29 dezembro 2014

Comemorações de 227 (2015)

Comemorações de 227 (2015)

NOME
VIDA
CALENDÁRIO
J.-G.
WIKIPÉDIA
Aristides
535 ac-468 ac
(2550 anos)
3.César
25.abr
Aristipo
435 ac-356 ac
(2450 anos)
15.Aristóteles
12.mar
Ctesíbio
285 ac-222 ac
(2250 anos)
11.Arquimedes
5.abr
?
DANTE
1265-1321
(750 anos)
Dante
16.jul.-12.ago.
Fulton
1765-1815
(250-200 anos)
19.Gutenberg
31.ago
Heráclito
535 ac-475 ac
(2550 anos)
3.Aristóteles
28.fev
Heródoto
485 ac-420 ac
(2800 anos)
6.Aristóteles
3.mar
Herófilo
335 ac-280 ac
(2350 anos)
2.Arquimedes
27.mar
Maria de Molina
1265-1321
(750 anos)
1.Frederico
5.nov
Mme. de Motteville
1615-1689
(400 anos)
16.Shakespeare
25.set
Ramus
1515-1572
(500 anos)
4.Descartes
11.out
S. Benedito
1165-1184
(850 anos)
20.São Paulo
9.jun
Sta. Teresa
1515-1582
(500 anos)
24.São Paulo
13.jun
Vauvenargues
1715-1747
(300 anos)
11.Descartes
18.out
FONTE: Wikipédia; “Apêndice” de Apelo aos conservadores (autoria de Augusto Comte; Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil, 1899), organizado por Miguel Lemos.
NOTAS:
1.     As datas de vida foram pesquisadas na internet (basicamente na wikipédia), considerando que esse procedimento permitiria obter o que há de mais atualizado a respeito das diversas biografias; além disso, cotejaram-se essas datas com as disponíveis no “Apêndice” do Apelo aos conservadores.
2.     Letras maiúsculas em negrito: nomes de meses.
3.     Letras em itálico: tipos adjuntos, considerados titulares nos anos bissextos.
4.     As datas em negrito indicam os anos cujos centenários comemoram-se em 227 (2015).
5.     Os artigos da Wikipédia foram selecionados basicamente em português, mas em diversos casos ou só havia em outra(s) língua(s) ou eram melhores em outra(s) língua(s) (francês, inglês, espanhol).


RETRATOS DOS TIPOS COMEMORADOS
Aristides
Fonte: wikipedia.

Aristipo.
Fonte: wikipedia.

Dante
Fonte: wikipedia.

Fulton
Fonte: wikipedia.

Heráclito
Fonte: wikipedia.

Heródoto
Fonte: wikipedia.

Herófilo
Fonte: wikipedia.

Maria de Molina
Fonte: wikipedia.

Mme. de Motteville
Fonte: wikipedia.

Ramus
Fonte: wikipedia.

São Benedito
Fonte: wikipedia.

Santa Teresa
Fonte: wikipedia.

Vauvenargues
Fonte: wikipedia.

02 dezembro 2014

"Ordem" e "progresso" como categorias sociopolíticas legítimas

"Ordem" e "progresso" como categorias sociopolíticas legítimas

Gustavo Biscaia de Lacerda



Um dos motivos por que o Positivismo é visto como estranho para os dias de hoje e até mesmo (embora incorretamente) como "autoritário" é que ele afirma com clareza que há uma separação entre governo e sociedade civil e que a última não deve governar, seja por motivos práticos – se todos governarem, ninguém governará ninguém; além disso, se todos governaram, estabelecer-se-á a "soberania popular", que resulta em totalitarismo e/ou em arbítrio –, seja por motivos morais – quem governa deve dispor-se ao mando, ou seja, a uma forma particularmente forte de egoísmo (mesmo que oriente socialmente esse egoísmo).

*          *          *

O que se chama atualmente de "esquerda", hoje como desde o século XIX, é sistematicamente favorável à revolta contra o poder político e contra o poder econômico; além disso, com freqüência não hesita em sacrificar a liberdade em nome da igualdade. Nesse sentido, não deixa de ser extremamente significativo o fato de que são vivamente celebradas as concepções políticas e sociais ditas "contestatórias", "revolucionárias", "críticas": o objetivo dessas concepções é apresentar-se de maneira contrária às ordens estabelecidas, vistas sempre, por definição, como "autoritárias", "injustas", incorretas e, por vezes, contrárias ao progresso.

*          *          *

A teoria social e política contemporânea valoriza acima de tudo o anormal, o esquisito, o desviante, o marginal: a normalidade e o ajustamento são vistos com intensa desconfiança e como valores ou objetivos "conservadores". Da mesma forma, o conflito é visto como elemento central, necessário e positivo da sociedade; a harmonia, a paz e a concórdia são negativos, prejudiciais e, claro, "conservadores".

*          *          *

A esquerda é a favor do progresso, mas, não somente não o conceitua para além (1) da igualdade e da eqüalização contínuas e (2) das "mudanças" sociais contínuas, é incapaz de assumir a mais evidente conseqüência do progresso, que é a diferenciação social e, portanto, a produção de desigualdades sociais. Em contraposição, cria o sofisma que opõe as "diferenças" às "desigualdades".

A esquerda chama a si própria de "progressista", mas o parâmetro que adota para avaliar o progresso é apenas a realização de seus ideais; esses ideais, por sua vez, são meramente sonhos políticos, que ignoram a realidade sociológica, com freqüência em nome das "utopias". Em outras palavras, defendem mudanças sociais, mas não sabem, nem querem saber, se tais mudanças são possíveis ou desejáveis; mas quem critica essa política quimérica é tachado de "conservador" e "reacionário".

*          *          *

Causam-me profundo espanto todos aqueles indivíduos que, dizendo-se "progressistas", ainda assim professam crenças em variadas formas de teologia, sejam elas fetichistas, sejam elas politeístas, sejam elas principalmente monoteístas (no caso do Brasil, de modo geral católicos); da mesma forma, espantam-me afirmações segundo as quais o estímulo às teologias (fetichistas, politeístas, monoteístas) e às metafísicas seriam propostas "progressistas" e índices de progresso: é o mesmo que dizer que ir para trás é avançar.

