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22 setembro 2020

Manuel de Almeida Cavalcanti: "Introdução à síntese subjetiva"

Está disponível no portal Archive.org o livro Iniciação filosófica, do engenheiro e professor positivista Manuel de Almeida Cavalcanti (nascido em 11.12.1865, no estado de Alagoas). Foi publicado em 1914 e é uma exposição didática da síntese subjetiva positivista, elaborada por Augusto Comte (1798-1857) ao longo de sua carreira, especialmente após 1848.

A síntese subjetiva positivista é, do ponto de vista filosófico, a condensação do Positivismo, em que culminam as reflexões científicas, epistemológicas, sociológicas, políticas e morais de Augusto Comte. Com a síntese subjetiva, a Religião da Humanidade torna-se plenamente compreensível, aceitável e aplicável. 

O relativismo, a historicidade, a subjetividade humana são plenamente afirmados e aplicados na síntese subjetiva, ou, em outras palavras, são aplicadas em toda a sua extensão possível. Com isso, o Positivismo, na forma da Religião da Humanidade, mantendo o realismo e o respeito às leis naturais, ultrapassou em muito o cientificismo, o utilitarismo estreito, a arte pela arte, o academicismo: essa ultrapassagem esteve muito à frente do que era considerado aceitável no século XIX e está também muito à frente do que se considera hoje, no século XXI, possível.

Assim, não é coincidência que justamente a síntese subjetiva seja ao mesmo tempo ignorada e desprezada pelo comum dos comentadores de Augusto Comte. Isso pode parecer incoerente, mas ocorre de fato, a partir do mito do "Comte maluco", que justifica a postura do "não li e não gostei".

O livro de Almeida Cavalcanti pode ser consultado e baixado aqui.

19 janeiro 2020

19 de janeiro, aniversário de Augusto Comte, o fundador da Religião da Humanidade


No dia 19 de janeiro comemora-se o aniversário de nascimento de Augusto Comte (1798-1857), o fundador da Sociologia, da Moral Positiva, da História das Ciências e, mais importante que isso, da Religião da Humanidade.

Busto de Augusto Comte em frente à Universidade Sorbonne, em Paris.
Abaixo do nome está escrito "Merci par tout!" ("Obrigado por tudo!").

A Religião da Humanidade, ou simplesmente “Positivismo”, é uma religião humana e humanista, que busca harmonizar as várias facetas da natureza humana, entendendo que essa natureza compõe-se de três elementos – os sentimentos, a inteligência e a ação prática –; esses elementos, por sua vez, atuam tanto nos indivíduos quanto na vida coletiva. Assim, os seres humanos são sempre motivados pelos sentimentos, que podem ser altruístas ou egoístas; para viverem, devem conhecer a realidade que os cerca e, a partir disso, agem nas sociedades.

Augusto Comte percebeu que a moralidade humana consiste em agir sempre com vistas ao altruísmo, ou seja, em benefício dos demais, mesmo quando cada indivíduo e cada sociedade tem que satisfazer as suas próprias necessidades particulares. Esse princípio fundamental da moralidade é também o que permite que os seres humanos sejam felizes e, ao mesmo tempo, é o que permite que as concepções que cada um tem da realidade – a filosofia, a ciência – sejam organizadas de maneira racional e coerente. Por fim, todos sabemos que ao longo de nossas vidas enfrentamos inúmeros desafios, que exigem de cada um respostas intelectuais e práticas; como se diz, viver em sociedade não é fácil: a moralidade positiva, baseada na realização do altruísmo, permite que essas dificuldades sejam diminuídas e adequadamente tratadas, minorando os sofrimentos humanos e permitindo o máximo de justiça.

A Religião da Humanidade é uma “religião”: é um sistema de coordenação das concepções e dos comportamentos humanos. Ela não é uma teologia, pois não usa como princípio regulador máximo nenhuma entidade sobrenatural (os deuses); apesar disso, a Religião da Humanidade tem um símbolo maior, que representa os grandes valores humanos, resumidos no amor: é a própria Humanidade, representada por uma moça de cerca de 30 anos tendo em seu colo uma criança... a Humanidade cuidando e preparando, com amor, as gerações futuras.

