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18 novembro 2022

Crítica à República e desistência de uma utopia libertária, inclusiva e progressista

A República foi proclamada em 1899, tendo amplo apoio popular e de intelectuais. Nos anos seguintes à proclamação, muitos desses intelectuais republicanos passaram a desiludir-se com o novo regime político, pois esperavam mudanças sociais, políticas, econômicas imediatas. As mudanças sociais, como sabemos, são lentas por si sós; a implantação da República teve suas próprias dificuldades e, por fim, de fato muitas mudanças necessárias e desejadas acabaram não sendo implantadas.

A partir de então, esses intelectuais desiludidos passaram a criticar os limites, as falhas e as promessas não cumpridas da República.

O problema é que nessas críticas esses intelectuais - antigos entusiastas do republicanismo - passaram a abandonar moral, intelectual e politicamente a República. Ou seja, em vez de persistirem no projeto, em vez de cobrarem a realização das promessas e das necessidades sociais, eles passaram a deixá-lo de lado. Nessa toada associaram-se aos críticos novos intelectuais, que, por sua vez, tinham cada vez menos compromisso com o republicanismo e, em particular, com a defesa das liberdades.

Assim, esse abandono do projeto republicano, da parte dos intelectuais antigos entusiastas da República (e mesmo da parte de alguns novos intelectuais), teve pelo três ou quatro resultados, não necessariamente mutuamente excludentes:

(1) abriram espaço para a irresponsabilidade social, política e econômica das elites brasileiras;

(2) abriram espaço para a posterior rejeição da República, que acabou realizando-se na forma da Revolução de 1930, e, em particular, para os autoritarismos "puros" e/ou os autoritarismos que tendiam para os totalitarismos, próprios ao Brasil entre 1935 e 1945;

(3) permitiram que a memória da monarquia - tão corretamente criticada nas décadas de 1870 e 1880 (escravidão, castas, degradação do trabalho, filhotismo, igreja oficial, centralização autoritária, imperialismo internacional etc.) - fosse reabilitada, como se os inúmeros e profundos defeitos morais, intelectuais, sociais e políticos da monarquia nunca tivessem ocorrido e como se república não tivesse sido de fato um progresso necessário, com ou sem promessas não cumpridas;

(4) a transmutação, explícita ou implícita, de alguns desses intelectuais republicanos em defensores da monarquia;

(5) uma combinação variada desses aspectos todos.

Ora, bem vistas as coisas, a desistência do projeto republicano da parte desses intelectuais foi um enorme erro. Até então e desde o século XVIII, na história do Brasil o republicanismo era um ideal em si mesmo, uma concepção densa a concentrar, estimular e orientar os esforços morais, intelectuais, políticos, sociais - em outras palavras, o republicanismo era própria e verdadeiramente uma utopia.

Desde então, o Brasil ficou órfão dessa utopia. A muito custo, o republicanismo foi substituído pela "democracia"; mas, como se sabe, tal substituição foi demorada; mas, como não se sabe, a democracia é um substituto muito, muito imperfeito e inadequado para o republicanismo, na medida em que ela (a democracia) é o governo do povo, o que pode ser entendido como "massas", quer sejam as massas que nunca erram ("a voz do povo é a voz de deus", como poderia ser subscrito por Rousseau), quer sejam as massas de indivíduos justapostos (como pode ser subscrito pelos liberais). Quando se estuda a "democracia" de um ponto de vista da teoria política, levando em consideração o republicanismo, torna-se bastante evidente que ela, a democracia, só se torna um regime de liberdades com conteúdo social quando na verdade ela é apenas um nome que corporifica de fato e no fundo a República.

Desde os anos 1930, essa desistência do republicanismo da parte dos intelectuais antigos republicanos é estudada na academia como "crítica à república" e/ou como "crítica ao liberalismo", não como desistência do republicanismo. Em outras palavras, o enfoque básico nesses estudos é o da crítica social e, curiosamente, de um forte mas implícito "evolucionismo", em que nada do que veio antes dos "estudiosos contemporâneos" presta (e, em particular, nada do que veio antes da "democracia", presta); com isso, a história política, social e intelectual está sempre, perpetuamente, recomeçando. Aliás, como já indicamos, além desse curioso evolucionismo anti-histórico, tabula rasa, uma outra consequência dessa perspectiva é a revalorização da monarquia - em que se passa água sanitária sobre todos os sérios, inúmeros e profundos problemas da monarquia e em que esta passa a ser vista como um modelo de virtudes intelectuais, morais, sociais, políticas e econômicas.

Um representante perfeito dessa mentalidade tabula rasa é o famoso (mas, como é fácil de perceber, exageradamente celebrado) sociólogo Florestan Fernandes; antes dele, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda fez a mesma coisa (Sérgio Buarque tem o grave defeito adicional de repetir o preconceito anti-ibérico, ou antiportuguês, que considera que só os anglossaxões prestam e que os ibéricos são burros, preguiçosos, autoritários etc.).

Uma outra maneira de entender a perspectiva academicista básica para estudo dos intelectuais antigos republicanos é a seguinte: desiste-se do republicanismo e desiste-se da utopia republicana; mas, mais importante que isso, também se desiste de entender a desilusão dos intelectuais antigos republicanos como uma etapa de aprendizado intelectual, moral e político, em termos coletivos e históricos da realidade brasileira. Ou seja, desiste-se de entender que a desilusão desses intelectuais era correta e compreensível em um certo sentido; mas que eles erraram profundamente em passar da desilusão para a desistência do projeto republicano e, daí, que eles erraram em deixar o Brasil órfão da utopia republicana e de seu denso conteúdo social e libertário. (De passagem: na França e em Portugal não se cometeu esse erro; não por acaso, o republicanismo nesses países tem um conteúdo denso, ou seja, é uma utopia atual, verdadeira, pulsante.)

Em suma: lamentavelmente, apesar de si mesmos, os intelectuais antigos republicanos erraram - e nós insistimos em não aprender com esse erro.

Uma última observação. Muitos intelectuais antigos republicanos desiludiram-se com a república e acabaram desistindo do projeto republicano; essa perspectiva - a desilução-com-desistência - é a perspectiva-padrão das análises academicistas atuais: é o que argumentei até agora. Se a atuação dos intelectuais desiludidos-desistentes oferece a perspectiva atualmente celebrada e vista como correta, o resultado é que aqueles intelectuais que persistiram no republicanismo, que persistiram valorizando a República e sua utopia, passam a ser vistos como intelectuais alienados, tolos, idealistas, desconectados da realidade - ou, ainda pior, como defensores implícitos ou explícitos da exclusão social, do elitismo, das oligarquias etc. Ora, como os positivistas foram alguns, se não verdadeiramente os únicos, intelectuais organizados e públicos a defender a República e o republicanismo, naturalmente recaem sobre eles todos esses adjetivos negativos que acabamos de enumerar. Aí se evidencia um dos motivos do ridículo com que os academicistas gostam de apresentar os positivistas: não tem nada a ver com as propostas e os comportamentos efetivos dos positivistas, mas com preconceito, com recusa de aprender com a história e com a recusa em persistir em projetos sociais, libertários, inclusivos e progressistas.