Mas, por outro lado, também me espanto ao ver indivíduos ditos "progressistas" que, não crendo no sobrenatural, encerram-se no ateísmo e no individualismo, em vez de afirmarem o humanismo e a perspectiva social.

*          *          *

Todos aqueles que afirmam que a fórmula "ordem e progresso" busca limitar o progresso à ordem são incapazes de definir o progresso, em particular para além da definição geral de Condorcet, para quem o progresso é desenvolvimento contínuo, permanente e infinito. Ao contrário da fórmula da infinidade, o "ordem e progresso" definido por Augusto Comte estabelece as condições, as possibilidades e os limites do progresso, dizendo com clareza exatamente em que ele consiste. Em outras palavras, o "ordem e progresso" tira a idéia de progresso da vagueza e, portanto, da metafísica; ao contrário, quem rejeita essa fórmula em nome do progresso indefinido é simplesmente incapaz de entender a ordem de outra maneira que não como sendo "despotismo" ou "autoritarismo".

*          *          *

Há também a possibilidade de recusar-se o "ordem e progresso" devido a uma rejeição do próprio progresso, seja porque há um apego à ordem, seja porque se nega a idéia de progresso. Quem se apega à ordem já foi retrógrado, atualmente é reacionário; bem vistas as coisas, nos dias de hoje são relativamente poucos grupos que rejeitam qualquer progresso: por vezes limitam as ambições de outros grupos em um ou outro aspecto e o mais das vezes desejam limitar o desenvolvimento ao que já se obteve: esses poderiam ser denominados de "reacionários" ou "conservadores". Os grupos atuais que têm um caráter especificamente retrógrado são, não por acaso, os teológicos, majoritariamente cristãos, muçulmanos e até judeus (embora, saindo do espectro teológico, possamos também incluir também na rubrica de retrógrados os comunistas).

Já os que rejeitam a idéia de progresso não são necessariamente retrógrados, no sentido de rejeitarem melhorias: antes, são irracionalistas, que rejeitam a concepção de "leis sociológicas" e que consideram que a história humana consiste apenas e tão-somente de "som e fúria", de choques permanentes e infinitos entre os grupos humanos. Esse tipo de raciocínio freqüentemente é metafísico e, não por acaso, também com freqüência é possível determinar suas origens teológicas, tão próximas ao misticismo e à metafísica alemã. Se a vida é apenas choque permanente, além de não ser possível determinar sentido algum nesta vida, o máximo que se pode almejar em termos coletivos é a vida política e, em particular, a política do poder – em outras palavras, egoísmos coletivos, guerras e dominação de todos sobre todos. Inversamente, se a vida é apenas luta e disputa, o consenso é uma ilusão e/ou uma hipocrisia. Cumpre notar que, de modo geral, essa concepção irracionalista é especificamente acadêmica, isto é, ela é exposta e defendida por "intelectuais"; ironicamente, com freqüência esses intelectuais defendem essa concepção como sendo mais científica e/ou como mais avançada que suas rivais, de modo que, embora explicitamente critiquem o progresso, implicitamente defendem uma forma dele.

O "ordem e progresso" propõe a conciliação das necessidades da ordem social e das tendências de desenvolvimento humano. Em uma outra forma de considerar as dinâmicas políticas e sociais, muitos afirmam que é necessário em toda sociedade e em todo regime político a existência de situação e oposição ou, em termos parecidos, de "direita" e "esquerda". Situação e oposição, de um lado, e direita e esquerda, de outro lado, não são equivalentes a ordem e progresso: seja porque, no limite, podem ser oposições meramente formais, seja porque seus conteúdos específicos diferem bastante de ordem e progresso. A dupla "situação e oposição" refere-se apenas ao fato de que há alguém (ou algum grupo) que governa e alguém (ou algum grupo) que (nominalmente) não gosta de quem está no poder e que gostaria de governar em seu lugar: refere-se, portanto, apenas à disputa pelo poder (e, nesse sentido, esse par de conceitos é compatível com a rejeição irracionalista da idéia de progresso).

O par "direita e esquerda", por outro lado, tem conteúdos muito mais problemáticos, na medida em que, surgida essa oposição na Revolução Francesa, em mais de 200 anos ela já mudou inúmeras vezes de conteúdo. De modo geral, o pólo forte é a esquerda: é ela quem costuma definir os conteúdos respectivos de cada um dos pólos, seja por derivação lógica (se a esquerda define-se pela "justiça", à direita corresponderia a "injustiça"), seja por imputação voluntária direta (como quando a esquerda define como traço específico da direita o fascismo) – mas é claro que tal posição de superioridade lógica da esquerda nem sempre se verifica historicamente. De qualquer maneira, nem a esquerda pode ser sinônima automática de progresso e liberdade (embora seja sempre sinônimo de igualdade – o que, mais uma vez, não é sinônimo nem de progresso nem de liberdade), nem a direita é sinônima de autoritarismo (embora também não implique nem a liberdade nem a ordem).

Em suma: enquanto "ordem e progresso" corresponde, de fato, a um programa político e social claro, com liberdades e melhorias nas condições de vida, "direita e esquerda" é uma oposição vaga e freqüentemente estéril; "situação e oposição" é apenas uma formalização da disputa pelo poder, conforme a política britânica cristalizou.

*          *          *

Há quem proponha que, como os estudantes das Ciências Naturais tendem a ser mais conservadores e os estudantes das Ciências Humanas tendam a ser mais "revolucionários", isso se deva a que haveria uma divisão política entre C. Naturais e C. Humanas semelhante à polarização entre esquerda e direita. Essa concepção é equivocada e profundamente daninha: não porque não haja diferenças entre os ramos científicos, nem porque não seja possível, e por vezes necessário, politizar a prática científica, mas porque transporta para o âmbito da compreensão da realidade a dinâmica de oposição característica do mundo político. Em outras palavras, em vez de entender-se a relação entre Ciências Humanas e Ciências Naturais como de complementaridade de resultados e mesmo de métodos (ainda que cabendo a presidência do sistema às Ciências Humanas), a transposição a esse par da dicotomia direita-esquerda dá a entender que no âmbito científico, isto é, no âmbito da compreensão da realidade é válida e aceitável a dinâmica estabelecida entre "situação" e "oposição" ou, por outro lado, que os desenvolvimentos havidos nas Ciências Humanas corresponderiam ao avanço da justiça ou, mais precisamente, da igualdade (lembrando que igualdade e justiça nem são sinônimas nem se implicam mutuamente) e os desenvolvimentos das Ciências Naturais corresponderiam a avanços da "ordem", do "status quo" e, no limite, do "autoritarismo". Nada disso faz sentido e, confirmando o que afirmamos acima, o resultado dessa forma de raciocinar é altamente prejudicial para a prática científica.

