18 maio 2023

Teoria positiva da confiança

No dia 24 de César de 169 (16.5.2023) realizamos nossa prédica positiva. Após darmos continuidade à leitura comentada da sexta conferência do Catecismo positivista (dedicada ao conjunto do dogma positivo), proferimos um sermão sobre a teoria positiva da confiança. As anotações que serviram de base para essa exposição, acrescidas de comentários sugeridos pelo público, estão reproduzidas abaixo.

A prédica pode ser vista nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/gl2k6) e Apostolado Positivista do Brasil (aqui: https://l1nk.dev/vPER3). O sermão pode ser visto a partir de 41' 45".

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Sobre a confiança

 -        Podemos dizer que a confiança é a base todas as relações sociais

o   Assim, a confiança é um dos conceitos sociais, políticos e morais mais importantes de qualquer sociedade e de qualquer pessoa

o   A confiança seria importante para o Positivismo de qualquer maneira; mas, além disso, o Positivismo fundamenta de diferentes maneiras e tira inúmeras conseqüências da confiança

-        A confiança em si mesma tem aspectos subjetivos e outros objetivos

-        À primeira vista, a confiança seria apenas subjetiva e individual

o   Podemos defini-la basicamente como a crença de que alguém e/ou alguma instituição merece respeito e apoio

§  Em certo sentido, a confiança aproxima-se da esperança: mas, enquanto a esperança tem um aspecto mais abstrato e de longo prazo, a confiança é mais concreta e de curto prazo

o   Mais do que apoio e respeito: trata-se da crença de que, em um determinado âmbito da vida, podemos confiar no julgamento e nas ações tomadas por outras pessoas e/ou instituições

§  Assim, esse aspecto puramente subjetivo assume um âmbito coletivo e tem conseqüências diretas também coletivas

o   Um outro aspecto importante, também subjetivo e objetivo, individual e coletivo: a confiança exige sempre a liberdade e, portanto, a autonomia dos indivíduos

§  Inversamente, isso equivale a dizer que em face do medo, da coerção, da ameaça de violência, não é possível a confiança

 

[Comentários de Hernani Gomes da Costa, feitos em 14.5.2023.]

Boa tarde, Gustavo! Tudo bem? Acabei de ler a sinopse de seu próximo sermão. Pareceu-me capaz de fornecer as bases necessárias para uma apresentação completa do assunto em seu próprio âmbito.

Assim, tenho pois a acrescentar aqui apenas uma sugestão, que embora me pareça acessória (e dispensável, portanto, à compreensão do assunto) proveria o sermão de uma base mais geral e sistemática.

Ela consiste em ligar o tema específico da confiança fazendo-o derivar do conjunto inteiro do dogma, isto é, vinculando-o à concepção fundamental deste.

Se a base da nossa confiança reside na fé demonstrável segundo a qual a Humanidade habita um mundo onde os fenômenos quaisquer seguem leis apreciáveis, é esta precisamente a confiança que nos haverá de conferir toda a segurança emocional necessária à nossa harmonia mental nas relações humanas. O “mundo assombrado pelos demônios”, de que fala Carl Sagan, é o mundo onde se imagina que “tudo pode acontecer”, e que longe de nos favorecer a confiança seja lá no que for, apenas pode nos fazer mergulhar a mente nas mais delirantes e antipáticas possibilidades todas elas tornadas igualmente plausíveis.

Einstein em contrapartida (que costumava “jogar pra a platéia” servindo-se de metáforas teológicas para exprimir seu pensamento, de maneira atraente) certa vez afirmou que “o Senhor é sutil mas não malicioso”, querendo, no fundo, dizer com isso que a Natureza não se furta nunca a dar-se a conhecer à Humanidade, podendo cada um de nós, confiar nela tal como confiaria em alguém radicalmente honesto. Essa fé na regularidade dos fenômenos quaisquer corresponde à mais longínqua referência a que podemos levar o conceito de confiança.

Aquele mesmo pensamento que Einstein exprimiu em termos teológicos, Carl Rogers o expressou vantajosamente em termos fetíchicos, quando afirmou que “os fatos são amigos”. Ora se um amigo é fundamentalmente digno de confiança, nada nos impede de dizer, inversamente, que o que é digno de confiança é amigo.

Assim, a transparência que fundamenta as relações fraternas entre os homens não é um sentimento que precise ser procurado e desenvolvido apenas no interior da ordem moral. Ao contrário ele nos é desde sempre e o tempo todo exemplificado e robustecido por uma concepção diretamente sugerida já pela própria ordem física e mesmo pela ordem lógica. Com efeito, o mundo espontaneamente se oferece à Humanidade tal como sistematicamente as pessoas se propõem a fazê-lo guiadas pelo altruísmo. Ao apenas ser tal como é, e portanto ao tão só manifestar-se a nós apenas (e totalmente) pelo que é, o mundo vem assim a nos prover do mais recuado exemplo físico e lógico de tudo aquilo que nós devemos ser e desenvolver moralmente.

Um outro ponto que talvez merecesse comentar é o contraste radical entre os conceitos teológico e positivo de confiança: o mesmo teologismo que nos convida (ou antes nos intima) a confiar cegamente num ser que - a menos de ser concebido a priori como bom - não poderia deixar de ser tomado como o responsável direto por todas as nossas misérias (sempre então imaginadas como devendo obedecer a algum propósito maior que nos escapa) esse mesmo teologismo, dizia, é também aquele que não hesita em pôr sob suspeita e em difamar a Humanidade inteira, declarando maldito o homem que confia no próprio homem; e isso, note-se, não importando quais possam ter sido as maiores e as mais numerosas provas reconhecíveis e decisivas de sua sempre e inconfundível benevolência progressiva para com seus filhos.

