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14 maio 2024
Manter a memória é preservar a Humanidade
29 abril 2024
Celebração do Dia do Trabalhador
No dia 9 de César de 170 (30.4.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência, dedicada ao regime público.
No sermão fizemos uma pequena celebração do Dia do Trabalhador.
A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nk.dev/Xie1E) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://encr.pw/clHMm). O sermão começou aos 54 min 30 s.
As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.
* * *
Celebração do Dia do Trabalhador
- O tema desta semana refere-se ao trabalho, considerando o Dia do Trabalhador, celebrado em 1º de maio, ou melhor, neste ano (que é bissexto) em 10 de César (dia de Demóstenes, na semana de Alexandre)
o Na verdade, seguindo o calendário positivista, que é regular e mais racional, o Dia do Trabalhador seria celebrado em 9 de César (dia de Felipe II, na semana de Alexandre)
o No Brasil, o Dia do Trabalhador foi instituído em 26 de setembro de 1924, pelo Decreto n. 4859, do Presidente Artur Bernardes
§ O texto do decreto é realmente belo: “Artigo único – É considerado feriado nacional o dia 1 de maio, consagrado à confraternidade universal das classes operárias e à comemoração dos mártires do trabalho; revogadas as disposições em contrário”[1]
o A data de 1º de maio foi proposta pela II Internacional Socialista em 1886, em homenagem à Revolta (ou Massacre) da Praça de Heymarket, em Chicago, em que uma manifestação sindical inicialmente pacífica transformou-se em pancadaria e repressão armada da polícia, após uma bomba explodir em meio aos policiais, já no final do encontro trabalhista
- O trabalho e os trabalhadores, para o Positivismo, são da maior importância
o Ao contrário do que muitos afirmam – não somente críticos (como os marxistas), mas também pessoas supostamente próximas ao Positivismo –, os valores, as concepções e as prescrições positivistas em relação ao trabalho e aos trabalhadores não são formas de enganar os trabalhadores e/ou de tapar os buracos sociais, políticos, econômicos e morais causados pelo chamado “capitalismo”
§ Devemos, mais uma vez, lembrar as duríssimas e inequívocas críticas de Augusto Comte à mesquinhez e ao egoísmo da burguesia, feitas desde o início de sua carreira
· A importância dessas críticas aumenta quando lembramos que muitas delas foram expostas no Apelo aos conservadores (1855)
o O Apelo foi escrito como uma exposição do Positivismo dirigida aos líderes políticos, sociais e industriais – ou seja, à “burguesia”
§ Aliás, com o necessário fracasso do marxismo e do chamado “socialismo realmente existente”, os herdeiros do marxismo agora se vêem obrigados a recuperar e a valorizar a ação dos positivistas, como no caso de Francisco Quartim de Morais[2]
§ Uma importante exceção – não por acaso brasileira – é a de Leônidas de Resende, que, em 1932, propôs um interessante, mas confuso, marxismo positivista, em seu livro A formação do capital e seu desenvolvimento[3]
o Os elogios ao trabalho e aos trabalhadores sempre foram reiterados e consistentes da parte de Augusto Comte; não por caso, ele sempre viu nos proletários um dos sustentáculos do Positivismo e, ao mesmo tempo, sempre considerou que o Positivismo deve servir para melhorar as condições de vida dos proletários
o Augusto Comte desde o início de sua carreira ministrou cursos populares: Astronomia, Filosofia Positiva (isto é, filosofia, ciências, história), História da Humanidade
§ Os primeiros discípulos de Augusto Comte, não por acaso, foram proletários, convencidos da doutrina a partir da audiência do curso popular de Astronomia, como foi belamente narrado por Fabien Magnin, no 21º aniversário de transformação de Augusto Comte[4]
o Em 1848 Augusto Comte criou a Sociedade Positivista e propôs a “Associação Livre para a Instrução Positiva do Povo em todo o Ocidente Europeu”
§ Nas décadas seguintes outras associações positivistas proletárias também foram criadas, como a Sociedade Positivista para o Ensino Popular (1876) e a Sociedade Positivista para o Ensino Popular Superior (1876)
o Também em 1848 Augusto Comte escreveu o Discurso sobre o conjuntodo Positivismo, dirigido para os proletários e com um extenso capítulo sobre os proletários
o Vários positivistas foram sindicalistas e/ou apoiaram os sindicalistas: Frederic Harrison, Auguste Keufer, os irmãos Lagarrigues, Miguel Lemos e Teixeira Mendes
o Rodolfo Paula Lopes, filho de também Rodolfo Paula Lopes, trabalhou na Organização Internacional do Trabalho, elaborando relatórios sociológicos e econômicos sobre o desemprego e, depois, também organizou um livro chamado O proletariado na sociedade moderna (1946), da coleção “Arquivos Positivistas” (em francês)