15 novembro 2021

Diário de Caratinga - entrevista sobre Positivismo e República

O jornal Diário de Caratinga, do interior de Minas Gerais, fez uma entrevista por escrito comigo sobre o Positivismo e a República, para ser publicado em sua edição de final de semana, de 13 e 14 de novembro de 2021. Realizada pelo jornalista José Horta da Silva, essa longa entrevista foi publicada na íntegra; eu reproduzo-a abaixo.


*     *     *




O que é Positivismo?

Essa pergunta é simples mas exige uma resposta que pode ser um pouco complexa.

Ele é uma filosofia, uma política e uma religião, ou seja, é um sistema de pensamento que busca explicar o conjunto do mundo e do ser humano e, a partir daí, busca orientar as condutas humanas (individuais e coletivas). O Positivismo baseia-se na realidade e na importância do amor e do altruísmo para orientar a conduta humana; como precisamos conhecer a realidade para satisfazer as nossas necessidades, o conhecimento científico é a base desse conhecimento. Isso tudo é sintetizado na Religião da Humanidade, que é uma religião humanista, secular e laica, que afasta o absoluto e busca a fraternidade universal.

 

Como o Positivismo influenciou a Proclamação da República?

O Positivismo influenciou pelo menos de duas maneiras.

Por um lado, ele criou um forte ambiente progressista, modernizador, secular, laico, que propunha a ultrapassagem dos traços profundamente atrasados da sociedade brasileira do século XIX, como a monarquia e a sua base social, política e econômica, a escravidão.

Por outro lado, o positivista Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) era professor de matemática na Escola Militar; suas aulas eram consideradas excelentes, por seu estilo e por sua profundidade filosófica. Além disso, o Positivismo afirma que a ciência pela ciência é imoral, ou seja, que a ciência tem que ter uma preocupação, uma orientação social. Tudo isso foi reconhecido por seus alunos (entre os quais estavam, por exemplo, Rondon e Euclides da Cunha) como importante e correto, o que os levou a empolgarem-se politicamente; naquela época, a militância social e política era bastante clara: contra a escravidão e a favor da república.

Aqui é necessário narrar vários fatores daquela época. Após a abolição da escravidão em 1888, as pressões em favor da república cresceram muito, devido a vários motivos. Em parte porque muitos reconheciam que a monarquia sacraliza uma sociedade atrasada, baseada em privilégios de casta, isto é, vinculados ao nascimento, e que deveria ser substituída por uma sociedade de isonomia (igualdade perante a lei), socialmente inclusiva e que valorize o mérito, não o berço. Vinculado a isso está o fato de que a monarquia nunca foi solidamente implantada no Brasil; havia um certo respeito pela figura de d. Pedro II, mas a monarquia em si era vista em termos meramente instrumentais: não havia uma adesão à monarquia como um princípio moral a ser seguido. O fato de a monarquia ter-se baseado durante toda a sua duração na escravidão indicava o quanto ela era retrógrada, assim como a ausência de indústrias no Brasil e a falta de trabalho livre (e da dignidade do trabalho e dos trabalhadores). A princesa Isabel era clericalista e, ainda por cima, era casada com um francês: mesmo quem não era republicano tinha medo do possível terceiro reinado (o possível futuro reinado da princesa Isabel), que viam como retrógrado ou até reacionário. O excessivo centralismo monárquico, em prejuízo das autonomias provinciais (isto é, dos estados), era bastante criticado, como nos casos de São Paulo e, ainda mais, do Rio Grande do Sul. Da mesma forma, os antigos donos de escravos, principalmente da atual região Sudeste (São Paulo em particular) ficaram muito irritados com o fim da escravidão, ou seja, com seus prejuízos econômicos.

Há outros fatores, mas importa também indicar a situação dos militares. Havia também um forte ressentimento dos militares contra a monarquia: soldos baixos, desprestígio político e social, falta de reconhecimento pelos seus esforços na violentíssima Guerra da Tríplice Aliança (“Guerra do Paraguai”). A Guerra da Tríplice Aliança foi uma aventura militar imperialista do Brasil contra o Paraguai e a favor do intervencionismo brasileiro nos países platinos, especialmente no Uruguai. Durante o conflito os soldados brasileiros travaram contato com as repúblicas platinas livres, isto é, repúblicas sem escravidão; isso os impressionou muito, bem como a resistência heróica dos cidadãos livres do Paraguai e as promessas (cumpridas pela metade) de alforria dos soldados brasileiros escravos. Por fim, a guerra acabou com a caçada a Solano López, ordenada pelo próprio d. Pedro II ao Conde d'Eu, consorte da princesa Isabel.

Na década de 1880 os militares quiseram expressar-se politicamente e foram seguidamente reprimidos, na chamada “Questão militar”; em um regime que se baseava no militarismo mas que se proclamava civilista, isso foi fatal.

Enfim: em 1887 foi fundado o Clube Militar, com Deodoro da Fonseca como presidente e Benjamin Constant como vice-presidente; eles eram os dois militares fora do governo que gozavam de maior prestígio, representantes das duas principais alas dos militares, os vinculados à vida na caserna (Deodoro) e os que buscavam fundamentos científicos para sua atuação (Benjamin Constant). Com isso os militares passaram a manifestar-se politicamente de maneira organizada, atuando nas duas principais questões da época, a abolição e a república. Em 1887 eles recusaram-se a caçar os escravos fugitivos; depois disso, a pressão política pela república aumentou cada vez mais e Benjamin Constant tornou-se o foco dessas pressões.

Embora pessoalmente Benjamin Constant não quisesse participar das conspirações, naquela conjuntura ele era realmente o foco das atenções e um líder natural; buscando evitar o caudilhismo, o militarismo na política e a violência, ele aceitou. Com isso, ele convenceu Deodoro a participar da ação e, juntamente com outros líderes militares e civis, planejavam proclamar a república na segunda quinzena de novembro. Entretanto, os acontecimentos precipitaram-se e na madrugada de 15 de novembro houve, afinal, a proclamação.

Essas várias críticas são importantes também porque atualmente há uma expressiva mas estranha revalorização da monarquia e, em particular, de d. Pedro II. Essa revalorização é bastante romântica e deixa de lado todos os problemas criados e mantidos pela monarquia (e pelo próprio d. Pedro II).