Eduardo de Sá - A Humanidade

Estátua da Humanidade, Igreja Positivista do Brasil.

A história da humanidade é a grande escola de que dispomos. Graças ao lento acúmulo de pequenas e grandes modificações ocorridas ao longo dos anos, dos séculos, dos milênios, o ser humano pode erguer-se das pequenas famílias que viviam nas cavernas, com medo de tudo, até a grande civilização mundial que busca, cada vez mais, a paz entre todos os povos, o respeito a todas as culturas e todos os grupos, o trabalho digno, a justiça social. Também é graças à historicidade humana que a concepção de uma religião positiva, humana, foi possível, após o desenvolvimento das religiões fetichistas, politeístas e monoteístas: assumindo a liderança do ser humano, a Religião da Humanidade respeita, glorifica e agradece o serviço prestado por essas religiões anteriores. Por fim, também é graças à  historicidade humana que foi possível conhecermos o mundo que nos cerca e a realidade de que fazemos parte – cósmica, social e individual. A própria Religião da Humanidade é um fruto da historicidade do ser humano.

A Religião da Humanidade valoriza profundamente a subjetividade, isto é, os sentimentos, as crenças íntimas. Mas essa subjetividade também tem que ser regulada: o mundo existe objetivamente, com as suas regularidades que não dependem das nossas crenças nem dos nossos sentimentos. Entender que a mais rica subjetividade não pode negar a objetividade das leis naturais também é fonte de felicidade.

O reconhecimento de que a realidade tem seus princípios próprios, que o próprio ser humano tem um funcionamento específico, leva-nos a mais uma das características da Religião da Humanidade, o seu relativismo. O relativismo positivo não significa que “qualquer coisa vale”; ele significa que o ser humano não pode explicar toda a realidade a partir de um único princípio, de um único conceito, que explicaria tudo de uma única vez e sem fosse necessário referir-se a mais nada. Assim, no que Comte chamava de "síntese subjetiva", a Religião da Humanidade abandona e rejeita as concepções absolutas.

A Religião da Humanidade foi criada em 1848 por Augusto Comte sob a influência de sua esposa subjetiva, a sofrida Clotilde de Vaux (1815-1846). Após uma vida de dificuldades e sacrifícios, Augusto Comte apaixonou-se pela jovem Clotilde, cuja vida também se caracterizava por sacrifícios e dificuldades imensos; o apoio de Clotilde às reflexões de Comte permitiram a ele que entendesse profundamente o quanto o amor é poderoso... o amor de Comte por Clotilde permitiu ao filósofo perceber que o verdadeiro fundamento do ser humano, da moralidade real, é mesmo o amor, que é uma outra forma de denominar o altruísmo.

Busto de Clotilde, de Décio Villares.

Retrato de Clotilde, de Etex.

Todas essas concepções belas e reais foram condensadas na profissão de fé de um dos mais ilustres positivistas e mais ilustres cidadãos brasileiros, o Marechal Rondon:

 
Marechal Rondon

Eu Creio:

Que o homem e o mundo são governados por leis naturais.

Que a Ciência integrou o homem ao Universo, alargando a unidade constituída pela mulher, criando, assim, modesta e sublime: simpatia para com todos os seres de quem, como Poverello, se sente irmão.

Que a Ciência, estabelecendo a inateidade do amor, como a do egoísmo, deu ao homem a posse de si mesmo. E os meios de se transformar e de se aperfeiçoar.

Que a Ciência, a Arte e a Indústria hão de transformar a Terra em Paraíso, para todos os homens, sem distinção de raças, crenças,: nações – banido os espectros da guerra, da miséria, da moléstia.

Que ao lado das forças egoístas – a serem reduzidas a meios de conservar o indivíduo e a espécie – existem no coração do homem: tesouros de amor que a vida em sociedade sublimará cada vez mais.

Nas leis da Sociologia, fundada por Augusto Comte, e por que a missão dos intelectuais é, sobretudo, o preparo das massas humanas: desfavorecidas, para que se elevem, para que se possam incorporar à Sociedade.