 

-        A confiança exige comportamentos práticos reiterados:

o   É uma questão (1) de honestidade; (2) de coerência dos comportamentos entre si ao longo do tempo; (3) de coerência das idéias e dos valores entre si ao longo do tempo; (4) de coerência entre idéias/valores e atos ao longo do tempo

o   Daí, portanto, o “viver às claras”: sem a publicidade dos atos, é impossível averiguar a coerência e a constância dos comportamentos

-        A Religião da Humanidade estabelece que o dever de simpatia implica uma postura geral de boa vontade de todos para com todos: essa boa vontade implica, por sua vez, uma boa-fé generalizada, o que equivale a uma confiança generalizada

o   Essa é uma das conseqüências da lei-mãe da Filosofia Primeira, “formular a hipótese mais simples, mais estética e mais simpática que comporte os dados disponíveis”

o   Entretanto, como indicamos antes, a confiança tem que ser comprovada e merecida na prática

§  Os atributos que nos permitem desenvolver a confiança são pelo menos estes: liberdade (e/ou autonomia), honestidade, coerência, constância (ou consistência), publicidade

o   Aquele que deixa de merecer a confiança de outrem tem que tratar de reconstituí-la, agindo de maneira adequada

§  Nesse caso, evidentemente, o esforço de recuperar a confiança é daquele que a perdeu, não daquele(s) que foi(ram) frustrado(s)

-        Dois aspectos do “viver às claras”, ambos evidentemente relacionados entre si: um mais moral, outro mais político

o   O sentido moral é o sentido básico e corresponde à moralidade dos atos quaisquer, em que se deve sempre poder justificar publicamente nossas condutas e nossas decisões

o   O sentido político é o da publicidade dos atos quaisquer, sejam públicos, sejam privados

-        A confiança abrange também aspectos sociais e mais objetivos:

o   Há a confiança diretamente nas instituições

§  Exemplos: na ciência; no Estado; nas igrejas; nas escolas

o   Diferentes sociedades, filosofias e modos de entender a realidade estimulam mais ou menos a confiança nas pessoas e/ou nas instituições

§  Exemplo positivo, que comprova diretamente a importância e a validade da confiança: na China pré-comunista, havia uma confiança generalizada e espontânea no governo

§  Exemplos negativos, que comprovam indiretamente a importância da confiança: (1) a teoria política ocidental, herdando a concepção monoteísta e teológica de que qualquer crítica ao governo é uma sublevação (quase) herética, tende a consagrar a revolta sistemática como sinal de afirmação da liberdade; (2) da mesma forma, herdando no fundo uma concepção absolutisto-monoteísta, a teoria política ocidental tende a considerar que a liberdade é ausência de qualquer parâmetro, ou seja, que a liberdade é anárquica e/ou caprichosa; (3) a metafísica consagra a concepção de que todos os poderes e, no fundo, todas as instituições são imerecedoras de confiança

§  Devemos insistir, a partir das considerações acima, em que a metafísica, com seu caráter corrosivo, é completamente contrária à confiança

§  Como, no Ocidente, vivemos em uma época metafísica, a valorização efetiva da confiança torna-se uma tarefa complicada, difícil e até heróica

-        O Positivismo distingue vários tipos de relações sociais; daí, podemos determinar várias “direções” da confiança:

o   Sentidos vertical e horizontal da confiança:

§  Sentido horizontal: entre “iguais” (amigos, correligionários, namorados, cônjuges etc.)

§  Sentido vertical de baixo para cima: dos seguidores para os líderes

§  Sentido vertical de cima para baixo: dos líderes para os seguidores

o   Sentidos restrito e ampliado da confiança:

§  Assim como todo ser humano é um servidor da Humanidade (nesse sentido amplo e um tanto figurado, um “servidor público”) e tem uma atuação restrita (sua profissão, seu ofício) e outra ampliada (a preocupação com as atividades coletivas e a respectiva fiscalização), podemos dizer que a confiança também tem um âmbito restrito e outro ampliado

§  Sentido restrito: confiança nas atividades específicas e limitadas de cada qual (exemplos: nos médicos que nos atendem, nos professores que nos ensinam)

§  Sentido ampliado: confiança que depositamos em alguém e/ou alguma instituição de caráter geral (exemplo: no sacerdócio positivo)

·         É importante lembrar que somos todos servidores da Humanidade, quer trabalhemos no setor “privado”, quer trabalhemos no setor “público”

-        Há um aspecto diretamente político da confiança (“político” no sentido de “pólis”, isto é, de vida coletiva):

o   Toda função social sempre se baseia na confiança

§  Isso quer dizer que não é possível a ninguém desempenhar suas funções (sejam elas estritamente privadas, sejam elas públicas) sem que o conjunto da sociedade e os demais concidadãos confiem uns nos outros

§  Sem essa confiança, o exercício das funções e a eficácia social das atividades fica seriamente prejudicada

o   A plena responsabilidade dos atos e do cumprimento das funções sociais baseia-se sempre na plena confiança

§  Ao dever geral de confiança (ou seja, de confiarmos uns nos outros) corresponde, em contrapartida, o dever específico de que os servidores da Humanidade sejam sempre responsáveis perante o conjunto da sociedade e os demais concidadãos

·         Convém lembrar que a “responsabilidade” significa aqui tanto a efetiva capacidade de ação quanto a responsabilização dos servidores da Humanidade

·         Também importa lembrar que, quanto maiores as responsabilidades, maiores os poderes necessários

15 maio 2023

Positivismo contra o imperialismo ocidental na China

O trecho abaixo apresenta uma crítica dura e direta ao que chamamos atualmente de imperialismo, ou seja, ao esforço ativo de um conjunto de países para explorar econômica e politicamente um outro país - no caso, o Ocidente explorando a China. Essa crítica foi elaborada por Pierre Laffitte, positivista ortodoxo, em uma conferência realizada em 1858, ou seja, logo após a transformação de Augusto Comte (1798-1857).

