Este blogue é dedicado a apresentar e a discutir temas de Filosofia Social e Positivismo, o que inclui Sociologia e Política. Bem-vindo e boas leituras; aguardo seus comentários! Meu lattes: http://lattes.cnpq.br/7429958414421167. Pode-se reproduzir livremente as postagens, desde que citada a fonte.
14 janeiro 2024
Oratório da família Teixeira Mendes
Manifesto: "Pela república, a favor da sociocracia, contra o terrorismo fascista"
Igreja
Positivista Virtual
O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim
Ordem e progresso – Viver às claras – Viver para outrem
Pela república, a favor da sociocracia, contra o terrorismo
fascista
1. Introdução
O
presente documento foi redigido pela Igreja
Positivista Virtual, no cumprimento de suas obrigações cívicas. Embora ele
tenha sido escrito tendo em vista os atos de vandalismo terrorista perpetrados
em 8 de Moisés de 169 (8 de janeiro de 2023), ele também pode, e deve, ser
visto como um prolongamento e uma conseqüência natural do abaixo-assinado
divulgado em 19 de Descartes de 168 (26 de outubro de 2022), intitulado “A
bandeira nacional republicana não é fascista”[1].
2. A evolução política republicana do Brasil
A
experiência histórica e a reflexão filosófica, com base no altruísmo e no
relativismo, ensinam que as instituições não são eternas nem são imóveis. Ao
contrário desses sonhos absolutos, em vez de buscarmos instituições
“perfeitas”, temos que buscar instituições adequadas a cada fase histórica de
cada sociedade e de cada povo. No caso das sociedades ocidentais, herdeiras da
tríplice transição intelectual, prática e afetiva própria à Grécia, a Roma e à
Idade Média, após a dupla transição moderna e a grande explosão da Revolução
Francesa de 1789, as instituições mais adequadas são as sociocracias, ou seja, repúblicas
sociais, caracterizadas pela separação entre os poderes temporal e espiritual,
pelo ascendente da fraternidade universal e pela cooperação pacífica entre
todos os servidores da Humanidade em busca do bem comum.
Esses
ideais passaram a ser aplicados de maneira mais ou menos sistemática no Brasil
desde os acontecimentos de 15 de novembro de 1889, quando se proclamou a
República no país, seguidos da instituição da fórmula “Ordem e Progresso” na
bandeira nacional, de um sistema cívico e universal de festas públicas e, acima
de tudo, da separação entre igreja e Estado. Apesar de diversos problemas
enfrentados pela república desde seu nascimento – entre os quais a lamentável,
mas quase inevitável, participação dos militares na mudança do regime, além da
participação da metafísica liberal na Constituição de 1891 –, graças à atuação
de Benjamin Constant a partir de 1889 o Brasil retomou a trilha sonhada por
Tiradentes e em seguida proposta por José Bonifácio.
O
amadurecimento social, político e institucional iniciado em 1889 foi
interrompido em 1930, que reverteu muitos dos avanços anteriores (a começar
pela separação entre igreja e Estado) e permitiu o avanço de filosofias e movimentos
estranhos aos valores sociocráticos, como o comunismo e, ainda mais, o
fascismo. Desde então, os ideais sociocráticos conscientes foram feridos de
morte, embora confusamente tenham sido retomados por outros movimentos. Em todo
caso, a terrível oscilação própria ao Ocidente após a Revolução Francesa, entre
os pólos opostos, contraditórios e complementares na oscilação, da anarquia e
da revolução, verificou-se no Brasil. De maneira limitada, essa dinâmica só
diminuiu após 1988, depois de várias décadas tumultuadas, quando uma nova
constituição foi promulgada, estabelecendo alguns compromissos sociais amplos e
criando instituições um pouco mais robustas.
