24 agosto 2012

Daniel Sottomaior: "Oração da vitória"


Artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 24 de agosto de 2012.

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Opinião
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DANIEL SOTTOMAIOR
Oração da vitória
Não deveria haver reza coletiva por atletas em quadra. Um ser onibenevolente não veria mal em esperar 15 minutos até a seleção de vôlei ir ao vestiário
Um hipotético sujeito poderoso o suficiente para fraudar uma competição olímpica merece ser enaltecido publicamente? A se julgar pela ostensiva prece de agradecimento da seleção brasileira de vôlei pela medalha de ouro nas Olimpíadas, a resposta é um entusiástico sim!
Sagrado é o direito de se crer em qualquer mitologia e dá-la como verdadeira. Professar uma religião em público também não é crime nenhum, embora costume ser desagradável para quem está em volta.
Os problemas começam quando a prática religiosa se torna coercitiva, como é a tradição das religiões abraâmicas. Os membros da seleção de vôlei poderiam ter realizado seus rituais em local mais apropriado. É de se imaginar que uma entidade infinita e onibenevolente não se importaria em esperar 15 minutos até que o time saísse da quadra.
Mas uma crescente parcela dos cristãos brasileiros não se contenta com a prática privada: para eles, é importante a ostentação, pois ela demarca o território religioso e, melhor ainda, tem valor de proselitismo. Propaganda é a alma do negócio.
Mas, no caso das olimpíadas, a publicidade é irregular por dois motivos. Primeiro porque, da forma como é feita, deixa em situação constrangedora todos que não partilham da mesma crença. É evidente que a aceitação social está em jogo numa situação dessas. Na prática, a oração se torna uma obrigação que fere a liberdade constitucional de consciência e crença dos jogadores.
Além disso, o Comitê Olímpico Brasileiro é financiado por recursos públicos -2% da arrecadação bruta das loterias federais.
O que os atletas fizeram foi sequestrar aquele privilegiado espaço publicitário, pago com dinheiro de cidadãos brasileiros de todas as crenças e descrenças, para promover atividades sectárias que só beneficiam seus fins particulares, em detrimento de todos os demais cidadãos brasileiros.
Lamentavelmente, a sociedade ainda não presta atenção suficiente a esses abusos.
Hoje em dia, pega muito mal se um cristão for converter à força um negro, um índio ou um judeu, como tanto se fez nesta terra. Mas, no que diz respeito aos poderes públicos, somos todos, sim, cristãos à força: no preâmbulo da constituição, no dinheiro, no cerimonial dos poderes públicos, na simbologia de suas repartições, nas concessões públicas de rádio e TV, na destinação de recursos públicos e até nos esportes olímpicos.
Com a sua atitude, a seleção olímpica do país deixa de representar a mim e aos milhões de brasileiros não cristãos. Ao pessoal da seleção: esse é o resultado da sua oração. Valeu a pena? Sei que muitos dirão que sim. Esse é um dos aspectos mais corrosivos da religião: priorizando pretensos seres metafísicos em detrimento dos humanos de verdade, ela só causa sofrimento.
A Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos já denunciou mais de um caso de sentenças judiciais em que magistrados se veem no direito de sentenciar cidadãos brasileiros a práticas religiosas cristãs, assim como a seleção sentenciou o Brasil a uma representação cristã. Desta maneira, não é de se admirar que 42% dos brasileiros vejam ateus com repulsa, ódio ou antipatia, o maior índice de rejeição conhecido no país.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.debates@uol.com.br
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15 agosto 2012

Seção final do artigo de Bernard Plé, “Auguste Comte on Positivism and Happiness”


Seção final do artigo de Bernard Plé, “Auguste Comte on Positivism and Happiness” 
(Journal of Happiness Studies, v. 1, p. 423-445, 2000. P. 442-443).

O artigo em questão é muito interessante. Nos últimos anos, diversos pesquisadores, originários de inúmeras áreas do conhecimento, têm proposto a inclusão da felicidade como parâmetro de desenvolvimento das sociedades; a criação de uma revista dedicada a esse tema ("Journal of Happiness Studies" - "Revista de Estudos sobre a Felicidade") ilustra bem essa tendência.

O trecho abaixo conclui um texto que se dedica a examinar a obra de Augusto Comte à luz dessa questão. Após tratar das características gerais do Positivismo - e, claro, após indicar que o Positivismo de Comte não é o "Positivismo" a que se refere meio-mundo, geralmente em tom negativo e acusatório -, o autor indica de que maneira a proposta política, científica e religiosa comtiana serve para o desenvolvimento da felicidade.

A fim de facilitar para aqueles que não têm fluência em inglês, ajuntei uma pequena tradução, logo após o trecho citado.

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I have sought to show that in identifying the natural order of the sciences as the frame of a new conception of the ‘world’, Comte embarks on the task of leading the way to a state of happiness. I have argued that in his quest for happiness, Comte insists on connecting scientific certainty with religious affections like love, veneration and reverence. Furthermore, I have argued that in stressing the importance of this consensus, Comte regards the state of happiness as a right living in the true order, first, of the world of which it is a part, and second, of the civilization in which it goes on evolving. In developing both arguments, I have been led to focus on the new science of life as the final step towards the state of happiness. What Comte regards as its ‘sacred’ mission is to show the fashion in which man’s power is being exerted in accordance with the world of law, and, at the same time, to remind modern man of the twofold heredity he continuously receives through the accumulated modifications both of the natural world and of the civilization he lives in. By leading modern man to gain clear insight into his position as part of a natural and social history, Comte seeks to reveal to the citizens of a new Republic the sphere of their dignity as well as of their happiness.

There are some important aspects in which my argument fits the fourfold matrix that Ruut Veenhoven has recently developed in order to analyse four main ‘qualities of life’[1]. Happiness as understood by Comte’s positivism can be conceived of as unifying all of these qualities. In the first place, it appears to be a far-reaching attempt, both scientific and political, aiming at ensuring not only the ‘liveability’ of the natural environment as a fruit of human intervention but also man’s ‘life-ability’ as knowledge of the natural limits within which his civilization may progress and modify the natural milieu it lives in. In the second place, such state of happiness appears to be a subjective ‘appreciation of life’ inasmuch as it represents a state of mental health and the fulfilment of modern man’s quest for certainty as to the order in which he lives. Finally, happiness appears to be the awareness of what Veenhoven’s matrix classifies as ‘utility of life’, that is, our awareness of being related both to the social order and to the natural milieu we inherit from the past. It is precisely here that happiness is to become noble, public and religious or, as Comte puts it, “le salut intellectuel de la société”.


Tradução:


Eu procurei apresentar que identificando a ordem natural das ciências como o quadro de uma nova concepção do “mundo”, Comte iniciou a tarefa de indicar o caminho para um estado de felicidade. Argumentei que nessa busca de felicidade, Comte insiste em conectar a certeza científica com os afetos religiosos como o amor, a veneração e a reverência. Além disso, argumentei que ao enfatizar a importância desse consenso, Comte percebe o estado de felicidade como um direito vivendo na verdadeira ordem, em primeiro lugar, do mundo de que é parte e, em segundo lugar, da civilização que se desenvolve. Ao desenvolver ambos esses argumentos, levei-me a focalizar na nova ciência da vida como a etapa final em direção ao estado de felicidade. O que A. Comte percebe como sua missão “sagrada” é mostrar a forma como o poder do ser humano está sendo exercido de acordo com o mundo da lei [natural] e, ao mesmo tempo, lembrar ao homem moderno da dupla hereditariedade que ele continuamente recebe por meio das modificações acumuladas, tanto do mundo natural quanto da civilização em que ele vive. Ao indicar ao homem moderno como obter perspectivas mais claras a respeito de sua posição como parte de uma história natural e social, Comte procura revelar aos cidadãos de uma República a esfera de sua dignidade, assim como de sua felicidade.