- Em termos filosóficos e sociológicos, eis o que o Positivismo tem a dizer a respeito dos trabalhadores e do trabalho:
o Os trabalhadores, ou melhor, os proletários constituem a providência geral da sociedade, no sentido de que eles são os responsáveis pelo conjunto das atividades práticas que mantêm a sociedade
§ Do ponto de vista político e moral, os proletários devem atuar como apoio do sacerdócio, fornecendo energia e força ao caráter moral do poder Espiritual
§ Os proletários também devem fiscalizar o poder Temporal, inspirados e orientados pelo sacerdócio; essa fiscalização é-lhes tão mais fácil quanto eles são os principais destinatários das ações dos patrícios
o Os proletários, com suas famílias, correspondem na prática ao conjunto da sociedade e, dessa forma, a política positiva deve basicamente se dirigir a eles
§ Isso significa que o conjunto dos esforços sociais deve visar a satisfazer as necessidades dos proletários, em termos materiais, intelectuais e morais
· É necessário insistir: as necessidades dos proletários não são principal nem exclusivamente materiais, mas são também intelectuais e morais
o Embora sejam auxiliares do poder Espiritual, os proletários atuam em termos práticos no poder Temporal, correspondendo à força dispersa (cujo poder provém da sua união), em contraposição complementar com o patriciado, que corresponde à força concentrada (na forma do capital) e que é propriamente o poder Temporal
- Temos que ter clareza de que a valorização do trabalho, e, por extensão, dos trabalhadores, é fruto de um longo desenvolvimento histórico
o Esse desenvolvimento segue a lei dos três estados práticos, segundo a qual a atividade é inicialmente militar conquistadora, depois militar defensiva, enfim pacífica e industrial
§ Nessa evolução, as atividades produtivas são sempre realizadas pelos proletários, mas, como sabemos, nem sempre eles são valorizados
§ O que mudou ao longo do tempo, então, foi a estrutura social geral, a principal atividade da sociedade e, daí, a situação específica dos trabalhadores
o Na Antigüidade, as atividades socialmente valorizadas eram a guerra e/ou o ócio com vistas à produção intelectual; elas eram reservadas à elite da sociedade; o trabalho era considerado degradante e, portanto, relegado aos escravos
§ Enquanto os escravos – tornados cativos devido às guerras, às dívidas e/ou a um assujeitamento “tradicional” (como no caso do mito da escravidão hebréia no Egito) – eram propriedade móvel dos seus senhores, a consolidação do sistema de conquistas (correspondente à fase imperial de Roma) conduziu à fixação dos trabalhadores nos territórios
§ Os antigos escravos tornaram-se assim servos da gleba
o Na Idade Média, a atividade era ainda era militar, mas tinha cada vez mais um caráter defensivo; a cavalaria moderava a violência e estimulava o respeito para com os humildes; o trabalho não era mais degradante, mas continuava sendo relegado ao setor social mais baixo
§ Os servos da gleba, de qualquer maneira, embora não fossem livres e estivessem ligados aos territórios de seus senhores, tinham condições sociais superiores às dos escravos
§ Desde meados da Idade Média, os burgos mais prósperos caracterizavam-se pela atividade pacífica e produtiva e pelo trabalho livre; esses burgos, concomitantemente, passaram a buscar a libertação em relação aos grande senhores, transformando-se em cidades livres, cidades reais (isto é, sob a proteção dos reis) ou em repúblicas (como Florença, Gênova, Genebra, até mesmo Veneza)
· O trabalho nos burgos, ou nas comunas, não se constituiu diretamente como trabalho livre: organizaram-se as guildas, que serviam como mecanismos de proteção, treinamento e reserva e controle de mercado
§ De qualquer maneira, a Idade Média legou à modernidade a valorização do trabalho produtivo e a libertação dos trabalhadores
o Na modernidade, a atividade socialmente valorizada é a produção pacífica; os trabalhadores são livres
o O trabalho produtivo e pacífico é a única atividade que pode ser plenamente universalizável, tanto em termos de extensão geográfica quanto em termos sociais; isso significa que só a paz garante o trabalho livre e que, inversamente, o trabalho livre exige a paz
o Entretanto, um dos maiores sinais da “anarquia moderna” é que a emancipação dos trabalhadores não correspondeu à valorização dos trabalhadores
§ Os trabalhadores ficaram livres, mas a ausência de doutrinas socialmente compartilhadas – e de doutrinas socialmente responsáveis compartilhadas – também implicou que os trabalhadores ficariam sem amparo social (em contraposição, na Idade Média, bem ou mal os senhores feudais e a cavalaria reconheciam alguns deveres para com os servos)