         *          *          *                      

Nos meses das campanhas eleitorais para Presidente da República de 2014, no Brasil, apresentaram-se com clareza grupos sociais que se definem como sendo de "direita". Muitos deles defenderam o retorno dos militares como árbitros da vida política nacional e, em particular, a realização de um golpe de Estado militar com vistas à substituição do governo encabeçado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) por um governo encabeçado por algum outro partido político que não se declare explicitamente como sendo de "esquerda". Outros apresentaram-se como "conservadores", ou seja, como contrários às concepções "progressistas", entendidas estas de modo geral como as defendidas pelo PT, embora haja aqueles que são "conservadores" de modo político mas não político-partidário, ao defenderem visões de mundo conservadoras (que, por sua vez, amparam-se de modo geral em concepções contrárias ao progresso, seja devido ao antiprogressismo irracionalista, seja devido à aplicação à política de idéias teológicas). Muitos de "direita" definem-se assim porque defendem as liberdades, em oposição ao igualitarismo defendido pela "esquerda".

Além do fato de que desde o final do regime militar, isto é, desde há cerca de 25 anos não havia grupos sociais no Brasil que se definiam como de "direita" – o que por si só é interessante –, essa nova direita é um movimento especificamente político, ou melhor, especificamente secularizada, no duplo sentido de que até o momento não apresentou características de ideário religioso (teológico) e de que os vários grupos teológicos (mais ou menos conservadores, mais ou menos progressistas, sejam eles católicos, sejam eles evangélicos) apoiam tanto a "direita" quanto a "esquerda". De qualquer modo, o que parece unificar, ou melhor, conferir uma certa identidade – sem dúvida alguma momentânea – a essa nova direita nacional é a sua oposição sistemática ao PT e ao governo federal.

(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)

Individualismo como emancipação incompleta da teologia

Individualismo como emancipação incompleta da teologia

Gustavo Biscaia de Lacerda

Um dos maiores problemas, para não dizer "erros", de quem se emancipa da teologia é, ao realizar essa emancipação, afirmar o individualismo, seja ele epistemológico, seja ele moral, seja ele sociológico. É fácil de entender essa passagem, pois o indivíduo tem que se afirmar pessoalmente, ou melhor, a pessoa tem que se afirmar claramente como indivíduo para superar, para deixar de lado as pressões sociais em favor da teologia e reconhecer que não faz sentido e que não importa a crença nos deuses para a condução da vida humana. É claro que, quanto mais secularizada uma sociedade e, o que às vezes é um pouco equivalente, quanto mais sociologicamente diversificada uma sociedade, menor a pressão exercida pela coletividade em favor da teologia e, portanto, mais facilmente ocorre essa emancipação.

Todavia, seja porque nessa passagem com freqüência é necessário afirmar-se uma individualidade, seja porque nessa afirmação também é necessário desvalorizar fortemente (quando não desprezar) o peso da coletividade, o resultado é que é bastante comum que a emancipação conduza ao individualismo, entendendo-se por essa expressão tanto a concepção segundo a qual é o indivíduo isoladamente tomado que "constrói" a realidade (consistindo, portanto, em uma forma de solipsismo), quanto entendendo por "individualismo" as idéias gêmeas de que o objetivo da vida é a realização dos próprios indivíduos (sendo, assim, um egoísmo) e que, como os agentes da vida social são os indivíduos, não existe a "sociedade". Reafirmando mais uma vez as idéias acima: é bastante claro que essas três formas de individualismo (solipsismo, egoísmo moral e individualismo metodológico) têm em comum a rejeição da idéia de sociedade[1].

Essas três conseqüências são problemáticas porque são erradas e falsas, isto é, porque consistem em concepções que não correspondem à realidade, e também porque são moralmente daninhas, seja porque não correspondem à realidade[2], seja porque impedem o desenvolvimento do altruísmo e estimulam diretamente o egoísmo. Além disso, como um resultado um tanto paradoxal mas não necessariamente imprevisto, embora tais formas de individualismo surjam como rejeição da teologia, o fato é que elas próprias aproximam-se bastante da teologia monoteísta, em particular dos cristianismos e, ainda mais, dos protestantismos[3].

Por que esses individualismos não correspondem à realidade? Porque, apesar do fato evidente de que as sociedades somente podem existir compostas por indivíduos, é apenas coletivamente e ao longo do tempo (ou seja, historicamente) que o conhecimento é produzido[4], que o altruísmo é passível de realização e que, portanto, é possível aos indivíduos terem satisfação pessoal. Nas três situações não se trata, portanto, do truísmo segundo o qual "ninguém pode viver sozinho": trata-se, sim, de que é por meio do esforço compartilhado e acumulado que se pode conhecer a realidade, por um lado, e, por outro lado, de que o "altruísmo" consiste em "viver para os outros" e que é somente na medida em que se vive para os outros que se pode obter uma satisfação plena e duradoura. Dessa forma, não se pode entender a sociedade como a simples agregação de indivíduos: a totalidade social é maior que a soma das partes individuais. Inversamente, recusar a característica social e histórica do ser humano é recusar o próprio ser humano.

