Comentário sobre o
espectro da morte
-
Poucos assuntos são tão importantes quanto a
morte
o
A importância desse tema, evidentemente, está em
que todos morreremos algum dia
o
Assim, não deixa de ser um tanto paradoxal – mas
não muito – que a importância da morte está em definir os limites e, por
extensão, o sentido da vida
o
Como dizia Clotilde de Vaux, “Não há nada de
irrevogável na vida senão a morte”
o
Se a vida fosse eterna, sem dúvida que a morte
apresentaria outro valor
-
Embora uma boa seqüência para tratar desse tema
fosse a sugerida pela escala enciclopédica (em particular em termos biológicos,
sociológicos e morais), seguiremos aqui uma outra seqüência, para podermos abordar
antes os problemas filosóficos e morais que o espectro da morte suscita
atualmente no Ocidente; depois, em um viés mais claramente positivo,
abordaremos o tema da perspectiva biológica e então moral
-
Apesar da importância central que a morte
apresenta para todos nós, pelo menos a partir do século XX a reflexão a
respeito dela tornou-se muito confusa: ou seja, não se sabe o que fazer com ou
a respeito da morte
o
Essa confusão ocidental traduz-se em um intenso infantilismo a respeito da morte, que,
por sua vez, é sinal de uma grande imaturidade
intelectual e moral
-
Antes de mais nada, é importante termos clareza
de alguns aspectos elementares:
§
Todos morreremos algum dia, mais cedo ou mais
tarde
§
Podemos, e devemos, buscar viver o máximo
possível
·
É claro que esse “viver o máximo possível” pode
ser entendido pelo menos de três formas, ou seja, em três âmbitos diferentes:
(1) viver mais tempo; (2) viver de maneira mais proveitosa; (3) viver mais “intensamente”
§
Conforme aprendemos com o Positivismo e como Augusto
Comte nunca se cansou de sublinhar e reafirmar, uma realidade que em certo
sentido é tão plenamente individual (a vida de nossos corpos) também é, ao
mesmo tempo e até mesmo mais, plenamente social e histórica
§
O sentido da morte e da vida, então, é algo ao
mesmo tempo profundamente sócio-histórico e individual
-
É evidente que a morte é um acontecimento
desagradável para os envolvidos: trata-se da perda de alguém que nos é caro em
termos afetivos, intelectuais e/ou práticos
o
A brevidade da vida impõe a todos a necessidade
de refletir sobre o que fazer com o tempo disponível e sobre o que significa
“estar vivo”; isso implica estabelecer um sentido para a vida e, daí, também um
sentido para a morte
o
Talvez poucas situações mostrem tão claramente
os valores e as concepções profundas das filosofias e das religiões quanto as
relativas à morte; inversamente, poucas situações geram tantas reflexões e
concepções que têm tantas conseqüências para as filosofias e as religiões como
a morte
o
A brevidade da vida e a tragédia da morte podem
ser entendidas de diversas maneiras, evidentemente:
§
Uma certa tradição, resultante no Ocidente da
confluência da teologia judaica com um certo sobrenaturalismo metafísico grego,
estabelece que a morte é passagem para uma outra e “verdadeira” vida
§
Mas a concepção do “além vida” não foi a
primeira nem é a última que a Humanidade elaborou sobre a vida e a morte: o
fetichismo e o Positivismo propõem coisas muito diferentes – mais
satisfatórias, mais generosas, mais suaves
·
Essas diferentes perspectivas que variam em função
dos tempos e dos lugares sugerem que é possível e, daí, que é necessário
mudarmos as atuais concepções imaturas prevalecentes no Ocidentes (concepções
que, além de tudo, correspondem à diluição de concepções teológicas)
-
Comecemos por uma constatação sobre a
atualidade: no Ocidente temos uma atitude ambivalente ante a morte:
o
Por um lado, teme-se o evento da morte e há uma
repulsa por tudo aquilo que se refere à morte, visto como macabro e/ou próprio
a um suposto culto da morte;
§
Muitas vezes se assume uma perspectiva metafísica,
em que a morte é encarada como uma abstração personificada
o
Por outro lado, como não poderia deixar de ser,
é a morte que dá sentido à vida e, considerando o cristianismo, a morte é o
momento de passagem para o “além”
-
Em termos históricos, o temor da morte tem
crescido à medida que a ocorrência da morte afasta-se cada vez mais de nós: em
outras palavras, à medida que a expectativa de vida aumenta, que a taxa de