 

Ainda sobre a questão da influência do Positivismo na Proclamação da República, muito se fala do lema “O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”. Porque 'amor' ficou fora da bandeira nacional?

Essa é uma boa questão.

A atual bandeira nacional foi tornada oficial em 19 de novembro de 1889, ou seja, apenas quatro dias após a proclamação. O esboço é da autoria de Raimundo Teixeira Mendes (fundador e vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil) e a sua pintura ficou a cargo do também positivista Décio Villares, importante pintor e escultor da I República.

A frase central do Positivismo é um pouco diferente da que você indicou; é assim: “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”. Essa é a fórmula religiosa mais importante do Positivismo; já o “Ordem e Progresso” corresponde a uma fórmula política, que indica os anseios de todos os cidadãos por ordem e progresso, isto é, por uma ordem que propicie o progresso e um progresso que respeite a ordem (é claro que, nesse sentido, a “ordem” não pode ser estática). Tanto a fórmula “O amor por princípio...” quanto o “Ordem e Progresso” foram propostas desde o início por Augusto Comte, fundador do Positivismo, em suas obras; o que Teixeira Mendes fez foi seguir as indicações de Comte para a bandeira do Brasil, em que há a permanência da sociedade brasileira (com o fundo verde e o losango amarelo, que já estavam na bandeira do império) e também a evolução nacional (com a esfera azul e a faixa branca com o “Ordem e Progresso” em letras verdes).

Em outras palavras, na bandeira o “amor” não ficou de fora, pois o “Ordem e Progresso” é um programa político e não religioso.

Dito isso, eu tenho que admitir que vejo com grande simpatia as propostas de incluir o “amor” na bandeira nacional. O único erro de tais propostas é considerar que Teixeira Mendes teria “errado”, teria “alterado” as propostas originais de Comte ao deixar lado – querendo com isso dar-se a impressão de que Teixeira Mendes teria desprezado – o “amor”.

 

Hoje é muito comentada a questão o Estado Laico, mas o Positivismo já tratava dessa separação do Estado com a Religião. Poderia nos explicar?

Um dos princípios políticos mais elementares do Positivismo é a separação entre o poder Temporal e o poder Espiritual, isto é, entre o governo e todos aqueles que emitem opiniões. Isso significa que o Estado não pode ter religião oficial, ou seja, não é aceitável que o Estado imponha alguma doutrina sobre o conjunto da sociedade. Se pensarmos na situação do império brasileiro, o catolicismo era a religião oficial do Estado: havia uma limitada tolerância, em que os protestantismos eram aceitos (em grande parte devido à imigração de alemãoes e suíços para o Rio de Janeiro e para a atual região Sul) e também os positivistas; mas as religiões de origem africana, o espiritismo e muitas outras eram simplesmente proibidas e tratadas com base em prisões e espancamentos. (Os templos não católicos eram permitidos, desde que suas fachadas não exibissem o aspecto de templo.) Além disso, só eram aceitos como cidadãos brasileiros quem professasse o catolicismo. Algo muito parecido ocorre ainda hoje na Inglaterra: como a religião oficial de Estado lá é o anglicanismo (e a rainha é a chefe da igreja), somente anglicanos podem ser primeiros-ministros.

A separação entre os dois poderes também implica, inversamente, que nenhuma doutrina pode valer-se do Estado para sua promoção, para seu financiamento. Isso significa que é inaceitável que as igrejas (como instituições e como prédios físicos) usem o Estado para financiarem-se; ou seja, os impostos não podem ser empregados na promoção das doutrinas. Isso vale tanto para as teologias quanto para as doutrinas metafísicas quanto para as doutrinas científicas.

A separação entre igreja e Estado foi uma das primeiras medidas adotadas pela República, dois meses após a proclamação, por meio do Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890. A proposta inicial era de Demétrio Ribeiro (positivista gaúcho) e previa a separação entre igreja e Estado, o fim do catolicismo como religião oficial, as liberdades de consciência, expressão e organização, a instituição dos registros civis de nascimento, casamento e morte e a manutenção dos salários dos sacerdotes católicos que até então eram pagos pelo Estado. O texto que finalmente foi aprovado é da lavra de Rui Barbosa e, além dos dispositivos iniciais, apresenta um forte caráter anticlericalista (isto é, contrário às igrejas, em particular a católica) – anticlericalismo que era ausente do projeto positivista.

Vale notar que a separação entre igreja e Estado, com as liberdades civis, era pedida fazia muitos anos por muitos grupos políticos e que, após 1890, não houve nenhuma reação popular contra ela. A igreja católica reclamou da perda dos seus privilégios, mas, anos depois, reconheceu que a laicidade do Estado deu-lhe a liberdade para reorganizar-se; a partir de 1916, com a proposta de “neocristandade” de Sebastião Leme uma nova ofensiva sobre o Estado teve início e foi coroada de êxito em 1931, quando esse cardeal intimou Getúlio Vargas, na inauguração do Cristo Redentor, a apoiar a igreja para que Vargas tivesse apoio político (a Revolução de 1930 ocorrera um pouco antes e Getúlio Vargas precisava muito de apoio).

 

Algumas correntes filosóficas costumam marcar um determinado período. E hoje, ainda podemos notar traços do Positivismo no mundo?

Sim e não. É bem verdade que o período de maior importância do Positivismo no Brasil e no mundo foi entre o final do século XIX e o início do século XX – digamos, entre 1870 e 1914. De lá para cá muitas outras correntes políticas, sociais e filosóficas surgiram, a maior parte delas negando o Positivismo, seja por meio do irracionalismo, seja por meio do culto à violência, seja por meio da busca do absoluto, seja por meio do cientificismo. Além disso, o período que vai da I Guerra ao fim da II Guerra foi muito difícil para o mundo e para a Europa em particular; esse período exterminou as elites sociais européias e no fim marcou a ruína da Europa e do mundo legado pelo século XIX como parâmetros para o mundo. O que surgiu com clareza após a II Guerra foi um mundo realmente diferente, com a hegemonia dos EUA – e da sua superficialidade filosófica – e o conflito da Guerra Fria, seguidos pela descolonização da Ásia e da África e a crítica correta e cada vez maior ao colonialismo ocidental. Embora o Positivismo não seja eurocêntrico, é certo que o declínio da Europa teve um impacto poderoso sobre seus destinos. Em termos intelectuais, o século XX apresentou uma série de correntes que negam o Positivismo: as filosofias do entre-guerras, como os irracionalismos dadaísta e existencialista, o culto à violência próprio aos fascismos, os totalitarismos nazi-soviéticos; depois da II Guerra, ainda o totalitarismo soviético, o liberalismo materialista dos EUA, as críticas “descoloniais”, o pós-modernismo inaugurado em 1968, o neoliberalismo vitorioso a partir da década de 1980 e, mais recentemente, as políticas identitárias antiuniversalistas desde os anos 1990...