O individualismo ateu, além disso, aproxima-se em sua concepção de mundo do individualismo protestante na medida em que reconhece apenas indivíduos e rejeita as mediações sociais: enquanto o individualismo ateu rejeita a sociedade (seja na solidariedade contemporânea, seja na continuidade histórica), o individualismo protestante rejeita a igreja, ao estabelecer uma comunicação direta, pessoal e intransferível entre o crente e a divindade; em ambos os casos a pessoa está sozinha no mundo e é a única responsável pela sua satisfação íntima. Aliás, não é por acaso que as "sociologias" derivadas de ambientes protestantes têm características individualistas, de que o maior exemplo é a obra de Max Weber, que concebia apenas interações individuais e recusava-se terminantemente a definir a "sociedade". Já as obras de Hobbes e Locke apresentam um aspecto misto, juntando a emancipação individualista da teologia com aspectos do protestantismo anglicano: essas duas características tornam os dois autores também individualistas, concebendo a sociedade como a união de indivíduos ou, no caso de Hobbes, rejeitando a própria idéia de sociedade com o indivíduo plenamente egoísta e racional.

Em suma: é por esses motivos todos que a emancipação relativamente à teologia não pode parar no individualismo; ou, considerando a questão de outro ângulo, é por todas essas razões que as várias formas de individualismo (epistemológico, moral e sociológico) correspondem à emancipação incompleta da teologia.





[1] Neste texto refiro-me em particular ao individualismo ateu, isto é, causado pelo ateísmo. Mas, como se verá, existem outras variedades de individualismo, ou melhor, outras fontes intelectuais e morais do individualismo, entre as quais as teologias. De qualquer maneira, como o filósofo francês Pierre Laffitte (discípulo de Augusto Comte) e o antropólogo também francês Louis Dumont argumentaram, a rejeição monástica da sociedade foi uma das fontes mais importantes e poderosas da produção do "individualismo", ocorrendo tanto no Ocidente quanto (por exemplo) na Índia.

[2] Nesse sentido, torna-se claro que a busca da verdade é em si mesmo um valor moral. Sem dúvida que o tempo todo o ser humano percebe que várias de suas concepções são erradas: o problema não está no erro sincero, mas na persistência no erro e também no erro voluntário e consciente. O erro sincero é honesto, o erro voluntário é mentiroso; além disso, as concepções que não correspondem à realidade dos fatos e, em particular, as concepções que não reconhecem e não valorizam a natureza humana (coletiva e individual) produzem miséria e infelicidade.

De qualquer forma, importa reconhecer que conceber dessa forma a relação entre o ser humano e a sociedade, de um lado, e a verdade e a busca da verdade, por outro lado, está fora dos hábitos mentais contemporâneos, do Zeitgeist das nossas sociedades ditas "pós-modernas", em que o irracionalismo e a "ironia" têm um peso tão grande; em outras palavras, buscar e valorizar a verdade é algo fora de moda. Evidentemente, como argumentava Galileu e argumentam todos os filósofos da ciência sérios, a verdade não é simplesmente uma questão de número, isto é, ela não é "democrática".

[3] À luz da lei dos três estados intelectuais, o surgimento do individualismo ateu aproximar-se do individualismo teológico não é um resultado necessariamente imprevisto, na medida em que tanto o individualismo quanto o ateísmo são concepções metafísicas – e, como argumentava Augusto Comte, embora a metafísica tenda à positividade, o fato é que ela consiste em uma forma degradada de teologia.

[4] Nesse sentido, a própria emancipação relativamente à teologia de qualquer indivíduo é sempre dependente das outras pessoas, ou seja, é dependente da sociedade e da história: por um lado, a teologia é uma etapa na constituição do conhecimento; por outro lado, a despeito da retórica – ultra-individualista, cumpre notar – que afirma a incomensurabilidade e a infinidade da imaginação individual, a possibilidade de alguém emancipar-se é dada também pelas condições sociais e históricas próprias a cada coletividade.


(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)
(Primeira versão deste texto: 2.12.2014; segunda versão: 4.12.2014.)

Anotações sobre análise de conjuntura - uma proposta comtiana

Os comentários abaixo correspondem a algumas reflexões que desenvolvi nas últimas semanas a respeito do que se chama, na Ciência Política, de "análise de conjuntura"; ao escrevê-los, minhas preocupações foram (1) definir minimamente o que é a análise conjuntural e (2) expor alguns dos aspectos da obra de Augusto Comte que podem ser tomados como elementos seguros para uma análise de conjuntura. 

Evidentemente, somente o primeiro desses dois objetivos foi razoavelmente cumprido: o segundo objetivo, isto é, a exposição da análise conjuntural comtiana exigiria um exame detido dos textos comtianos, em particular da lição 46 do Sistema de filosofia positiva - exame que, em virtude de sua extensão, eu não poderia realizar neste momento. 

Em todo caso, parece-me que expor publicamente essas minhas anotações pode ter alguma utilidade.

*   *   *


Augusto Comte avalia sua época:
Análise de conjuntura comtiana

Gustavo Biscaia de Lacerda

A “análise de conjuntura” seria u’a metodologia desenvolvida pela Ciência Política para avaliação do momento presente. Todavia, como argumentou acertadamente Velasco e Cruz (2000), a Ciência Política – pelo menos no Brasil – não desenvolveu um conjunto de parâmetros, regras, normas e, principalmente, uma tradição de “análise de conjuntura”: em outras palavras, no país não se sabe o que é, ou melhor, de modo mais preciso, não se sabe como definir e propor de maneira didática a “análise de conjuntura”, sem que se reproduza, de alguma forma, os relatos meramente factuais, de caráter mais ou menos anedótico e que se assemelham fortemente à atividade jornalística, conforme notou com clareza Fábio Wanderley Reis (apud Braga, 2006, p. 1)[1].

Contrariamente ao que se considera muitas vezes, parece-nos que a melhor maneira de definir a "análise de conjuntura" é por meio do recorte que ela faz, ou seja, por meio do seu objeto específico, em vez da metodologia empregada; nesse sentido, ela seria apenas e tão-somente uma análise sociológica, ou político-sociológica, que aborda um lapso temporal relativamente reduzido e que, principalmente, considera o momento presente (e, a partir disso, sugere desenvolvimentos futuros para os fenômenos analisados). Assim, enquanto de modo geral as pesquisas político-sociológicas consideram processos e fenômenos passados, alguns já distantes muitas décadas e mesmo séculos, a análise de conjuntura realiza o mesmo exercício mas considerando que a distância temporal entre o momento em que se escreve e os processos em apreço não é muito longa – no limite, podem ocorrer virtualmente ao mesmo tempo.