mortalidade infantil cai, que as guerras diminuem em quantidade e em mortes,
que a qualidade de vida aumenta
o
Em outras palavras, à medida que a morte
afasta-se do nosso cotidiano, passamos a encará-la com horror, como se morrer
fosse antinatural – isto é, como se,
além de um desastre, ela fosse também plenamente evitável
o
Essa repulsa da morte vincula-se não apenas a um
hedonismo individualista, mas também a uma repulsa
ao envelhecimento (e aos idosos) e, assim, a uma concepção mistificada da “eterna juventude”
-
A secularização do Ocidente tem afastado as
pessoas das crenças cristãs de vida após a morte; mas, ao mesmo tempo, a
secularização também tem estimulado (vinculado em parte a um certo ateísmo de
fundo, em parte à ideologia estadunidense) o individualismo
o
Sem que se deixe formalmente de lado uma
eventual crença na vida após a morte, a secularização individualista conduz a
atitudes hedonistas e quase niilistas, em interpretações cada vez
mais superficiais do carpe diem
o
Ainda assim, apesar do hedonismo individualista
secularizado, a morte continua sendo o destino de todos nós e, portanto, a
avaliação sobre o que fazer de nossas vidas e sobre qual o sentido da vida e da
morte permanece como uma questão central para todos, mesmo que seja uma questão
implícita
-
A ambigüidade atual do Ocidente em face da morte
na verdade atualiza – e, portanto, mantém sob outros aspectos – uma ambigüidade
estabelecida anteriormente pelo cristianismo
o
Embora o cristianismo considere que a morte é a
passagem desta vida para uma suposta vida melhor e “mais verdadeira”, ao mesmo
tempo ele considera a morte um momento absoluto de término
o
Essa concepção cristã de que a morte é um
término e que, portanto, apresenta um certo caráter absoluto vincula-se ao
raciocínio fundamental da teologia, segundo o qual a matéria é inerte e somente
se torna ativa por obra e graça de uma força externa (no caso, a divindade, por
meio do “sopro divino”, ou da “alma”)
§
Assim, para o cristão, quando uma pessoa morre,
é o sopro divino, ou a alma, que sai do corpo: o corpo perde seu laço com a
divindade e torna-se apenas um pedaço de carne cujo destino é o apodrecimento
o
Vale notar que, se fôssemos incapazes de
perceber na atitude ocidental atual um espírito metafísico, esse caráter seria
evidenciado pelo simples fato de que essa atitude atual é a versão corrompida
de concepções teológicas
o
A teologia, ao pressupor uma “vida além da morte”,
é vaga e arbitrária em suas concepções:
§
Ela é vaga porque, se houvesse uma tal vida,
ninguém nunca voltou dela para esta vida e, portanto, ninguém pode dizer com
clareza em que ela consistiria
§
Ela é arbitrária porque, não tendo nenhum parâmetro
para defini-la, a vida após a morte é caracterizada segundo a imaginação da
pessoa, do lugar e da época em questão
·
A tradição cultural atenua um pouco esses
defeitos, mas o fato é que, no final das contas, o caráter puramente
imaginativo das características mantém a vagueza e a arbitrariedade
§
Além disso, é digno de nota que mesmo os teológicos
os mortos não com um apelo à sua situação na vida após a morte, mas
efetivamente por meio da memória de suas atividades nesta vida: em outras palavras,
mesmo apelando para uma suposta vida após a morte, os teológicos honram o caráter
humano dos mortos e de suas vidas
-
O fetichismo e o Positivismo, em contraposição,
estabelecem que a matéria é naturalmente ativa; assim, os corpos não necessitam
de intervenções externas para serem ativos
o
Dessa forma, quando alguém morre, a atividade do
corpo não cessa, mas ela modifica-se
o
Mas o que é a “morte”? A morte é a cessação dos fenômenos biológicos, ou seja, das constantes
trocas (mutuamente modificadoras) entre o corpo e o ambiente
§
Mas, ainda assim, o corpo sem atividades biológicas continua em atividade em outros
âmbitos
o
Dessa forma, a morte não é propriamente um fim:
ela corresponde a uma transformação
o
O corpo que não abriga mais uma atividade
biológica específica do próprio corpo mantém-se ativo em outros âmbitos; como o
Positivismo e o fetichismo consideram que não há separação entre corpo e
“alma”, o corpo sem vida não é apenas um pedaço de carne a apodrecer
·
No que se refere à “alma”, o Positivismo