Há alguns importantes aspectos em que o meu argumento enquadra-se na matriz quádrupla que Ruut Veenhoven elaborou recentemente a fim de analisar quatro principais “qualidades de vida”[2]. A felicidade como entendida pelo Positivismo de Comte pode ser concebido como unificando todas essas qualidades. Em primeiro lugar, ele aparece como sendo uma tentativa de amplo escopo, tanto científica quanto política, com o objetivo de garantir não apenas a “vidabilidade” do ambiente natural como fruto da intervenção humana, mas também a “vida-habilidade” humana como conhecimento dos limites naturais em que sua civilização pode progredir e modificar o meio ambiente natural em que vive. Em segundo lugar, esse estado de felicidade aparece como uma “apreciação da vida” subjetiva, tanto quanto ela representa um estado de saúde mental e a realização da busca do homem moderno por certeza na ordem em que ele vive. Finalmente, a felicidade aparece como sendo a consciência do que a matriz de Veenhoven classifica como “utilidade da vida”, ou seja, nossa consciência de estarmos relacionados tanto à ordem social quanto ao ambiente natural que herdamos do passado. É precisamente aqui que a felicidade torna-se nobre, pública e religiosa, ou, como Comte diz, “a saúde intelectual da sociedade”.



[1] For this conceptual analysis, see Ruut Veenhoven, The Four Qualities of Life. Ordering Concepts and Measures of Good Life, in Journal of Happiness Studies, Vol. 1, nr 1 2000; especially §1.3 and §2.
[2] Para essa análise conceitual, cf. Ruut Veenhoven, The Four Qualities of Life. Ordering Concepts and Measures of Good Life, in Journal of Happiness Studies, Vol. 1, nr 1 2000; especially §1.3 and §2.

30 julho 2012

"El rol del intelectual es buscar la verdad y difundirla"

Entrevista com Mario Bunge; disponível originalmente aqui.


Vino a la Argentina especialmente invitado por la Universidad Nacional del Litoral. Dictó un curso de cinco días y fue nombrado Dr. Honoris Causa de la casa de altos estudios. Es, en pocas palabras, un gran maestro.