Mas, por outro lado, outras tendências políticas, sociais e filosóficas retomam valores claramente positivistas: políticas sociais combinadas com as liberdades, como nos casos do Welfare State e/ou da proclamação presente em nossa Constituição Federal de 1988 que a propriedade privada tem que ter objetivos sociais (concepções que foram resgatadas no Hemisfério Norte depois da crise de 2008 e, no Brasil e no mundo em geral, com a atual pandemia); o pacifismo cada vez mais generalizado; a preocupação cada vez maior com as gerações futuras, na forma do ambientalismo; o respeito à autonomia dos povos indígenas; a busca de vidas humanas plenas de sentido mas seculares, com a afirmação generalizada da importância dos sentimentos na vida humana... mesmo o desenvolvimento de práticas religiosas seculares nos EUA e na Europa vai na direção do Positivismo.

É certo que as tendências positivas indicadas acima têm muitas lacunas e muitas vezes são pouco sistemáticas; mas, no conjunto, elas realizam o que o Positivismo afirma como certo e como o futuro do ser humano. Em outras palavras: as tendências acima indicam que o Positivismo está certo, embora a doutrina positivista em si muitas vezes não seja seguida.

Sobre o legado do Positivismo hoje: há uma importante e crescente atividade positivista no Rio Grande do Sul, na igreja positivista de lá (e que fica em Porto Alegre).

15 novembro 2019

Folha de S. Paulo: Positivismo inspirou República e tem seguidores hoje

Em comemoração aos 130 anos da Proclamação da República, a Folha de S. Paulo publicou uma bela matéria sobre o Positivismo, a Religião da Humanidade e a Igreja Positivista de Porto Alegre.

Ela está reproduzida abaixo. Para os assinantes do jornal, o original pode ser lido aqui.


Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/11/filosofia-que-inspirou-republica-tem-seguidores-130-anos-apos-proclamacao.shtml

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/11/filosofia-que-inspirou-republica-tem-seguidores-130-anos-apos-proclamacao.shtml

República: valorizar o ideal, reconhecer e resolver os problemas

Os brasileiros – e isso é algo específico do Brasil – têm um triste hábito: gostam de falar mal de si mesmos.

Por exemplo: hoje se comemora a gloriosa Proclamação da República, em seus 130 anos.

O evento em si mesmo foi um avanço; a República é um regime superior à monarquia. E, aliás, o 
presidencialismo também é superior ao parlamentarismo.

Além de ser um regime concreto, a República é um ideal sociopolítico de ordem e progresso, de inclusão e desenvolvimento, de justiça, respeito e tolerância.

Em vez de comemorarem-se esses valores todos, o que é que se faz no aniversário de 130 anos da República?

Afirma-se que ela é fracassada, que ela não presta, que ela traiu seus ideais... tudo isso dito de maneira “crítica” e “politizada”, supostamente com grande seriedade e profundidade.

Pelo jeito, é bonito falar mal da República. O problema é que o ideal que ela representa é simplesmente jogado fora com essa “criticidade” extremamente ácida. Ora, se a República não presta, não há porque a manter; se não há porque a manter, ela não será mantida.

Entre 1930 e 1937, críticas à República em tudo semelhantes às que se fazem (no dia de) hoje eram difundidas e repetidas. Qual foi o resultado? Revolução em 1930, guerra civil em 1932, golpe autoritário em 1937. A mesmíssima dinâmica entre 1961 e 1964, com os resultados que todos conhecemos. (Isto é, que deveríamos conhecer.)

Aliás, a mesma dinâmica ocorreu em outros países: França, Portugal, Espanha... nesses lugares, as críticas aos problemas concretos das repúblicas levaram ao envenenamento e à morte da República como ideal, resultando em regimes autoritários retrógrados, precedidos ou não por guerras civis. Em tais lugares, a muito, muito custo as liberdades foram reconquistadas, justamente no quadro de repúblicas (com a exceção da Espanha – mas lá a monarquia foi um presente do assassino e psicopata Francisco Franco ao seu pupilo, o futuro rei Juán Carlos II).

Em vez de os brasileiros alegre mas burramente repetirmos que a República é ruim, deveríamos fazer como os estadunidenses sempre fizeram: reconhecer os problemas e as deficiências, mas ao mesmo tempo reafirmar os valores e os ideais, para, a partir disso, buscar as soluções das dificuldades.

20 junho 2018

Ivan Lins: "Sobre o 'Ordem e Progresso', de Gilberto Freyre"

O sociólogo Gilberto Freyre, que adaptou para o Brasil algumas técnicas antropológicas dos EUA ao descrever em detalhes a intimidade da sociedade colonial brasileira, publicou no final dos anos 1950 um livro chamado Ordem e Progresso.

Embora G. Freyre reconhecesse que seus informantes podiam ter suas memórias alteradas pelo tempo e pela afetividade, em vários casos tomou as recordações alheias ao pé da letra, como se fossem a descrição da verdade - e sem se preocupar em verificar se as afirmações obtidas correspondiam ou não à verdade.

Assim, nesse livro ele reproduz, chamando de "interessantíssimo", o relato de um monarquista idoso e ressentido, que narra uma história que poderia detratar a ação política de Benjamin Constant, o fundador da República.

Pois bem: Ivan Lins - o historiador, não o cantor - publicou um artigo em que comenta criticamente a história publicada e o procedimento de Gilberto Freyre, notando o quão injuriosos e incorretos eles foram.

Graças à internet e à digitalização de documentos, é possível (re)ler essa notável réplica de Ivan Lins. Ela foi publicada na revista História, da Universidade de São Paulo, em seu v. 24, n. 49, de 1962, e pode ser lida aqui.

06 outubro 2016

República de Portugal - busto comemorativo

A bela imagem abaixo representa a República de Portugal, implantada em 5 de outubro de 1910. A imagem tradicional da República - na forma de u'a mulher com cabelos soltos e longos e um colo um pouco exposto - é chamada, desde a Revolução Francesa (1789) e a I República Francesa (1792) de Marianne, ou Mariana.

Infelizmente, não tenho informações sobre o autor desse busto nem sobre a data de sua composição. De qualquer maneira, a imagem foi obtida por intermédio de Ricardo Alves e Luís M. Mateus, da Associação República e Laicidade, de Portugal, cujo nome é extremamente simpático e autoexplicativo.




16 novembro 2015

15 de novembro – Proclamação da República Brasileira (1889)



Cartaz gentilmente elaborado por João Carlos Silva Cardoso.