Que, sendo, incompatíveis às vezes os interesses da Ordem com os do Progresso, cumpre tudo ser resolvido à luz do Amor.

Que a ordem material deve ser mantida, sobretudo, por causa das mulheres, a melhor parte de todas as pátrias e das crianças, as pátrias do futuro.

Que no estado de ansiedade atual, a solução é deixando o pensamento livre como a respiração, promover a Liga Religiosa,: convergindo todos para o Amor, o Bem Comum, postas de lado as divergências que ficarão em cada um como questões de foro íntimo, sem perturbar a esplêndida unidade – que é a verdadeira felicidade.

17 novembro 2014

Fotos do Museu Casa de Benjamin Constant: exemplar da "Síntese subjetiva"

As fotos abaixo correspondem a itens do acervo do Museu Casa de Benjamin Constant (IBRAM/MinC); elas foram-me gentilmente enviadas pelo historiador e pesquisador do Museu, Marcos Felipe de Brum Lopes.

As fotos mostram um elegantíssimo presente dado a Benjamin Constant Botelho de Magalhães por seus alunos da Escola Militar: trata-se de uma luxuosa edição do volume I (e único) da obra Síntese subjetiva (Synthèse subjective), de Augusto Comte, juntamente com uma belíssima caixa acolchoada.


Edição da Síntese subjetiva de Augusto Comte. Nas cantoneiras estão escritos: esquerda superior: "Humanidade"; direita superior: "Descartes"; direita inferior: "Bacon", esquerda inferior: "Vauvenargues". No centro lê-se: "[ilegível] Benjamin Constant Botelho de Magalhães, homenagem dos alunos da Escola Militar da Corte".


Caixa em que se guarda o exemplar da Síntese subjetiva, de Augusto Comte, presenteado pelos alunos da Escola Militar a Benjamin Constant. No centro lê-se: "Viver às claras", circundado por "Amor por Princípio - Ordem por Base - Progresso por Fim".
Interior da caixa em que se guarda o exemplar da Síntese subjetiva, de Augusto Comte, presenteado pelos alunos da Escola Militar a Benjamin Constant.  O verde das fitas corresponde à cor do Positivismo.

19 abril 2013

Principais resultados da ciência moderna para o relativismo filosófico


Para Augusto Comte, a relatividade filosófica consolidou-se com dois resultados das investigações científicas ocorridas entre os séculos XV e XIX, um astronômico, o outro biológico: o duplo movimento da Terra e o caráter inato dos pendores altruístas. 

Enquanto o duplo movimento da Terra, com caráter objetivo, tirou o ser humano da condição de "centro do universo" (ou, na mitologia judaico-cristã, de "rei da criação"), o altruísmo inato, com caráter subjetivo, permite que se sistematize o esforço de cada um sobre si mesmo em benefício dos demais, ou seja, permite ao mesmo tempo que a sociabilidade aconteça e que se elabore a síntese subjetiva altruísta seja elaborada

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“L’innéité des penchants bienveillants et le  mouvement de la terre constituent les principaux résultats de la science moderne, comme posant les deux bases essentielles, l’une subjective, l’autre objective, de la vraie relativité” (Comte, Système de politique positive, v. IV, p. 20).

23 janeiro 2013

Objetividade e subjetividade, análise e síntese, absolutismo e relativismo


A despeito de ser extremamente denso e exigir a compreensão preliminar de toda a filosofia da história, da ciência e da religião de Comte, o trecho abaixo é notável e esclarecedor, com sua avaliação das relações entre as sínteses absoluta e relativa – a primeira característica da teologia e da metafísica, a segunda, do Positivismo –, assim como das relações entre a subjetividade relativa (de caráter sintético) e a objetividade científica (de caráter analítico).
Augusto Comte indica que a teologia e a metafísica, ambas absolutas e buscando as causas, tiveram sua importância histórica, mas suas sínteses eram subjetivas, embora afirmassem-se objetivas. A passagem para a síntese relativa implica o abandono da pesquisa das causas e a busca das leis naturais; ao mesmo tempo, deve-se abandonar qualquer esperança de síntese objetiva, assumindo-se que a síntese é necessariamente subjetiva.
Com isso, a relação entre subjetividade e objetividade – e, daí, entre síntese e análise – muda. O desenvolvimento da objetividade científica foi necessário para mostrar o quanto a busca do absoluto é infrutífera; mas essa própria objetividade – que é sempre analítica – deve ser sempre subordinada à subjetividade relativa, de caráter sintético: essa subordinação consiste no fornecimento dos materiais intelectuais a serem coordenados pela síntese relativa.