define-a como sendo o conjunto das funções cerebrais
§
Esse corpo é parte integrante fundamental da
pessoa que morreu e cuja relação com o ambiente está modificada (em certo
sentido, está diminuída; mas, em outro sentido, está aumentada)
-
As
concepções acima explicam e justificam o culto
aos mortos, tanto no Positivismo quanto, antes, no fetichismo
o
O culto aos mortos, portanto, não tem nada de macabro;
não se trata de culto à morte, mas de
lembrança sistemática e sistematizada de quem morreu
o
As concepções acima também justificam plenamente
o nome do oitavo sacramento positivista: a “transformação”
o
Vale lembrar que o culto aos mortos, no âmbito do
cristianismo, é incoerente em relação ao seu dogma e dá-se devido à permanência
de hábitos fetichistas e/ou à intuição do valor desse culto
-
De maneira mais específica, a transformação que
ocorre com a morte, no Positivismo, consiste no seguinte:
o
Evidentemente, a mudança no estado geral de
atividade do corpo, em que há uma diminuição nessa atividade (em termos biológicos)
o
Mas, por outro lado e de maneira mais
importante, a vida objetiva cede lugar à vida subjetiva; a atividade concreta
(especialmente cívica) cede lugar à atividade abstrata (diretamente
afetivo-intelectual); a participação na solidariedade do presente cede lugar à
continuidade na história
o
Dessa forma, o Positivismo considera não apenas
que a morte corresponde a uma transformação, como também afirma que há, sim,
uma vida após a morte: entretanto, a concepção positiva de “vida após a morte”
estabelece que temos uma vida subjetiva
após a morte
§
Em vez de aumentar a distância, a vida subjetiva
após a morte aproxima de cada um de nós
os entes queridos que sofreram a transformação
o
Vale a pena recordar e insistir: a concepção
subjetiva de vida após a morte é clara e bem definida; em contraposição, a
concepção objetiva, absoluta, teológico-metafísica de vida após a morte é
imprecisa, extremamente vaga (não se sabe exatamente o que seria) e
profundamente arbitrária (afinal, não tem nenhum parâmetro verdadeiro, exceto
variações da presente vida)
-
Como se sabe, a vida subjetiva após a morte,
realizada em particular no culto aos mortos, apresenta uma série de importantes
conseqüências morais, intelectuais e práticas:
o
Define com clareza o sentido da vida de cada um
de nós, sem cair nem no individualismo nem no hedonismo
o
Vincula cada um de nós ao conjunto dos seres
humanos, ou seja, estabelece de maneira profunda o sentido de pertencimento
o
Torna a vida e a morte racionais e orientadas
para um propósito moral e intelectualmente verdadeiro, bom e belo
o
Estabelece uma recompensa altruísta para os
esforços contínuos de cada um de nós
§
Assim, estabelece parâmetros claros para a
orientação e a avaliação da vida de cada um de nós
o
Diminui a dor da perda dos nossos entes queridos
(e/ou importantes), quando de suas mortes
§
Assim, diminui o trauma de cada um de nós perante
essas mortes e evita todo e qualquer desespero
o
Aproxima-nos do convívio com os mortos por meio
da vida subjetiva, sem que isso se degrade em um culto macabro ou em um culto
metafísico à “morte”
§
No caso das doações de órgãos, a vida do doador em
certo sentido mantém-se por meio de quem recebe os órgãos: além de isso
consistir em um forma objetiva e subjetiva de compartilhar a vida, também
significa a única forma racional e possível de ocorrer o quimérico ideal teológico
da ressurreição
§
Assim, diminui o trauma de cada um de nós perante
essas mortes e evita todo e qualquer desespero
o
Estimula diretamente o altruísmo, desenvolve
nossos pendores artísticos, aperfeiçoa nossa capacidade de idealização,
desenvolve nossos pensamentos e, last but
not the least, melhora nossos esforços práticos
§
Vale notar que todos esses esforços alteram –
para melhor – a anátomo-fisiologia cerebral e, daí, de todo o nosso corpo
o
Deve ser claro para qualquer pessoa que esse
conjunto de conseqüências estimula diretamente a harmonia coletiva e individual
§
Todavia, vale notar que essas concepções
distanciam-se não apenas das concepções próprias à teologia, como também se distanciam
das superficiais concepções vigentes atualmente no Ocidente, tão marcadas pelo
individualismo, pelo hedonismo, pelo niilismo criptocristão – e pelo horror à
morte