O trecho abaixo foi extraído de uma série de conferências que Laffitte fez sobre a China; estas, por sua vez, integravam um curso de história geral da Humanidade.

Logo após a citação em português (cuja tradução é de minha autoria) reproduzo o original em francês.

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“Assim, as relações comerciais do Ocidente com a China tornaram-se cada vez mais anárquicas, sobretudo por meio da proteção da força pública. Elas podem melhorar-se, recebendo entretanto ainda mais de extensão, quando os governos compreenderem a necessidade de corrigir os seus abusos, em vez de entregarem-se aos impulsos de uma opinião pública que, infelizmente, favorece demasiado tais aberrações. – Porque, sob a preponderância sobretudo da autodenominada escola progressista, viemos, no Ocidente, a sistematizar a opressão e a exploração do resto do Planeta, sob o especioso pretexto de ‘civilização’. Formou-se relativamente à China, e às relações do Ocidente com ela, um conjunto de opiniões que se deve caracterizar.

Essas opiniões resumem-se em um sentimento orgulhoso da preponderância da civilização ocidental e em um desprezo cego por todas as outras civilizações quaisquer. Daí resulta a disposição de fazer prevalecer em toda parte, e sobretudo pela força, sob o vago nome de ‘progresso’, a anarquia mental e o industrialismo sem regras que cada vez mais prevalecem no Ocidente”.

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« Ainsi les relations commerciales de l’Occident avec la Chine ont pris um caractère de plus en plus anarchique, surtout par la protection de la force publique. Elles pourront s’améliorer, en recevant néanmoins plus d’extension encore, lorsque les gouvernements auront compris la necéssité d’en corriger les abus, au lieu de se laisser aller aux impulsions d’une opinion publique qui, malheureusement, favorise trop de telles aberrations. – Car, sous la prépondérance surtout de l’école soi-disant progressive on en est venu, en Occident, à systématiser l’oppression et l’exploitation du reste de la Planète, sous le spécieux prétexte de civilisation. Il s’est formé relativement à la Chine, et aux relations l’Occident avec elle, un ensemble d’opinions qu’il faut caractériser.

Ces opinions se résument en un sentiment orgueilleux de la prépondérance de la civilisation occidentale, et en un mépris aveugle de toutes les autres civilisations quelconques. D’où résulte la disposition à faire prévaloir partout, et surtout par la force, sous le nom vague de progrès, l’anarchie mentale et l’industrialisme sans règles quie prévalent de plus en plus en Occident. [...] »

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(Pierre Laffitte, Considérations générales sur l’ensemble de la civilisation chinoise et sur les relations de l’occident avec la Chine. Paris: Dunod, 1861, p. 139-140. Disponível, na edição de 1900, aqui : https://archive.org/details/considrationsg00laff/page/130/mode/2up.).

26 abril 2023

Sobre as máximas de Clotilde de Vaux

No dia 3 de César de 169 (25.4.2023) fizemos nossa prédica positiva. Em um primeiro momento, demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, abordando o conjunto do dogma positivo, na sexta conferência do livro.

Na seqüência, no sermão, abordamos as máximas de Clotilde Vaux: as anotações que serviram de base para a exposição estão reproduzidas abaixo.

A prédica foi transmitida nos canais Apostolado Positivista (https://l1nk.dev/Pw56R) e Positivismo (https://encr.pw/YI1B8); o sermão pode ser visto a partir de 52' 30".


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As máximas de Clotilde

 -        Tratar de Clotilde de Vaux é ao mesmo tempo importantíssimo e um tanto difícil

o   É importante porque ela foi a cofundadora da Religião da Humanidade, nas palavras do próprio Augusto Comte

§  Na verdade, é difícil exagerar essa importância: sem Clotilde, o Positivismo seria apenas um cientificismo; com Clotilde, o Positivismo pôde desenvolver-se até a bela e inspiradora Religião da Humanidade

o   É difícil porque a sua vida, a sua produção literária e a sua relação com Augusto Comte são muito “estranhos” à nossa época

-        Consideremos a sua produção literária: ela era poetisa e romancista

o   A sensibilidade estética de Clotilde era claramente romântica

o   Mas a principal dificuldade não está em sua sensibilidade romântica da época: o problema que se apresenta para nós é que a nossa época é decididamente anti-romântica, ou melhor, é intelectualista e materialista

o   Todo o ciclo romântico integra uma grande tradição de pensar, ou melhor, de raciocinar usando a poesia; assim, os raciocínios estavam intimamente vinculados à expressão artística e, portanto, à manifestação e ao estímulo dos sentimentos

o   A nossa época, ao contrário, é resolutamente intelectualista, materialista e anti-romântica, isto é, antiafetiva

§  É necessário termos clareza a respeito desse traço contemporâneo: o materialismo e o intelectualismo são devidos às metafísicas materialistas (liberalismo e comunismo), ao desprezo intelectualista pelos sentimentos, ao culto (igualmente metafísico) da política e da luta do poder – e, englobando tudo isso mas ajuntando a isso seus próprios erros, devemos também ao desprezo feminista pelos sentimentos e pela cultura aos sentimentos (vistos como “ideologia patriarcal e/ou falocrática” contra as mulheres)