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“Mieux on médite sur la marche primitive de notre intelligence, plus on reconnaît qu'elle n'exigeait d'autre rectification radicale que de substituer l'étude des lois à la recherche des causes. Son vice fondamental, d'ailleurs inévitable et même indispensable, ne consistait point dans son caractère subjectif, mais dans sa nature absolue. La longue coexistence de ces deux attributs n'a point empêché la subjectivité de manifester ses hautes propriétés, intellectuelles et surtout morales. Toute synthèse doit être subjective, puisque l'objectivité reste toujours analytique. Mais la prépondérance de la subjectivité est encore plus indispensable à la subordination fondamentale de l'esprit envers le cœur. Cette double nécessité, qui jusqu'ici prévalut sans être aperçue, a été confusément sentie par les principaux métaphysiciens modernes, depuis l'avortement décisif des nombreuses tentatives de systématisation objective. Ainsi poussés vers l'unité subjective, ils ne l'ont manquée que pour l'avoir restreinte à l'homme individuel, au lieu de la fonder sur l'humanité.
La subjectivité initiale n'avait donc besoin que de devenir relative; mais cette transformation radicale a exigé tout le préambule objective accompli graduellement depuis Thalès jusqu'à Bichat. Car il fallait pour cela faire universellement prévaloir l'étude des lois naturelles, qui ne pouvait commencer qu'envers les moindres phénomènes, d'où elle s'est ensuite étendue lentement aux plus éminents. L'achèvement de cette immense préparation conduit maintenant à fonder la vraie subjectivité, en substituant la sociologie à la théologie. Ainsi rendue relative, la prépondérance du véritable point de vue humain devient beaucoup plus directe, et même plus complète que lorsqu'elle présidait implicitement au régime absolu. Cette transformation définitive est encore plus salutaire au cœur qu'à l'esprit, d'après l'harmonie durable qu'elle institue entre eux. L'objectivité, qui ne put rien systématiser, prend enfin son office caractéristique, de fournir partout les matériaux des constructions réservées à la subjectivité” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 581-582).

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Tradução para o português:

"Mais se medita sobre a marcha primitiva de nossa inteligência, mais se reconhece que ela não exigiria outra retificação radical senão a de substituir pelo estudo das leis a pesquisa das causas. Seu vício fundamental, aliás inevitável e mesmo indispensável, não consistiu de maneira nenhuma em seu caráter subjetivo, mas em sua natureza absoluta. A longa coexistência desses dois atributos não impediu de modo nenhum a subjetividade de manifestar suas altas propriedades, intelectuais e sobretudo morais. Toda síntese deve ser subjetiva, pois a objetividade permanece sempre analítica. Mas a preponderância da subjetividade é ainda mais indispensável à subordinação fundamental do espírito ao coração. Essa dupla necessidade, que até aqui prevaleceu sem ser percebida, foi confusamente sentida pelos principais metafísicos modernos, depois do abortamento decisivo de numerosas tentativas de sistematização objetiva. Assim impelidos em direção à unidade subjetiva, eles não falharam senão em restringi-la ao homem individual, em vez de fundá-la sobre a Humanidade.

