais do ser humano é seu caráter histórico e, a partir daí, elaborar suas pesquisas. Mas a Sociologia assumir que o ser humano é histórico não é o mesmo que assumir que a própria Sociologia deve subsumir-se à História: significa, muito diferentemente, que as sociedades acumulam materiais afetivos, intelectuais, políticos geração após geração e que cada geração tem que lidar criativamente com esses materiais, que serão passados adiante. Uma teoria “historicamente informada” na Sociologia que não seja uma forma diferente de fazer historiografia pode assumir que o ser humano caracteriza-se pela historicidade e, a partir daí, entender as várias formas de organizar-se e relacionar-se; nesse caso, a disciplina da História fornece materiais empíricos para a produção Sociológica, que tem o papel de coordenar e interpretar esses dados empíricos. Que as interpretações sociológicas dos materiais historiográficos sejam interpretações de segundo nível não há problema: pode-se pensar nos níveis teóricos da Antropologia: etnografia, etnologia e antropologia. Nessa escala, a interpretação maior caberia à Sociologia (antropologia, na seqüência anterior) e as interpretações iniciais, ou intermediárias, caberiam à História (etnologia, na seqüência anterior).

A História trata dos trajetos específicos de cada sociedade; a Sociologia, por outro lado, procura comparar os diversos trajetos, sejam eles momentos diferentes da mesma sociedade, sejam eles sociedades diferentes no mesmo momento, sejam, por fim, momentos diferentes de diferentes sociedades. A História, portanto, trata do que é específico; mesmo que ela faça comparações, seu objetivo é sempre o específico (Weber aplicou esse método à Sociologia, mas no final somente reafirmou a História, ou melhor, a metodologia historiográfica, em completo detrimento da Sociologia). Ora, o específico é interessante e em inúmeros casos pode ser politicamente importante, mas o fato é que o específico trata sempre de um único caso; o específico não diz nada a respeito das possibilidades de variação, das rotas opcionais, das grandes marchas: isso é possível somente via comparação, ou melhor, via generalização. “Compreender” o ser humano implica conhecer essas diversas possibilidades teóricas: em outras palavras, só se pode conhecer efetivamente o ser humano a partir das generalizações.

08 janeiro 2011

Comemorações e selos

Texto publicado em 14.3.2011 na Gazeta do Povo (Curitiba) e disponível aqui

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Comemorações e selos

O ser humano é um ser social, histórico e simbólico: isso significa que só pode viver em sociedade, cujos resultados acumulam-se ao longo do tempo e que têm importância material e também cultural. Assim, como dizem, “recordar é viver”: nossas famílias, nossos concidadãos, os grandes nomes da Humanidade.

Os selos postais foram inventados no século XIX para facilitar as trocas comerciais e epistolares; começaram indicando apenas os valores monetários e logo passaram a homenagear valores, pessoas, datas e invenções: essa foi uma forma simples, barata e popular de cada país realizar sua historicidade.

O Brasil não é exceção e tem uma programação anual de selos oficiais comemorativos, lançados pela Empresa de Correios e Telégrafos, em comissão do Ministério das Comunicações. Não apenas figuras nacionais já foram homenageadas – o inventor Santos Dumont ou o time Corinthians, por exemplo –, mas também personagens mais distantes no tempo e no espaço – como o infante Dom Henrique, príncipe português do século XV que favoreceu as grandes navegações, e Santa Clara de Assis, companheira de São Francisco. Ao fazê-lo, os Correios e o Ministério das Comunicações realizam obra cultural importante, de amplo alcance humano.

Desde 2005, todavia, o Ministério das Comunicações do Brasil estabeleceu que, nos selos referentes a pessoas, somente se pode comemorar o nascimento, nunca a morte dos indivíduos. Na verdade, o item V.II da Portaria 500/2005 estabelece que “Selo homenageando personalidade deverá ser emitido, preferencialmente, no aniversário de nascimento do homenageado, evitando-se referência à data fúnebre”. Como já tive ocasião de comprovar, o “preferencialmente” é tomado ao pé da letra e lido como “unicamente”.
Essa decisão, tão simples, é tola, ingênua e contraproducente. Recusar a “referência à data fúnebre” parece medida de grande humanismo, mas é apenas demagogia barata, adotando a visão simplista e piegas (por sugestão de “marqueteiros”?) de que a morte é “ruim” e, como tal, deve ser “evitada”.

Assim, a questão que se apresenta é ao mesmo tempo bastante filosófica e de interesse público: o que é mais importante homenagear, o nascimento ou o falecimento? Ora, é evidente que todos os indivíduos que vivem ou viveram nasceram em algum momento; isso é algo para comemorar-se, sem dúvida. Mas um nascimento é apenas uma promessa, uma grande esperança, que pode realizar-se ou pode frustrar-se. A todo instante vemos pessoas que tinham “tudo para dar certo” mas que erraram e falharam, ou cujas decisões foram desastrosas; vemos políticos, artistas, pensadores, industriais e cidadãos comuns cujos comportamentos conduziram ao desastre não apenas as próprias vidas como as vidas dos demais indivíduos. Ou, inversamente, pessoas cujos nascimentos não prenunciavam muito mas cujas vidas foram plenas de significação e realizações.

Em outras palavras, avaliar de fato a vida de cada um só é possível no final dela, freqüentemente após vários anos (mesmo décadas ou séculos) do falecimento. Definir se alguém merece alguma forma de homenagem – com selo, estátua, nome de ruas, avenida, museu, cidade etc. – só é possível após o falecimento.

Essa perspectiva não guarda relações com a visão macabra sugerida pela Portaria do Ministério das Comunicações; em vez de centrar-se em indivíduos que vivem em si e para si, comemorar as datas dos falecimentos é afirmar que o ser humano é social, histórico e simbólico, isto é, que vive para os outros e nos outros e que, quando sua vida realmente valeu a pena, merece ser eternizada, inclusivamente nos pequenos adesivos que facilitam as comunicações humanas.