 

No dia 15 de novembro comemoramos no Brasil a Proclamação da República[1]. Esse belo e importante acontecimento ocorreu por meio da conjunção de inúmeros indivíduos e grupos que, de diferentes maneiras, baseados em diversos princípios e com variadas intensidades, desde pelo menos 1789 almejavam que o Brasil fosse uma república livre e progressista. O movimento que resultou no fim da monarquia em 1889 teve a importantíssima participação dos positivistas brasileiros, de Norte a Sul do país, e foi liderada pelo professor de Matemática e Coronel do Exército Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) – ele também positivista e adepto da Religião da Humanidade.

Benjamin Constant Botelho de Magalhães

Neste ano desejo celebrar a memória de Benjamin Constant por meio da apresentação de elementos da teoria republicana. Assim, creio, será possível entender um pouco das idéias que moveram esse grande cidadão e patriota; da mesma forma, creio que será possível percebermos que a República é um verdadeiro ideal político, capaz de orientar as ações dos cidadãos ainda por muitas e muitas gerações – se é que em algum dia ela deixará de ser um ideal.

Definindo a “República”

 

“Em seu significado negativo, o princípio republicano resume definitivamente a primeira parte da Revolução [Francesa], ao interditar todo retorno de uma realeza [...]. Por sua interpretação positiva, ele começa diretamente a regeneração final, ao proclamar a subordinação fundamental da política à moral, a partir da consagração permanente de todas as forças quaisquer ao serviço da comunidade” (Augusto Comte, Système de politique positive, v. I, p. 70).

De acordo com o Positivismo, a República define-se pelo menos por duas características, uma negativa e outra positiva.

(1) Contra a monarquia, a favor da meritocracia

 

A característica negativa refere-se à oposição à monarquia. Isso não significa apenas que a sociedade deve ser governada por um presidente e não por um rei; que seus impostos devem remunerar governantes capazes e não toda uma casta que parasita a sociedade. A oposição à monarquia implica também o fim das sociedades de castas, de “estados”, de “ordens”, isto é, das sociedades em que a condição jurídica, política e até moral de cada indivíduo é dada pelo seu nascimento. Assim, em vez de termos “reis”, “príncipes”, “marqueses”, “duques”, “condes”, “barões” etc. – que, apenas por terem nascido nas famílias em que nasceram, valeriam mais ou menos que o comum das pessoas, como ocorre ainda hoje na Inglaterra, nos Países Baixos, na Espanha, na Suécia e em vários outros países –, temos apenas cidadãos.

Isso resulta em que o valor dos indivíduos é dado não por seu nascimento, mas pelo seu mérito individual. Ora, a valorização do mérito individual, ao mesmo tempo em que deve resultar na meritocracia, implica um sério problema prático, na medida em que as condições sociais concretas dificultam o desenvolvimento das capacidades de muitos cidadãos, em particular dos mais pobres. Para contornar esse problema e, no limite, remediá-lo, tanto o governo quanto a sociedade civil devem esforcem-se para conferir condições para que os mais pobres possam desenvolver suas capacidades.

Além disso, um outro procedimento é necessário; esse procedimento adicional é mais difícil, pois ele exige reflexão e ponderação e também porque ele é abstrato: o mérito individual deve ser avaliado abstratamente, não em termos concretos, considerando as contribuições que cada indivíduo dá para a coletividade. Assim, não é possível entender por “mérito” apenas a capacidade econômica de cada um, mas também outros aspectos, como aptidões artísticas, elaborações filosóficas, pesquisas científicas, manutenção de famílias saudáveis, estímulo à cooperação social e ao desenvolvimento do altruísmo.

Augusto Comte

Como argumentava Augusto Comte, a avaliação do mérito individual é a função social mais difícil de realizar, em virtude da sua grande complexidade: por esse motivo, deve ser feita por um órgão social (não governamental) especialmente dedicado a isso, que analise serenamente o conjunto da vida de cada cidadão e leve em consideração as várias circunstâncias envolvidas[2]: esse órgão é o sacerdócio positivista.

(2) Dedicação à coletividade, subordinando a política à moral

 

O aspecto positivo da definição da república consiste na dedicação à coletividade, a partir da subordinação da política à moral.

A dedicação à coletividade consiste em cada indivíduo buscar ser um cidadão útil, contribuindo ativamente da melhor maneira possível, dentro de suas condições, para a sociedade. Essas contribuições são de vários tipos: evidentemente, as atividades econômicas são as mais extensas e as mais básicas, mas não são as únicas, pois o ser humano não se limita nem se resume ao estômago. Assim, as contribuições também podem ser afetivas, filosóficas, artísticas, científicas, políticas, organizacionais, familiares e assim por diante.

Cumpre notar também que todo cidadão desenvolve ao mesmo tempo pelo menos dois tipos de atividades: as particulares e as gerais. As particulares são as suas atividades específicas: suas profissões, seus trabalhos; já as gerais são aquelas que se referem à coletividade e que, de acordo com o senso comum, são chamadas de “políticas”. Esses dois tipos de atividades são complementares e, dessa forma, não faz sentido opor uma à outra: todo trabalhador é e deve ser um cidadão, todo cidadão é e deve ser um trabalhador.

Mas, por outro lado, é necessário reconhecer que as atividades particulares consomem bastante tempo, o que impede que o grosso dos cidadãos dediquem-se exclusivamente às atividades gerais; ao mesmo tempo, as sociedades modernas oferecem um sem-número de atividades de lazer, de possibilidades de gozo da vida individual, familiar, coletiva que não se referem ao que chamamos de “política”; essas atividades são legítimas e integram o que chamamos de “bem-estar”. Inversamente, há indivíduos que se dedicam exclusivamente à condução dos negócios gerais: tais indivíduos constituem o governo. Há uma separação clara entre governantes e governados, entre o Estado e os cidadãos; essa separação é boa, é correta e é necessária. Nesse quadro, o comum dos cidadãos participa da vida política principalmente do acompanhamento dos negócios públicos, no âmbito da sociedade civil e por meio da opinião pública.

A subordinação da política à moral consiste em que cada indivíduo, cada cidadão, cada empresa, cada organização, cada país, cada civilização deve visar à convergência em seus esforços, limitando as atividades divergentes e particularistas; deve buscar estimular e satisfazer o altruísmo, comprimindo os vários egoísmos e esforçando-se para orientá-los em direção ao altruísmo; deve fortalecer e estimular a atividade pacífica, evitando as guerras e resolvendo o máximo possível os conflitos por meio das negociações e com instrumentos pacíficos.

