22 fevereiro 2023

Comentários sobre direita e esquerda

No dia 17 de Homero de 169 (14.2.2023) fizemos nossa prédica positiva, concluindo a leitura comentada da quinta conferência do Catecismo positivista, dedicada ao culto público.

Na seqüência expusemos algumas considerações sobre os conceitos de direita e esquerda, a partir do Positivismo. As anotações desses comentários estão reproduzidas abaixo.

A prédica pode ser vista nos canais Apostolado Positivista (acesse.one/O6mQo) e Positivismo (encr.pw/VVvpa). Os comentários sobre direita e esquerda podem ser vistos a partir de 49' 50".

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Anotações sobre direita e esquerda

 

-        “Direita” e “esquerda” são duas categorias políticas fundamentais nos debates políticos contemporâneos

o   Evidentemente, com base no Positivismo eu tenho muito a dizer a respeito delas

§  É importante insistir em um aspecto inicial: as reflexões expostas aqui são comentários pessoais, não de Augusto Comte

§  Isso não poderia ser diferente, na medida em que direita-esquerda tornaram-se categorias básicas após a vida de Augusto Comte

o   Mas: elas serem fundamentais nos debates políticos contemporâneos não equivale a dizermos que concordamos com elas e/ou que as consideramos adequadas ou suficientes

o   Nesse sentido, não por acaso, já me manifestei inúmeras vezes a respeito, com publicações no meu blogue (https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/): “‘Ordem’ e ‘progresso’ como categorias sociopolíticas legítimas”, “Necessidade do ‘ordem e progresso’; superioridade sobre ‘direita-esquerda’, ‘situação-oposição’”, “Comparação entre Positivismo, direitas e esquerdas”

§  Alguns comentários retomarão argumentos expostos antes

§  A esse respeito, aqui está um modesto quadro comparativo que elaborei no início de 2020: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2020/02/comparacao-entre-positivismo-direitas-e.html

·         Esse quadro compara o Positivismo com as extremas direitas, a extrema esquerda, a direita intermediária, a esquerda intermediária, a centro-direita, a centro-esquerda e o centro, em função de 16 conceitos sociopolíticos relevantes ((1) ordem; (2) progresso; (3) tradição; (4) passado; (5) liberdade de pensamento; (6) liberdade de expressão; (7) família; (8) pátria; (9) Humanidade; (10) religião; (11) propriedade; (12) governo temporal; (13) governo espiritual; (14) paz; (15) igualdade; (16) indivíduos e individualidades)

-        O sentido da oposição direita-esquerda varia ao longo do tempo:

o   A origem de direita e esquerda está no início da Revolução Francesa, em que, na sala da assembléia (1789-1792), no alto e à esquerda sentavam-se os jacobinos, embaixo e à direita os reacionários e, no meio, os girondinos

§  Assim, durante o século XIX, a esquerda foi associada ao “progresso” (e/ou à revolução) e a direita, à “ordem” (e/ou à reação)

o   A partir do final do século XIX, a esquerda passou a ser associada a variados movimentos revolucionários: socialistas, comunistas, anarquistas; de qualquer maneira, cada vez mais ao marxismo

o   Com a Revolução Russa, em 1917, a esquerda passa a vincular-se decididamente ao comunismo soviético

o   A direita cada vez mais passa a definir-se de maneira residual e reflexa, como sendo a anti-esquerda ou a não-esquerda

o   Isso se cristalizou durante todo o século XX e, em particular, durante a Guerra Fria; após 1989, a feliz e necessária derrocada do comunismo pôs em questão a validade da oposição direita-esquerda

o   Em 1992 o filósofo italiano Norberto Bobbio reafirmou a oposição direita-esquerda e propôs que o conteúdo específico mais constante e importante da esquerda seria a igualdade e o da direita, a liberdade

§  É necessário admitirmos que essa proposta de Bobbio é muito cômoda e operacional; todavia, ela também é extremamente criticável, tanto no que se refere à direita quanto à esquerda

§  De qualquer modo, essa proposta tem o valor indireto de indicar o quanto a oposição direita-esquerda distanciou-se ao longo dos séculos da sua origem na Revolução Francesa

-        Uma outra forma de entender direita-esquerda é por meio de situação-oposição:

o   A oposição é quem não está no poder

o   Essa concepção é bem mais fraca que as que surgiram com a Revolução Francesa

-        Também é importante notar que, embora fale-se em direita e esquerda no singular, na verdade é necessário distinguir várias direitas e várias esquerdas (no plural), além da posição do “centro”

-        Ilustrando as várias direitas e esquerdas com a situação atual do Brasil:

o   As esquerdas dividem-se em esquerdas radicais, revolucionárias e leninistas (PCO); esquerdas “intermediárias”, de caráter revolucionário mas que aceitam os procedimentos eleitorais (PSTU, Psol, setores do PT); centro-esquerda, que tem perspectivas de esquerda, mas rejeita as revoluções e tem um franco diálogo com setores da direita (PDT, PSD, setores do PT, Rede)