3. A agitação retrógrada fascista no Brasil recente
Desde
meados da década de 2010, muitos anos de agitação social, política e
institucional tiveram por objetivo tão-somente a própria agitação por si só, resultando
em um governo federal cujo mandato caracterizou-se pela contínua tentativa de
destruir as instituições existentes. Entre os promotores dessa agitação
encontravam-se indivíduos e grupos que sonhavam com uma destruição generalizada
das instituições nacionais, de maneira supostamente “higiênica”; além disso,
também havia indivíduos e grupos que desejavam criar confusão social, política
e moral para usarem a anarquia resultante como desculpa e como instrumento para
obterem o poder – sendo que o poder deveria ser obtido sem qualquer outro
objetivo além da mera posse do poder, a ser usado como instrumento de
ostentação, de enriquecimento pessoal e familiar e, acima de tudo, contra os
adversários, transformados em inimigos a serem eliminados. Não por acaso, esses
dois grupos caracterizam-se por um profundo clericalismo, o que já os dispõem
ativamente contra qualquer concepção republicana, altruísta, pacifista e
fraterna da política e a favor de concepções apocalípticas da política e das
instituições. De diferentes origens sociais e morais, esses grupos
encontraram-se no denominador comum do fascismo.
Após
os anos de agitação social e moral e de destruição institucional, uma derrota
eleitoral parcial mas decisiva em 2022 conduziu os grupos fascistas a
realizarem uma última e enorme tentativa de implantar – necessariamente à força
– o seu regime fascista no Brasil: daí os aviltantes atos de vandalismo terrorista
que marcaram o domingo, dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília, sob os olhares
omissos e cúmplices de forças locais de segurança (incluindo das Forças
Armadas) e os olhares atônitos do conjunto da nação. Felizmente o novo governo,
então empossado havia apenas uma semana, retomou energicamente o controle da
situação, por vias institucionais diversas das sonhadas pelos fascistas
golpistas. É necessário termos clareza: esse perigo foi evitado na ocasião e
diminuído ao longo de 2023 – mas não foi extinto.
Em
face disso, é necessário dizermos com todas as letras: o fascismo deve ser combatido sem hesitações e sem tergiversações. Ele
consiste em uma retrogradação violenta, clericalista, antifraterna,
antialtruísta; em suma, o fascismo é antirrepublicano e antissociocrático.
Da mesma forma, em momentos anteriores da vida nacional as anistias foram com
freqüência instrumentos efetivos da reconciliação nacional; mas, no presente
caso, a anistia ao vandalismo terrorista de 8 de janeiro de 2023 implicará
necessariamente impunidade, cumplicidade e legitimação implícita do fascismo.
4. Os vícios da democracia e seus remédios
empíricos no Brasil
Nós,
positivistas, temos plena clareza de que a chamada “democracia” é
intrinsecamente limitada e que representa mal a sociedade e os interesses
coletivos. Por si só a democracia pode resultar em regimes autoritários e
violentos, quando segue a confusa metafísica clericalista que combina os
projetos de Rousseau com os de Montesquieu, que estimulam a corrupção com seu
incoerente sistema eleitoral combinado com os “três poderes”.
Apesar
desses problemas, é forçoso reconhecermos os seguintes aspectos próprios à vida
política e social brasileira.
1)
Por
um lado, a confusa proposta ativamente promovida por líderes políticos e
sociais, civis e militares em meio à anarquia, como resultado necessário dessa
anarquia, supostamente como solução da anarquia, é em todos os sentidos
inferior à realidade social, política e institucional desenvolvida no Brasil ao
longo dos últimos 35 anos, ou seja, desde 1988: conforme a experiência
histórica internacional e nacional já demonstrou fartamente, o fascismo estimula
e aumenta todos os defeitos e vícios da democracia, incluindo a corrupção
política, social e moral, além de restringir as liberdades públicas e promover
as retrogradações do clericalismo e da violência como instrumento de governo e
de relacionamento social.
2)
Por
outro lado, desde 1988 os limites morais e sociais próprios à democracia, na
medida do possível, foram contornados e minorados pela sabedoria prática de
muitos governantes ao longo do tempo, mesmo apesar das crenças pessoais desses
governantes, que – contraditoriamente para si mesmos mas respeitando as
exigências republicanas do país – promoveram a estabilização monetária como
precondição para a estabilização institucional e para as seguintes, necessárias
e urgentes ações de incorporação social do proletariado. Como se percebeu
durante o triste quadriênio 2019-2022, o fascismo atuou ativamente para
desestabilizar a moeda nacional, alienar o patrimônio nacional, corromper e
destruir as instituições, dividir e opor violentamente entre si as metades do
país, clericalizar a política, degradar o meio ambiente, estimular a violência
internacional e reverter celeremente a incorporação social do proletariado.
3)
Em
suma: desprezando a máxima republicana “só se destrói o que se substitui”, o
fascismo basear-se-ia na anarquia por ele mesmo estimulada, aumentaria todos os
vícios próprios à democracia e destruiria todas as conquistas republicanas.