§ A exploração do proletariado, ou o chamado “capitalismo”, portanto, é um dos maiores e piores sintomas da “anarquia moderna”
· A solução da anarquia moderna não é diretamente “acabar com o capitalismo” (embora o chamado capitalismo tenha que acabar); a solução da anarquia moderna acabará também, e naturalmente, com o capitalismo
§ Um aspecto agravante da anarquia moderna, especialmente em comparação com a atividade militar, é que as qualidades necessárias para conduzir os empreendimentos industriais não são nem tão evidentes, nem tão precisas, nem tão simples quanto qualidades as militares; isso dificulta a determinação dos respectivos deveres
- É necessário dizermo-lo com todas as letras: restabelecer valores e concepções compartilhados; reafirmar os deveres; afirmar o altruísmo; combater o egoísmo como padrão de moralidade e de relacionamento humano: essa é a única solução efetiva para a anarquia moderna e, daí, para o “capitalismo”
o O Positivismo, portanto, não propõe os deveres sociais compartilhados como um tapa-buraco superficial para os agressivos males do capitalismo; os deveres sociais compartilhados não são uma desculpa para uma filantropia hipócrita, “alienadora” e “acrítica”
o Os deveres sociais exigem uma alteração profunda na sensibilidade, nas idéias e, daí, nas práticas sociais
§ Isso equivale a dizer que as propostas sociais e políticas do Positivismo não podem ser apresentadas isoladamente da Religião da Humanidade, pois isoladamente elas não fazem sentido
o Em termos de doutrinas sociais, convém considerarmos rapidamente o catolicismo
§ O catolicismo é extremamente ambíguo a respeito:
· Sua doutrina é radicalmente egoísta, anti-humana e antissocial; a sua decadência necessária é o que alimentou diretamente a anarquia moderna e com freqüência conduz ao reforço do “capitalismo”, com ou sem a filantropia superficial e hipócrita
o Esses traços também com freqüência são seguidos, no que têm de pior, pelos protestantes
· Mas atualmente há algumas correntes católicas que mais ou menos deixam de lado a doutrina e seguem inspirações medievais, no que estas têm de melhor
o É importante insistirmos neste aspecto: o caráter basicamente moral das soluções positivistas não o transforma em “moralista”
§ A esse respeito, antes de mais nada é necessário termos clareza de dois aspectos:
· (1) Embora afirmemos com todas as letras a importância dos aspectos morais e intelectuais, nunca os positivistas deixaram de afirmar também a necessidade de propostas concretas, práticas, de curto e longo alcance, para remediar e/ou solucionar os problemas dos trabalhadores
o Sendo mais específico: não somente não deixamos de afirmar essa necessidade como, mais importante, nunca deixamos de propor efetivamente medidas concretas
· (2) Quem afirma que o Positivismo é “moralista” adota uma perspectiva materialista, que nega a importância da moralidade na vida humana e que reduz o ser humano e a sociedade às questões e às disputas econômicas e políticas
o Assim, a defesa do materialismo implica a ignorância e a alienação profundas
§ O que o Positivismo faz é evidenciar que os grandes problemas econômicos atuais só admitem, no fundo, soluções morais, na medida em que esses problemas originam-se de problemas, desvios e aberrações morais
· É evidente que as questões trabalhistas exigem soluções “econômicas”; mas o tipo de soluções varia de acordo com parâmetros morais; além disso, a própria exigência de tais soluções é de caráter moral
· Nesta exposição não apresentaremos as propostas concretas feitas pelos positivistas (a começar por Augusto Comte!) porque são muitas e muitas propostas, feitas nos mais diferentes contextos
§ Quem nega o caráter moral dos problemas econômicos de modo geral é cego para a realidade e estimula a piora desses problemas
§ A “Economia Política” clássica reconhecia o caráter moral dos problemas econômicos: Adam Smith, David Hume, Charles Dunoyer
§ De maneira exemplar, o marxismo, sendo materialista, despreza a perspectiva moral, reduzindo a sociedade ao poder e à economia, donde ele percebe apenas conflitos
· Contra a inspiração marxista, outras tradições socialistas anteriores, concomitantes e posteriores ao marxismo adotaram concepções morais: exemplo notável disso são as propostas atuais da chamada “economia solidária” (embora ela confusamente mantenha ideais e perspectivas marxistas)
- Agora é necessário comentar diretamente a luta de classes:
o A vida prática estimula por si só o egoísmo e as vistas parciais; isso significa que o poder Temporal, os patrícios e os proletários tendem a prestar atenção aos seus próprios interesses, desconsiderando (ou desprezando) a sociedade em geral e os outros grupos