No ser humano, o egoísmo é mais forte que o altruísmo, assim como as formas que o egoísmo assume são mais variadas que as do altruísmo. O “egoísmo” significa a satisfação de necessidades e desejos individuais mas que visam a fins particulares; em contraposição, o altruísmo significa o estímulo e a satisfação de necessidades também individuais mas que visam a beneficiar outrem e/ou a coletividade. Assim, não é possível erradicar o egoísmo e nem faria sentido isso; mas daí não se segue que o egoísmo possa ser um fim em si mesmo. É necessário limitar o egoísmo e direcioná-lo para outros objetivos que não nós mesmos: a moralidade, portanto, consiste no estímulo e no desenvolvimento do altruísmo. Quando Augusto Comte afirmava que a política deve subordinar-se à moral ele queria dar a entender isso: que a política e o conjunto das atividades humanas devem orientar-se em direção ao altruísmo e não se resumir nem se consumir no egoísmo.

Ao definir o sentido positivo do seu conceito de “república”, Augusto Comte incluía um elemento que chamava “social”. Evidentemente, a definição de moralidade que apresentamos acima é “social”, pois o altruísmo consiste nos esforços em bem dos demais indivíduos e da coletividade de modo geral; mas o traço “social” da república, de modo específico, é melhor entendido em contraposição a uma definição estritamente política da república. Nesse sentido, para Augusto Comte e para o Positivismo, a república não pode ser apenas um regime político, que se opõe à monarquia, mas deve também ser uma forma de organização social que integre e valorize todos os seus membros; em particular, realizando a “incorporação social do proletariado”. Assim, o regime político cujo nome significa, literalmente, “coisa pública” e que, de acordo com Augusto Comte, caracteriza-se pelo primado do altruísmo e da preocupação com os demais, deve realizar na prática esse primado e essa preocupação a começar pela combate à miséria, pelas políticas de geração de renda, pelas políticas de geração de emprego e assim por diante.

As virtudes cívicas libertam, o “desejo” escraviza

 

Uma outra forma de entender a subordinação da política à moral é uma concepção mais clássica da “república”, a saber, que a república é o regime político e social mantido pelas virtudes cívicas, a que se contrapõe a corrupção. Quando falamos em “virtudes cívicas” queremos dar a entender as virtudes próprias à atividade política na República: o interesse pela coletividade, o espírito de grupo, a generosidade, a honestidade, a fraternidade, o respeito às opiniões divergentes, o entendimento de que as divergências devem ser solucionadas via argumentação racional e não por meios violentos, a convergência e a busca de amplos entendimentos e consensos.

As virtudes cívicas, portanto, andam bastante próximas da forte ênfase de Augusto Comte em relação aos deveres sociais. Sem serem impostos pelas leis, os deveres são regras de comportamento que obrigam entre si os cidadãos, no sentido indicado antes, ou seja, a favor do altruísmo, da incorporação social do proletariado e assim por diante. Conseqüentemente, ao rejeitar a sua definição nas leis, a noção de deveres baseia-se na opinião pública: cada indivíduo, cada cidadão deve aceitar voluntariamente essas obrigações, de tal sorte que elas definam comportamentos adotados de “dentro para fora” – afinal de contas, o altruísmo só é verdadeiro e só produz os seus melhores resultados quando é voluntário, não quando é imposto de fora e pela ameaça do uso da força (como ocorre com as leis).

Um famoso publicista brasileiro, que há pouco tempo foi Ministro da Educação, bem ao gosto “pós-moderno”, ao tratar da República afirmou que as virtudes cívicas devem ser contrapostas ao “desejo”, às vontades íntimas; segundo ele, a virtude coage e os desejos “libertam”. Essa concepção é claramente um sofisma, um jogo de palavras que distorce a realidade e tem péssimos resultados. A virtude não coage ninguém, sejam as virtudes cívicas (que beneficiam diretamente a vida coletiva), sejam as virtudes individuais (que regulam o comportamento individual: temperança, modéstia, humildade etc.). Como vimos, as virtudes regulam o comportamento humano, estimulam o altruísmo e orientam o egoísmo em favor do altruísmo: essa regulação é fundamental para uma verdadeira vida coletiva e pacífica. Em contraposição a isso, o “desejo” é a vontade individual em sua forma mais clara, ou seja, é o egoísmo. Enquanto a virtude cívica tempera algumas paixões pessoais e políticas por meio do uso da inteligência e do altruísmo, os desejos são as paixões humanas em estado puro, sem a mediação da inteligência e do altruísmo. Ou melhor, os desejos até usam a inteligência, mas apenas para buscarem sua satisfação: ora, a satisfação dos desejos é sempre uma satisfação pessoal, ou seja, egoísta; além disso, como se sabe há séculos (e mesmo milênios), as paixões e os desejos não se satisfazem nunca. Em outras palavras, exatamente ao contrário do que argumentou o publicista, as virtudes libertam e são condição da liberdade; o desejo é sempre elemento de egoísmo, de conflitos permanentes e de escravização pessoal e coletiva.

As virtudes cívicas contra a corrupção

 

A preocupação com o bem comum – que pode ser entendida como uma forma de resumir as várias virtudes cívicas – inclui o acompanhamento dos negócios públicos. É importante notarmos que “acompanhar os negócios públicos” não é o mesmo que “conduzir os negócios públicos”: a condução da vida política cabe antes de mais nada ao governo (aos “governantes”, ao “Estado”), mas os cidadãos têm o dever de acompanhar as decisões e as medidas adotadas. Esse dever impõe-se a todos não apenas porque a vida política diz respeito a todos; ele é necessário também porque os cidadãos “comuns” formam a sociedade civil, que, por sua vez, expressa-se por meio da opinião pública: para que a opinião pública opine de maneira racional, ela deve estar no mínimo bem informada. Além disso, o acompanhamento constante dos negócios públicos é o instrumento mais importante e mais poderoso para que os governantes desempenhem suas funções realmente em favor da coletividade e não em favor de si próprios: em outras palavras, a opinião pública ativa é o instrumento mais importante no combate à corrupção.

Concluindo: a República em memória de Danton, de Paris e da França

 

As concepções expostas acima estão bem longe de esgotar o conceito de República. A idéia e a prática da “república” começaram na Roma Antiga, no século VI a.e.a., foram retomadas na Idade Média em várias cidades italianas e neerlandesas, passaram pela Inglaterra, atravessaram o Oceano Atlântico e foram finalmente consagradas na França, em 1792, no curso dos tormentosos, mas gloriosos, eventos que chamamos de Revolução Francesa. O responsável pela proclamação da República na França foi o grande Georges Jacques Danton (1759-1794); ao fazê-lo, ele procurava realizar o programa duplo indicado acima: contra a monarquia, a favor da coletividade e do bem comum. Com isso, ele consagrava também os princípios da liberdade e da fraternidade, além da igualdade perante a lei.