21/01/2004

Entrevista exclusiva con Mario Bunge. 
Fuente: Prensa UNL

Erudito, sagaz, polémico, didáctico y ocurrente. Cinco cualidades que, sumadas a su espontánea y polémica sinceridad para decir las cosas, a su ocurrencia, a su buen humor y a sus 81 años hacen de Mario Bunge no sólo un intelectual de primera línea, sino un gran maestro en diversas disciplinas. Su capacidad intelectual le permite refutar a Thomas Kuhn en cuestión de segundos, denostar a Foucault y a Derridá como a Habermas con sólo una frase, como hacer referencia a Pitágoras, Ptolomeo, Platón, Einstein, Newton y Darwin con una facilidad asombrosa. Pero además, lo hace con una solidez intelectual que parece ser, sencillamente, irrefutable e incuestionable. Se podrá disentir o acordar con él. Habrá quienes lo tilden de empirista y reduccionista, pero nadie podrá negar que se trata de un intelectual como pocos en el mundo.
-¿En que año se fue del país?
-En febrero de 1963. Y menos mal que tomé esa decisión a tiempo, porque sino no hubiera conseguido pasaporte o me hubieran matado. Ya se veía que el gobierno de Guido era muy débil y que los militares estaban detrás de todo. Por ejemplo, para completar mi magro salario, yo daba dos clases en Montevideo todos los jueves, y cada vez que volvía me revisaban todos los papeles buscando documentos subversivos. Además, a fines de 1962 se dio la lucha entre dos facciones del ejército: los colorados y los azules. Con todo, me percaté de que se venía una dictadura militar. Así fue.
-¿Antes de irse lo habían echado de la universidad?
-Sí, los peronistas. En realidad, me echaron indirectamente, porque exigían afiliación al partido y una contribución económica. Yo no sólo me negué a la afiliación sino que todos los meses depositaba un escrito diciendo que deseaba que no se me descontara nada de mi sueldo. Además, como habían echado a un compañero de trabajo, firmamos una solicitud para que reingresara y eso fue la gota que colmó el vaso.
-¿Tuvo militancia política?
-Militante no fui nunca, porque no me interesaba ni me parecía constructivo, ni siquiera el movimiento estudiantil. Por eso es que, mientras fui estudiante y mientras no la cerró el gobierno, organicé la Universidad Obrera Argentina. Eso sí me pareció constructivo. De todos modos, para responder su pregunta, era simpatizante de la extrema izquierda.
-¿Qué haría si fuera Secretario de Ciencia y Técnica de la Nación?
-En vez de dar directivas inútiles como hicieron muchos funcionarios, empezaría por preguntarle diversas cuestiones a los científicos y a los técnicos. Insistiría en hacer una comisión para que debatiera un programa de desarrollo de la ciencia y de la técnica. Estoy convencido de que mientras no haya un programa de desarrollo científico y técnico que sea parte de un plan vasto, de un proyecto nacional, siempre se va directo al fracaso. Pero además, para que un país se desarrolle también hay que desarrollar la salud, la cultura, la enseñanza primaria y la secundaria, la industria, modernizar el campo, afianzar la democracia. No creo que haya un motor último de la historia como dicen los marxistas y los economistas neoliberales. Es mentira que una vez que la economía está en marcha todo lo demás funciona. Para que realmente funcione la economía, tienen que funcionar las otras tres ruedas: la política, la cultura y el medio ambiente.
-¿Qué se debe hacer en un país como el nuestro para articular la ciencia y la técnica con el sistema productivo?
-Formar buenos técnicos. Ellos son los encargados de diseñar. De todos modos, mejorar la enseñanza de las ciencias básicas en las facultades de ingeniería y de administración por ejemplo, sería una muy buena manera de articulación. Además, es fundamental hacer hincapié en la formación que reciban los maestros. ¿Y dónde se forman los maestros? En la escuela primaria y en la secundaria. Por eso, hace años que vengo proponiendo que se hagan escuelas piloto en las que se concentren los recursos y la excelencia, para que luego, y de a poco, las otras escuelas traten de imitarlas.
-En la Argentina contamos con otro problema: no se le da al desarrollo de la ciencia el status que merece.
-Es lógico. La enseñanza de la ciencia en las escuelas primarias y secundarias es tan mala que la gente no sabe qué es ni para qué sirve. Hay que mejorar esa enseñanza y para eso se necesitan maestros mejor capacitados y laboratorios y talleres en todas las escuelas. Cuando yo iba a la escuela primaria no había laboratorios ni talleres, y en mi escuela secundaria - el Nacional Buenos Aires - había laboratorios en los que los alumnos no podíamos tocar ningún aparato, ni hacer medición alguna. Y eso que se trataba de un colegio dependiente de la Universidad y que supuestamente era el mejor de la ciudad. Sin embargo, todo era puramente libresco. Era para formar abogados. La universidad argentina está diseñada para formar abogados.
-¿Qué rol le cabe a la educación pública hoy en día?
-Es el Estado quien tiene la obligación de formar técnicos, para que ellos tengan la posibilidad de ser empleados por las industrias, lo cual permitiría que éstas, a su vez, puedan exportar. Es por la falta de técnicos adecuados que no hay industrias, o que las que había no podían competir con las importaciones extranjeras. El martes 29 de mayo salió publicado en el diario La Nación un artículo de Jeffrey Sachs, profesor de Economía de Harvard, en el cual dice que la Argentina exporta sólo un 10% de productos industriales, y el resto son agropecuarios, lo cual es típico de un país del tercer mundo. El artículo dice "los que hicieron la reforma del mercado se concentraron en reducir el tamaño del estado, pero se olvidaron del papel del estado en aumentar la capacidad tecnológica del país. La capacidad tecnológica de una economía depende de una amplia gama de instituciones sociales, en particular de las universidades".
-¿Qué se sabe de la Argentina en Canadá?
-Lo único que se ve, y de vez en cuando, son las actuales dificultades. Somos el último orejón del tarro y nadie tiene confianza en el país.
-¿Qué siente cuando se entera de esto?
-Tristeza. Además, pienso en la cantidad de oportunidades perdidas, en lo que era el país hasta 1930: un país que iba para adelante. Hasta que ocurrió el primer golpe fascista en la historia de América - golpe que fue aplaudido fervorosamente por la Santa Iglesia Católica - y desde entonces el país no se ha recuperado. Ha tenido breves períodos de ascenso, pero volvió a caer y está sin brújula. Si usted compara Brasil con la Argentina, se observa que, pese a todo, Brasil tiene un proyecto nacional y está avanzando, pero Argentina no. Los científicos brasileños contribuyen en un 1% a la literatura científica internacional, los argentinos no llegan al 0,3%. A los científicos brasileños se les paga comparativamente bien, mucho mejor que a los argentinos.
-¿Siente ganas de regresar?
-Todas las semanas. Es más, hoy por la mañana oí un benteveo y un tero que hacía años que no oía, y sentí una nostalgia terrible.
-Y de esa nostalgia a la concreta posibilidad de volver ¿ cuánta distancia hay?
-La nostalgia es puramente sentimental. Cuando razono fríamente, me doy cuenta que en la Argentina tendría más enemigos que amigos. En este país hay muchos filósofos a los que no les gusta escuchar lo que yo pienso y digo frontalmente: que no hay filosofía creadora, que no hay creación filosófica y que muchos de ellos sólo se limitan a leer y comentar textos en vez de hacer buena investigación.
-De todos modos, si es como usted dice, su regreso aportaría al debate y eso sería positivo.
-Así tendría que ser. De todos modos, nadie me dejaría dar clases ni me invitaría a dar cursos, salvo ocasionalmente como el que estoy dando ahora en la UNL. Le cuento una anécdota. En el año 1985 regresé a la Argentina para dar una serie de conferencias para la Fundación Thompson acerca del avance en la neurociencia. También me invitaron de distintas facultades de la UBA para dar charlas, entre ellas, Filosofía. Di la conferencia, y desde entonces no me han vuelto a invitar nunca, y eso que vuelvo casi todos los años y doy conferencias en diversas instituciones y universidades privadas. Hace dos años, el rectorado de la UBA organizó un curso de Filosofía, pero resulta que en la Facultad de Filosofía y Letras no se disponía de aulas ni locales para que se dictara el curso. Tuve que darlo en el diario La Nación. Y eso que era organizado por el rectorado... Entonces, en un momento pregunté a los asistentes si había algún filósofo, y sólo una persona levantó la mano. Eso se llama boicot, porque no era un curso de filosofía, y no de física ni de filosofía de la ciencia. Lo mismo le pasó a Guido Beck - mi maestro - cuando vino a la Argentina en 1943. No lo había invitado una universidad, sino que lo había invitado el Observatorio Astrónomico. Yo quise organizarle alguna conferencia en la Facultad de Ciencias, y los físicos no tenían interés. Entonces tuve que recurrir al matemático Julio Rey Pastor que fue el maestro del Ing. Babini - el reconocido matemático santafesino a quien conocí en el año 1943 cuando estuve por primera vez en la UNL - e inmediatamente se encargó de conseguir un aula, de presentarlo, de convocar a la gente. Es decir, un matemático hizo todo, porque a los físicos no les interesaba, lo cual muestra el gran temor a la competencia y la indiferencia que existe.
-¿Qué opina de la divulgación científica en la Argentina?
-A diferencia de lo que sucede en otras partes del mundo, en este país no existe la profesión del periodista científico. Hay periódicos, como el que leo yo en Canadá, que todos los días tienen una página entera de divulgación científica en la que resumen los artículos que se publican en las revistas Nature y Science, las dos más importantes de divulgación científica.
-De todos modos, si en Canadá hay un periódico que puede tener todos los días una página de ciencia, es porque hay gente interesada en leerlo. ¿Cómo hacer para que la gente se empiece a interesar por la ciencia?
-Se necesitan periodistas y directores de periódicos que en vez de publicar horóscopos publiquen páginas de divulgación científica.
-A pesar de que la Argentina destina un magro 0,03% del PBI al desarrollo científico, los científicos argentinos son reconocidos mundialmente.
-Eran reconocidos. Ya no hay más científicos. Los que pudieron emigrar ya lo hicieron y se establecieron en tres países principalmente: Venezuela, México y Brasil. Por ejemplo, mi hijo mayor, que hace física atómica, está en México hace un cuarto de siglo y ahí tiene todo lo que necesita: revistas, colaboradores, un sueldo que le permite vivir bien, acceso a computadoras de gran potencia y está en el instituto de física más poderoso de América Latina, en el que hay alrededor de 200 físicos. Sin embargo, la producción científica argentina, a pesar de ser más baja que la brasilera, es mayor que la de México y que la de Chile. Todavía queda gente competente y bien formada.
-¿Cree que la propia lógica de funcionamiento de las comunidades científicas impone obstáculos para plantear posturas distintas?
-Están tan cerrados en lo suyo, que ni siquiera les interesa. Muchos científicos no se dan cuenta de que, a pesar de la excesiva especialización que hay hoy en día, es necesario tender puentes, porque sino se pierde la visión de conjunto y el horizonte, se deja de aprender de las ramas ajenas, y uno empieza a aburrirse.
-¿Esto tiene que ver con la llamada globalización?
-En realidad, lo único que realmente se ha globalizado es el mercado de capitales y el conocimiento científico, e incluso ese mismo conocimiento no atraviesa libremente las fronteras, porque para poder entenderlo hay que estar capacitado. Y en este sentido, el tercer mundo se está quedando muy atrás. Por ejemplo, supóngase que hubiera alguien en este país que quisiera hacer psicología en serio y buscara estudiar las funciones mentales del cerebro. Para eso hay que empezar por estudiar neurociencia, para lo cual se necesitan aparatos muy costosos que cuestan millones de dólares. Además, estos científicos tendrían que ser entrenados, y aquí en el país no hay nadie capacitado para ello, por lo cual tendría que haber presupuesto para que estudien en el exterior. Pero también sería preciso asegurar que a su regreso tengan trabajo. Y por último, sería necesario disponer de becas para que los estudiantes y los docentes trabajen full time sus tesis. En este país, tal vez algún chico muy rico sea full time, pero ni los profesores ni los estudiantes son full time.
-Hay pensadores que, acerca de la globalización, sostienen que en realidad, todavía no hay acuerdo para fechar su inicio, sus objetivos y las consecuencias que produce. ¿ Qué opina al respecto?
-La fecha exacta de comienzo de la globalización es el 12 de octubre de 1492. Creo que ha habido un flujo de mercancías por medio del que los países del tercer mundo venden a los países del primero - Europa y Estados Unidos - a vil precio alimentos, tabaco, azúcar y materias y a cambio les dan, principalmente, armas y cigarrillos. Precisamente, ése fue uno de los temas en mi disertación "Tres mitos de nuestro tiempo: virtualización, globalización, igualamiento" cuando me entregaron el Dr. Honoris Causa.
-Hay un texto de Foucault...
-¿ De quién?
-De Foucault
-Ay..., por favor, hablemos en serio.
-Él hace una distinción entre el intelectual específico y el intelectual universal...
-No me interesa discutir sobre Foucault, es un charlatán. Es una pérdida de tiempo. ¿Por qué no leen a gente seria?
-La referencia a Foucault era simplemente para preguntarle acerca del rol de los intelectuales hoy en día.
-El primer rol es buscar la verdad. El segundo es difundirla. Es decir, investigar y enseñar. Si no investigan auténticamente y si lo que enseñan son pavadas, entonces no son intelectuales, son farsantes.
-¿Qué opina de los intelectuales en las ciencias sociales?
-Dentro de los estudios sociales hay gente seria y hay charlatanes como Derridá, Foucault, Habermas, Castells, entre muchos otros. Ellos hablan y hablan, pero nunca hacen investigación empírica, y no digamos teórica. No es gente seria. Además, son casi todos irracionalistas, anticientíficos. Por ejemplo, Habermas es hermeneútico, todo lo contrario a la ciencia.
-¿Qué opina de la posmodernidad?
-Es irracionalismo. Es la tentativa de volver a la época anterior a la Ilustración.
-¿Y por qué cree que tiene bastante eco?
-Porque es fácil. Es mucho más fácil denostar contra la razón que afilarla y usarla. Es el camino de los haraganes. Creo que hay que ser pre - posmodernos. Hay que volver al siglo XVIII, es decir a la Ilustración
Andrea V. Valsagna y Gustavo N. Risso Patrón, Prensa Institucional Universidad Nacional del Litoral