§ Entretanto, o poder Temporal propriamente dito (o Estado) tem que ter vistas gerais (no espaço); de modo similar, os proletários, na medida em que não têm responsabilidades na mesma medida que os patrícios e em que sua força provém da sua união, tendem a desenvolver vistas gerais e sentimento generosos
§ O egoísmo social tende a concentrar-se no patriciado – que, assim, converte-se em (ou mantém-se como) “burguesia”
o Os egoísmos de classe, ou mesmo os egoísmos de empresas, tendem a desenvolver-se com grande facilidade – e, daí, surgem os conflitos sociais
o A luta de classes, portanto, não é uma característica inerente a toda e qualquer sociedade; ela consiste no sintoma da desregulação social, o que significa que no Ocidente ela é um sintoma da anarquia moderna
§ Novamente: pode-se considerar que a luta de classes é inerente à sociedade capitalista apenas no caso específico em que se considere que o capitalismo corresponde, precisamente, à sociedade desregulada, à anarquia moderna
o Apesar de rejeitar em geral qualquer conflito, ou melhor, qualquer violência, Augusto Comte percebia na luta de classes um potencial positivo, ao indicar precisamente a desregulação social e a concomitante necessidade de regulação social (moral e intelectual)
§ Evidentemente, a luta de classes só é aceitável na medida em que se realizar pacificamente, ou seja, por meio das greves pacíficas, rejeitando-se expressamente tanto a revolução social (projeto acalentado pelos marxistas e por quase todos os socialistas) quanto a repressão ao sindicalismo
§ Deve-se notar, então, que a luta de classes não é um ideal moral, social e político, a ser acalentado, estimulado e buscado
§ Além disso, o fim da luta de classes não é o fim das classes, mas o fim da luta – e o fim da luta, quase sempre, por meio do reconhecimento da justiça das reivindicações dos proletários
o É notável que o que a direita vê como “revolucionário” e a esquerda vê como “progressista”, para o Positivismo trata-se apenas de satisfação das condições da ordem social: o respeito aos trabalhadores, a garantia de manutenção das famílias, o auxílio na fiscalização do poder Temporal pelo poder Espiritual
- Está subentendido no que comentamos até agora, mas vale a pena dizermos com clareza: a valorização dos proletários, dos trabalhadores, implica também a valorização do trabalho
o No âmbito do Positivismo, isso equivale à dignificação do trabalho: trabalhar não é um castigo divino, mas fonte de valor para o ser humano: de fato, trabalhar enobrece os homens
o Todos devem trabalhar, todos devem contribuir para a Humanidade; todos devem retribuir para a Humanidade aquilo que continuamente recebem dela: trabalhar é um dever moral
§ O trabalho livre, então, não é tornar-se livre do trabalho
§ Os mendigos devem ser objeto de respeito e de cuidados, mas é necessário entendê-los como casos extremos e excepcionais
o Em sentido semelhante, a valorização e a dignificação do trabalho implicam não entender o trabalho como uma mercadoria
§ Não há dúvida de que o trabalho é a garantia de manutenção e continuidade da sociedade; também é a condição de aumento da riqueza
§ Mas é necessário ter clareza a respeito de um aspecto central e fundamental: o trabalho é a fonte de sustento das famílias
§ Novamente: o trabalho não é mercadoria, pois sua falta implica impossibilidade de sustento de famílias
§ A responsabilidade dos patrícios, então, é com a preservação e o aumento da riqueza social; mas isso só se dá por meio da geração de trabalho – e de trabalho de qualidade, em condições salubres, com salários adequados
§ Para o Positivismo, rigorosamente o salário não é a paga pelo trabalho executado, mas a contrapartida material pelos recursos empregados nas atividades constantes
· Se o trabalho não é mercadoria, ele não pode ser “pago”; a retribuição pelo trabalho é a satisfação individual pelo bem prestado à coletividade e pela retribuição pela generosidade da Humanidade
o Uma decorrência disso é que Augusto Comte adota a teoria do valor-trabalho, ou seja, a riqueza é gerada pelo trabalho realizado, pelo empenho coletivo em cada atividade
§ Essa é a concepção “econômica” decorrente da idéia de que a riqueza é socialmente produzida e, portanto, tem que ter uma destinação social
§ É bem verdade que há produtos cujo “valor” é dado por sua raridade relativa; mas a única forma de valorizar socialmente o trabalho; ou melhor, a única forma básica de entender sociologicamente a produção do “valor” é por meio do valor-trabalho: concepções que negam o valor-trabalho, como se sabe e não por acaso, postulam concepções egoísticas
[1] Fonte: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1920-1929/decreto-4859-26-setembro-1924-567741-publicacaooriginal-91057-pl.html; acesso em 30.4.2024.