Georges Danton

Igualdade perante a lei, liberdade e fraternidade: esses ideais são universais. Por meio da obra de Augusto Comte, os princípios consagrados pela República francesa foram aplicados e realizados no Brasil, graças à ação de inúmeros cidadãos e patriotas, entre os quais tiveram papel de destaque muitos e muitos positivistas: Benjamin Constant, Miguel Lemos, Teixeira Mendes, Júlio de Castilhos e outros.



Miguel Lemos

R. Teixeira Mendes

Júlio de Castilhos

A República no Brasil, assim, deve muito à França. Neste dia 15 de novembro de 2015, temos que nos lembrar tanto dos patriotas brasileiros do 15 de novembro de 1889, mas também temos que lamentar que o país que nos forneceu muitos dos nossos mais importantes valores tenha sido alvo de crimes radicalmente opostos aos nossos, apenas dois dias antes, ou seja, em 13 de novembro de 2015.





[1] Publico o presente artigo no dia 16 em vez de no dia 15 devido ao seguinte motivo. Após os crimes ocorridos em Paris, em que terroristas ligados ao Estado Islâmico mataram centenas de inocentes na noite do dia 13 de novembro, passei os dois dias seguintes lendo e escrevendo a respeito disso, procurando entender o que ocorrera e quais os desdobramentos de um tal acontecimento. Assim, não tive imediatamente condições intelectuais e morais para tratar de um assunto mais abstrato, como é a teoria da República.
[2] Nesses termos, parece claro que as acerbas disputas que têm ocorrido no Brasil em que se opõe o auxílio governamental do “bolsa-família” ao “mérito individual” são muito mal concebidas. Os defensores do “bolsa-família” desprezam, sem mais, uma verdadeira conquista civilizacional, que é a afirmação social do mérito; já os supostos defensores da meritocracia têm uma concepção estreita do mérito, cuja consequência no final das contas é também desprezar os méritos. Em ambos os casos as avaliações são rasas, apressadas e concretas.

19 novembro 2014

Comemoração do Dia da Bandeira Nacional Brasileira – 19.11.2014

Comemoração do Dia da Bandeira Nacional Brasileira – 19.11.2014

Gustavo Biscaia de Lacerda


Bandeira nacional republicana brasileira. Fonte da imagem: wikipédia.

O dia 19 de novembro marca o Dia da Bandeira. Nessa data, no ano de 1889 a proposta feita por Raimundo Teixeira Mendes e pintada por Décio Villares foi apresentada por Benjamin Constant e aceita pelo governo provisório da nascente república brasileira (proclamada um pouco antes, no dia 15 de novembro): assim, é impossível separar a comemoração do Dia da Bandeira da própria Proclamação da República.

Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil e autor da bandeira nacional republicana brasileira. Fonte da imagem: wikipédia.

A bandeira republicana é ao mesmo tempo bonita, simples e profundamente filosófica. Ela é agradável à vista e em linhas gerais pode ser desenhada à mão por qualquer pessoa. Nesse sentido, aliás, ao contrário do que monarquistas, católicos e supostos especialistas em bandeiras afirmam, a bandeira nacional republicana não é complicada: se, por um lado, ela não tem a simplicidade banal de outras bandeiras que se limitam a justapor faixas coloridas, por outro lado ela não apresenta as complexas filigranas que outros pendões ostentam.

Mas, deixando de lado os aspectos estéticos da bandeira nacional, o mais importante é que ela contém em si uma importante combinação de história, de filosofia e de política. O quadrilátero verde e o losango amarelo eram elementos usados na bandeira imperial, correspondendo respectivamente às cores das casas dinásticas de Bragança e de Habsburgo; em versões mais recentes e bem mais populares, essas duas figuras geométricas significariam as matas e as riquezas minerais do país: o que importa notar, de qualquer maneira, é que a permanência dos elementos da bandeira imperial (de 1822 a 1889) na então nova bandeira republicana indicava a continuidade sociológica do Brasil, isto é, o fato simples e importante, mas freqüentemente esquecido ou desprezado, de que a sociedade brasileira continuava existindo ao longo do tempo, em meio aos seus desenvolvimentos e também às mudanças de regimes políticos.

A circunferência azul com a faixa branca contendo o "Ordem e Progresso" (em letras verdes) é ainda mais direta e claramente filosófica. As estrelas no céu lembram-nos de que todos os seres humanos submetem-se à ordem natural, cuja regularidade é enorme e sem a qual nós não existiríamos: sem os contínuos calor e luz do Sol, não haveria vida na Terra, da mesma forma que só é possível a vida neste nosso valioso planeta em virtude de condições geológicas e astronômicas especialíssimas. Mas, por outro lado, a observação das estrelas foi o início da ciência e, de qualquer maneira, é fonte de curiosidade e estímulo permanente à imaginação e à poesia.

O "Ordem e Progresso", por sua vez, é a afirmação do ideal sociopolítico que norteia o Brasil, ao buscar um regime político que permita ao mesmo tempo o progresso (político, econômico, moral) e garanta a ordem social. Proposta pelo filósofo francês Augusto Comte como devendo integrar todas as bandeiras do mundo, essa frase é passível de aceitação por todos os grupos sociais e políticos.

A esse respeito, há um erro de interpretação bastante comum. Ao contrário do que costumam afirmar variados esquerdistas – para quem o "Ordem e Progresso" quer dizer "progresso apenas dentro da ordem", ou seja, para quem o progresso é e sempre será anárquico –, no pensamento comtiano a "ordem" inclui o respeito às liberdades públicas, o bem-estar material de toda a população (em particular a mais pobre), a separação entre igreja e Estado, a fraternidade social e a paz universal etc. Dessa forma, o "Ordem e Progresso" só faz sentido se entendido como propunha originalmente Augusto Comte: na medida em que os elementos da ordem são respeitados e desenvolvidos, há progresso social.

Por fim, desde há alguns anos fala-se em incluir o "Amor" no "Ordem e Progresso". Costuma-se dizer que, ao elaborar a bandeira, Raimundo Teixeira Mendes teria desfigurado a fórmula original de Augusto Comte – que é "O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim" –, ignorando a primeira parte. Na verdade, Teixeira Mendes seguiu ao pé da letra as orientações de Comte, que considerava que, enquanto não houver em cada sociedade e, depois, no mundo inteiro, um consenso a respeito da necessidade de unir a ordem ao progresso e de deixar para trás os grupos que querem a ordem de maneira retrógrada e o progresso de maneira anárquica, não será possível incluir o amor como elemento político. Nesse caso, não se trata de que as relações sociais não devam ser mais fraternas, mais pacíficas, mais cuidadosas e respeitadoras do "outro": o que ocorre é que, enquanto não há um consenso efetivo sobre os valores sociais mínimos, o Estado tem que se limitar a manter a ordem social e, dentro do possível, desenvolver as sociedades.