04 julho 2012

Revisão do papel do Positivismo no desenvolvimento da Matemática no Brasil

Artigo publicado na Revista Pesquisa Fapesp, n. 196, p. 78-81, jun.2012. O original pode ser lido aqui.

Ele faz uma revisão do papel do Positivismo no desenvolvimento do ensino e das pesquisas matemáticas no Brasil. Ele evidencia que se começa a deixar para trás muito da criticidade de manual (de origem liberal, católica e/ou marxista), que vê no Positivismo a fonte de todos os males do país (reais e imaginários).

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Debate sobre matemática positivista abriu espaço para a ciência pura no Brasil
Carlos Haag, da Revista Pesquisa FAPESP
Para muitos historiadores, a fundação da Universidade de São Paulo, em 1934, marcou, enfim, o início da ciência moderna no Brasil: “É uma revolução intelectual e científica que mudará as concepções econômicas e sociais dos brasileiros”, nas palavras de Sérgio Milliet. Até então, afirmam, o país amargara um “isolamento científico”, culpa do grupo “autoritário e anticientificista” que impôs “ordem e progresso” à bandeira e aos brasileiros. Assim, numa curiosa distorção, o positivismo, cujo credo era a fé na ciência como alavanca de progresso e civilização, acabou “demonizado” como o grande obstáculo ao desenvolvimento científico nacional.
A acusação ganha contornos polêmicos ao recair, em especial, sobre a disciplina vista pelo francês Auguste Comte (1798-1857), criador do positivismo, como a base da educação: a matemática. “O positivismo à brasileira da Primeira República (1889-1930) foi, e ainda é, analisado de maneira simplista e generalizadora por causa da sua visão ‘cientificista’, que preconizava ciên-cia e matemática pragmáticas, instrumentos práticos para solucionar os problemas nacionais com progresso material e modernização social. Leituras apressadas e interessadas os acusam de supervalorizar a ciência aplicada, criando constrangimentos para o avanço científico, cujo motor seria a ciência pura e desinteressada”, explica o matemático Rogério Monteiro de Siqueira, professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH/USP), autor da pesquisa Modernismo, modernidade e modernização nas ciências matemáticas brasileiras, apoiada pela FAPESP.

“Claro que antes dos anos 1930 não se fazia aqui uma matemática como a europeia.  Mas não podemos simplificar e dizer que não tivemos qualquer tipo de  desenvolvimento matemático antes da USP. Existiam, sim, indivíduos publicando trabalhos com regularidade e originalidade em revistas internacionais. Logo, dizer que os positivistas impediram que se tentasse fazer uma ciência pura, como querem seus detratores de ontem e de hoje, é um engano”, avisa. “Ainda assim muitos hoje insistem que só houve avanços nas ‘escapadas do positivismo’. Isso joga uma nuvem sobre o passado, reduzindo o progresso matemático a um panteão restrito de antipositivistas ‘modernos’ como Otto de Alencar (1874-1912), Manuel de Amoroso Costa (1885-1928), Theodoro Ramos (1895-1935) e Lélio Gama (1892-1981)”, avisa Rogério.
O embate entre ciência pura e aplicada é muito mais complexo e é pouco estudado, como o pesquisador descobriu ao analisar os artigos das revistas especializadas. “Havia matemáticos ‘positivistas’ que criticavam Comte. O Brasil não teve um positivismo único, radical, mas dividiu-se em várias facções com diferentes graus de ortodoxia”, diz. Basta ver que a figura de proa do movimento no país, Benjamin Constant de Magalhães (1833-1891), republicano de primeira grandeza e professor de matemática em escolas militares, objetava abertamente as leituras comtianas da matemática. “É preciso também conhecer a produção dos ‘modernos’ na sua totalidade. Hoje há apenas um retrato incompleto dos debates, dos quais se extraíram as variáveis políticas e os jogos de interesses. Pinçam-se apenas os artigos ‘modernos’ que escreveram, deixando de lado os muitos outros sobre questões aplicadas. ‘Esquece-se’ também que os ditos ‘pioneiros da matemática pura’ eram ‘híbridos’, pois, além dos teoremas, também aceitaram cargos públicos e escreveram sobre a prática da engenharia, não se limitando à ‘ciência desinteressada’”, diz.

Afinal, mesmo Amoroso Costa, que responsabilizava o positivismo pela situação precária das ciências exatas no Brasil, viu-se obrigado a reconhecer que “o nosso terreno é ainda impróprio ao cultivo dessa suprema flor de espírito que é a ciência pura, contemplativa e desinteressada”. “Essa briga era sintoma da readequação de forças políticas nas ciências nacionais, onde o grupo de engenheiros que investiu numa matemática alheia às suas aplicações, seguindo um padrão então em hegemonia na Europa, viu-se aos poucos desvalorizado e sem espaço. Ao mesmo tempo, isso ocorreu num ambiente em que a matemática, cada vez mais, era vista como instrumento de trabalho prático para o progresso do país”, analisa Rogério. Alijados, passam a defender a criação de um “lócus” institucional para a ciência “descompromissada”, a universidade, que dominariam.

Efetivamente, um pequeno grupo radical de positivistas era contrário à criação desse espaço, cientes da queda de braço em curso, mas muitas outras facções não comungavam dessa “censura”, tendo uma postura não dogmática dos textos de Comte. “Também não se pode esquecer que a influência do positivismo na Primeira República não durou muito tempo e a geração de 1870, a cúpula militar invadida pelos ideais reformistas sociais de Comte, foi alijada do poder pelas oligarquias”, explica Angela Alonso, professora do Departamento de Sociologia da USP e autora do estudo Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império (2002). O grupo queria a cisão entre civis e militares, com um notório desprezo pelos “bacharéis” e sua visão liberal e de conformismo romântico para o Brasil monárquico. Para essa contraelite de militares, engenheiros e médicos, todos com formação técnico-científica, o positivismo confirmou a consciência que tinham do fosso existente entre o país e a “civilização”.