§  Esses grupos afirmam buscar a igualdade social; as esquerdas “intermediárias” e a centro-esquerda assumem, cada vez mais, o facciosismo da política identitária; todos eles consideram que defendem o progresso, que é vagamente identificado com essas pautas

o   No Brasil, as direitas consolidaram-se bastante nos últimos anos; elas abrangem a extrema direita, que é militarista, fascista ou filofascista, evangélica e católica ultramontana, ultraliberal (PSL, PL, Republicanos); uma direita “intermediária”, de caráter liberal ou neoliberal (Republicanos, PL, União Brasil, PSDB)

§  O que dá coerência às direitas no Brasil é a rejeição à esquerda e ao vago progressivismo correlato; assim, as direitas defendem um vago – mas na prática bastante duro – conceito de ordem social, que ora defende o Estado mínimo, ora prega o retorno à Idade Média (ou à época de Moisés!); também se definem como “conservadores”; a presença dos evangélicos aí é cada vez mais pronunciada e agressiva

o   O centro consiste basicamente em políticos tradicionais que vendem seu apoio ao governo em troca de prebendas e que estão sempre prontos a pilhar o Estado; caracteristicamente são políticos favoráveis ao parlamentarismo, sem grande identidade ideológica, moral ou intelectual (PL, Republicanos, União Brasil, PSDB)

o   Para considerar as nossas reflexões sobre o mérito individual, expostas na prédica do dia 7.2.2023: enquanto a esquerda basicamente rejeita o mérito (em nome de seus ideais igualitaristas), a direita teológica considera que o mérito é obra divina (e, portanto, é um sinal da eleição divina, conforme o que o protestantismo prega) e a direita materialista reduz o mérito a uma concepção ultraindividualista e antissocial

-        Para o Positivismo, a oposição direita-esquerda é insuficiente e inadequada:

o   Evidentemente, é uma divisão muito cômoda e, é necessário convir, de modo geral, no dia a dia, ela é muito operacional

§  Essa “operacionalidade” também se deve ao caráter fortemente metafísico da política atual

o   Entretanto, a oposição direita-esquerda ela reduz a dinâmica social ao confronto interminável entre dois pólos, sem que haja nem a possibilidade nem o desejo de que esse confronto seja solucionado

§  Tal oscilação é cansativa, desgastante, degradante e, portanto, daninha para o ser humano

o   Além de manter a dinâmica social presa em uma oscilação virtualmente eterna, a oposição direita-esquerda é muito propícia para as polarizações mais ou menos extremas, com todas as suas conseqüências particularistas, excludentes e agressivas (na lógica do “nós contra eles”)

o   Também é importante notar que essa oposição é particularmente adequada para os partidos políticos, sendo menos adequada à dinâmica social

§  Ainda assim, há momentos em que a sociedade politiza-se de tal maneira que ela acaba partidarizando-se: é o que vemos no Brasil de dez anos para cá

o   Adicionalmente, os conteúdos específicos da direita e da esquerda são extremamente mal definidos, vagos e passíveis das mais variadas manipulações, muitas delas cínicas

o   Também é importante notar que a oposição direita-esquerda associa-se à política metafísica, com toda a demagogia daí resultante

§  A política metafísica propõe a “democracia”; o que se opõe, positivamente, a isso é a sociocracia

§  Para evitar inevitáveis confusões: a “democracia” criticada pelo Positivismo não é o atual regime de liberdades e de garantias; aliás, o regime de liberdades, garantias e opinião pública é a sociocracia; a democracia é o regime absoluto, autoritário, que considera que “a voz do povo é a voz de deus”; que considera que “o povo não erra”; excludente e clericalista, proposto por J.-J. Rousseau e realizado por M. Robespierre

·         Nesse sentido, não há como nem porque não deixar claro: o fascismo é rigorosamente “democrático”, bem como o comunismo

o   Por fim, mas não menos importante, é necessário realçarmos com toda a clareza que os princípios que fundamentam a direita e a esquerda são prejudiciais ao ser humano, por serem estritamente parciais e particularistas, além de absolutistas (sejam teológicos, sejam metafísicos)

§  Embora a direita tenha uma origem teológica, nas últimas décadas ela assumiu um claro caráter metafísico, ao adotar o materialismo economicista e individualista próprio ao liberalismo (ou ao neoliberalismo, ou ao ultraliberalismo)

-        No âmbito do Positivismo, em vez de falarmos em “direita e esquerda”, falamos em “ordem e progresso” e em sociocracia

o   Sociocracia: regime da opinião pública altruísta e voltada para o bem público (que é basicamente a satisfação das necessidades do comum do povo), com fiscalização e responsabilização pública constante; afirmação dos deveres mútuos; liberdades públicas e garantias individuais; reconhecimento e disciplinamento do poder, da riqueza e dos indivíduos

o   “Ordem e progresso”: necessidades sociais igualmente necessárias, devem ser compatibilizadas para que cesse a oposição e a oscilação patológicas entre cada um dos princípios; a união ocorre com o altruísmo, a afirmação dos deveres, a prevalência da moral;

§  A “ordem” e o “progresso”, na sociocracia, têm definições filosóficas e sociológicas precisas: “o progresso é o desenvolvimento da ordem, a ordem é a consolidação do progresso”