[2] QUARTIM DE MORAES, F. As lutas
pelos direitos trabalhistas do Positivismo. In:
CONGRESSO DE HISTÓRIA ECONÔMICA, 11, São Paulo, 2020. Anais. São Paulo: USP, 2020. Disponível em: https://congressohistoriaeconomica.fflch.usp.br/sites/congressohistoriaeconomica.fflch.usp.br/files/publicacoes/XI-congresso-2020-anais-eletronicos-Francisco-Quartim-de-Moraes.pdf.
Acesso em: 18.1.2023.
[3] Leônidas de Resende, A formação do capital e seu desenvolvimento, Brasília, Senado Federal, 2011. A “Apresentação” dessa edição, profundamente enviesada, é do lamentável liberal conservador Antônio Paim. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/574643/000943472_Formacao_capital_desenvolvimento.pdf.
[4] Anexo IV do Discurso sobre o espírito positivo (ed. Martins Fontes, São Paulo, 1990).
23 abril 2024
Ideal vs. real: como lidar?
No dia 2 de César de 170 (23.4.2024) realizamos a prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).
No sermão abordamos a oposição entre o ideal e o real e como agir considerando a distância entre ambos.
A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/iKkQa) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/snJFS). O sermão começou aos 48 min 30 s.
As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.
* * *
O ideal vs. o real: como lidar?
- A questão desta semana é ao mesmo tempo bastante simples e extremamente importante: como lidar com a oposição entre o ideal e o real?
o Esse tema foi sugerido pelo nosso amigo Hernani G. Costa, nos seguintes termos: “O equilíbrio entre o preenchimento do ideal e a frustração de quando não o realizamos. Como agir diante disso? Como conjugar a vida vivida em nome de um ideal, diante de uma realidade que por tantas vezes parece desmenti-lo?”
- Essa questão apresenta muitos aspectos, vários deles à primeira vista insuspeitos:
o Em um primeiro lugar, há o aspecto moral (“psicológico”), em relação a como lidar com a distância entre o que se deseja e o que se obtém
o Mas o aspecto moral implica o conhecimento da realidade (científico)
o Também há as questões relativas à idealização da realidade, ou seja, são aspectos artísticos
o Há também a idealização no sentido do que é bom, ou seja, é um outro aspecto moral
o Tudo isso se reúne nas leis da filosofia primeira, em particular na primeira lei, a chamada “lei-mãe”
- Comecemos pela oposição entre o real e o ideal, isto é, a oposição entre a realidade vivida e o que gostaríamos que ocorresse
o Duas ou três observações iniciais:
§ Trata-se verdadeiramente de uma oposição entre o real e o ideal
§ Os comentários abaixo concentrar-se-ão no comportamento individual de cada um de nós
§ Além disso, concentrar-nos-emos nas dificuldades enfrentadas e, ainda mais, nos fracassos que por vezes temos que enfrentar
o Todos vivemos enfrentando os desafios da vida; esses desafios são “desafios” porque nos impõem dificuldades, que devem ser enfrentadas, ou seja, que têm que ser enfrentadas: todos temos contas para pagar, por isso todos temos que trabalhar; temos contas para pagar porque temos necessidades que têm que ser satisfeitas: alimentação, moradia, saúde, transporte, relacionamentos, previdência, divertimentos
o Os desafios que indiquei acima são todos eles materiais; mas é claro que viver é muito mais que só se preocupar com questões materiais; como sabemos, sem negar a importância desses aspectos, viver significa acima de tudo ter ideais, planos, projetos; significa viver orientado por valores e concepções do que é bom e belo
§ É importante dizê-lo com todas as letras para termos clareza a respeito: a vida orientada por valores e idéias existe por si só, independentemente das preocupações materiais e, na verdade, com freqüência até em oposição a elas
§ Citamos inicialmente as preocupações materiais apenas porque elas são fáceis de entender e porque elas realmente se impõem a todos
§ Mas é claro que há toda uma série de outras dificuldades na vida: entendimento falho da realidade; necessidade de cooperação com outras pessoas; disposições pessoais; acidentes tecnológicos; desastres naturais etc.