Canhão

“Essa é uma particularidade dos positivistas brasileiros que, em vez de pensar a doutrina em termos religiosos, a usam para discutir questões políticas num terreno social. A ciência, então, emerge como a fonte de soluções”, observa. Adeptos da “ilustração brasileira”, defendiam a educação como panaceia e se viam como participantes de uma “missão”: conhecer a realidade social e a natureza brasileiras, superando obstáculos com ciência e soluções práticas, e revelar, assim, as potencialidades do território. “Não era valorizar a ciência aplicada em detrimento da ciência pura, mas praticar o conhecimento científico com uma destinação social associada ao papel fundamental atribuído ao cientista no novo Brasil positivista”, explica Luiz Otávio Ferreira, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, da Fiocruz, e coordenador do estudo O ‘ethos’ positivista e a institucionalização da ciência no Brasil (2007).
“Logo, não havia como abrir espaço para ‘matemática pura’ nesse desbravamento urgente dos territórios. Mas surgiram vozes divergentes, a partir da criação, em 1858, da Escola Central de Engenharia, que cindiu o ensino da engenharia entre civis e militares, grupo que vai abraçar, nas academias militares, o positivismo”, observa Ferreira. Os matemáticos “puros” alinharam-se aos engenheiros civis. O conflito abriu-se em 1896, quando Benjamin Constant de Magalhães, como ministro da Instrução Pública, encerrou os cursos de ciências físicas, matemáticas e naturais na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. “Mesmo que o encerramento possa ser atribuído ao fato de que desde 1874 apenas 67 alunos se matricularam, para alguns professores o que se pretendia era a imposição, pelos positivistas que dominavam a instituição, da visão utilitarista das ciências”, explica Ferreira.
Para os “engenheiros cientificistas” era um golpe destinado a roubar-lhes espaço. Em 1898 veio a reação. Otto de Alencar, um ex-positivista, publicou o artigo “Alguns erros de mathematica na Synthese subjectiva de A. Comte”, o primeiro “tiro” da “guerra” entre “puros” e “aplicados”. Era munição de pequeno calibre, mas serviu como bucha para o “canhão” acionado, em 1918, nas conferências de Amoroso Costa. “Há nos países novos um fanatismo pelo progresso material que ignora que exista um ideal científico superior ao homem que fabrica mil carros por dia ou opera um apêndice em 10 minutos. A opinião é unânime: a ciência é útil, porque os engenheiros, médicos e militares precisam dela. Não vale a pena fazê-la no Brasil: é mais cômodo e barato importar da Europa. Essa é a mentalidade que predomina entre os educadores e aqueles que nos governam”, atacou o matemático.
Contemplativos

Uma década mais tarde, Lélio Gama, no Rio, e Theodoro Ramos, em São Paulo, foram à luta para “reaver” o espaço da ciência “desinteressada”, o que ajudou a criação da USP e da carioca Universidade do Brasil, em 1939. Mas havia espaço para as “ciências contemplativas” antes dos anos 1930? “Na Europa, matemática, física e engenharia logo foram separadas, ao contrário do Brasil. Isso foi possível por causa do processo acelerado de industrialização europeu no século XIX. Aqui não existia demanda de conhecimento técnico para todas as áreas do conhecimento, como houve, por exemplo, no caso da medicina”, observa Rogério. Tampouco as críticas antipositivistas eram “puras”.
“As pechas de ‘imprecisão’ e ‘falta de rigor científico’ que jogavam sobre os positivistas são discutíveis. Os matemáticos italianos, por exemplo, eram chamados de ‘poetas’ por uma suposta imprecisão e não se culpou o positivismo por isso. O ‘rigor’ reclamado não era exercido nos escritos dos ‘modernos’ brasileiros, muito aquém de como se trabalhava na Europa”, fala o pesquisador. “O que se almejava era criar uma ‘diferenciação’: a tese de Theodoro Ramos, por exemplo, usava teoria dos conjuntos menos em prol da ‘matemática pura’ do que como estratégia de luta”, diz Rogério.
Mas quais seriam as motivações dos “puros”? “Eles tinham uma sensação de descompasso, de ‘ideias fora do lugar’. Muitos haviam viajado ao exterior e voltaram com os novos conceitos científicos praticados na Europa”, avalia Rogério. Para o pesquisador, não se pode negar a presença constante de um componente político, de luta entre grupos que se excluíam e queriam seu lugar ao sol. “Isso se evidencia a partir da ligação de Ramos com a Revolução de 1930. Não foi por acaso que ele trouxe matemáticos italianos, muitos deles fascistas, para a USP, para agradar Vargas, um admirador do Duce. A ação igualmente atendeu às demandas da grande comunidade italiana paulista”, fala.
Na divisão, alemães e italianos ficaram com as exatas e os franceses com as humanas. A primeira geração de matemáticos dos anos 1950 é “herdeira” dessa escolha, incluindo-se nisso um desprezo pela didática, incutido por mestres italianos como Luigi Fantappié. A matemática nacional, cuja projeção no exterior se iniciou nos anos 1960, formou-se a partir de um “imbróglio intelectual”. “Os adeptos das ‘ciências puras’ se apropriavam de artigos que vinham do exterior sem, no entanto, conhecer o contexto e o debate em que estes estavam inseridos. Eram apropriados de forma direta e, assim, criou-se uma mistura que gerou um tipo ‘nacional’ de matemática”, nota Rogério.
Assim, a “demonização” do positivismo merece uma revisão. “As críticas das ideias científicas positivistas não foi apenas uma empreitada de jovens matemáticos inovadores que queriam romper o ciclo do arcaico conservadorismo científico brasileiro. Essa interpretação ignora que as fronteiras entre o arcaico e o moderno resultam de processos de construção social”, observa Ferreira. O positivismo foi a base para o desenvolvimento de uma classe de cientistas que era sua adversária. “Foram os positivistas que propiciaram os conteúdos ideológicos necessários à formação da categoria ‘cientista’. O modelo de intelectual positivista, objetivo e preciso, reformador social ou não, fez escola entre os que queriam ser vistos como cientistas.”

02 julho 2012

"Apelo aos conservadores" em francês

Para quem tiver interesse, uma das principais obras propriamente políticas de Augusto Comte, o Apelo aos conservadores (Appel aux conservateurs, de 1856) pode ser lido no original em francês, em versão digitalizada e disponível aqui.

No Apelo, Augusto Comte aborda as características políticas, sociais e intelectuais dos principais grupos que disputavam a primazia na França do século XIX - especificamente, os "revolucionários", que hoje chamaríamos de "esquerda", e os retrógrados, que hoje chamaríamos de "direita". Ou, nos termos comtianos, o partido do progresso e o partido da ordem.

Em face desses dois partidos - cujas disputas incessantes não valorizavam de fato nem a ordem nem o progresso, acarretando apenas a contínua desordem e a contínua anarquia -, Comte propõe a aliança entre as partes assimiláveis do partido da ordem e do partido do progresso, no esforço de constituir um partido que fosse ao mesmo tempo da ordem e do progresso.

Evidentemente, os grupos específicos que Augusto Comte aborda no seu livro são específicos da sua época. Todavia, uma análise mais cuidadosa logo evidencia que os termos utilizados, a lógica empregada, os contornos gerais dos partidos descritos - e, portanto, as recomendações feitas pelo fundador da Sociologia - são tão válidos hoje quanto eram em 1856, tanto aqui no Brasil quanto na França.

01 julho 2012

Notícia sobre o projeto de lei impondo a oração nas escolas de Apucarana


O vínculo original da matéria está aqui.