§  É claro que a sensibilidade contemporânea – materialista, anti-romântica, antiafetiva, politicista – tem profundas conseqüências sobre as artes, que se tornaram largamente superficiais e/ou intelectualistas – e mesmo quando se pretendem afetivas, perderam em grande parte seu caráter de elevação moral

-        É necessário, então, insistir: é impossível entender – e sentir – as máximas de Clotilde sem termos clareza de que elas são a expressão poética de sentimentos e de idéias

o   Sem entender esse íntimo vínculo entre expressão poética, demonstração de sentimentos e argumentação filosófica, no fundo também não se pode entender o próprio Positivismo, nem a insistência de Augusto Comte no valor e na importância dos sentimentos e da poesia

o   Duas frases de Augusto Comte ilustram bem essas concepções:

§  A primeira refere-se ao papel das mulheres: “Superiores pelo amor, mais bem dispostas a sempre subordinar ao sentimento a inteligência e a atividade, as mulheres constituem espontaneamente seres intermediários entre a Humanidade e os homens” (Augusto Comte – Política positiva, v. II, p. 63)

§  A segunda é uma tocante declaração de respeito, de veneração e de afeto de Augusto Comte em relação a Clotilde: “Tu foste, sem o saber, como eu o repito cada martedia, a mulher a mais eminente, de coração, de espírito e mesmo de caráter que a história universal apresentou até hoje. O futuro parece-me dificilmente suscetível de um melhor tipo” (Augusto Comte – Confissões anuais)

-        Feitos esses comentários iniciais, apresentamos duas poesias de Clotilde, que ela enviou para Augusto Comte em seu epistolário no final de 1845, após o fundador da Religião da Humanidade já se ter declarado apaixonado pela moça:

 

Os pensamentos de uma flor

(Clotilde de Vaux; tradução de Raimundo Teixeira Mendes)[1]

 

Nasci p’ra ser amada: ó, graças, bom Destino!

Que os soberbos mortais praguejem teus azares!

O vento os arrebate aos pés de teus altares,

Eu tenho o meu perfume e o gozo matutino.

 

Tenho o primeiro olhar do rei da natureza,

Por gala o seu fulgor, seu beijo em chama acesa;

Tenho um sorrir de irmã da juvenil Aurora;

Tenho a brisa nascente a dulcidão que mora

Na gota pendurada à borda do meu cális.

Tenho o raio que brinca a se abismar nos vales;

Tenho o mago painel, a sena inigualada,

Do universo entreabrindo as portas da alvorada.

 

Jamais frio mortal haurir-me deve a vida:

No seio da volúpia a manso me adormeço;

Me guarda a natureza o esplêndido adereço;

Em seu festim de amor desperto embevecida.

 

Muita vez embelezo a formosura;

Num puro seio o meu candor se côa;

Enlaça-me o prazer n’alegre cr’ao,

E a seu lado me prende alma ventura.

 

                Quanto o rouxinol s’inspira

No meu talo em doce enleio,

Para não turvar-lhe o gorjeio

                               A natura inteira espira.

 

Amor me diz seus votos mais secretos;

Abrigo de seus ais grata saudade;

Dos seus mistérios zelo a f’licidade;

A chave sou dos corações secretos.

 

Ó! Doce Destino, se as leis que nos baixas

Suspiros profanos pudessem mudar,

Só eu haveria, nas diáfanas faixas,

De amor aos bafejos à vida tornar.

 

Da tempestade sombria

Poupa-me o horrendo furor;

Dá que sempre a leda flor

Nas tuas festas sorria.

 

A infância

(Clotilde de Vaux; tradução de Raimundo Teixeira Mendes)[2]

 

Vem, criança gentil, mais perto... que m’encanta

Ver-te a madeixa loura, o meigo olhar formoso,

As graças naturais que têm tanto invejoso,

A fonte onde arde a inocência o templo seu levanta.

 

Vem, qu’eu gosto de ver-te o velho pai prezando

Mais que o ledo brincar que os anos seus molesta;

Gosto de ver fugir, dos beijos teus à festa,

A nuvem que, no olhar materno, ia assomando.

 

Gosto de ver o ancião que vai, a lento passo,

O humilde lar buscando, apoiado ao teu braço;

Gosto de ver-te a mão encheres, com carinho,

Do pobre que se senta à borda do caminho.

 

Por que se hão de ir embora encantos dessa idade,

Graças que as nossas mães com tanto amor afagam?

Os sonhos do porvir, por que se nos apagam?

Ah! Sim! É que é preciso um dia de saudade!

 

-        Indo às máximas de Clotilde:

o   Elas foram recolhidas e estabelecidas por Augusto Comte a partir das obras literárias, das cartas e das conversas em visitas que eles mantiveram durante 1845 e 1846

o   Elas foram formalmente apresentadas no Testamento de Augusto Comte e, a partir daí, reproduzidas nos mais variados livros

o   Seja porque foram estabelecidas por Augusto Comte, seja porque, evidentemente, elas apresentam valor por si sós, elas integram o conjunto de máximas e fórmulas próprias à Religião da Humanidade

§  Convém termos clareza de que elas não têm as características sistemáticas e sintéticas das máximas elaboradas por Augusto Comte: mas, por outro lado, são observações morais agudas e profundas, verdadeiramente dignas de um espírito feminino profundo[3]

 

As sete máximas de Clotilde de Vaux (T, p. 99)[4]