5. Exortações finais
Em
face dessas considerações todas, a Igreja
Positivista Virtual vem por meio deste documento afirmar o repúdio ao
vandalismo terrorista de 8 de janeiro de 2023 e a todos os seus perpetradores,
que agiram como títeres de líderes civis e militares que desejam implantar no
Brasil o fascismo – líderes que, um ano depois dessas ações execráveis,
mantêm-se ainda livres, sem punição e apresentando todos os sofismas morais e
políticos possíveis para justificar os atos que promoveram. Da mesma forma, a Igreja Positivista Virtual vem por meio
deste documento associar-se às manifestações públicas que reafirmam a República
brasileira e seu caráter sociocrático.
Gustavo Biscaia de Lacerda
Sacerdote diretor da IPV
Curitiba, 8 de Moisés de 170 (8 de janeiro de 2024).
[1] O texto pode ser consultado aqui: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2022/10/a-bandeira-nacional-republicana-nao-e.html. O abaixo-assinado pode ser assinado aqui: https://peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR127657.
11 janeiro 2024
Internet Archive: criação da coleção "Positivism"
04 janeiro 2024
Augusto Comte: "Teoria geral da religião" (SPP II, cap. 1)
01 janeiro 2024
Celebração da Festa da Humanidade (170/2024)
No dia 1º de Moisés de 170 (1.1.2024) celebramos a Festa da Humanidade.
Tal celebração foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/Jxnmz) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/60V4k).
As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.
* * *
Celebração da Festa da Humanidade – 170 (2024)[1]
- Ela é a mais importante festa do Positivismo, celebrando o verdadeiro ser supremo, a nossa verdadeira providência, o objeto contínuo de nossa devoção, nossos pensamentos e nossas ações
o A celebração da Festa da Humanidade é ao mesmo tempo fácil e difícil
o Há muito a ser falado em homenagem à nossa deusa – e, por isso mesmo, corremos o risco de sermos ingratos ao deixarmos de mencionar algum aspecto mais ou menos central, ou mesmo algum aspecto secundário
o A data específica da Festa da Humanidade – dia 1º de Moisés, primeiro dia do ano – também é plena de referências e possibilidades:
§ Após a celebração da Festa Geral dos Mortos, na véspera, em que celebramos a subjetividade que vem antes de nós, celebramos hoje a grande continuidade humana
§ No calendário positivista concreto, o dia de hoje é consagrado a Prometeu, figura mitológica que, embora mitológica, integrando o panteão grego, aceitou sacrificar-se pelo bem da Humanidade
· Com Prometeu temos o culto fetichista do fogo – culto que é espontaneamente rememorado todos os anos, com os fogos de artifício celebrando a esperança, a renovação e a permanência da vida, a busca de paz e prosperidade[2]
· Além disso, cada vez mais o espetáculo dos fogos de artifício assumem um caráter mais de luzes e menos de barulho, indicando ao mesmo tempo a iluminação e o respeito aos nossos auxiliares animais e aos seres humanos mais frágeis (os autistas)
§ No calendário positivista abstrato, hoje se inicia o mês dedicado precisamente à Humanidade, com o vinculo mais universal possível, o religioso
o Em face das inúmeras possibilidades, temos que nos resignar em falar de algumas coisas e em deixar algumas outras de lado
§ Aquilo que não citamos, não é citado por desleixo, mas por impossibilidade prática
- Comecemos então nossa pequena celebração relembrando as palavras pronunciadas pelo apóstolo positivista inglês Richard Congreve na Igreja Positivista de Londres em todas as suas Festas da Humanidade – palavras repetidas por Miguel Lemos aqui no Brasil e, depois, também por Alfredo de Moraes Filho, de modo que nos orgulhamos de restabelecer e integrar uma tradição cultual que tem mais de 150 anos:
Prece à
Humanidade (Richard Congreve)
Com todos os centros de nossa fé onde quer que existam, com todos os seus discípulos esparsos, com os fiéis de todas as outras religiões ou crenças quaisquer, monoteístas, politeístas ou fetichistas, subordinando todas as distinções secundárias ao laço exclusivo de uma aspiração religiosa comum; com toda a raça humana, isto é, com o homem, onde quer que se ache e qualquer que seja a sua condição, subordinando também todas as distinções secundárias ao laço único de nossa comum Humanidade; com as raças animais que foram, durante a longa e trabalhosa ascensão humana, os nossos companheiros e auxiliares, como ainda o são; — estejamos hoje, nesta festa da Humanidade, unidos por uma consciente simpatia.