o O que se apresenta, então, é uma oposição entre o que nós, como seres humanos, desejamos e aquilo que, enfrentando os desafios e as dificuldades, conseguimos realizar: às vezes conseguimos, às vezes fracassamos
o Como se diz, o sucesso tem muitos pais e mães, mas o fracasso é sempre órfão: ninguém gosta de fracassar, seja porque evidentemente o fracasso conduz a um sentimento muito desagradável, seja porque ninguém gosta de assumir a responsabilidade pelo fracasso
§ O fracasso é desagradável; com freqüência sentimos a sensação de derrota, de incompetência, de incapacidade, até mesmo de merecimento no fracasso
o Para lidarmos com isso e, de qualquer maneira, para obtermos o sucesso, temos que nos preparar das mais diferentes maneiras:
§ Temos que lembrar que cada pessoa é uma pessoa, cada empreendimento é um empreendimento diferente, cada situação é uma situação específica
§ É necessário conhecer a realidade, (1) para sabermos se nosso projeto é realizável; em seguida, (2.1) para sabermos quais as condições e as possibilidades de sucesso; (2.2) inversamente, quais as condições e as possibilidades de fracasso)
§ Assim, a partir do conhecimento da realidade e, de qualquer maneira, é necessário estarmos preparados, antecipadamente, para maiores dificuldades ou mesmo para um eventual fracasso
· Essa preparação é tanto material quanto emocional
§ Caso fracassemos, é sempre bom e sempre importante lembrarmos a ótima observação de Winston Churchill: “O sucesso nunca é definitivo e o fracasso nunca é fatal”; em outras palavras, devemos estar sempre preparados para reerguer-nos, ou seja, devemos ter a resiliência
§ Todos podemos, e até devemos, lamentar a derrota durante um certo período de tempo; quanto mais importante essa derrota, maior o tempo despendido; mas o luto não pode durar para sempre e, no final das contas, trata-se de uma questão de amadurecimento: quem é mais maduro passa mais rapidamente pelo luto
· Na verdade, inversamente, em certo sentido o amadurecimento consiste na capacidade de cada um de lidar com as dificuldades e com os fracassos, não se deixando abalar em demasia com eles, sabendo olhar para os fracassos com serenidade (o que não equivale a olhá-los com satisfação), superando-os com maior facilidade e seguindo em frente
§ Quando acontece o fracasso, ele pode ter ocorrido devido a muitos motivos: falta de preparo intelectual, falta de preparo moral, falta de preparo técnico, falta de cooperação, eventos inesperados
§ É sempre importante avaliar cuidadosamente cada uma dessas possibilidades, para (1) determinar os diversos fatores que conduziram ao fracasso: com isso, (2) é possível determinar as responsabilidades; (3) em uma eventual nova tentativa, esses fatores têm que receber mais atenção; finalmente, (4) conseguir determinar as diversas responsabilidades integra o processo de luto e, daí, o de resiliência e amadurecimento
-
Em suma,
do ponto de vista estritamente individual, na oposição entre o ideal e o real,
o problema que nos conduz a considerar o “como lidar?” é como lidar com as
dificuldades e, em particular, com o fracasso
o A resposta para isso é tão simples de
enunciar quanto difícil de executar: preparar-se o máximo possível com
antecedência em termos morais (“psicológicos”), intelectuais e práticos e, no
caso do fracasso, saber avaliar os fatores que conduziram ao fracasso
o O entendimento intelectual ajuda na
preparação moral prévia e, depois, no caso de fracasso, auxilia na resiliência