1)      É indigno dos grandes corações derramar as perturbações que sentem. (Lúcia, 7ª carta)

a.       Os “grandes corações”, ou seja, as pessoas que buscam aperfeiçoar-se moralmente, devem evitar descontroles e explosões afetivas, especialmente em público: saber manter a reserva e até o autocontrole é uma virtude moral e prática

b.      Essa máxima evidentemente não quer dizer que as pessoas não devam manifestar seus sentimentos, ou que não devam chorar em momentos de grande tristeza (ou de grande alegria): o que está em questão é o descontrole do comportamento a partir dos sentimentos, especialmente quando somos tomados por sentimentos muito intensos

c.       Há um aspecto de exemplo e de liderança subjacente à expressão “grande coração”

2)      Que prazeres podem exceder os da dedicação? (Lúcia, 8ª carta)

a.       Essa máxima evidencia que a fórmula da felicidade pessoal é a destinação altruística dos egoísmos e, mais do que isso, que quando o altruísmo passa a ser verdadeiramente o parâmetro de nossas condutas, a dedicação aos demais (o altruísmo) quase que eclipsa a satisfação pessoal (egoística) dessa ação

3)      Eu compreendi, melhor que ninguém, a fraqueza de nossa natureza quando ela não é dirigida para um objetivo elevado e que seja inacessível às paixões (T, p. 333)

a.       As nossas condutas têm que se basear e orientar em símbolos, objetivos e metas que, morais por si sós, não se submetam às disputas cotidianas; esse afastamento das disputas cotidianas implica que os símbolos, os valores e as metas que nos orientam não se corromperão e poderão manter-se como metas morais, práticas e intelectuais efetivas

b.      É claro que isso não implica que essas metas não possam ser avaliadas em termos de exeqüibilidade, de moralidade, de positividade etc.

c.       A Humanidade, claramente e não por acaso, é um desses ideais superiores inacessíveis às paixões

4)      São necessários à nossa espécie, mais que às outras, deveres para fazer sentimentos. (T, p. 374)

a.       Essa máxima indica que nós precisamos de deveres, de relações mútuas obrigatórias de uns para com os outros, e que essas relações desenvolvem por seu turno sentimentos apropriados a essas relações

b.      O que se afirma aí é a necessidade primária de sairmos de qualquer egoísmo e/ou de qualquer imobilismo e/ou de qualquer isolamento para lançar-nos em relações com outras pessoas, outros grupos, outras idéias

c.       Além de tirar-nos de nossos egoísmos, nossos isolamentos, nossos imobilismos e nossos individualismos, essas relações obrigam-nos a considerar, de maneira cada vez mais sistemática, as concepções, os valores, os sentimentos de outras pessoas e outros grupos: isso significa que desenvolvemos a empatia, que se torna cada vez mais generalizada (de outras pessoas específicas para outros grupos em geral)

5)      Não há na vida nada de irrevogável senão a morte. (T, p. 419)

a.       Essa máxima indica que quase tudo na vida pode ser desfeito; mas a única coisa que, com toda a certeza, não pode ser desfeita, é a morte (individual, em particular)

6)      Todos temos ainda um pé no ar sobre o limiar da verdade. (T, p. 484)

a.       Essa máxima tem um caráter mais filosófico e epistemológico que propriamente moral: ela sugere a cautela e a humildade nas ações e em nossos conhecimentos; assim, ela também evita o absolutismo filosófico

7)      Os maus têm com freqüência maior necessidade de piedade que os bons. (T, p. 537)

a.       Essa máxima é bastante direta e clara, embora sugira uma reflexão que nem sempre é entendida e seguida com clareza na prática: para avaliarmos quem age de maneira errada e/ou má, com freqüência precisamos ser mais altruístas que com aqueles que agem de maneira correta, a fim de não sermos injustos

b.      Além disso, em um sentido mais profundo, essa máxima indica que não podemos entregar-nos ao ódio e à raiva ao tratarmos (de maneira ocasional ou permanente) de e/ou com pessoas, grupos ou assuntos que despertem o ódio ou a raiva: afinal, como se diz, apenas o amor constrói



[1] Carta de Clotilde a Comte, de 30.11.1845 (109ª carta do epistolário).

Fonte: Raimundo Teixeira Mendes, Comte e Clotilde, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1903, p. 49-50. Edição eletrônica em francês de 1916: https://bibdig.biblioteca.unesp.br/items/f3d104ea-4350-4a3d-a58a-63ec4a10fc54.

[2] Carta de Clotilde a Comte, de 5.12.1845 (113ª carta do epistolário).

Fonte: Raimundo Teixeira Mendes, Comte e Clotilde, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1903, p. 60. Edição eletrônica em francês de 1916: https://bibdig.biblioteca.unesp.br/items/f3d104ea-4350-4a3d-a58a-63ec4a10fc54.

[3] O seguinte trecho do Catecismo positivista é elucidativo a respeito: “Se as teorias morais fossem tão cultivadas como o são as outras, sua complicação superior expô-las-ia, dada essa indisciplina especial, a divagações mais freqüentes e mais nocivas. Mas o coração vem, então, guiar melhor o espírito, recordando com mais força a subordinação universal da teoria à prática, em virtude de um título felizmente ambíguo. Os filósofos devem, com efeito, estudar a moral com a mesma disposição com que as mulheres a estudam, a fim de haurir nela as regras de nossa conduta. Somente a ciência dedutiva deles proporciona às induções femininas uma generalidade e uma coerência que estas não poderiam adquirir por outro modo, e que entretanto se tornam quase sempre indispensáveis à eficácia pública, ou mesmo privada, dos preceitos morais” (Augusto Comte, Catecismo positivista, 2ª ed., Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil, 1895, p. 218-219; versão eletrônica disponível aqui: https://bibdig.biblioteca.unesp.br/items/7f269639-d637-40eb-9ba9-d15010dab59f).