A subjetividade inicial, então, não tinha necessidade senão de tornar-se relativa; mas essa transformação radical exigiu todo o preâmbulo objetivo realizado gradualmente após Tales [de Mileto] até [Xavier] Bichat. Afinal, era necessário para isso fazer prevalecer universalmente o estudo das leis naturais, que não poderia começar senão a respeito dos menores fenômenos, de que ela lentamente se estendeu em seguida aos mais eminentes. A conclusão dessa imensa preparação conduz agora a fundar a verdadeira subjetividade, ao substituir pela Sociologia a teologia. Assim tornada relativa, a preponderância do verdadeiro ponto vista humano torna-se bastante mais direto e mesmo mais completo que quando ele presidia implicitamente o regime absoluto. Essa transformação definitiva é ainda mais salutar ao coração que ao espírito, segundo a harmonia durável que ela institui entre eles. A objetividade, não pode nada sistematizar, assume afinal seu ofício característico, de fornecer por toda parte os materiais das construções reservadas à subjetividade" (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 581-582).

22 outubro 2012

Unidade subjetiva da ciência via Sociologia e Moral

Afirma-se muito amiúde que Augusto Comte - e, por metonímia, o "positivismo" - reduziu as ciências humanas às ciências naturais, "naturalizando" a Sociologia. Isso é de uma tolice sem par: bastaria ler-se o próprio Comte para saber-se o quanto isso é tolo.

Vivemos, além disso, em uma época de desconstruções e desmistificações. Assim, com o intuito de ajudar na desconstrução de um mito extremamente difundido - mito cômodo, aliás, pois fornece a priori o "outro" teórico, a ser combatido, negado e rejeitado -, apresentamos abaixo uma citação de clareza meridiana a respeito da subordinação das ciências naturais às ciências humanas, bem como da possibilidade de unidade teórica apenas por via subjetiva e, por fim, da importância principalmente afetiva (mais que intelectual) de tal procedimento.

Convém notar, além disso, que esta passagem, cujas importância e atualidade teóricas são enormes, é da obra religiosa de Comte, justamente aquela que, também a priori, não é lida mas é rejeitada por ser "misticismo" ou "loucura".

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“La science inorganique semblerait comporter une constitution propre, indépendante de la sociologie, puisque son objet théorique pourrait être conçu sans aucune relation à l’homme, autrement que comme spectateur. Mais, outre que la sociabilité réprouvera de plus en plus cette utopie des géomètres, sa rationalité ne serait qu’apparente. Car ici l’immensité naturelle du domaine spéculatif y susciterait des divagations indéfinies qui, outre leur profonde stérelité, deviendraient bientôt contraires à toute systématisations. L’unité objective y est nécessairement impossible, comme l’ont confirmé  les vains efforts des deux dernières siècles. Elles ne comportent, par leur nature, qu’une simple unité subjective, par la commune prépondérance du point de vue humain, c’est-à-dire social. Ce seul lien universel de leurs doctrines, et même de leurs méthodes, constitue l’unique moyen d’y réduire chaque sujet, isolément inépuisable, à ce que réclame la destination sacrée de tous nos efforts quelconques au service continu du Grand-Être.

Mais cette restriction normale des sciences préliminaires au simple caractère de préambule fondamental de la science finale, importe encore plus au sentiment qu’à raison et à l’activité” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 420).

04 janeiro 2007

Transdisciplinaridade humanista

UMA transdisciplinaridade humanista:

A síntese subjetiva positivista

Desde há alguns anos fala-se bastante em “multidisciplinaridade”, “interdisciplinaridade” e até em “transdisciplinaridade”. Essas propostas são maneiras de perceber a realidade e, mais do que isso, o próprio conhecimento científico; cada uma delas são metodologias que organizam nossos conhecimentos, tendo em vista algumas perspectivas específicas sobre a realidade.

Assim, a multidisciplinaridade afirma que as diversas áreas do conhecimento devem colaborar entre si para a resolução dos problemas; por sua vez, a interdisciplinaridade reconhece a importância de essas áreas colaborarem entre si, mas dá um passo além, no sentido de haver trocas entre elas e também no sentido de desenvolverem-se maneiras de relacionar-se com intimidade.