-        Em relação aos grupos políticos de sua época, Augusto Comte entendia da seguinte maneira a ordem e o progresso:

o   O grupo da ordem: os reacionários; teológicos (católicos) e monarquistas; afirmação dos elementos da ordem social (de modo geral, da Estática Social), mas com sacrifício do progresso e com justificativas absolutas e teológicas, desejosos de manter os valores do feudalismo ou de retornar a essa época; basicamente passivos politicamente; escola de De Maistre e De Bonald

o   O grupo do progresso: os revolucionários; metafísicos (materialistas ou espiritualistas; juristas ou literatos) e democratas (às vezes parlamentaristas, com freqüência clericalistas); desejosos de realizar o progresso com sacrifício da ordem; revolta contra o poder, contra o capital, contra a história; corresponde ao grupo que tem a primazia política atual; escola de Rousseau, Voltaire, Robespierre

o   O grupo da ordem e do progresso: os positivistas; sociocratas, republicanos; propõem a conjugação necessária, imperiosa e inadiável entre ordem e progresso, com o liame do amor; consagra e disciplina o poder e a riqueza, a partir da história e do altruísmo; escola de Augusto Comte, Diderot, Danton

-        Até onde conseguimos perceber, Augusto Comte era particularmente crítico do grupo do progresso – e isso devido a pelo menos dois motivos:

o   O grupo do progresso afirmava o progresso sacrificando totalmente a ordem (e, em particular, a historicidade humana)

§  Não por acaso, como sabemos, a concepção de progresso mobilizada pela “esquerda” é vaga e/ou quimérica, extremamente crítica e considera que o passado é um pesado fardo

o   O grupo do progresso detém a primazia política, no sentido de que a ele competem as iniciativas e o ativismo sócio-político: só por isso sua importância social é enorme

§  Mas, como os princípios que orientam o grupo do progresso são ruins, a prática política daí derivada também é ruim

o   Esses dois fatores conjugados realçam o fato de que o grupo que possui a liderança social, embora supostamente represente uma das tendências fundamentais da sociedade, é orientada por concepções – mas também sentimentos – erradas, equívocas e imorais

-        Resumindo o argumento:

o   Embora direita e esquerda sejam categorias políticas fundamentais desde o fim do século XIX, elas são inadequadas para a reflexão política e social

o   A inadequação de direita-esquerda é dupla:

§  Por um lado, o seu esquema fundamental é rigorosamente maniqueísta, propondo a oscilação eterna entre os dois pólos, sem que se veja, nem que se deseje, nenhuma solução para isso

§  Por outro lado, cada um dos termos é errado e prejudicial em si mesmo: os princípios que fundamentam a direita e a esquerda são prejudiciais ao ser humano, por serem estritamente parciais e particularistas, além de absolutistas (sejam teológicos, sejam metafísicos)

·         A direita é autoritária e/ou retrógrada e/ou antissocial; a esquerda é contra a ordem, mistifica a “revolução” (que é sempre violenta) e seu igualitarismo é anti-histórico, antissocial e com freqüência reinstitui castas

o   A adequação de “direita e esquerda” aos dias atuais também se dá porque a política atual é fortemente metafísica

o   Em oposição à metafísica da direita-esquerda, é necessário afirmar a positividade sociocrática do “ordem e progresso”:

§  O “ordem e progresso” afirma a conjugação necessária e simultânea de dois, ou melhor, três aspectos da vida humana: a Estática Social (ordem), a Dinâmica Social (progresso), vinculadas pelo amor (a palavra “e”)

§  Não há indefinida oscilação maniqueísta no “ordem e progresso”, mas complementaridade e conjugação constante e permanente de necessidades e anseios sociais

§  Cada um dos termos do “ordem e progresso” corresponde a uma efetiva realidade social, política e moral, que pode e deve ser satisfeita para a harmonia social e a felicidade individual

§  Os termos do “ordem e progresso” correspondem ao caráter histórico de continuidade humana e das suas instituições sociais fundamentais; essa continuidade não é estática, mas dinâmica e desenvolve-se na direção do pacifismo, do relativismo, do altruísmo: qualquer outra proposta é irreal e imoral    

07 fevereiro 2023

Anotações sobre o mérito e a meritocracia

No dia 10 de Homero de 169 (7.2.2023) fizemos nossa prédica positiva, em que demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, especialmente em sua quinta conferência, dedicada ao culto público.

Antes da leitura comentada, lembramos o centenário de nascimento do nosso grande correligionário Paulo de Tarso Monte Serrat (1923-2014), ocorrido justamente nessa data (10 de Homero, ou 7 de fevereiro).

Após a leitura comentada, apresentamos algumas reflexões sobre a noção positiva (altruísta, relativa, sociocrática) de mérito individual. As anotações que fizemos para o sermão estão reproduzidas abaixo.

A prédica pode ser vista nos canais Apostolado Positivista (l1nk.dev/Meritos) e Positivismo (l1nq.com/Meritocracia). O sermão sobre o mérito pode ser visto nos vídeos a partir de 44' 55".