[4] Aqui e nas citações abaixo, o “T” refere-se ao Testamento de Augusto Comte. Além disso, “Lúcia” foi uma novela escrita por Clotilde, com um caráter parcialmente autobiográfico e altamente valorizada por Augusto Comte. Uma versão eletrônica do Testamento pode ser lida aqui: https://bibdig.biblioteca.unesp.br/items/510b1daa-24d3-48e3-a1ed-ddce5191ee5a.

Clotilde de Vaux: "A infância"

A infância

(Clotilde de Vaux; tradução de Raimundo Teixeira Mendes)[1]

 


Vem, criança gentil, mais perto... que m’encanta

Ver-te a madeixa loura, o meigo olhar formoso,

As graças naturais que têm tanto invejoso,

A fonte onde arde a inocência o templo seu levanta.

 

Vem, qu’eu gosto de ver-te o velho pai prezando

Mais que o ledo brincar que os anos seus molesta;

Gosto de ver fugir, dos beijos teus à festa,

A nuvem que, no olhar materno, ia assomando.

 

Gosto de ver o ancião que vai, a lento passo,

O humilde lar buscando, apoiado ao teu braço;

Gosto de ver-te a mão encheres, com carinho,

Do pobre que se senta à borda do caminho.

 

Por que se hão de ir embora encantos dessa idade,

Graças que as nossas mães com tanto amor afagam?

Os sonhos do porvir, por que se nos apagam?

Ah! Sim! É que é preciso um dia de saudade!



[1] Carta de Clotilde a Comte, de 5.12.1845 (113ª carta do epistolário).

Fonte: Raimundo Teixeira Mendes, Comte e Clotilde, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1903, p. 60. Edição eletrônica em francês de 1916: https://bibdig.biblioteca.unesp.br/items/f3d104ea-4350-4a3d-a58a-63ec4a10fc54.

Clotilde de Vaux: "Os pensamentos de uma flor"

Os pensamentos de uma flor

(Clotilde de Vaux; tradução de Raimundo Teixeira Mendes)[1]

 


Nasci p’ra ser amada: ó, graças, bom Destino!

Que os soberbos mortais praguejem teus azares!

O vento os arrebate aos pés de teus altares,

Eu tenho o meu perfume e o gozo matutino.

 

Tenho o primeiro olhar do rei da natureza,

Por gala o seu fulgor, seu beijo em chama acesa;

Tenho um sorrir de irmã da juvenil Aurora;

Tenho a brisa nascente a dulcidão que mora

Na gota pendurada à borda do meu cális.

Tenho o raio que brinca a se abismar nos vales;

Tenho o mago painel, a sena inigualada,

Do universo entreabrindo as portas da alvorada.

 

Jamais frio mortal haurir-me deve a vida:

No seio da volúpia a manso me adormeço;

Me guarda a natureza o esplêndido adereço;

Em seu festim de amor desperto embevecida.

 

Muita vez embelezo a formosura;

Num puro seio o meu candor se côa;

Enlaça-me o prazer n’alegre cr’ao,

E a seu lado me prende alma ventura.

 

                Quanto o rouxinol s’inspira

No meu talo em doce enleio,

Para não turvar-lhe o gorjeio

                               A natura inteira espira.

 

Amor me diz seus votos mais secretos;

Abrigo de seus ais grata saudade;

Dos seus mistérios zelo a f’licidade;

A chave sou dos corações secretos.

 

Ó! Doce Destino, se as leis que nos baixas

Suspiros profanos pudessem mudar,

Só eu haveria, nas diáfanas faixas,

De amor aos bafejos à vida tornar.

 

Da tempestade sombria

Poupa-me o horrendo furor;

Dá que sempre a leda flor

Nas tuas festas sorria.



[1] Carta de Clotilde a Comte, de 30.11.1845 (109ª carta do epistolário).

Fonte: Raimundo Teixeira Mendes, Comte e Clotilde, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1903, p. 49-50. Edição eletrônica em francês de 1916: https://bibdig.biblioteca.unesp.br/items/f3d104ea-4350-4a3d-a58a-63ec4a10fc54.

21 abril 2023

"Imitação maternal", de Américo Brazílio Silvado

Digitalizamos e postamos no portal Internet Archive o opúsculo Imitação maternal, publicado em 1940 pelo positivista brasileiro Américo Brazílio Silvado.

Esse belo, piedoso e interessante opúsculo é um esboço de versão humanista da obra Imitação de Cristo, da autoria do místico alemão Tomás de Kempis, do século XV. Essa versão humanista foi sugerida por Augusto Comte, substituindo a divindade absoluta do monoteísmo católico pelo Grão Ser positivo e relativo que é a Humanidade.

O arquivo, em formato PDF, encontra-se disponível aqui: https://archive.org/details/americo-brazilio-silvado-imitacao-maternal.



Lógica positiva, de Augusto Comte

Digitalizamos e postamos no portal Internet Archive o opúsculo Introdução geral ao estudo da lógica, ou Matemática, organizado por Luís Bueno Horta Barbosa em 1933.

Essa pequena e interessante obra consiste na seleção, indexação e tradução de trechos da "Introdução" à Síntese subjetiva, publicada por Augusto em 1855. Essa "Introdução", em particular, trata, em um primeiro momento, da definição da lógica positiva, bem como de seus meios, seus objetivos, sua história filosófica e suas relações com o conjunto dos conhecimentos abstratos. Em um segundo momento, esse capítulo aborda a filosofia da Matemática, conforme entendida por Augusto Comte a partir da síntese subjetiva.