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Vereadores de Apucarana decidem se crianças serão obrigadas a rezar o Pai-Nosso antes da aula

01/07/2012 - 16h19
Fernando César Oliveira
Repórter da Agência Brasil
Curitiba – A Câmara Municipal de Apucarana (PR) analisa na sessão desta segunda-feira (2), em segunda votação, projeto de lei que pretende instituir a oração diária do Pai-Nosso em todas as escolas da rede municipal. "Nos horários de entrada das primeiras aulas de cada período, nos estabelecimentos oficiais de ensino da rede municipal, deverá ser realizada a oração universal do Pai-Nosso", diz o projeto, aprovado em primeira votação, por unanimidade, no último dia 25.
Autor da proposta, o vereador José Airton Araújo (PR), que ainda trabalha como vendedor ambulante e é conhecido como Deco do Cachorro-Quente, argumenta que a ideia reduziria os índices de violência e os casos de agressões de alunos contra professores. "Com uma oração, a criança já entra na sala de aula mais tranquila", justificou o parlamentar, em entrevista à Agência Brasil.
Localizada na região norte do Paraná, a 370 quilômetros de Curitiba, Apucarana tem 11 vereadores. O regimento do Legislativo municipal prevê três votações para um projeto ser aprovado. A reportagem daAgência Brasil apurou que, desde 2009, há uma lei sobre o mesmo tema em vigor na cidade. A legislação, porém, parece ser desconhecida pela maioria da população da cidade e não vem sendo cumprida.
Trata-se da Lei Municipal 217/2009, que obriga os professores da rede municipal a ministrar, em sala de aula, a leitura diária de um trecho da Bíblia, de livre escolha, seguida de uma oração. A lei também é de autoria do vereador José Airton. "Essa lei só existe no papel", diz Clotilde Corrêa Gomes, professora de inglês e português em Apucarana. Outras pessoas ouvidas pela reportagem também revelaram que sequer tinham conhecimento acerca da lei em vigor.
Questionado, o vereador Deco negou que a norma esteja sendo ignorada. Em defesa de seu novo projeto, o parlamentar, que é membro da igreja Assembleia de Deus, elogia o conteúdo da oração especificada em sua proposta. "A oração do Pai-Nosso é universal, não é só dos católicos e evangélicos", alega José Airton. "Ela é perfeita, um testemunho de vida em cada palavra."
A professora é contra a medida. "Acho um absurdo. Ao instituir uma oração estritamente cristã, o projeto tira o direito das crianças que vêm de famílias de outras crenças, como umbanda, candomblé, budismo, espiritismo, ou ainda das que não têm religião alguma", diz Clotilde. "É uma intimidação, uma forma de bullying."
Mãe de dois alunos que frequentam escolas de ensino fundamental em Apucarana, Alexandra Deretti concorda com a professora. "Eu sou católica, mas sou contra uma imposição desse tipo."
Apucarana tem cerca de 120 mil habitantes e pouco mais de 58,5 mil estudantes matriculados em escolas públicas e particulares. O Núcleo Regional da Secretaria de Estado da Educação já se pronunciou dizendo que as escolas não devem adotar propostas que contrariem a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da educação.
"A gente até entende as boas intenções do vereador, mas não cabe ao Estado impor valor religioso algum. A proposta tende a aumentar a intolerância", avalia Gustavo Biscaia de Lacerda, sociólogo da Universidade Federal do Paraná. "Também é questionável estabelecer relação de causalidade entre religião e violência, já que a quantidade de pessoas presas e que são adeptas de alguma religião não é pequena."
A Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos informou que pretende denunciar o caso ao Ministério Público do Paraná. No último mês de abril, o Tribunal de Justiça da Bahia derrubou uma lei similar aprovada na cidade de Ilhéus, com o argumento de que se tratava de proselitismo religioso, o que é inconstitucional.
Em março deste ano, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou procedente um pedido de retirada dos crucifixos dos prédios da Justiça gaúcha. "A laicidade é a garantia, pelo Estado, da liberdade religiosa de todos os cidadãos, sem preferência por uma ou outra corrente de fé", diz trecho da decisão. "O Estado não tem religião. É laico. Assim sendo, independentemente do credo ou da crença pessoal do administrador, o espaço das salas de sessões ou audiências, corredores e saguões de prédios do Poder Judiciário não podem ostentar quaisquer símbolos religiosos."
Edição: Lana Cristina

30 junho 2012

Aumento da diversidade religiosa

Sobre o texto "Revolução quase silenciosa"


Reproduzo abaixo o texto de Helio Schwartzman, de 30 de junho de 2012. O vínculo original do texto pode ser encontrado aqui.

Concordamos de modo geral com as observações de H. Schwartz. De fato, a mudança demográfico-religiosa no Brasil é bastante ampla e séria e sua tendência é pela "evangelização" do país, em detrimento do catolicismo. 

Essa mudança é de grandes proporções e feita sem sangue; todavia, convém notar que, a despeito do aumento da diversidade religiosa, ela também - e principalmente, talvez - é acompanhada do aumento da intolerância em geral e do fanatismo religioso. Assim, apesar de até agora não ter havido conflitos mais sérios, a tendência é que o aumento do número de evangélicos no país piore as condições das liberdades civis, políticas e sociais - ou seja, que crie "revoluções barulhentas" e mesmo violentas.

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30/06/2012 - 03h00

Revolução quase silenciosa

DE SÃO PAULO

Dados do IBGE mostram que a proporção de católicos no Brasil continuou caindo entre 2000 e 2010 e que, pela primeira vez, verificou-se também uma redução em seu número absoluto. Isso tudo era mais ou menos esperado. A questão que intriga os especialistas é saber se há ou não um fundo do poço, um piso abaixo do qual os católicos não despencam.
E uma análise dos números de 2010 sugere que não. No ainda inédito artigo acadêmico "A dinâmica das filiações religiosas no Brasil entre 2000 e 2010", os demógrafos José Eustáquio Diniz Alves, Luiz Felipe Walter Barros e Suzana Cavenaghi mostram que a população evangélica tem proporcionalmente mais mulheres e jovens, e menos idosos. Isso significa que apenas pelo efeito da inércia demográfica, ou seja, mesmo que não houvesse novas conversões, o rebanho evangélico já cresceria mais do que o católico.
Mais interessante ainda, o texto mostra que o colar da região metropolitana do Rio de Janeiro, excluída a capital, funciona como uma espécie de "eu sou você amanhã" para o Brasil. O que ocorre nessa área em termos de religião acaba se repetindo no país 20 ou 30 anos depois.
E, olhado para esse conurbado, verificamos que os católicos são só 39%, enquanto os evangélicos já chegam a 34%. Mantidas as tendências atuais, no Brasil, até 2030, os católicos serão menos de 50% e, até 2040, deverá haver empate entre as filiações de católicos e evangélicos. Detalhe importante: os católicos caem com mais rapidez onde é maior a pluralidade de denominações. Ou seja, diversidade gera diversidade.
Ao que tudo indica, o Brasil caminha para um feito relativamente raro na história das nações, que é o de mudar sua religião hegemônica. E deve fazê-lo sem derramamento de sangue ou autos de fé. Só não será uma revolução silenciosa, brincam os autores, porque evangélicos não costumam respeitar a lei do silêncio.
Hélio Schwartsman
Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve na versão impressa da Página A2 às terças, quartas, sextas, sábados e domingos e às quintas no site da .

22 junho 2012

"Preconceitos acadêmicos: um estudo de caso"



Reproduzo abaixo o texto "Preconceitos acadêmicos: um estudo de caso", de autoria de Ramon Cardinali. Esse texto toma as idéias de Augusto Comte e Edgar Morin para, contrapondo-as, indicar de maneira concreta como os preconceitos acadêmicos muitas vezes são meramente isso - preconceitos - e, a partir de rótulos, impedem que se abordem teorias, idéias e abordagens que podem ser frutíferas.