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Anotações sobre o mérito e a meritocracia

 

-        No Brasil atual, o mérito individual é tema de grande oposição entre distintas perspectivas políticas, a partir de critérios intelectuais e morais

-        Para adiantar o argumento e simplificar a discussão, podemos estabelecer (pelo menos) dois conceitos de “mérito”:

o   Conceito metafísico, burguês e individualista: o mérito individual é dado e medido pelo sucesso material (grosseiramente: pela renda mensal) e este, por sua vez, é uma conseqüência única e exclusiva do esforço individual

§  Essa concepção é, por definição, egoísta e antissocial – e antissocial mesmo no sentido de que o mérito de um indivíduo afirma-se pela negação do valor dos demais cidadãos

o   Conceito positivo, sociocrático e altruísta: o mérito individual é dado e medido pela moralidade das ações individuais, estabelecida, por um lado, pelas contribuições sociais (ou melhor, sociocráticas) dessas ações e, por outro lado, e de maneira complementar, pela moralidade das ações individuais

-        A noção de mérito individual é afirmada desde sempre em todas as sociedades (ou, talvez, na maioria esmagadora delas), como um estímulo à qualidade e ao valor das ações individuais

o   Nesse sentido, o mérito individual é um estímulo ao aperfeiçoamento pessoal

o   Em tais situações, o mérito individual é complementar ao caráter social das pessoas

o   Em suma, a afirmação do mérito individual é a recompensa pública que o conjunto da sociedade dá aos esforços de uma pessoa em benefício dos demais

-        No Ocidente, a noção de mérito individual afirmou-se pelo menos no século XVIII, pelos enciclopedistas, ao mesmo tempo como um estímulo aos esforços altruístas individuais e como um princípio organizador da sociedade que se contrapunha ao princípio das castas

o   É necessário insistir nessa idéia: o mérito individual contrapõe-se às castas (de que as sociedades de ordens, intrínsecas às monarquias, são o último resquício)

o   As sociedades de castas organizam-se de tal maneira que a profissão dos indivíduos e também seus valores pessoais estão determinados previamente ao seu nascimento, pela posição que cada qual ocupa na estrutura social

o   No século XVIII, os enciclopedistas afirmavam que o valor de um indivíduo seria dado não a priori, pelo seu “berço”, mas a posteriori, conforme a moralidade intrínseca e os resultados efetivos das ações realizadas por cada um ao longo de suas vidas

§  Não é preciso insistir muito na idéia de que o último sacramento positivista, o da incorporação, baseia-se intimamente na noção de mérito individual (bem entendido: na acepção sociocrática e altruísta do mérito individual)

-        A noção de mérito individual (em particular como contraposto às castas) é muito clara em outros países, especialmente naqueles com forte tradição republicana

o   Considero aqui, em particular, França e Portugal

§  Vale notar que na França e em Portugal a meritocracia republicana é, por um lado, afirmada pela esquerda e, por outro lado, contra o identitarismo

-        O Positivismo afirma com clareza, com todas as letras, a noção de mérito individual

o   A noção de mérito individual no Positivismo segue a inspiração anti-castas do republicanismo enciclopedista e também o seu estímulo ao aperfeiçoamento individual

o   Embora seja evidente e já o tenhamos afirmado, é necessário repeti-lo com todas as letras: a meritocracia positivista orienta os indivíduos para o altruísmo; ou seja, é u’a meritocracia sociocrática

-        Augusto Comte tinha muitíssima clareza de que a capacidade de ação individual varia de acordo com a posição de cada indivíduo na sociedade

o   Indivíduos melhor situados (os ricos) conseguem fazer mais coisas; indivíduos pior situados (os pobres) conseguem fazer menos coisas

o   A maior possibilidade que os ricos têm de fazer mais coisas resulta pelo menos em duas conseqüências para o Positivismo:

§  Maiores recursos implicam maiores deveres: se o capital é social em sua origem e, portanto, deve ter uma destinação social, a posse (ou, se desejar-se, a propriedade) do capital implica necessariamente a obrigação de usar bem e com fins sociais o capital à em outras palavras, na sociocracia a propriedade do capital não é um luxo nem um direito, mas uma obrigação que se impõe

§  Maiores possibilidades dadas a priori implicam, inversamente, menor mérito relativo

o   Como resultado das observações acima, no Positivismo o caráter moral (e social) do “mérito individual” apresenta-se com toda a clareza e em todo o seu esplendor

o   Ao mesmo tempo, considerando que a capacidade de atuação de um indivíduo está profundamente vinculada à sua posição na estrutura social, a avaliação, ou melhor, a determinação do mérito individual tem que ser extremamente abstrata (sopesando as ações individuais e a posição na estrutura social), elaborada a partir de parâmetros morais (e sociocráticos) e por juízes especialmente preparados para isso (ou seja, pelo sacerdócio positivista)

§  Augusto Comte afirmava que essa avaliação consistia no mais difícil e mais exclusivo atributo do sacerdócio positivo

-        Nas disputas políticas brasileiras, a “direita” neoliberal (ou ultraliberal) afirma o “mérito individual” a partir dos parâmetros estadunidenses dos anos 1980: um indivíduo é meritório se ele tiver “sucesso na vida”, o que, por sua vez, quer dizer que ele agiu contra os outros indivíduos (ou melhor, contra a sociedade) e tem uma altíssima renda mensal

o   O grande exemplo disso é a personagem Gordon Gekko, do filme Wall Street (de 1987 e dirigido por Oliver Stone); interpretado por Michael Douglas; essa personagem dizia que “A ganância é boa”