Por outro lado, se o que individualiza a análise de conjuntura como exercício intelectual é a distância temporal entre a escrita da investigação e os fenômenos estudados, não se pode dizer que a metodologia empregada seja específica; assim, o cientista político ou o sociólogo usarão na análise de conjuntura as mesmas ferramentas intelectuais que estão à sua disposição para as investigações ordinárias sobre eventos passados. Em outras palavras, é incorreto entender a análise de conjuntura como uma técnica específica de análise político-sociológica – ainda que, sem dúvida, ela corresponda a um exercício intelectual particular.

Talvez seja possível uma precisão aqui: o traço distintivo da análise de conjuntura impõe uma precaução teórica e metodológica, no sentido de que a ausência de afastamento temporal dificulta a determinação do valor sociológico que os fenômenos analisados podem ter. Ainda assim, a dificuldade de avaliar o peso efetivo dos fenômenos tem que ser sopesada em relação à teoria sociológica empregada: afinal de contas, deixando de lado eventos completamente imprevistos (que, por definição, são impassíveis de avaliação científica a priori[2]), a função da teoria – de qualquer teoria – é determinar o que é importante e o que é secundário, quais são os atores sociais e as tendências sociopolíticas relevantes, quais as ordens de importância dos variados processos sociopolíticos etc. A análise de conjuntura, nesse sentido, com base no passado, interpreta o presente com vistas ao aconselhamento para o futuro; ou melhor, como argumentou Augusto Comte (1969, 48è leçon), com base no passado ela propõe um quadro para o futuro, interpretando assim o presente. Dito de outra maneira, a análise de conjuntura permite ao analista realizar plenamente a lógica da inferência científica, aplicando ao futuro, na forma de previsões científicas, os esquemas relacionais desenvolvidos em relação ao passado na forma de explicações, conforme proposto por John Stuart Mill[3] (cf. PERISSINOTTO, 2009).

A literatura brasileira, na medida em que possui alguma tradição de análise conjuntural, concentra-se em autores de origem marxista: tanto Velasco e Cruz (2000) quanto Braga (2006), ao mesmo tempo em que, de diferentes maneiras, filiam-se a correntes marxistas, desenvolvem suas análises conjunturais e indicam também a riqueza das análises inspiradas em Marx (O 18 Brumário, Guerra civil em França), Lênin (Que fazer?, O imperialismo), Gramsci (Maquiavel) etc. Além das vertentes marxistas, o que a literatura indica é que outros autores que serviriam de inspiração para análises conjunturais seriam Tocqueville (Lembranças de 1848) e Weber (Parlamento e governo). Entretanto, um autor que apresenta longas análises de conjuntura mas que, devido a diversos motivos[4], não é usado como inspiração é Augusto Comte.

Aquilo que poderíamos chamar de “análises de conjuntura” na obra de Comte estão presentes em vários livros, de diferentes maneiras: seja nos vários prefácios e nos corpos das obras “religiosas” (Système de politique positive, Appel aux conservateurs, Synthèse subjective), seja no seu amplo epistolário. Mas, de qualquer maneira, para os presentes objetivos é na lição 46 do Système de philosophie positive, presente no volume IV dessa obra, que se encontra uma longa análise conjuntural, desenvolvida a título de justificativa política da necessidade e da oportunidade da criação de uma filosofia positiva e, portanto, da criação da própria Sociologia. A lição, isto é, o capítulo em tela intitula-se precisamente “Considérations politiques préliminaires sur la nécessité et l’opportunité de la physique sociale, d’après l’analyse fondamentale de l’état social actuel”[5] e foi publicado em 1838; esse título indica de maneira clara sua intenção – qual seja, realizar a “análise fundamental do estado social atual”. Aliás, consoante os traços característicos da análise conjuntural que indicamos acima – trata-se de um exercício político-sociológico como qualquer outro, com a particularidade de que se concentra no momento presente –, ao expor suas "considerações preliminares", Comte já desenvolve a própria Sociologia.

Quais são os elementos da análise de conjuntura realizada por A. Comte?

-        crise ocidental crescente desde o fim da Idade Média, exposta claramente pela Revolução Francesa;
-        constituição de três grupos sociais e intelectuais e, a partir disso, de três partidos políticos na França do século XIX: os retrógrados, os revolucionários e os estacionários;
-        análise da constituição intelectual (i. e., dos princípios sociopolíticos) de cada um desses grupos;
-        relação desses grupos com a ordem e com o progresso;
-        necessidade e possibilidade de um terceiro princípio sociopolítico – a filosofia positiva –, resultando em um movimento político que permita ao mesmo tempo a ordem e o progresso;
-        análise das possibilidades de adesão dos grupos existentes ao novo movimento político;
-        análise da atuação política dos intelectuais.

Referências bibliográficas
BRAGA, Sérgio S. 2006. Alternativas políticas e configuração do bloco no poder na última conjuntura eleitoral brasileira. O que fazer? Curitiba: Grupo de Análise de Conjuntura.
COMTE, Augusto. 1908. Cours de philosophie positive. V. IV: Contenant la partie dogmatique de la philosophie sociale. Paris: Schleicher. Disponível em: https://ia700804.us.archive.org/2/items/coursdephilosop04comt/coursdephilosop04comt.pdf. Acesso em: 2.dez.2014.
COMTE, Augusto. 1969. Cours de philosophie positive. V. IV: Contenant la partie dogmatique de la philosophie sociale. Paris: Anthropos.
Grange, Juliette. 2003. Expliquer et comprendre de Comte à Dilthey. In: Zaccaï-Reyners, N. (dir.). Explication et compréhension. Regards sur les sources et l'actualité d'une controverse épistémologique. Bruxelles: Université de Bruxelles.
HEILBRON, Johan. 2006. Comment penser la genèse des sciences sociales? Revue d'Histoire des Sciences Humaines, Paris, n. 15, p. 103-116. Disponível em: http://www.cairn.info/revue-histoire-des-sciences-humaines-2006-2-page-103.htm. Acesso em: 2.dez.2014.
LACERDA, Gustavo B. 2009. Augusto Comte e o “Positivismo” redescobertos. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 17, n. 34, p. 319-343, out. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/v17n34/a21v17n34.pdf. Acesso em: 2.dez.2014.
LACERDA, Gustavo B. 2011. Uma teoria política histórica: o republicanismo comtiano. Artigo apresentado no XXVI Simpósio Nacional de História, realizado entre 17 e 22 de julho, em São Paulo. Digit. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300899247_ARQUIVO_GustavoBiscaiadeLacerda-Teoriapoliticahistoricacomtiana.pdf. Acesso em: 2.dez.2014.
Nogueira, Marco A. 2013. As ruas e a democracia: ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contraponto.
PERISSINOTTO, Renato M. 2009. Comparação e Ciência Social: modelos teóricos e aplicações práticas. In: CODATO, A. & TRIBESS, C. (orgs.). Anais do evento Política, História e sociedade: perspectivas comparadas. Curitiba: NUSP-UFPR.
VELASCO E CRUZ, Sebastião. 2000. Teoria e método na análise de conjuntura. Educação & Sociedade, São Paulo, v. XXI, n. 72, p. 145-152, ago.
Werneck Vianna, Luiz. 2006. Esquerda brasileira e tradição republicana. Estudos de conjuntura sobre a era FHC-Lula. Rio de Janeiro: Revan.