A postagem original do texto original está disponível aqui.


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Preconceitos acadêmicos: um estudo de caso

Autor: Ramon Cardinali


O preconceito acadêmico é um fenômeno comum e razoavelmente compreensível.
 Nós simplesmente não temos tempo e recursos suficientes para nos aprofundar no estudo de todasescolas filosóficas, psicológicas, sociológicas etc., e em decorrência disso, as chances de que nós venhamos a desenvolver concepções reduzidas/simplificadas de tudo aquilo que foge aos nossos interesses mais imediatos são bastante elevadas. Soma-se a isso o fato de inúmeros fatores sócio-culturais (dentro e fora do âmbito acadêmico) se agregarem no sentido de favorecer o surgimento e a manutenção de uma espécie de "culto à autoridade", onde muito do que é dito pordoutoresprofessores e cientistas é tomado como verdade absoluta e instantânea.

Quando alguém afirma que não gosta da Psicanálise porque ela "interpreta todos os fenômenos humanos apenas em termos de sexualidade" (ou em versão taquigráfica: pra Psicanálise "tudo é sexo!"), evidencia a formação daquilo que estou chamando de um preconceito acadêmico - no caso, uma descrição excessivamente simplificada/reduzida da teoria psicanalítica. Será que esta pessoa - nosso crítico fictício da Psicanálise - já se debruçou sobre as discussões a respeito da noção de "sexo" em Freud? Mais do que isso, será que ela tem o mínimo de interesse e ou condições (tempo e recursos principalmente) de fazer isto? Provavelmente ela construiu uma concepção simplificada da Psicanálise baseada única e exclusivamente naquilo que ouviu falar ou leu de maneira despretenciosa.¹

Por outro lado, há momentos em que esta redução/simplificação se torna um valioso recurso argumentativo, adotado de maneira consciente por acadêmicos que desejam ressaltar a "profundidade" ou relevância de uma determinada concepção em detrimento de outra - este procedimento se enquadra bem naquilo que se convencionou chamar de falácia do espantalho.
Um exemplo da argumentação falaciosa descrita acima pode ser encontrado nos momentos em que o psicólogo evolucionista Steven Pinker se propõe a criticar o behaviorismo de B.F. Skinner, simplificando ao máximo a concepção skinneriana com o intuito tornar sua concepção (a Psicologia Evolucionista) ainda mais relevante para o público. (Mais informações sobre este caso específico podem ser encontradas aqui)

A formação de preconceitos acadêmicos como os apresentados acima é recorrente no meio acadêmico e de maneira geral nenhuma concepção-a-respeito-de-alguma-coisa está imune a este fenômeno. 

Para nos aprofundarmos um pouco mais neste problema, gostaria de fazer uma breve digressão, contrapondo alguns trechos da obra de dois autores: Auguste Comte (1798-1857) e Edgar Morin(1921-). O primeiro é muitas vezes conhecido como o "pai da Sociologia" e fundador doPositivismo - o segundo, como idealizador da epistemologia da Complexidade, ou pensamento complexo. Devo ressaltar de antemão que foge completamente às minhas pretensões elaborar uma exposição e análise completa da obra destes autores. Irei apenas contrapôr alguns trechos específicos de textos específicos que me permitirão explicitar ainda mais algumas das consequências negativas do preconceito acadêmico.

Em determinado momento da produção de suas obras, tanto Morin quanto Comte elaboraram críticas ao processo de "hiperespecialização" (nos termos de Morin) ou "especialização excessiva" (nos termos de Comte) do saber científico. Em linhas gerais, trata-se de uma crítica a uma constatação feita por ambos, a saber, de que a ciência tem progredido através da excessiva compartimentalização de seus problemas - o que acaba por resultar em profissionais especializados, pouco capazes de dialogar com as demais disciplinas científicas. Ademais, a multiplicação desenfreada das especialidades científicas aumenta as fronteiras interdisciplinares e reduz a probabilidade de que o conhecimento produzido por estas diversas disciplinas possam ser integrados em visões globais, coerentes e bem contextualizadas.

Deixemos os próprios autores nos ajudarem no restante desta digressão. Meus comentários e grifos apenas ressaltarão os pontos de contato entre o pensamento de ambos.

Este processo de especialização excessiva das disciplinas científicas tem o seu lado positivo, como afirma Comte:
"É a essa repartição de diversas espécies de pesquisas entre diferentes ordens de sábios que devemos, evidentemente, o desenvolvimento tão notável que tomou, enfim, em nossos dias, cada classe distinta dos conhecimentos humanos[...]"²
Entretanto, já na primeira metade do século XIX, Comte começa a vislumbrar alguns aspectos negativos deste processo:
"Embora reconhecendo os prodigiosos resultados dessa divisão, vendo de agora em diante nela a verdadeira base fundamental da organização geral do mundo dos cientistas, é impossível não se aperceber dos inconvenientes capitais que engendra em seu estado atual, em virtude da excessiva particularidade das idéias de que se ocupa exclusivamente cada inteligência individual."
E ele continua: "É urgente ocupar-se com isso de modo sério, pois tais inconvenientes que, por sua natureza, tendem a crescer sem parar, começam a vir a ser muito sensíveis. Todos o admitem, as divisões, estabelecidas para a maior perfeição de nossos trabalhos, nos diversos ramos da filosofia natural, são por fim artificiais."
Em seguida, Comte chama a atenção para a importância de remediarmos "este mal antes que se agrave", e afirma que: 
"[...]hoje cada uma dessas ciências tomou separadamente extensão suficiente para que o exame de suas relações mútuas possa dar lugar a trabalhos contínuos, ao mesmo tempo que essa nova ordem de estudos torna-se indispensável para prevenir a dispersão das concepções humanas."
Comte expõe a sua solução da seguinte maneira:
"O verdadeiro meio de cessar a influência deletéria que parece ameaçar o porvir intelectual, em conseqüência duma demasiada especialização das pesquisas individuais, não poderia ser, evidentemente, voltar a essa antiga confusão de trabalhos, que tenderia a fazer retroceder o espírito humano e que se tornou hoje, felizmente, impossível. Consiste, ao contrário, no aperfeiçoamento da própria divisão de trabalho. Basta fazer do estudo das generalidades científicas outra grande especialidade.
Que uma classe nova de cientistas, preparados por uma educação conveniente, sem se entregar à cultura especial de algum ramo particular da filosofia natural, se ocupe unicamente, considerando as diversas ciências positivas em seu estado atual, em determinar exatamente o espírito de cada uma delas, em descobrir suas relações e seus encadeamentos, em resumir, se for possível, todos os seus princípios próprios num número menor de princípios comuns, conformando-se sem cessar às máximas fundamentais do método positivo. Ao mesmo tempo, outros cientistas, antes de entregar-se a suas especialidades respectivas, devem tornar-se aptos, de agora em diante, graças a uma educação abrangendo o conjunto dos conhecimentos positivos, a tirar proveito das luzes propagadas por esses cientistas votados ao estudo de generalidades e, reciprocamente, a retificar seus resultados, estado de coisas de que os cientistas atuais se aproximam cada vez mais. [...] Existindo uma classe distinta, incessantemente controlada por todas as outras, tendo por função própria e permanente ligar cada nova descoberta particular ao sistema geral, não cabe mais temer que demasiada atenção seja dada aos pormenores, impedindo de perceber o conjunto."
Em suma, Comte propõe um trabalho de reflexão constante sobre o modo como às disciplinas científicas se relacionam umas as outras e as eventuais consequências destes entrelaçamentos. Além disso, propõe também um processo educacional que conscientize os futuros cientistas da existência de tais relações e do modo como elas ocorrem.