O arquivo encontra-se disponível, em versão PDF, aqui: https://archive.org/details/augusto-comte-logica-positiva.





Definição da lógica positiva (Augusto Comte, na sua "Síntese subjetiva")

Reproduzimos abaixo alguns trechos iniciais da grandiosa última obra de Augusto Comte, a sua Síntese subjetiva (1855), que, planejada para ter quatro volumes, ficou apenas em seu volume inicial, dedicado à lógica.

Os trechos reproduzidos abaixo são alguns dos que foram inicialmente selecionados, indexados e traduzidos por Luís Bueno Horta Barbosa; eles apresentam o conceito positivo de lógica, com as necessárias reflexões teóricas e históricas que o justificam. Como se verá, a partir de um entendimento real do ser humano (afetivo, prático e intelectual, em sua interação com o mundo e com o próprio ser humano), a lógica não é reduzida à operação intelectualista de símbolos, mas é ententendida como um instrumento que se vale de diversos recursos para auxiliar o ser humano em suas atividades.

*   *   *

Instituição da Lógica Positiva[1]

 

Definição normal da lógica

“Para caracterizar a lógica relativa que convém à síntese subjetiva, é preciso comparar a sua definição normal com o esboço que formulei, seis anos atrás, na introdução da minha obra principal[2]. Guiado pelo coração, eu já ali proclamei e mesmo sistematizei a influência teórica do sentimento. Uma apreciação mais completa fez-me também consagrar, no mesmo lugar, o ofício fundamental das imagens nas especulações quaisquer. Sob este duplo aspecto, o referido esboço foi satisfatório pois abraçou o conjunto dos meios lógicos, retificando a redução que deles fazia a metafísica que só empregava os sinais. Toda a imperfeição desse esboço consiste em que o destino de tais meios achou-se excessivamente restrito, por não me haver eu desprendido bastante dos hábitos científicos. Parece, por essa definição, que a verdadeira lógica limita-se a desvendar-nos as verdades que nos convêm, como se o domínio fictício não existisse para nós, ou não comportasse nenhuma regra. Nós devemos sistematizar tanto a conjectura quanto a demonstração, votando todas as nossas forças intelectuais, bem com as nossas forças quaisquer, ao serviço continuo da sociabilidade, única fonte da verdadeira unidade.

Reconstruída convenientemente, a definição da lógica, incidentemente formulada na pagina 448 do tomo primeiro da minha Política positiva, exige duas retificações conexas, não no que se refere aos meios mas sim no que se refere ao objetivo. Deve-se substituir nela desvendar as verdades por inspirar as concepções, para caracterizar a natureza essencialmente subjetiva das construções intelectuais, e a extensão total do seu domínio, não menos interior do que exterior. Com esta dupla retificação, a minha fórmula inicial torna-se plenamente suficiente. Então somos finalmente conduzidos a definir a lógica: O concurso normal dos sentimentos, das imagens, e dos sinais, para inspirar-nos as concepções que convêm às nossas necessidades morais, intelectuais e físicas. Não obstante, esta definição exige duas explicações conexas, a primeira relativa aos meios que ela indica, a segunda relativa ao fim que assinala” (Síntese subjetiva, p. 26).

 

Apreciação dos meios lógicos

“Considerada sob o primeiro aspecto, basta que essa definição se ache convenientemente ligada á teoria fundamental da natureza humana. Segundo esta teoria, o conjunto do cérebro concorre para as operações quaisquer da sua região especulativa. Elaboradas pelo espírito sob o impulso do coração assistido do caráter, todas as nossas concepções devem trazer a marca destas três influências. À frente dos meios lógicos, é preciso pois colocar os sentimentos que, por fornecerem ao mesmo tempo a fonte e o destino dos pensamentos, servem-se da conexidade das emoções correspondentes para combiná-los. Nada poderia substituir esta lógica espontânea, à qual se devem sempre, não somente os primeiros sucessos dos espíritos sem cultura, mas também os mais poderosos esforços das inteligências bem cultivadas.

Não podemos sistematizar a lógica, como não podemos regular o conjunto da existência humana, senão subordinando os dois outros meios essenciais a este processo fundamental, único comum a todos os modos e graus do entendimento. As operações intelectuais, limitadas a este regime, poderiam ser fortes e profundas; mas ficariam vagas e confusas, porque ele não comporta a precisão e a rapidez exigidas por tais operações, visto a impossibilidade de se tornar ele bastante voluntário. Juntas aos sentimentos, as imagens tornam o espírito mais pronto e mais nítido, por ser o uso delas mais facultativo. Elas combinam-se com eles, mediante a ligação natural entre cada emoção e o quadro da sua realização. Toda a eficácia delas resulta desta conexidade, que permite ás imagens evocar os sentimentos dos quais elas inicialmente derivaram.

Sob tal assistência, o coração institui um segundo regime lógico mais preciso e mais rápido do que o primeiro, mas menos seguro e menos poderoso, no qual as concepções formam-se pela combinação das imagens. Uma espontaneidade menor distingue este modo do precedente e não lhe permite uma equivalente generalidade, embora ele surja sem cultura. Nunca ele basta para tornar as deduções, as induções, ou as construções, tão prontas e tão nítidas quanto o exige o seu destino estético, teórico ou prático. Elas só podem preencher estas condições juntando o socorro dos sinais propriamente ditos ao poder dos sentimentos assistidos das imagens. Tal é o complemento necessário da verdadeira lógica, inteiramente esboçada na animalidade, mas só desenvolvida pela sociabilidade” (Síntese subjetiva, p. 27).