Tomemos como exemplo o ser humano, com todas as suas necessidades físicas, biológicas, afetivas, econômicas e assim por diante. A multidisciplinaridade afirma que cada uma dessas necessidades pode e deve ser satisfeita pela aplicação de um conhecimento específico: os problemas emocionais e afetivos pela Psicologia, o trabalho pela Economia, a saúde pela Medicina, as relações sociais pela Sociologia etc. A interdisciplinaridade afirma, por outro lado, que, além de cada uma das áreas do conhecimento cuidar de um aspecto do ser humano, elas devem dialogar entre si, procurando uma solução em comum, havendo uma troca de perspectivas e de conteúdo entre elas; assim, a Economia contribuirá para a Psicologia e a Sociologia, que contribuirão para a Medicina e a Economia etc. Em termos de método, o resultado é que nenhum nível do conhecimento superpõe-se aos demais, considerando que a realidade é formada por múltiplos níveis e, nesse sentido, é inesgotável.

Essas maneiras de lidar com o conhecimento começaram a tornar-se mais conhecidas a partir dos anos 1960, em reação a diversas limitações teóricas e práticas que a especialização excessiva e alienante trouxe para o ser humano. Ora, o interessante é que elas foram propostas há mais de 150 anos por um filósofo da ciência que já gozou de bastante fama no Brasil e no mundo, mas que há um certo tempo está injustamente desconhecido: Augusto Comte.

Comte (1798-1857), fundador do Positivismo e formulador da frase que está na bandeira brasileira – Ordem e Progresso –, no começo do século XIX percebia que os conhecimentos estavam cada vez mais especializados, cada vez mais específicos. Por um lado, não há como nem porquê evitar que isso ocorra: afinal, é precisamente esse o caminho que se deve trilhar para aumentarmos o conhecimento da realidade. Mas, por outro lado, a especialização aumenta o conhecimento em profundidade, mas diminui o conhecimento em extensão: sabemos cada vez mais sobre cada vez menos; em outras palavras, perdemos a visão de conjunto. Ora, nós precisamos da visão de conjunto para entender a totalidade da realidade e para podermos, de fato, agir. Assim, o que em um primeiro momento A. Comte propôs foi mais uma especialidade: aquela que analisaria os principais resultados de cada uma das formas de conhecimento e procuraria elaborar uma síntese deles, de maneira a fornecer uma visão de conjunto. Tal síntese seria, necessariamente, filosófica e, se hoje em dia não fosse uma palavra com uma conotação negativa, diríamos que seria uma síntese filosófica e generalista. O interessante a notar é que, a partir do momento em que se parte dessa perspectiva, que é de conjunto, modifica-se a maneira como se percebem as várias partes, surgindo novos resultados para cada um dos conhecimentos. Como dissemos antes, essa é a própria interdisciplinaridade.

Continuando a estudar o ser humano, Augusto Comte percebeu que ainda poderia ir muito além disso. Afinal, o que dissemos até agora se refere apenas aos conhecimentos científicos, mas o ser humano é mais que a inteligência, incluindo também as ações práticas e, principalmente, os sentimentos. Cada uma dessas partes deve manter-se em harmonia com as demais, para os seres humanos considerados tanto individualmente quanto em termos coletivos; além disso, uma verdadeira consideração do conjunto dos seres humanos deve incluir também o local onde vivemos, ou seja, deve incluir também o próprio planeta e o meio ambiente. Assim, o resultado é que, partindo de uma perspectiva de conjunto baseada na realidade do ser humano, a única forma de mantermos em harmonia sentimentos, pensamentos e ações é por meio do desenvolvimento do altruísmo e da generosidade, regulando nossas ações individuais e coletivas tendo em vista o bem comum. Como no final é o ser humano o centro dos sentimentos, das concepções e das ações e como essa centralidade quem atribui é o próprio ser humano, a síntese é, necessariamente, subjetiva, isto é, referente ao sujeito.

É claro que o “ir além” da interdisciplinaridade, como apresentamos, refere-se a pautar as condutas humanas a partir de um padrão moral, ético, daí orientando as elaborações intelectuais. Bem entendidas as coisas, esse “ir além” é a transdisciplinaridade a que nos referimos no início do texto.

Para concluir, vale a pena notar que as concepções de Augusto Comte, embora tenham já cerca de 150 anos, mantêm-se extremamente atuais, podendo contribuir com grande fecundidade para os grandes desafios que enfrentamos atualmente.