[1] Todavia, isso não equivale à ausência de bons cultores e praticantes da análise de conjuntura no país: os livros de Luís Werneck Vianna (2006) e de Marco Aurélio Nogueira (2013) são boas coletâneas de análises conjunturais desenvolvidas respectivamente pelos seus autores. Os textos de Nogueira, em particular, ainda que revisados posteriormente para publicação, foram redigidos literalmente à medida que os eventos analisados desenrolavam-se ante suas vistas, o que indica o caráter "momentâneo" da análise de conjuntura.

[2] Embora seja mais ou menos evidente, é necessário dizê-lo com todas as letras: isso não impede, por certo, a avaliação a posteriori desses eventos: dessa forma, embora os eventos imprevistos por definição não sejam passíveis de antecipação racional, sem dúvida que eles podem ser avaliados e examinados após sua realização à luz da(s) teoria(s) sociopolítica(s). Além disso, ao contrário do que apregoam algumas teorias e metodologias sociológicas e históricas de viés contextualista, inspiradas em determinadas formas de idealismo (como as de M. Weber, de Q. Skinner e de M. Bevir), a mera ocorrência de tais eventos imprevistos não anula nem impede a eficácia lógica das teorias sociopolíticas e, de modo mais específico, das previsões racionais que elas porventura façam.

[3] Convém notar, entretanto, que embora Comte e Stuart Mill concordem com a aplicabilidade ao futuro dos esquemas usados para explicar o passado, eles divergem profundamente no que se refere à estrutura mesma desses esquemas explicativos: enquanto Stuart Mill propõe uma lógica causalista, Comte rejeita a concepção de "causa" e considera que as leis sociológicas – como, de resto, as leis naturais – consistem em esquemas abstratos (“teóricos”, portanto) que vinculam fenômenos particulares a explicações gerais. Como indicou Juliette Grange (2003), por um lado as críticas dos sociólogos cultores da metodologia dita “compreensiva” dirigem-se a esse esquema causalista, incorretamente imputado por eles a Comte; por outro lado, a proposta comtiana rejeita o causalismo de Stuart Mill na medida em que este remete à idéia metafísica de “causa”, que, como se sabe, foi objeto da crítica de D. Hume.

[4] Entre os motivos para não se usar Comte, não somente para análises de conjuntura como, de modo geral, para quaisquer análises sociopolíticas, podemos indicar os seguintes: (1) o desconhecimento generalizado de sua obra, com a redução de suas análises ao mero enunciado da lei dos três estados intelectuais; (2) causando esse desconhecimento, a má vontade, o preconceito e a consideração geral de que Comte e o Positivismo são o "outro" teórico, a serem combatidos e usados como formas de xingamento intelectual; (3) a discutível qualificação de Comte não como fundador da Sociologia, mas como autor pertencente à pré-história da disciplina e das Ciências Sociais, ou seja, como irrelevante para a "imaginação sociológica" (cf. HEILBRON, 2006; LACERDA, 2009).

[5] “Considerações políticas preliminares sobre a necessidade e a oportunidade da física social, a partir da análise fundamental do estado social atual”.

(Reprodução livre, desde que citada a fonte.) 

20 novembro 2014

19 novembro 2014

Obras de Décio Villares disponíveis na rede

Os portais abaixo apresentam várias obras de Décio Villares (1851-1931), o pintor e escultor responsável pela execução da primeira bandeira nacional republicana brasileira.

- Enciclopédia Cultural Itaú: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa21769/decio-villares

- Catálogo das Artes: http://www.catalogodasartes.com.br/Lista_Obras_Biografia_Artista.asp?idArtista=2294

Comemoração do Dia da Bandeira Nacional Brasileira – 19.11.2014

Comemoração do Dia da Bandeira Nacional Brasileira – 19.11.2014

Gustavo Biscaia de Lacerda


Bandeira nacional republicana brasileira. Fonte da imagem: wikipédia.

O dia 19 de novembro marca o Dia da Bandeira. Nessa data, no ano de 1889 a proposta feita por Raimundo Teixeira Mendes e pintada por Décio Villares foi apresentada por Benjamin Constant e aceita pelo governo provisório da nascente república brasileira (proclamada um pouco antes, no dia 15 de novembro): assim, é impossível separar a comemoração do Dia da Bandeira da própria Proclamação da República.

Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil e autor da bandeira nacional republicana brasileira. Fonte da imagem: wikipédia.

A bandeira republicana é ao mesmo tempo bonita, simples e profundamente filosófica. Ela é agradável à vista e em linhas gerais pode ser desenhada à mão por qualquer pessoa. Nesse sentido, aliás, ao contrário do que monarquistas, católicos e supostos especialistas em bandeiras afirmam, a bandeira nacional republicana não é complicada: se, por um lado, ela não tem a simplicidade banal de outras bandeiras que se limitam a justapor faixas coloridas, por outro lado ela não apresenta as complexas filigranas que outros pendões ostentam.