 

A teoria lógica dos metafísicos

“Devemos considerar a teoria lógica dos metafísicos como caracterizando-lhes ao mesmo tempo a impotência para regularem o estado social e inaptidão para conceberem-na. Antes do surto deles na Grécia, o teologismo tinha tido os seus vícios teóricos espontaneamente compensados pelo seu destino prático, embora o seu método seja tão pessoal quanto o do ontologismo. Todos os perigos desse método desenvolveram-se quando a cultura intelectual passou dos padres para os filósofos, os quais, apesar das suas tendências pedantocráticas, não puderam instituir a especulação abstrata senão afastando o ponto de vista coletivo. Uma intuição necessariamente individual, na qual a inteligência esquecia ao mesmo tempo a sua subordinação ao sentimento e o seu destino para a atividade, foi então erigida em estado normal da razão teórica. Nada pode caracterizar melhor esta degradação do que a sistematização da lógica pelo emprego exclusivos dos sinais, afastando os sentimentos e mesmo as imagens. Ela constituiu a primeira e principal manifestação da doença ocidental, na qual o homem isola-se da Humanidade” (Síntese subjetiva, p. 31).

 

A elaboração dos pensamentos pelos sentimentos auxiliados pelos sinais e pelas imagens

“Em virtude desta explicação, a sistematização lógica é devida, tanto quanto a unidade geral, a preponderância do coração sobre o espírito. Devemos considerar os sinais e as imagens como auxiliares dos sentimentos na elaboração dos pensamentos. Esta assistência acha-se assim fornecida pelas duas partes essenciais do aparelho intelectual, respectivamente consagradas uma à concepção, a outra à expressão, sendo que esta exige sempre a ação. Toda meditação que não produz imagem é incompleta, e toda contemplação torna-se confusa sem semelhante guia. Uma e outra são, pois, caracterizadas pelas imagens, cuja consideração, ativa ou passiva, forma o principal domínio do espírito interiormente dirigido pelo coração. Uma última função torna-se então necessária para transmitir ao exterior o resultado geral da elaboração realizada no interior. Referidos a este destino, do qual se deriva a sua reação mental, os sinais adquirem a sua principal dignidade, visto caber-lhes o privilegio de instituir, entre o Grão-Ser e os seus servidores, as comunicações que proporcionam, a estes os elementos, àquele o produto, do trabalho intelectual” (Síntese subjetiva, p. 33).

 

Apreciação do objetivo da lógica

Disciplinar a inteligência

“Considerada quanto ao seu fim, a lógica teve de ser ao mesmo tempo a mais antiga e a mais viciosa das construções filosóficas. Ela quis diretamente regular o elemento médio da existência humana separando-o da sua fonte social e do seu destino prático. Ciência, a lógica pôs o aforismo fundamental que subordina a ordem intelectual à ordem física[3], sem daí concluir que o conhecimento da primeira exigia a apreciação da segunda, cujo estudo achava-se então limitado aos fenômenos mais simples. Arte, ela não pôde instituir mais do que um vão aparelho de regras metafísicas, que não comportavam outra eficácia, senão a de compensar, por alguns hábitos de generalidade, a especialidade necessária da positividade preliminar. Por ter renunciado ao domínio poético, a lógica, na sua exclusiva preocupação da verdade, não tardou a sentir-se incapaz de iniciativa, e contentou-se com sistematizar a aptidão, mais nociva do que útil, de provar sem achar” (Síntese subjetiva, p. 34).

Impossibilidade de disciplinar a inteligência antes do positivismo

“Na realidade não se podia instituir a lógica antes que a construção da religião positiva tivesse essencialmente terminado a iniciação humana. Mas alcançado esse termo, uma solução decisiva torna-se possível, e mesmo oportuna, para o grande problema que a Idade Média pôs, por um esboço provisório, visando regular as forças quaisquer” (Síntese subjetiva, p. 35).

Em que consiste a dificuldade dessa solução

“Vista no seu conjunto, a dificuldade consiste sobretudo em disciplinar o espírito, já porque ele foi o elemento mais perturbado pela revolução moderna, já porque é preciso colocá-lo em condições de assistir ao principio regenerador na sistematização universal” (Síntese subjetiva, p. 35).

Verdadeiro destino da inteligência

“Reduzida ao seu verdadeiro destino, a inteligência deve ajudar o sentimento a dirigir a atividade: este oficio basta para instituir o regime mental. Então o espírito, renunciando à estéril independência sonhada pelo orgulho metafísico, coloca a sua verdadeira grandeza na digna submissão à ordem fundamental que nós devemos suportar e modificar. Guiada pelo espetáculo exterior, a inteligência adapta a marcha das suas concepções à marcha dos fenômenos, cujos estados futuros ou passados podem ser assim julgados por meio das nossas operações interiores, visto a perpetuidade das duas economias paralelas. Ela reconheceu que esta correspondência nunca pode ser absoluta; ela aspira instituí-la apenas no grau que o exigem as nossas verdadeiras necessidades” (Síntese subjetiva, p. 35).



[1] Seleção, indexação e tradução de Luís Bueno Horta Barbosa (Introdução geral ao estudo da lógica, ou matemática. Rio de Janeiro: Jornal do Comércio, 1933). Os trechos citados são extraídos de Augusto Comte (Synthèse subjective, Paris, 1855).

[2] Referência ao Sistema de política positiva, cujo volume 1 é de 1851.

[3] Referência à observação de Aristóteles de que “não existe nada na inteligência que não provenha dos sentidos”, correspondente à primeira metade da 4ª lei de Filosofia Primeira, que é completada com a noção de Kant: “exceto a própria inteligência”.