- Como sugerimos no início, os comentários acima apresentam parte da questão; modestamente fizemos observações que seriam um começo de apoio: mas foi apenas um começo
o Vejamos agora outros aspectos do tema – aspectos que são fundamentais de serem afirmados em conjunto com as observações acima, a fim de lidar-se de maneira adequada (digna, madura, eficiente) com as dificuldades e os fracassos na vida
o Esses outros aspectos são: (1) aspectos intelectuais e científicos; (2) questões de moralidade; (3) aspectos artísticos
- Qualquer projeto exige que conheçamos a realidade:
o O conhecimento da realidade, seja abstrato, seja concreto, é condição fundamental para qualquer atividade e, bem vistas as coisas, para a vida
o A realidade, nesse caso, consiste principalmente nas condições objetivas do mundo, ou seja, aquelas que não dependem da vontade humana (e que, com freqüência, opõem-se à vontade humana)
§ Para evitar confusões e mal-entendidos: as condições sociológicas gerais e também as morais integram, no presente caso, as condições objetivas
o Como vimos antes, é necessário conhecer a realidade para podermos determinar as possibilidades de êxito de qualquer projeto e, inversamente, as suas possibilidades de fracasso; com isso, podemos preparar-nos em termos práticos (reunindo os elementos necessários para o sucesso do empreendimento) e em termos morais (ficando de sobreaviso para as dificuldades e, ainda mais, para um eventual fracasso – e, assim, criando uma espécie de “almofada” moral)
o O conhecimento abstrato da realidade consiste nas leis naturais, isto é, das relações necessárias de sucessão ou coexistência dos fenômenos
§ O conhecimento da realidade (abstrato e concreto) conduz a uma idealização da realidade, basicamente em termos apenas intelectuais: o “ideal”, aí, é uma elaboração intelectual e simplificada da realidade
o Esse conhecimento tem que estar ligado sempre a uma regra prática de sabedoria, que consiste em determinar o que podemos e o que não podemos fazer; ou, dito de outra forma, o que podemos e o que não podemos mudar
§ Na verdade, a determinação do que podemos e do que não podemos mudar antecede sempre a proposição de qualquer projeto
§ Em relação ao que podemos mudar, seguindo as leis naturais, é necessário avaliar se é moralmente correto; no que se refere ao que não podemos mudar, a única possibilidade é a digna resignação
· Em outras palavras, a digna submissão (a digna aceitação) é sempre o único caminho possível tendo em vista as leis naturais, seja reconhecendo as possibilidades de atuação, seja reconhecimento a impossibilidade de ação
§ Inversamente, não faz sentido desejar algo que vai contra as leis naturais: desejar algo francamente impossível implica uma vontade caprichosa e o fracasso certo
· A “resiliência” nesse caso consiste não em retomar o projeto, mas em abandoná-lo e retomar a vida com outros objetivos
· A maturidade, nesse caso, consiste em reconhecer a inutilidade dos esforços e a necessidade de mudar de objetivos: não há dúvida de que isso pode exigir maiores esforços, que, por sua vez, aumentarão o “grau” de maturidade
- Também há os vários aspectos relativos à moralidade dos ideais
o Tudo o que comentamos acima pressupõe que os nossos objetivos são moralmente corretos
o Mas é claro que a avaliação moral deve sempre ser feita – e, além disso, deve sempre ser feita antes de qualquer outra avaliação
o A moralidade das ações é sempre dada pelo altruísmo: melhorará o bem-estar? Não prejudicará? Estimulará o altruísmo? Não estimulará o egoísmo?