-        Em contraposição a esse conceito rasteiro e degradante de mérito, a esquerda brasileira afirma... o mais puro igualitarismo, rejeitando totalmente qualquer noção de mérito

o   Insisto: a rejeição esquerdista do mérito consiste na mais completa, pura e total afirmação do igualitarismo; é o igualitarismo levado às últimas conseqüências

o   Ao mirar na concepção neoliberal do mérito, a esquerda rejeita qualquer concepção de mérito e, portanto, na prática despreza as ações individuais e os mecanismos morais e intelectuais adequados à regulação dos “indivíduos”

§  É claro que, ao rejeitar os mecanismos morais de regulação dos “indivíduos”, a esquerda brasileira necessariamente afirma o materialismo economicista (quando não, também, o materialismo politicista)

o   A rejeição da noção de mérito, pela esquerda, apresenta uma série escandalosa de defeitos morais e intelectuais acachapantes:

§  Esquece, ou finge esquecer, que o mérito individual contrapõe-se à sociedade de castas, de tal sorte que rejeitar qualquer mérito individual é afirmar, ou propor, a sociedade de castas

·         Aliás: não por acaso, as tentativas empíricas de criar sociedades “igualitaristas” serviram apenas para criar versões modernas de sociedades de castas, como nos países comunistas

§  Rejeita a tradição republicana ocidental, conforme desenvolvida e aplicada desde o século XVIII e ainda hoje viva e pulsante (França e Portugal)

§  Finge esquecer que a história brasileira foi marcada por uma sociedade de castas, durante o período monarquista

·         A monarquia era um arremedo ridículo de “sociedade de estados” no que se refere à nobreza, mas era muito concretamente uma sociedade de castas no que se referia à escravidão

§  Ignora, ou finge ignorar, que as eleições e os votos baseiam-se sempre no afirmado mérito individual dos candidatos e na superioridade (alegada e/ou real) de uns em relação aos outros

§  Ignora, ou finge ignorar, que situações de profunda injustiça social tendem a realçar o mérito individual daqueles que, a muito custo, conseguem superar suas dificuldades e desenvolver atividades socialmente importantes

·         Por exemplo: a rejeição do mérito individual é incoerente e incompatível com a recente (e corretíssima) valorização de Luiz Gama, em uma cinebiografia de 2021 (Doutor Gama, de Jeferson De)

·         É claro que o realçado mérito individual de quem supera as grandes adversidades não pode ser entendido como justificativa para a manutenção das situações de injustiça social

o   Não há justificativa nenhuma para a rejeição do conceito de mérito da parte da esquerda brasileira

§  A esquerda brasileira combate, com razão e justiça, o conceito metafísico-burguesocrático-neoliberal de mérito que o entende como sendo a alta renda mensal às expensas dos demais

§  Entretanto, a esquerda brasileira, consoante seu igualitarismo materialista radical, despreza toda e qualquer concepção de mérito individual: ela “joga fora o bebê juntamente com a água do banho”

§  Se quisesse, a esquerda brasileira poderia muito bem elaborar opções intelectuais, campanhas políticas etc. apresentando concepções alternativas de mérito; mas é exatamente essa a questão: a esquerda brasileira não faz tais campanhas porque não quer

o   A rejeição de qualquer concepção de mérito a partir (e/ou em benefício) do radical igualitarismo materialista serve profundamente à política identitária, com seu sectarismo, sua ultrapolitização dos ressentimentos sociais – e suas infinitas cotas

o   Afirmar a “justiça social” para rejeitar o mérito individual não é justificativa nenhuma adequada para as tolices da esquerda brasileira, a esse respeito

§  Essa rejeição – cuja contrapartida é a afirmação do identitarismo e das suas cotas – não serve nem à justiça social nem à regulação dos “indivíduos”, nem faz justiça aos ricos e (em especial) aos pobres que têm efetivamente mérito

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01 fevereiro 2023

Hernani Gomes da Costa: mais reflexões sobre as hierarquias/classificações positivas

No dia 3 de Homero de 169 (31.1.2023), realizei minha prédica positiva; em sua parte de sermão, abordei o tema das hierarquias positivas, ou classificações positivas. Para elaborar tal sermão, conversei com meu amigo Hernani Gomes da Costa; a partir daí mantivemos um diálogo, em que ele, por sua vez, também refletiu intensamente a respeito desse tema, a partir das minhas observações.

Algumas das reflexões de Hernani não puderam ser apresentadas na prédica do dia 31, devido a vários motivos (eu tinha ainda que refletir a respeito de alguns desses comentários; os novos comentários poderiam ser entendidos como de "nível avançado", enquanto os sermões têm que ser de "nível básico"; só as anotações que eu já tinha estabelecido já tornariam o sermão bastante longo).

Entretanto, embora nem todas as reflexões de Hernani tenham podido ser incorporadas à minha exposição, ainda assim elas eram muito interessantes (como, aliás, costumam ser suas reflexões!) e merecem alguma forma de divulgação pública.

Por isso, após o consultar a respeito, publico aqui duas considerações feitas por Hernani também no dia 31.1.2023 sobre a teoria positiva das hierarquias (ou das classificações); como se verá, elas consistem em conseqüências adicionais que se pode tirar desssa teoria positiva. Vale notar que essas conseqüências são complementares ao que foi exposto na minha prédica do dia 31.1.2023 - que, por sua vez, como indiquei acima, em medida importante beneficiou-se do diálogo com o Hernani.