E não somente com os nossos contemporâneos que devemos hoje estar em comunhão simpática, mas também e sobretudo com essa parte preponderante de nossa espécie que representa o Passado. Comemoramos com reconhecimento os serviços de todas essas gerações que nos legaram o fruto de seus labores, desejando transmitir esta herança aumentada aos nossos sucessores. Nós aceitamos o jugo dos mortos.
Comemoramos também com gratidão todos os serviços de nossa Mãe comum, a Terra, o planeta que nos serve de morada, e com ela o orbe que forma o Sistema Solar, o nosso Mundo. Não separemos desta última comemoração a do meio em que colocamos esse sistema, o Espaço, que foi sempre tão propício ao homem, e que está destinado, mediante uma sábia aplicação, a prestar-lhe ainda maiores serviços, pois que ele se torna a sede reconhecida da abstração, a sede das leis superiores que coletivamente constituem o Destino do homem, e como tal introduzido em toda a nossa educação intelectual e moral.
Do presente e do passado estendamos as nossas simpatias ao porvir, às gerações futuras que com sorte mais feliz nos sucederão sobre a Terra; tenhamo-las sempre presentes ao nosso espírito a fim de completar a concepção da Humanidade, tal como nos foi revelada pelo Fundador de nossa Religião, pela plena aceitação da continuidade que constitui o seu mais nobre característico.
A memória, do maior dos servidores da Humanidade, Augusto Comte, e a dos seus três anjos – Rosália, Clotilde e Sofia – ocorre naturalmente nesta sua máxima festa, consagrada à glorificação de todos os que a têm servido.
Oh! O mais sábio e o mais nobre dos Mestres! Possamos nós, que nos proclamamos teus discípulos, animados pelo teu exemplo, sustentados pela tua doutrina, guiados pelas tuas teorias, vencer todos os obstáculos, que a indiferença ou a hostilidade semeia no nosso caminho; possamos nós no meio desta época revolucionária, sem nos deixar degradar por qualquer esperança de recompensa, nem nos desviar por qualquer insucesso dos nossos esforços, num espírito de submissa veneração, levar por diante a grande empresa a que consagraste a tua vida, a empresa da regeneração humana, por meio e no seio do culto sistemático da Humanidade.
o A teoria dos entes coletivos indica que a Humanidade é um ser composto e que, como tal, ela desenvolveu-se ao longo do tempo
§ Os primeiros embriões da Humanidade aconteceram – como acontecem continuamente, todos os dias – nas famílias, que criaram as condições de existência dos seres humanos, proporcionando o abrigo material, intelectual e, acima de tudo, moral e afetivo
§ Com o aumento do tamanho das famílias e suas contínuas inter-relações, surgiram associações maiores, como as tribos e os clãs, passando afinal para as pátrias
§ As pátrias, por sua vez, têm por base a divisão do trabalho prático
§ À medida que as pátrias cresceram e desenvolveram-se, seus grandes pensadores sempre prenunciaram os vínculos universais, independentemente de tempo e espaço, de nacionalidade e de etnia
§ Depois dos tempos das guerras, em que as famílias e as pátrias bateram-se longamente, o tempo da paz universal, da cooperação e da convergência chegou há cerca de 170 anos, quando se afirmou afinal a plena universalidade humana, necessariamente pacífica
o Por outro lado, embora a Humanidade seja verdadeiramente a única realidade para o ser humano, ela só pode existir e atuar por meio de agentes concretos, os seus servidores
§ Assim, a Humanidade é o conjunto dos seres humanos convergentes passados, futuros e presentes
§ A Humanidade atua e beneficia todos, mas nem todos os seres humanos integram-na efetivamente: aqueles que não são convergentes, aqueles que não cooperam de fato para o benefício coletivo não integram, ou melhor, não podem ter a esperança de um dia merecerem integrar a Humanidade
o Um ser digno de veneração, de conhecimento, de atividade, de gratidão tem que ser, por si só, moralmente superior
§ Para o ser humano, a moralidade é maior e mais elevada nas mulheres, que, a esse respeito (como em muitos outros), são superiores aos homens