Assim, em seu conjunto, a bandeira brasileira é mais que um símbolo de um país – um símbolo que, aliás, comemora seus 125 anos em 2014 –: é a afirmação de um projeto social de longo prazo, de paz, de respeito, de liberdades, de integração, de bem-estar; em outras palavras, é um símbolo adequado da "república", da cidadania e da realização do ser humano.

Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1833-1891), professor da Escola Militar; membro do governo provisório republicano que, em 1889, apresentou ao governo federal a proposta da bandeira nacional. Fonte da imagem: wikipédia.

Tela "República" de Décio Villares (1851-1831), isto é, do mesmo artista que pintou a bandeira nacional republicana. Fonte da imagem: wikipédia.

Tela "Pátria" de Pedro Bruno (1888-1949); costuma-se afirmar que a família que borda a bandeira é a de Benjamin Constant. Fonte da imagem: wikipédia.

Augusto Comte (1798-1857), filósofo e sociólogo francês, fundador do Positivismo; suas idéias orientaram a elaboração da bandeira nacional republicana brasileira. Fonte da imagem: wikipédia.

(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)

Homenagens oficiais ao Dia da Bandeira 2014

As imagens abaixo são homenagens de duas das mais importantes instituições brasileiras ao símbolo maior do Brasil, a Bandeira.

A primeira imagem é do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e, juntamente com a própria bandeira, traz os primeiros versos do Hino à Bandeira, de autoria de Olavo Bilac.

A segunda imagem é do Senado Federal e, com o mote dado por uma cantiga infantil ("Marcha, Soldado"), ao mesmo tempo valoriza a bandeira, apresenta informações sobre os rascunhos da bandeira republicana, de autoria de Raimundo Teixeira Mendes e lembra o lamentável furto da primeira bandeira republicana, ocorrido em condições suspeitas há alguns anos. 






15 novembro 2014

Feriado da República como comemoração da cidadania

Feriado da República como comemoração da cidadania

Gustavo Biscaia de Lacerda

Pode-se dizer que, no Brasil, os dois feriados mais importantes são o da Independência (7 de setembro) e o da Proclamação da República (15 de novembro). Comemorados em meses que se sucedem (novembro vem depois de setembro, com outubro no meio), por felicidade eles indicam uma progressão na vida brasileira: a Independência marca a condição básica para que os brasileiros decidamos o que desejamos fazer e ser; mas é com a República que realizamos e consagramos uma escolha clara pelo regime de liberdades, de responsabilidades, de preocupação com o bem público, a partir de perspectivas puramente humanas – em uma palavra, com a República escolhemos o regime da cidadania.

            No Brasil não temos o hábito de efetivamente comemorar os feriados e as datas cívicas. Como se sabe, de modo geral os feriados são ótimas desculpas para não trabalharmos e, se for possível, viajarmos. Deixando de lado, talvez, o Dia do Trabalho (1º de maio), as exceções à afirmação acima são os feriados religiosos, em que se pode incluir mesmo o carnaval. O problema é que não deveriam existir tais feriados religiosos: não que se possa, nem que não se deva, haver comemorações religiosas: o problema é que não cabe ao Estado proclamar como valor cívico o que é próprio a uma única religião, mesmo que essa religião seja professada pela maioria da população. Afinal de contas, as crenças são questões individuais e o Estado não pode impô-las a ninguém. Além disso, os feriados religiosos no Brasil têm, todos eles, um caráter extra-humano e individualista: o que se comemora não são a história compartilhada pela população, os ideais a serem perseguidos por cada um e por todos, mas a busca da salvação individual em um mundo que, supostamente, existiria além deste.

            Quando a República foi proclamada, no amanhecer do dia 15 de novembro de 1889, muitas esperanças eram depositadas nessa mudança: harmonia, desenvolvimento, altruísmo, fraternidade, paz universal, justiça social e assim por diante. Entre as primeiras medidas tomadas pelo novo regime estavam o fim da unicidade imperial, com a atribuição da autonomia aos estados (antigas províncias), de tal maneira que cada estado pudesse ter liberdade para desenvolver os projetos políticos e sociais que julgassem mais adequados às suas realidades; a separação entre Igreja e Estado, acabando com o benefício oficial concedido à Igreja Católica, com a hipocrisia oficial que obrigava todos os servidores públicos e todos os políticos a serem nominalmente católicos e também com a opressão que a própria Igreja Católica vivia, ao ter que se submeter ao Estado. Além disso, ao tornar-se uma república, o Brasil deixava de prestar atenção exagerada à Europa e passava a prestar atenção à América, não mais para guerrear com os países americanos (como na Guerra da Tríplice Aliança, também conhecida por "Guerra do Paraguai"), mas para buscar uma comunidade fraterna no novo mundo.

             Embora esses ideais nem sempre tenham sido respeitados ou buscados, o fato é que eles eram afirmados desde o início da República. Aliás, logo em seguida, novos feriados foram instituídos, entre os quais 1º de janeiro, como confraternização universal; 13 de maio, como fim da escravidão e união das raças no Brasil; 14 de julho, como fim da opressão, com a queda da Bastilha; 7 de setembro, como Independência do Brasil; 12 de outubro, como descoberta da América e fraternidade americana. Eram feriados cívicos, que celebravam os ideias de liberdade, progresso e fraternidade; seguindo a idéia da república, de respeito ao bem comum, eles celebravam efetivamente a cidadania e a humanidade.

           Entretanto, ao longo do século XX, esses belos feriados foram abolidos (14 de julho, por exemplo), trocados (12 de outubro deixou de ser a descoberta da América para ser o dia de N. Sra. Aparecida) ou substituídos por outros (como Corpus Christi e Natal), sem contar os vários feriados relativos a "santos padroeiros". Além disso, o 7 de Setembro – a Independência – passou mais e mais a caracterizar-se como uma ocasião para desfiles militares, em vez de celebração da liberdade brasileira. Por fim, os ideais de pleno universalismo, fraternidade e generosidade foram substituídos pelo particularismo e pelo exclusivismo: não celebramos mais a união fraterna e inclusiva das raças no dia 13 de maio, mas temos em cada vez mais municípios a "consciência negra", em 20 de novembro.

            Os comentários acima não são muito otimistas; realmente, eles trazem uma nota de tristeza e desencanto. Mas, precisamente devido a isso, talvez seja necessário afirmarmos e reafirmarmos o oposto do desencantamento. Assim, celebremos o dia 15 de Novembro: que o belo feriado da Proclamação da República Brasileira seja a lembrança coletiva dos ideais e dos deveres cívicos brasileiros, rumo à inclusão social, à fraternidade universal, à justiça, ao desenvolvimento!


(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)

Mensagens oficiais comemorativas da Proclamação da República

Comemoração divulgada no Facebook pelo Senado Federal.

Comemoração divulgada no Facebook pelo CNJ.