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Está sendo para mim de extrema importância abordar a questão da hierarquia. Ela vem trazendo em seu bojo problemas que não teriam, se eu bem me conheço, me ocorrido. Meditando ontem [30.1.2023] sobre nossa conversa, ocorreram-me dois pontos:

1) A dedutibilidade do futuro pelo passado supõe sempre (assim me parece) a elaboração de algum tipo de classificação. Haja vista que já o próprio silogismo, consistindo na extração de uma conclusão particular a partir de princípios mais gerais, baseia-se inteiramente sobre o conceito de generalidade, que é aquele conceito mesmo que define uma classificação positiva, ocorre-me também que muitos princípios no positivismo podem ser alcançados tanto pela via dedutiva quanto pela indutiva. Assim, por exemplo, quando Augusto Comte nos diz que “os vivos são sempre e cada vez mais, necessariamente, governados pelos mortos”, o “sempre” aí me parece referir-se à seguida constatação empírica dessa verdade, de onde adveio a sua generalização; enquanto o “necessariamente” corresponde ao caráter dedutivo que essa lei comporta, já agora também como uma decorrência de princípios mais gerais.

2) A superação do empirismo político me parece um processo intimamente associável à capacidade efetiva de elaborar teoricamente sobre (ou a partir de) os fatos “crus”, algo que se assemelha a uma classificação, ao menos buscando-se para eles conexões que nos possibilitem apreciá-los como mais ou menos semelhantes uns aos outros. Do contrário, dispondo apenas de uma obediência servil à mera cronologia, isso só nos oferecerá um enfileiramento no tempo, do qual o empirismo político logo se encarregaria de extrair a fatídica conclusão de seu otimismo maquinal, segundo o qual, por ser “de hoje”, a situação haverá de ser sempre “melhor” do que  a antiga. A ambiguidade do termo “atual” (que tanto se refere ao que se dá no momento presente, quanto se refere ao real processo de aperfeiçoamento que readapta o antigo ao presente) presta-se muito bem a isso.

31 janeiro 2023

Anotações sobre as hierarquias (ou classificações) positivas

No dia 3 de Homero de 169 (31.1.2023) fizemos nossa prédica positiva, em que demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, especialmente em sua quinta conferência, dedicada ao culto público.

Antes da leitura comentada, exercendo nosso papel de sacerdócio positivo, da Religião da Humanidade, condenamos, na medida das nossas forças, o atual genocídio praticado de maneira criminosa e intencional contra os índios ianomânis, no Norte do Brasil. Tal genocídio foi principalmente causado pela omissão intencional da ajuda dos poderes públicos (federal e estadual) em prover os auxílios aos nossos irmãos indígenas, especialmente em termos alimentares.

Para a Religião da Humanidade, o genocídio dos ianomâmis é motivo de tristeza e cobrança pelo menos por três motivos:

1) foi um positivista ortodoxo brasileiro, aliás também descendente de indígenas, que criou o antigo Serviço Nacional de Proteção aos Índios (SNI), com vistas a localizar, identificar e respeitar os inúmeros grupos indígenas que vivem no território nacional: trata-se do grande Cândido Mariano da Silva Rondon, o "Marechal da Paz".

2) A Religião da Humanidade foi enormemente desenvolvida pela instituição do "neofetichismo"; o neofetichismo, por sua vez, consiste na incorporação do fetichismo inicial à positividade final, aumentando o espaço dedicado à afetividade na vida humana, completando o papel da afetividade na vida lógica humana e, assim, tornando o Positivismo mais adequado a cumprir seu objetivo, que é o de realizar altruisticamente a harmonia coletiva e individual. Pois bem: o fetichismo é a categoria geral que nomeia as religiões indígenas e, portanto, trata-se de uma dívida de gratidão do Positivismo para com esses povos.

3) A política positiva estabelece que a política moderna tem que ser pacifista, tanto em âmbito internacional quanto em âmbito interno, da mesma forma que estabelece que cumpre ao Ocidente o dever de atuar como exemplo moral nesse sentido. O exemplo moral a ser dado pelo Ocidente, em termos de pacifismo, corresponde ao abandono total do colonialismo e do imperialismo, bem como ao mais cioso respeito aos povos mais frágeis e que não se encontram no nível de desenvolvimento ocidental. Na prática, no caso do Brasil, isso significa que os povos indígenas têm que ser cuidadosamente respeitados e valorizados. (A atuação de Rondon, portanto, corresponde à aplicação deste princípio e do princípio anterior ao caso brasileiro.)


Índio ianomâmi (sem maiores identificações)
Índio ianomâmi (sem maiores identificações)


Marechal Rondon, em 1930

Após a leitura comentada do Catecismo positivista, fizemos o nosso sermão. O tema escolhido para essa reflexão semanal foi a teoria positiva das hierarquias. Assim, apresentamos abaixo as anotações que havíamos elaborado para tratar desse tema. É importante notar que essa exposição valeu-se intensamente de um diálogo travado ao longo dos dias anteriores (e não concluído até a realização da prédica) com nosso amigo Hernani Gomes da Costa (embora, é claro, as eventuais falhas, limitações ou exageros da exposição sejam de minha inteira responsabilidade).

(Algumas considerações adicionais de Hernani, que devido a alguns motivos não puderam ser incluídas na prédica, podem ser lidas nesta postagem.)