§ A definição positiva de moralidade é o desenvolvimento da ternura, isto é, o desenvolvimento do altruísmo, do amor, e a pureza, ou seja, a compressão do egoísmo
§ Assim, a figura da Humanidade é necessariamente de uma mulher, o que equivale a dizer que o Grão Ser positivo é uma deusa
§ A Humanidade é uma mulher na faixa de 30 anos, carregando em seu colo um bebê, ou seja, o futuro
§ Com isso, todos temos uma figura amorosa facilmente reconhecível, capaz de organizar e orientar nossos sentimentos, nossos pensamentos e nossas atividades
- Do que vimos rapidamente, a Humanidade é uma concepção intelectual e moral; ela é nossa verdadeira providência
o A Humanidade é nossa verdadeira providência porque é ela que fornece tudo ao ser humano em todos os momentos de suas vidas: sentimentos, idéias, colaboração no tempo, colaboração no espaço, recursos variados
§ Os seres humanos individuais restituem à Humanidade muito pouco do que recebem ao longo de suas vidas – e só se pode falar de verdade em restituições se elas forem úteis
§ A Humanidade, então, é a verdadeira “filha de seu filho”: cada um de nós só existe devido a ela, mas, inversamente, ela precisa dos esforços (altruístas) de cada um de nós para existir, manter-se e desenvolver-se
o A providência humana atua sempre cada vez mais ao longo do tempo, na continuidade, que meramente na colaboração simultânea da solidariedade
o A providência humana é múltipla:
§ Acima de tudo, ela é moral, ao dar-nos valores, ao indicar-nos o que é bom e correto
§ Ela é afetiva, ao dar-nos os sentimentos que constituem o fundo de nossas existências e que tornam nossas vidas dignas de serem vividas
§ Ela é intelectual, ao fornecer-nos idéias e conceitos, conhecimentos e habilidades, a começar pelas línguas com que nos comunicamos e todas as concepções que permitem que entendamos o mundo e atuemos nele
§ Ela é artística, ao oferecer-nos as imagens e as idealizações que sugerem e indicam como e quanto o ser humano e o mundo podem e devem ser melhores
§ Ela é prática, ao oferecer-nos a infraestrutura de que desfrutamos, as técnicas que empregamos para melhorar o mundo
o Assim, é à Humanidade que devemos todos nós ser gratos
§ Quem agradece às divindades temporárias exercita a gratidão, o que é um exercício moral importante em si mesmo
§ Mas quem atualmente agradece às divindades temporárias na prática comete o erro moral e intelectual da ingratidão, ao desconsiderar (ou desprezar) a verdadeira providência e valorizar seres fictícios, para quem, aliás, o ser humano de nada vale
- Para concluir esta celebração da Festa da Humanidade, as invocações lidas na Igreja Positivista do Brasil são mais uma vez tão belas quanto oportunas:
Em nome da Humanidade:
O amor por princípio, e a ordem por base; o progresso por fim.
Tens, Senhora, tão grande potestade,
Que quem a graça quer e a Ti não corre
Sem asas voar lhe quer a vontade.
A tua benignidade não socorre
A quem T’implora só; com caridade
Freqüentemente à súplica precorre.
Em Ti misericórdia;
Em Ti piedade;
Em Ti magnificência;
Em Ti concorre
Tudo quanto no mundo
Há de bondade.
Ó Virgem-mãe, filha do teu filho!
A Ti, mais do que a nós mesmos,
Amemos sem cessar;
E a nós somente
O puro amor de Ti
Nos faça amar.
Ergamos os nossos corações à Humanidade e lhe testemunhemos o reconhecimento de que nos sentimos repletos pelos ensinamentos que acabamos de receber. Que estes frutifiquem em nossas almas e que, ao deixarmos esta prédica, levemos a resolução feita de dedicar todos os nossos esforços a auxiliar em nós e nos outros a vitória final do altruísmo sobre o egoísmo.
Rendamos graças especiais ao nosso Mestre, Augusto Comte, e à sua imaculada inspiradora, Clotilde de Vaux, aos quais devemos a sistematização da Humanidade e de sua sublime doutrina.
Que a tua palavra de vida, ó santa Humanidade, seja não somente bem aceita e compreendida, mas antes de tudo aplicada com zelo a todos os atos de nossa vida privada e pública.
Assim seja.