Mas, deixando de lado os aspectos estéticos da bandeira nacional, o mais importante é que ela contém em si uma importante combinação de história, de filosofia e de política. O quadrilátero verde e o losango amarelo eram elementos usados na bandeira imperial, correspondendo respectivamente às cores das casas dinásticas de Bragança e de Habsburgo; em versões mais recentes e bem mais populares, essas duas figuras geométricas significariam as matas e as riquezas minerais do país: o que importa notar, de qualquer maneira, é que a permanência dos elementos da bandeira imperial (de 1822 a 1889) na então nova bandeira republicana indicava a continuidade sociológica do Brasil, isto é, o fato simples e importante, mas freqüentemente esquecido ou desprezado, de que a sociedade brasileira continuava existindo ao longo do tempo, em meio aos seus desenvolvimentos e também às mudanças de regimes políticos.

A circunferência azul com a faixa branca contendo o "Ordem e Progresso" (em letras verdes) é ainda mais direta e claramente filosófica. As estrelas no céu lembram-nos de que todos os seres humanos submetem-se à ordem natural, cuja regularidade é enorme e sem a qual nós não existiríamos: sem os contínuos calor e luz do Sol, não haveria vida na Terra, da mesma forma que só é possível a vida neste nosso valioso planeta em virtude de condições geológicas e astronômicas especialíssimas. Mas, por outro lado, a observação das estrelas foi o início da ciência e, de qualquer maneira, é fonte de curiosidade e estímulo permanente à imaginação e à poesia.

O "Ordem e Progresso", por sua vez, é a afirmação do ideal sociopolítico que norteia o Brasil, ao buscar um regime político que permita ao mesmo tempo o progresso (político, econômico, moral) e garanta a ordem social. Proposta pelo filósofo francês Augusto Comte como devendo integrar todas as bandeiras do mundo, essa frase é passível de aceitação por todos os grupos sociais e políticos.

A esse respeito, há um erro de interpretação bastante comum. Ao contrário do que costumam afirmar variados esquerdistas – para quem o "Ordem e Progresso" quer dizer "progresso apenas dentro da ordem", ou seja, para quem o progresso é e sempre será anárquico –, no pensamento comtiano a "ordem" inclui o respeito às liberdades públicas, o bem-estar material de toda a população (em particular a mais pobre), a separação entre igreja e Estado, a fraternidade social e a paz universal etc. Dessa forma, o "Ordem e Progresso" só faz sentido se entendido como propunha originalmente Augusto Comte: na medida em que os elementos da ordem são respeitados e desenvolvidos, há progresso social.

Por fim, desde há alguns anos fala-se em incluir o "Amor" no "Ordem e Progresso". Costuma-se dizer que, ao elaborar a bandeira, Raimundo Teixeira Mendes teria desfigurado a fórmula original de Augusto Comte – que é "O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim" –, ignorando a primeira parte. Na verdade, Teixeira Mendes seguiu ao pé da letra as orientações de Comte, que considerava que, enquanto não houver em cada sociedade e, depois, no mundo inteiro, um consenso a respeito da necessidade de unir a ordem ao progresso e de deixar para trás os grupos que querem a ordem de maneira retrógrada e o progresso de maneira anárquica, não será possível incluir o amor como elemento político. Nesse caso, não se trata de que as relações sociais não devam ser mais fraternas, mais pacíficas, mais cuidadosas e respeitadoras do "outro": o que ocorre é que, enquanto não há um consenso efetivo sobre os valores sociais mínimos, o Estado tem que se limitar a manter a ordem social e, dentro do possível, desenvolver as sociedades.


Assim, em seu conjunto, a bandeira brasileira é mais que um símbolo de um país – um símbolo que, aliás, comemora seus 125 anos em 2014 –: é a afirmação de um projeto social de longo prazo, de paz, de respeito, de liberdades, de integração, de bem-estar; em outras palavras, é um símbolo adequado da "república", da cidadania e da realização do ser humano.

Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1833-1891), professor da Escola Militar; membro do governo provisório republicano que, em 1889, apresentou ao governo federal a proposta da bandeira nacional. Fonte da imagem: wikipédia.

Tela "República" de Décio Villares (1851-1831), isto é, do mesmo artista que pintou a bandeira nacional republicana. Fonte da imagem: wikipédia.

Tela "Pátria" de Pedro Bruno (1888-1949); costuma-se afirmar que a família que borda a bandeira é a de Benjamin Constant. Fonte da imagem: wikipédia.

Augusto Comte (1798-1857), filósofo e sociólogo francês, fundador do Positivismo; suas idéias orientaram a elaboração da bandeira nacional republicana brasileira. Fonte da imagem: wikipédia.

(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)

Homenagens oficiais ao Dia da Bandeira 2014

As imagens abaixo são homenagens de duas das mais importantes instituições brasileiras ao símbolo maior do Brasil, a Bandeira.

A primeira imagem é do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e, juntamente com a própria bandeira, traz os primeiros versos do Hino à Bandeira, de autoria de Olavo Bilac.

A segunda imagem é do Senado Federal e, com o mote dado por uma cantiga infantil ("Marcha, Soldado"), ao mesmo tempo valoriza a bandeira, apresenta informações sobre os rascunhos da bandeira republicana, de autoria de Raimundo Teixeira Mendes e lembra o lamentável furto da primeira bandeira republicana, ocorrido em condições suspeitas há alguns anos. 






18 novembro 2014

L. Fedi e C. Lévi-Strauss sobre A. Comte

Dois artigos interessantes sobre Augusto Comte, escritos por especialista (L. Fedi) ou por pensador que vale a pena ser lido (C. Lévi-Strauss):

- de Laurent Fedi, "Augusto Comte y la técnica" (disponível aqui) e

- de Claude Lévi-Strauss, "Auguste Comte et l'Italie" (disponível aqui).

Ambos os textos estão disponíveis graças à gentileza da Casa de Augusto Comte (Maison d'Auguste Comte).

17 novembro 2014

Fotos do Museu Casa de Benjamin Constant: exemplar da "Síntese subjetiva"

As fotos abaixo correspondem a itens do acervo do Museu Casa de Benjamin Constant (IBRAM/MinC); elas foram-me gentilmente enviadas pelo historiador e pesquisador do Museu, Marcos Felipe de Brum Lopes.