A prédica foi gravada e está disponível nos canais Apostolado Positivista (acesse.one/Hierarquia) e Positivismo (encr.pw/Sequencias). No vídeo do Apostolado Positivista, o sermão pode ser visto a partir de 34' 35".

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Anotações sobre as hierarquias positivas

 

-        A noção de hierarquia é uma das principais na política atual e também é um conceito fundamental no Positivismo: mas é evidente que o sentido dado à palavra “hierarquia” na Religião da Humanidade é muito diferente do dado na política atual

o   Na política atual, a hierarquia é a relação vertical, basicamente política, mas com certa freqüência também social, em que um indivíduo ou um grupo está acima dos demais e, por isso, tem poder sobre esses demais, isto é, manda neles

o   Embora no Positivismo esse sentido político e social esteja presente, ele é secundário em relação a um sentido filosófico mais amplo

-        O sentido fundamental da hierarquia no Positivismo é o de organização, de princípio de arranjo

o   O enunciado elementar das hierarquias no Positivismo é o da 14ª lei da filosofia primeira: “Todo classamento positivo procede segundo a generalidade crescente ou decrescente, tanto subjetiva como objetiva”

o   Adicionalmente, há também a lei dos intermediários, correspondente à 15ª e última lei da filosofia primeira: “Todo intermediário deve ser subordinado aos dois extremos cuja ligação opera”

§  Vale notar que essas duas leis integram a seção mais subjetiva da filosofia primeira

-        Retomando o conteúdo: o que a lei da hierarquia estabelece é que toda e qualquer classificação tem que ser elaborada considerando a generalidade decrescente ou crescente, seja ela objetiva, seja ela subjetiva

o   Um primeiro aspecto que se evidencia do princípio acima é que “classificação” equivale a “hierarquia” e vice-versa, o que corrobora a nossa afirmação anterior de que, no Positivismo, a hierarquia é acima de tudo igual a “organização, arranjo”

o   Em segundo lugar, é necessário ter-se clareza de que, no Positivismo, as hierarquias, ou as classificações, não consistem em meras listas, ou meras seqüências

§  Como veremos adiante, o Positivismo valoriza inúmeras seqüências específicas; em alguns casos, tais seqüências são extremamente valorizadas, desenvolvidas e aprofundadas: mas, ainda assim, tais seqüências não são, em si mesmas, classificações

o   Esse princípio vale para as classificações científicas e também para as classificações sociais e morais

§  A lei da classificação das ciências (também chamada de “hierarquia das ciências”) exemplifica uma classificação ao mesmo tempo científica e moral, com generalidade objetiva decrescente e generalidade subjetiva crescente

§  A classificação (hierarquia) social proposta por Augusto Comte revela uma generalidade subjetiva decrescente (e uma generalidade objetiva crescente), ao passar do sacerdócio, para as mulheres, para o patriciado, para o proletariado

o   De modo geral, o âmbito objetivo é complementar ao subjetivo: a Moral é a ciência subjetivamente mais ampla, assim como objetivamente é a mais restrita

o   Nas classificações positivistas, cada um dos termos tem que ser valorizado e respeitado por si só; ainda assim, os termos que se apresentam como subjetivamente mais gerais são os mais importantes e mais nobres: a Moral, o sacerdócio, a religião, o amor

o   Os elementos que são objetivamente mais gerais são menos nobres, mas são importantes por si sós e têm uma influência (donde uma importância) maior

o   Principalmente em relação aos elementos menos valorizados há uma série de compensações, geralmente de caráter moral (e, portanto, de valorização social), freqüentemente com conseqüências políticas

§  Por exemplo, o proletariado é o objeto principal da política positiva, é o conjunto da população e também é o fiscal da política

§  Outro exemplo: o sacerdócio é subjetivamente o mais importante, mas a política e a economia cabem ativamente ao patriciado e passivamente ao proletariado

-        A outra lei da filosofia primeira – a lei do intermediário – tem um papel complementar na teoria das hierarquias; ela estabelece que os intermediários ligam os pólos entre si e, portanto, os intermediários compartilham características com esses pólos

o   No âmbito do Positivismo, o exemplo mais clássico de intermediário é a metafísica, que, conforme o enunciado da lei intelectual dos três estados, compartilha características da teologia e da positividade: absolutismo por um lado, maior preocupação com a realidade, por outro lado

-        Há algumas "classificações", no âmbito do Positivismo, que não seguem a lei da hierarquia

o   Essas classificações o mais das vezes têm origem histórica e seus conteúdos podem – e devem – ser explicados teoricamente

§  Não são propriamente “classificações”: tratam-se mais de seqüências, mas, vale notar, não são seqüências hierárquicas

§  Exemplos dessas classificações (ou seqüências): as três leis dos três estados; a tríplice transição ocidental

o   Uma primeira interpretação (estritamente pessoal) para a diferença entre essas seqüências histórico-filosófico-morais e as classificações propriamente ditas é que, nessas seqüências históricas, há uma intensidade moral associada aos últimos termos que é menor que a intensidade dos últimos termos de classificações propriamente hierárquicas

§  Por exemplo: na lei intelectual dos três estados, é claro que a positividade é mais valorizada que a teologia; mas essa valorização não me parece tão intensa quanto a valorização da Moral como ciência sagrada ou do sacerdócio na classificação social