§ Vale notar que a “bondade”, aí, consiste no altruísmo e que a “maldade” consiste no estímulo direto e único do egoísmo (incluindo o sadismo); não há que falar em “bondade” e “maldade” como se elas existissem por si sós, como abstrações personificadas (ou seja, metafísicas)
o Os valores e as idéias que são moralmente corretos – ou seja, que estimulam e/ou realizam o altruísmo – podem tornar-se “ideais”, ou seja, concepções (1) abstratas da realidade que (2) indicam os bons caminhos a seguir
§ É importante insistir: não é porque algo é factível que também é moralmente desejável e que, portanto, deve ser feito
o É igualmente importante lembrar que, no caso de projetos moralmente corretos, com freqüência um fracasso momentâneo não pode impedir a continuidade dos esforços: em outros termos, um fracasso momentâneo não nega nem invalida o ideal
§ Isso se aplica às dificuldades, aos desastres e também às injustiças da vida
§ A palavra “momentâneo” é central aqui: por vezes, um ideal factível não se realiza devido a dificuldades materiais, a dificuldades sociais amplas, a dificuldades políticas; mas cumpre perceber que, se em um determinado momento algo não é possível, em outro momento, e/ou com outros esforços, esse projeto pode vir a realizar-se
o Ainda no que se refere a moral e à oposição entre o ideal e o real:
§ Como “agimos por afeição”, todas as nossas ações são moralmente motivadas – daí a necessidade de que essa motivação seja altruísta
§ Mas é claro que os sentimentos não dão apenas a partida nas ações: são os sentimentos que nos mantêm atuantes, mesmo (e até principalmente) em face das adversidades
· Os bons sentimentos de nossos familiares e nossos amigos confortam-nos e apóiam-nos, seja durante as dificuldades, seja no fracasso
· Assim, é importante lembrar: não existimos no vazio, ou melhor, não existem indivíduos, mas apenas agentes da Humanidade; todas as nossas ações são propostas, elaboradas e levadas a cabo na, pela e para a Humanidade
§ Além dos sentimentos e das idéias, a natureza humana atua por meio dos instintos práticos: a coragem, a prudência e a perseverança
· A coragem leva-nos a agir; é o impulso para a frente
· A prudência são os cuidados que tomamos, para evitar problemas (ou problemas excessivos, ou problemas desnecessários, ou problemas inesperados)
· A perseverança é o que nos mantêm em atividade, ao longo do tempo e a despeito das dificuldades
o Assim, a resiliência é uma forma de perseverança, em que temos que retomar nossas atividades quaisquer e, se for o caso, retomarmos os esforços das ações que anteriormente fracassaram
- Há ainda outros aspectos a considerar na oposição entre o ideal e o real; todavia, esses outros aspectos serão somente citados aqui
o As observações acima se concentram nos indivíduos, nas dificuldades morais que cada um enfrenta ao realizar seus projetos e, em particular, ao fracassar: mas, como Augusto Comte afirmava desde o início de sua carreira e como consagrou na Religião da Humanidade, de real só existe a Humanidade
§ Isso significa que todos os projetos só podem realizar-se pela Humanidade, devido aos inúmeros fatores envolvidos:
· O altruísmo realiza diretamente a Humanidade
· Os projetos construtivos (não violentos, não destruidores) desenvolveram-se ao longo da história
· Da mesma forma, nossas concepções sobre a realidade também se desenvolveram ao longo da história
· Qualquer projeto implica, sempre, a coletividade, seja nas idéias, seja nas palavras, seja na necessária colaboração de qualquer atividade
· Por fim – e de maneira central para esta prédica –, no caso de maiores dificuldades e/ou de fracasso, o amparo é sempre dado pela Humanidade, seja com o afeto que nossos amigos e familiares dão, seja com as idéias e os valores que nos confortam
o Como vimos e como todos sabemos, a palavra “ideal” apresenta uma importante ambigüidade:
§ Ela pode ser uma concepção abstrata da realidade e/ou pode ser u’a meta considerada correta
· Temos aí as partes que cabem ao cérebro e ao coração
· Vale lembrarmos a bela frase de Vauvenargues: “os grandes pensamentos provêm do coração”
§ Além disso, há o espaço para a imaginação e, portanto, para as artes
· Não podemos esquecer que as artes idealizam a realidade, ou seja, descrevem um cenário que simplifica o mundo e que, ao mesmo tempo, é desejável
· As artes, então, ajudam a inspirar-nos e a ter coragem; enquanto enfrentamos dificuldades, elas confortam-nos, de modo que apóiam a perseverança; por fim, no caso do fracasso, é fora de dúvida a importância que elas apresentam para o conforto moral, para a resiliência e para o nosso amadurecimento
o O
papel da idealização – considerando todos os aspectos indicados acima,
incluindo suas relações com a realidade – é resumido, sintetizado e/ou pressuposto
na primeira lei da filosofia primeira, cuja importância é tão grande que é
chamada de “lei-mãe”: “Formar a hipótese
mais simples e mais simpática que comporta o conjunto dos dados a representar”