[1] Algumas fontes consultadas para auxiliar na elaboração desta celebração:
- Richard Congreve: “Prece à Humanidade” (Rio, 1936).
- Augusto Comte: “A Humanidade – extratos do Catecismo positivista” (Rio, 1936).
- Alfredo de Moraes Filho: “Humanidade– a deusa do futuro” (Rio, 1982). A sugestão desse discurso foi feita por meu amigo Hernani Gomes da Costa.
[2] A lembrança dos fogos de artifício como um culto espontâneo do fogo também foi feita por meu amigo Hernani.
31 dezembro 2023
Cinco livros positivistas agora disponíveis na internet
Acabaram de ser incluídos no portal Internet Archive cinco livros positivistas, apresentando vários temas: a carreira de Augusto Comte, o relacionamento de Augusto Comte e Clotilde de Vaux, celebrações da Festa da Humanidade, sacramentos positivistas.
- Raimundo Teixeira Mendes: O ano sem par
- José Longchampt: Epítome da vida e dos escritos de Augusto Comte
- Richard Congreve: Prece à Humanidade
- Richard Congreve: Sacraments of the Religion of Humanity
- Alfredo de Moraes Filho: Humanidade, a deusa do futuro
26 dezembro 2023
Elementos da teoria positiva da arte
Elementos da teoria positiva da arte
- O Positivismo afirma com todas as letras a importância da subjetividade
o Por exemplo, bastante pensarmos na centralidade do “método subjetivo”
- A subjetividade no Positivismo assume vários âmbitos:
o Por um lado, ela tem uma possibilidade social (é basicamente nesse sentido que falamos da “síntese subjetiva” e que fundamenta a moralidade positiva) e uma possibilidade individual (que é estudada pela ciência da Moral e modificada pelo culto positivo e pelas técnicas associadas à Moral)
o Por outro lado, a subjetividade pode ser entendida como a afetividade (ou sentimentos, ou amor, ou altruísmo) e/ou como a inteligência, cada uma das quais tem suas próprias leis
- Da mesma forma, Augusto Comte concentra-se na sistematização e na regularização do que é verdadeiro, do que é bom e do que é belo
o Todos esses âmbitos são ordenados e regularizados pela moral, que se mantém suprema sobre todos eles
o Eis como esses âmbitos relacionam-se com as grandes produções humanas:
§ O verdadeiro é investigado pela filosofia, a partir das bases científicas
§ O que é bom é desenvolvido pela política e aplicado pela indústria
§ O que é belo é elaborado pela arte
o Por “artes” entendemos as “belas-artes”
§ Essa observação é necessária para distinguir as “belas-artes” das chamadas “artes práticas”, cujo âmbito é o da indústria e que consiste em todas as aplicações práticas dos conhecimentos científicos
- Os livros de Augusto Comte, bem como dos positivistas, desenvolvem longamente as questões relativas à verdade e ao bom, dedicando-se menos a respeito do belo, cuja importância, entretanto, não apenas não é negada como é todo momento exaltada
o Há uma certa deficiência em relação ao belo e à poesia e, não por acaso, também em relação ao culto positivo e à liturgia positiva
- Augusto Comte trata da arte em dois momentos principais:
o No capítulo quatro do Discurso (preliminar) sobre o conjunto do Positivismo, intitulado “Aptidão estética do Positivismo”; esse livro foi originalmente publicado em 1848 e depois, em 1851, inserido com alterações tópicas como introdução geral ao volume primeiro do Sistema de política positiva; esse capítulo tem 46 páginas
o No capítulo quarto do volume segundo do Sistema de política positiva, intitulado “Teoria positiva da linguagem humana” e publicado em 1852; a teoria da arte é reapresentada e desenvolvida em meio às reflexões sobre a linguagem; esse capítulo também tem 46 páginas
o Além desses dois capítulos, há reflexões feitas de passagem sobre as artes, as produções artísticas e os gênios artísticos em todos os capítulos que Augusto Comte escreveu, em particular em sua fase religiosa e em particular quando aborda o culto positivo, em seus inúmeros aspectos
- Neste sermão abordaremos apenas alguns aspectos da teoria positiva da arte
o Nos dois capítulos indicados acima, como sempre acontece, as reflexões desenvolvidas por Augusto Comte são densas e conjugam aspectos artísticos, filosóficos, morais e sociológicos
§ Dessa forma, o que exporemos aqui é bastante elementar, mesmo quase superficial