Ao contrário de Comte (autor pouco reconhecido por propostas como a apresentada acima), Morin é um autor contemporâneo que obteve grande reconhecimento no final do século XX por elaborar uma proposta que, pelo menos em alguns aspectos, se assemelha à de Comte: a noção depensamento complexo.

Morin, assim como Comte mais de um século antes, também elabora sua reflexão sobre o problema da hiperespecialização do conhecimento científico (apesar de em alguns momentos apontar o "positivismo" como uma corrente totalmente contrária à sua epistemologia da complexidade), e afirma que a ciência atual tem necessidade
"[...] não apenas de um pensamento apto a considerar a complexidade do real, mas desse mesmo pensamento para considerar sua própria complexidade e a complexidade das questões que ela levanta para a humanidade. É dessa complexidade que se afastam os cientistas não apenas burocratizados, mas formados segundo os modelos clássicos do pensamento. Fechados em e por sua disciplina, eles se trancafiam em seu saber parcial, sem duvidar de que só o podem justificar pela idéia geral a mais abstrata, aquela de que é preciso desconfiar das idéias gerais!"³
No momento em que condena os chamados "modelos clássicos de pensamento", ele frequentemente se refere ao pensamento moderno (em contraposição ao pós-moderno), que tem o Positivismo como um de seus expoentes.

De todo modo, Morin sugere que passemos a fazer "ciência com consciência" - uma ciência capaz de pensar o seu próprio processo de desenvolvimento das fronteiras interdisciplinares e que esteja apta a construir "pontes" que conectem uma disciplina a outra, promovendo um quadro que ele chama de transdisciplinaridade. Em suas palavras:
"De toda parte surge a necessidade de um princípio de explicação mais rico do que o princípio de simplificação (separação/ redução), que podemos denominarprincípio de  complexidade. É certo que ele se baseia na necessidade de distinguir e de analisar, como o precedente, mas, além disso, procura estabelecer a comunicação entre aquilo que é distinguido: o objeto e o ambiente, a coisa observada e o seu observador. Esforça-se não por sacrificar o todo à parte, a parte ao todo, mas por conceber a difícil problemática da organização[...]
Afirma por fim:
"Precisamos, portanto, para promover uma nova transdisciplinaridade, de um paradigma que, decerto, permite distinguir, separar, opor, e, portanto, dividir relativamente esses domínios científicos, mas que possa fazê-los se comunicarem sem operar a redução. O paradigma que denomino simplificação (redução/separação) é insuficiente e mutilante. É preciso um paradigma de complexidade, que, ao mesmo tempo, separe e associe, que conceba os níveis de emergência da realidade sem os reduzir às unidades elementares e às leis gerais."
Em mais de uma oportunidade Morin citou um pensamento do filósofo Blaise Pascal para ilustrar o pensamento complexo: "é impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, como é impossível conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes". Pelo que pudemos observar, a proposta de Comte envolve um processo semelhante - se não idêntico.
Morin dá o nome de pensamento complexo à sua proposta justamente por definir "complexus" como "aquilo que é 'tecido' junto'", justificando assim a necessidade de uma abordagem transdisciplinar, que dê conta de lidar com o mundo de forma integrada e não mutilada - da mesma forma que Comte já considerava as fronteiras entre disciplinas científicas como criações humanas; artificiais.
  
Não obstante, assim como também pudemos ler nas citações anteriores de Comte, Morin salienta a importância de se reformular o processo educacional nos moldes de seu pensamento complexo - chegando ao ponto de explicitar esta proposta em um livro chamado "Os sete saberes necessários à educação".

O problema da hiperespecialização do conhecimento científico e da necessidade de promoção da transdisciplinaridade é extremamente interessante, e, sem dúvidas, continuará fazendo parte de diversas discussões filosóficas contemporâneas. O fato de podermos identificar um autor da primeira metade do século XIX e, muitos anos depois, outro da segunda metade do século XX discorrendo sobre esta questão evidencia a pertinência histórica do tema. Entretanto, minha digressão se encerra aqui. Por ora, o objetivo desta postagem é utilizar deste diálogo Comte-Morincomo um meio, e não como fim.

O que importa no momento é a constatação de que, na medida em que deixamos os próprios autores dialogarem, através da sucessão de (por vezes longas) citações, podemos identificar o quão semelhante é a descrição do problema e a solução por eles proposta. Apesar de utilizarem vocabulários distintos, a existência de convergências no pensamento dos dois autores é notável.

O motivo de ter optado por contrapôr trechos da obra de Comte com a de Morin é justamente pelo fato do primeiro ser um dos maiores alvos de preconceitos acadêmicos, enquanto o segundo goza de um prestígio proporcionalmente inverso. Concordo com Gustavo Biscaia de Lacerda - estudioso da obra de Comte e do Positivismo - quando este afirma que é "consensual no âmbito das ciências sociais que a palavra 'Positivismo' tem um significado negativo" e que este costuma ser o "grande arquiinimigo de várias das principais correntes teóricas nas ciências sociais". No meio acadêmico atual (e isso aparece inclusive na obra de Morin) o Positivismo é tomado como representante máximo da simplificação, do reducionismo e da ingenuidade filosófica.

O "como" e o "por que" do termo "Positivismo" ter adquirido uma conotação pejorativa é assunto muito longo e foge também aos objetivos deste post - podendo ser melhor compreendido à luzdeste artigo de Lacerda. O cerne da questão, entretanto, é a constatação de que o preconceito acadêmico em relação às idéias de Comte (por este ser considerado o "positivista paradigmático") é frequente, e faz com que muitos deixem de entrar em contato direto com a obra deste autor.

Impedindo que muitos estudantes ou profissionais entrem em contato com a grande e diversa obra de Comte, o preconceito acadêmico faz com que certos pensamentos e idéias que podem se mostrar extremamente relevantes e atuais - como este breve diálogo entre Comte e Morin nos mostra - passem completamente despercebidos. Por mais que os problemas da hiperespecialização das disciplinas científicas estejam muito mais evidentes hoje do que nos tempos de Comte, sua proposta de solução a esta questão deve ser julgada após uma leitura e análise mais detalhada, e não aprioristicamente, justificada pura e simplesmente por se tratar de um autor "ultrapassado" e vinculado a uma corrente filosófica já "superada".

O exemplo desenvolvido neste texto é apenas um dos inúmeros possíveis, e pode nos servir também para lembrar das consequências negativas envolvidas na prática do tal "culto à autoridade", mencionado no início desta postagem.

Por fim, se não temos tempo e recursos suficientes para entrar em contato direto com a obra de todos os autores, que pelo menos tenhamos consciência deste fato e sejamos mais humildes em relação às concepções que formamos sobre os diversos aspectos que compõe este universo que é o conhecimento humano.

Notas 

¹ Em encontro recente do nosso grupo "Círculo da Savassi", Vinícius Garcia me chamou a atenção para a existência de preconceitos semelhantes relacionados ao Liberalismo, apontando como é recorrente a interpretação (por demais simplista e apressada) de que o liberalismo - com sua defesa da liberdade individual - se vincula necessariamente à uma defesa do livre-arbítrio.

² Todas as citações de Auguste Comte foram retiradas do livro Curso de Filosofia Positiva.Originalmente de 1848 - p.52/55. Versão digitalizada disponível em:http://search.4shared.com/postDownload/iYxCaxVS/COMTE_Curso_de_filosofia_posit.html 


³ Todas as citações de Edgar Morin foram retiradas do livro Ciência com Consciência 8ª edição, 2001 - p.9/10, 138 e 215.