§  Uma sugestão de justificativa para essas diferentes intensidades: ao tratar das seqüências históricas, Augusto Comte considera que os termos antigos já pertencem ao passado e não há tanta necessidade de enfatizar, ou salvaguardar, ou valorizar os termos mais recentes (a teologia é passado, pertence aos museus); nas hierarquias atuais, todos os termos são contemporâneos e, aí, cumpre distinguir cuidadosamente a importância relativa de cada um (a Matemática é nossa contemporânea tanto quanto a Moral)

o   Mas uma segunda diferenciação – esta devida ao meu amigo Hernani Gomes da Costa – entre as seqüências históricas e as classificações positivistas propriamente ditas é esta: as classificações (as hierarquias) podem e devem ser percorridas com legitimidade de um lado para o outro (com diferentes conseqüências, claro está), ao passo que as seqüências histórico-moral-filosóficas admitem apenas um sentido em sua marcha

§  Assim, como observa Augusto Comte, é igualmente válido (mas, novamente, com diferentes conseqüências) passar-se do amor para a fé quanto da fé para o amor; da Matemática à Moral quanto da Moral à Matemática; do sacerdócio ao proletariado quanto do proletariado ao sacerdócio; da política à religião quanto da religião à política

§  Mas, por outro lado, não faz sentido e não é correto passar-se – por exemplo, no caso da lei intelectual dos três estados – da positividade de volta para teologia, quando já se passou da teologia e atingiu-se a positividade (ou, dito de outro modo: não é aceitável nem correto voltar ao absolutismo egoístico quando já se atingiu o relativismo altruísta)

-        Podemos abordar a noção de hierarquia a partir de uma referência até certo ponto distante do Positivismo, mas que no final é-lhe complementar: a teoria antropológica elaborada por Louis Dumont

o   O antropólogo francês Louis Dumont, estudando nos anos 1960 a Índia, propôs definir a lógica social e moral do conceito de “hierarquia”; não seria a relação politicista e igualitarista de mando e obediência, mas de “englobamento de contrários”

o   O “englobamento de contrários” consiste em que um princípio filosófico, social e/ou moral organiza globalmente o sistema, incluindo em seu interior, como casos particulares, aqueles princípios que são diferentes dele

§  Dessa forma, o englobamento de contrários abarca, abrange, engloba sempre as várias situações, em que estas são respeitadas em si mas integradas à totalidade por meio de um princípio maior

§  A lógica do englobamento dos contrários claramente se manifesta em todo o Positivismo, desde a fase científica da Filosofia até (e muito mais em) a fase religiosa da Política

·         É a lógica do englobamento de contrários que permite que se verifique no Positivismo, sem incoerências ou arbitrariedades, a perspectiva “caleidoscópica”, proposta por Angèle Kremer-Marietti (novos desenvolvimentos a partir de novas perspectivas, com os mesmos elementos)

o    No igualitarismo, por outro lado, não há princípio maior capaz de organizar a sociedade e de englobar os casos diferentes, desviantes e/ou particulares: no igualitarismo presume-se que todos os princípios são iguais e que, na melhor das hipóteses, devem ser justapostos

§  O igualitarismo recusa-se a reconhecer qualquer princípio organizador e englobante

§  É bastante claro que o igualitarismo consiste no “princípio que não é princípio” que subjaz à política do Ocidente – e, mais do que isso, o igualitarismo é a consagração da política metafísica (destruidora e negativa por excelência)

§  Não é por acaso que a política como choque (ou da política segundo o nazista Carl Schmitt, ou seja, como “relação amigo-inimigo”) é um dos maiores valores atuais do Ocidente: há apenas disputa seca entre os grupos; esse também é um dos motivos que consagram o materialismo economicista

-        A dificuldade (ou recusa) de conhecer e entender os sentidos que Augusto Comte dá à “hierarquia” é um sinal poderoso de o quanto a nossa época é superficial e metafísica

o   A dificuldade (ou, de novo: a recusa) em entender-se o sentido que Augusto Comte dá à “hierarquia” também indica o quanto o seu pensamento tem fortes características “não ocidentais”

§  Essa “não ocidentalidade” do Positivismo não deixa de ser paradoxal, ou pelo menos é irônica: afinal, foi a partir do estudo profundo da história da Humanidade como um todo, tomando o Ocidente como objeto principal de reflexão e preocupação, que se desenvolveram as instituições do Positivismo

§  Na verdade, não é nem “paradoxal” nem “irônica” essa “não ocidentalidade”: bem ao contrário, ela comprova a impressionante profundidade moral, social e filosófica de Augusto Comte, que soube ultrapassar largamente os preconceitos sociais e intelectuais próprios ao Ocidente

§  É importante afirmar a “não ocidentalidade” do Positivismo para deixar de lado todos os sofismas metafísicos que afirmam que o Positivismo seria “eurocêntrico”

o   A mera afirmação (1) da harmonia mental e social e (2) da possibilidade e necessidade de conjugação e superação da ordem e do progresso, via amor, já indica o quanto Augusto Comte afasta-se das tendências atuais do Ocidente e de sua aproximação com outras civilizações

o   A “não ocidentalidade” do Positivismo foi indicada faz algumas décadas por Emmanuel Lazinier, que indicou o caráter “chinês” do pensamento de Augusto Comte