As fotos mostram um elegantíssimo presente dado a Benjamin Constant Botelho de Magalhães por seus alunos da Escola Militar: trata-se de uma luxuosa edição do volume I (e único) da obra Síntese subjetiva (Synthèse subjective), de Augusto Comte, juntamente com uma belíssima caixa acolchoada.


Edição da Síntese subjetiva de Augusto Comte. Nas cantoneiras estão escritos: esquerda superior: "Humanidade"; direita superior: "Descartes"; direita inferior: "Bacon", esquerda inferior: "Vauvenargues". No centro lê-se: "[ilegível] Benjamin Constant Botelho de Magalhães, homenagem dos alunos da Escola Militar da Corte".


Caixa em que se guarda o exemplar da Síntese subjetiva, de Augusto Comte, presenteado pelos alunos da Escola Militar a Benjamin Constant. No centro lê-se: "Viver às claras", circundado por "Amor por Princípio - Ordem por Base - Progresso por Fim".
Interior da caixa em que se guarda o exemplar da Síntese subjetiva, de Augusto Comte, presenteado pelos alunos da Escola Militar a Benjamin Constant.  O verde das fitas corresponde à cor do Positivismo.

15 novembro 2014

Feriado da República como comemoração da cidadania

Feriado da República como comemoração da cidadania

Gustavo Biscaia de Lacerda

Pode-se dizer que, no Brasil, os dois feriados mais importantes são o da Independência (7 de setembro) e o da Proclamação da República (15 de novembro). Comemorados em meses que se sucedem (novembro vem depois de setembro, com outubro no meio), por felicidade eles indicam uma progressão na vida brasileira: a Independência marca a condição básica para que os brasileiros decidamos o que desejamos fazer e ser; mas é com a República que realizamos e consagramos uma escolha clara pelo regime de liberdades, de responsabilidades, de preocupação com o bem público, a partir de perspectivas puramente humanas – em uma palavra, com a República escolhemos o regime da cidadania.

            No Brasil não temos o hábito de efetivamente comemorar os feriados e as datas cívicas. Como se sabe, de modo geral os feriados são ótimas desculpas para não trabalharmos e, se for possível, viajarmos. Deixando de lado, talvez, o Dia do Trabalho (1º de maio), as exceções à afirmação acima são os feriados religiosos, em que se pode incluir mesmo o carnaval. O problema é que não deveriam existir tais feriados religiosos: não que se possa, nem que não se deva, haver comemorações religiosas: o problema é que não cabe ao Estado proclamar como valor cívico o que é próprio a uma única religião, mesmo que essa religião seja professada pela maioria da população. Afinal de contas, as crenças são questões individuais e o Estado não pode impô-las a ninguém. Além disso, os feriados religiosos no Brasil têm, todos eles, um caráter extra-humano e individualista: o que se comemora não são a história compartilhada pela população, os ideais a serem perseguidos por cada um e por todos, mas a busca da salvação individual em um mundo que, supostamente, existiria além deste.

            Quando a República foi proclamada, no amanhecer do dia 15 de novembro de 1889, muitas esperanças eram depositadas nessa mudança: harmonia, desenvolvimento, altruísmo, fraternidade, paz universal, justiça social e assim por diante. Entre as primeiras medidas tomadas pelo novo regime estavam o fim da unicidade imperial, com a atribuição da autonomia aos estados (antigas províncias), de tal maneira que cada estado pudesse ter liberdade para desenvolver os projetos políticos e sociais que julgassem mais adequados às suas realidades; a separação entre Igreja e Estado, acabando com o benefício oficial concedido à Igreja Católica, com a hipocrisia oficial que obrigava todos os servidores públicos e todos os políticos a serem nominalmente católicos e também com a opressão que a própria Igreja Católica vivia, ao ter que se submeter ao Estado. Além disso, ao tornar-se uma república, o Brasil deixava de prestar atenção exagerada à Europa e passava a prestar atenção à América, não mais para guerrear com os países americanos (como na Guerra da Tríplice Aliança, também conhecida por "Guerra do Paraguai"), mas para buscar uma comunidade fraterna no novo mundo.

             Embora esses ideais nem sempre tenham sido respeitados ou buscados, o fato é que eles eram afirmados desde o início da República. Aliás, logo em seguida, novos feriados foram instituídos, entre os quais 1º de janeiro, como confraternização universal; 13 de maio, como fim da escravidão e união das raças no Brasil; 14 de julho, como fim da opressão, com a queda da Bastilha; 7 de setembro, como Independência do Brasil; 12 de outubro, como descoberta da América e fraternidade americana. Eram feriados cívicos, que celebravam os ideias de liberdade, progresso e fraternidade; seguindo a idéia da república, de respeito ao bem comum, eles celebravam efetivamente a cidadania e a humanidade.

           Entretanto, ao longo do século XX, esses belos feriados foram abolidos (14 de julho, por exemplo), trocados (12 de outubro deixou de ser a descoberta da América para ser o dia de N. Sra. Aparecida) ou substituídos por outros (como Corpus Christi e Natal), sem contar os vários feriados relativos a "santos padroeiros". Além disso, o 7 de Setembro – a Independência – passou mais e mais a caracterizar-se como uma ocasião para desfiles militares, em vez de celebração da liberdade brasileira. Por fim, os ideais de pleno universalismo, fraternidade e generosidade foram substituídos pelo particularismo e pelo exclusivismo: não celebramos mais a união fraterna e inclusiva das raças no dia 13 de maio, mas temos em cada vez mais municípios a "consciência negra", em 20 de novembro.

            Os comentários acima não são muito otimistas; realmente, eles trazem uma nota de tristeza e desencanto. Mas, precisamente devido a isso, talvez seja necessário afirmarmos e reafirmarmos o oposto do desencantamento. Assim, celebremos o dia 15 de Novembro: que o belo feriado da Proclamação da República Brasileira seja a lembrança coletiva dos ideais e dos deveres cívicos brasileiros, rumo à inclusão social, à fraternidade universal, à justiça, ao desenvolvimento!


(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)