o Adicionalmente, devemos notar que, pessoalmente, nossa atenção sempre se voltou para questões políticas, sociológicas, filosóficas, científicas e epistemológicas
§ Em outras palavras, pessoal e lamentavelmente, ao longo de nossa carreira profissional não nos concentramos tanto nos aspectos mais diretamente artísticos do Positivismo
- Três aspectos elementares sobre as artes:
o Antes de mais nada, as artes (como as linguagens) atuam no sentido de passar para fora o que existe no interior do ser humano
§ Enquanto as linguagens realizam essa tarefa a respeito de tudo o que existe no interior do ser humano (isto é, da subjetividade individual), as artes externalizam em particular os sentimentos
o Em segundo lugar, a arte integra a subjetividade, mas seu âmbito é diferente daqueles já apresentados (os sentimentos e a inteligência): trata-se da imaginação
§ O Positivismo regula a imaginação, da mesma forma que regula os sentimentos e a inteligência
§ Mas, à parte a arrogância e a secura próprias à inteligência, o fato é que a imaginação exige ainda mais a regulação
o Em terceiro lugar, o ser humano historicamente é antes artístico que filosófico ou industrial
§ Para Augusto Comte, a linguagem humana é inicialmente cantada, assim como as representações de objetos são todas elas artísticas
- Para regularizar as artes – e também a imaginação –, Augusto Comte estabelece os seguintes princípios, metas e objetivos:
o A função da arte é idealizar a realidade para realizar o aperfeiçoamento moral do ser humano
§ Sendo repetitivo, é necessário reiterar: o objetivo da arte é permitir o aperfeiçoamento humano, a partir das idealizações
· Elaborações degradantes, meramente humilhantes, estimuladoras do ódio etc.: nada disso merece o título de “artísticas” e devem ser desprezadas
· O objetivo da arte não é estimular os sentidos, nem meramente estimular quaisquer sentimentos, nem ser sistematicamente “crítica”
§ As idealizações artísticas devem estimular os bons sentimentos; mas isso não necessariamente significa retratar apenas os bons sentimentos:
· Por exemplo, as peças de Shakespeare retratam a inveja, o ciúme, a burrice, a tristeza, a mesquinhez (Otelo; Ricardo III; Rei Lear; Macbeth; Hamlet) – e claramente aprendemos que tudo isso é ruim, errado ou, pelo menos, que deve ser evitado
· Outro exemplo: as peças de Ésquilo e de Sófocles apresentam grandes valores humanos, a partir de dramas intensos, sacrifícios etc. (Prometeu acorrentado; Sete contra Tebas; Édipo-rei)
o A idealização da realidade dá-se com base nos resultados indicados pela ciência e pela moral e por meio do aumento de alguns traços, positivos (com a concomitante supressão ou diminuição de outros traços, negativos)
§ Não por acaso, essa regra é a mesma empregada no culto íntimo, com as orações positivistas
§ Essas modificações evidenciam que a arte baseia-se necessariamente em procedimentos de abstração
o Assim, a arte (e, de modo geral, a imaginação) deve respeitar a realidade – embora não de maneira servil
o Além dessas indicações específicas para a imaginação e para a arte, há inúmeras outras orientações para a harmonia mental em toda a obra de Comte, em particular sumariadas nas 15 leis de filosofia primeira
o Vale a pena lembrar que as elaborações científicas também consistem em idealizações: mas são idealizações da realidade, não dos sentimentos
- Augusto Comte considera que há três passos na elaboração artística:
o (1) a imitação, (2) a idealização, (3) a expressão
o A imitação consiste em reproduzir o que já existe, seja em termos da realidade, seja em termos da produção artística já existente
§ Para Comte, embora o verdadeiro poeta seja sempre inovador, não se deve levar demasiadamente a sério as preocupações com a imitação, pois todos sempre imitam em algum grau
o A idealização é a elaboração mental, ao mesmo tempo afetiva e intelectual; assim, ela é puramente interna, isto é, subjetiva
o A expressão é o passo em que a obra de arte efetivamente toma corpo, a partir da idealização subjetiva; em outras palavras, é a parte objetiva da produção artística
- A partir dos princípios de classificação (generalidade decrescente, particularidade crescente), Augusto Comte classifica as artes da seguinte maneira:
o (1) Poesia, (2) Música, (3) Pintura, (4) Escultura, (5) Arquitetura
§ Como se vê, para Comte as artes fundamentais são cinco, que vão da mais geral para a mais técnica
§ A poesia é a arte mais geral, que fundamenta e orienta todas as demais
o Essas artes são as artes fundamentais; outras modalidades de arte são derivações (ou extensões) ou combinações dessas cinco
§ Alguns exemplos:
· O teatro é uma extensão da poesia
· A ópera – que era uma preferência pessoal de Augusto Comte – é uma combinação da poesia e da música (e da pintura)
· A dança é uma combinação da música e da escultura (e, antes, da poesia)
- Como comentamos na prédica da semana passada (em que abordamos o progresso e a esperança em face do cinismo atual), atualmente é imperativo revalorizarmos as utopias
o Para Augusto Comte, as utopias são uma verdadeira expressão poética moderna
o As utopias devem orientar-se para o futuro, sem que, todavia, os artistas positivistas ignorem a idealização do passado (e mesmo do presente)
o Para Comte, as utopias antecipam em cerca de dois séculos os programas políticos a serem aplicados
§ Evidentemente, para revalorizarmos as utopias, devemos revalorizar (pelo menos de maneira sincera e explícita) a noção de progresso e passar a desprezar sistematicamente as degradantes “distopias”, que são produções do século XX e particularmente apoiadas pela “indústria cultural”
§ A rejeição das distopias na verdade integra uma recomendação mais geral de Augusto Comte, no sentido de que, para bem apreciarmos as (boas) obras de arte, é necessário rejeitarmos as mediocridades artísticas
o As utopias têm um aspecto suplementar inaudito em termos políticos e sociológicos:
§ Na medida em que as previsões sociológicas apresentam um caráter geral, os seus detalhes específicos ficam faltando – e é aí que as utopias desempenham um papel central, ao apresentar e completar os detalhes
§ Deveria ser evidente – mas o cinismo moral e a metafísica intelectual característicos de nossa época e de nossa civilização impedem que seja de fato evidente – que esse a complementação das previsões sociológicas pelas utopias deve ocorrer sempre estimulando o altruísmo e os bons sentimentos
o Em certo sentido, podemos dizer que os artistas positivistas são sistematicamente utópicos
§ Assim, em termos literários, o Positivismo aproxima-se do romantismo e mesmo do classicismo
· Todavia, “teóricos” e historiadores da literatura acham-se autorizados, a partir de uma certa coincidência temporal, meramente cronológica, a afirmar que o Positivismo seria representado ou afirmado nas escolas literárias realista e/ou naturalista, com o cinismo, o ceticismo, o pessimismo, o darwinismo social, a degradação moral e social etc. tão próprios a essas escolas
o É claro que essa aproximação só é possível com base em procedimentos preguiçosos, molengas e preconceituosos
§ Muito longe de esgotar os nomes possíveis, podemos indicar como grandes poetas positivistas brasileiros[1]:
· José Mariano da Silveira, Montenegro Cordeiro, José Martins Fontes, Edgar Proença Rosa, Branca Dulcina Bagueira Sampaio, Paulo de Tarso Monte Serrat
§ Muito longe de esgotar os nomes possíveis, podemos indicar como grandes pintores e escultores positivistas brasileiros:
· Demétrio Ribeiro, Eduardo de Sá
- Os sacerdotes da Humanidade devem todos ser bastante sensíveis às artes e, na medida do possível, também devem ser artistas
o A apreciação artística tem um caráter passivo, evidentemente, ao contrário da produção artística
o A sensibilidade artística dos sacerdotes da Humanidade – nos termos indicados aqui, é claro – tornar-nos-á plenamente superiores aos sacerdotes teológicos (em particular monoteístas)
- Assim como os sacerdotes da Humanidade devem manter-se cuidadosamente afastados do poder Temporal (pois constituem o poder Espiritual), os artistas também devem ficar longe do poder
o Os artistas são integrantes assessórios do poder Espiritual
o Na verdade, a vedação de integrar o poder Temporal deve ser muito mais rígida no caso dos artistas, devido à sua relação mais frágil com a realidade e com os requisitos morais do poder Espiritual
o Assim, os artistas subordinam-se moral e intelectual ao sacerdócio, ou seja, aos filósofos positivos
[1] Uma relação mais completa (mas, certamente, também incompleta) é sempre o livro de Ivan Lins, História do Positivismo no Brasil.