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23 junho 2022

Curso livre de política positiva: roteiro da 16ª sessão (final)

Reproduzo abaixo o roteiro da décima sexta sessão do Curso livre de política positiva, ocorrida no dia 21 de junho, transmitida no canal Positivismo (disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=m8OMqqsAY3k) ou no próprio canal Apostolado Positivista (disponível aqui: https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/1003644023633876/). 


Nesta seção concluí o relato histórico-sociológico próprio à Sociologia Dinâmica, apresentando o esquema da transição final proposto por Augusto Comte, entre a situação da anarquia contemporânea para a situação normal da Humanidade. Além disso, apresentei a belíssima concepção da "trindade positiva", que é um complemento intelectual, afetivo e prático da Religião da Humanidade, baseado na incorporação do fetichismo. Para encerrar o curso, abordei alguns temas políticos próprios ao Positivismo e às discussões contemporâneas: a idéia da "ditadura republicana"; a fórmula "Ordem e progresso"; as alegações de que o Positivismo seria "conservador" e/ou "moralista".



* * *


Súmula

A Religião da Humanidade: a Trindade Positiva

A transição final: ditadura republicana; triunvirato positivo

Conceitos políticos importantes para o Positivismo: “Ordem e Progresso”; “conservadorismo”; “moralismo”

 

Roteiro

-        Celebrações da semana:

o   2 de Carlos Magno (19 de junho): nascimento de Carlos Torres Gonçalves (1874)

o   4 de Carlos Magno (21 de junho): transformação de Décio Villares (1931)

o   6 de Carlos Magno (23 de junho): nascimento de José Martins Fontes (1884)

-        Instituição da trindade positiva:

o   Complemento lógico-moral da Religião da Humanidade

o   Estabelece a lógica positiva: conjunto dos meios disponíveis com vistas a inspirar pensamentos, sentimentos e ações para a ação construtiva do ser humano

§  Os meios disponíveis são os sentimentos, as imagens e os sinais

o   Institui “ficções científicas”:

§  Grão Ser (a Humanidade) – sentimentos, atividade, inteligência

§  Grão Fetiche (a Terra) – sentimentos, atividade

§  Grão Meio (o Espaço) – sentimentos

o   É uma aplicação direta da incorporação do fetichismo inicial ao Positivismo final

§  Busca inspirar sentimentos e tornar afetivo o conjunto da realidade (“reencantamento do mundo”)

-        A transição extrema:

o   Instituição da ditadura republicana

§  A ditadura proposta por Augusto Comte toma por base a magistratura da República romana que tinha esse nome e que se caracterizava por ser excepcional e temporária, para momentos de crise

·         A concepção de ditadura como sendo “autoritarismo” surgiu e disseminou-se no século XX, a partir dos totalitarismos: inicialmente com Lênin e a aplicação da “ditadura do proletariado” a partir da Revolução Russa; depois com Hitler e a ditadura nazista

·         Até a Revolução Russa, a palavra “ditadura” ou era considerada como algo bom (e de liberdades) ou era um termo neutro

·         Augusto Comte usa a palavra “ditadura” nos mais variados contextos, sempre com adjetivos: “ditadura progressista”, “ditadura liberal”, “ditadura despótica”, “ditadura repressiva” etc. etc.

§  A ditadura republicana é uma fase de transição entre a anarquia moderna e o estado normal

§  Ela caracteriza-se (1) pelo caráter puramente material do poder Temporal, (2) pelas mais completas liberdades (de pensamento, de expressão, de associação), (3) pela disseminação e pela atuação regeneradora da política e da moral positiva, (4) separação entre igreja e Estado; (5) pela preponderância da chamada “sociedade civil”

§  Alguns positivistas notaram que se deve prestar atenção a aspectos implícitos:

·         Isonomia (igualdade perante a lei) (dr. Robinet)

·         Judiciário autônomo (Agliberto Xavier)

§  A par da regeneração moral e política realizada pelo Positivismo, as concepções relativistas e pacifistas difundir-se-ão à uma importante conseqüência disso é que a política tornar-se-á mais pacífica e menos violenta à portanto, as forças armadas tornar-se-ão inúteis (além de já serem extremamente onerosas) e deverão ser extintas

§  Em outras palavras: é um governo presidencialista e de liberdades

o   Triunvirato positivo

§  O triunvirato será instituído no estado normal, em que tanto a sociedade quanto o governo for positivo

§  Haverá a divisão do poder na cúpula: três governantes, com origem no capital bancário, cada um responsável por uma área econômica: indústria, comércio, agricultura

§  Vários elementos da transição serão mantidos: liberdades de pensamento, expressão e associação; separação entre igreja e Estado; preponderância da sociedade civil; isonomia; Judiciário independente; inexistência de forças armadas

-        Conceitos políticos contemporâneos importantes para a política positiva:

o   “Ordem e Progresso”

§  Frase recuperada recentemente: campanha “Ponha o amor na bandeira”

§  Falsa acusação de que Teixeira Mendes teria cometido um erro (!!!) ao elaborar a bandeira sem o “Amor” à o “Ordem e Progresso” é uma divisa política, que se baseia mas que se distingue da fórmula religiosa fundamental do Positivismo (“O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”)

§  “Ordem e Progresso” não quer dizer “ordem militar e progresso calado”

§  O “Ordem e Progresso” afirma que as concepções de ordem e as concepções de progresso devem unir-se de maneira profunda em vez de serem consideradas de maneira separada ou até como sendo opostas

·         Assim, é necessário ter uma concepção de ordem que contemple o progresso e uma concepção de progresso que respeite a ordem

·         O liame entre ordem e progresso, que permite a união e a ultrapassagem dos dois termos isolados, é o amor

·         Como só o amor permite a união e a ultrapassagem dos dois termos isolados, a palavra “e” corresponde implicitamente ao amor (observação bela e brilhante de Hernani Gomes da Costa)

§  A ordem deve ser entendida como “arranjo”, não como “comando”; a ordem também implica o reconhecimento e o respeito às instituições sociais fundamentais (estabelecidas pela Sociologia Estática); assim, a ordem é a condição para o progresso

§  Inversamente, o progresso é o desenvolvimento da ordem, ou seja, é o desenvolvimento de um arranjo social qualquer

§  Essas concepções de ordem e de progresso são mais claras, mais simpáticas e mais úteis que todas as definições dadas (quando são dadas) pela “direita” e pela “esquerda”

·         Para a direita, a ordem é estática e tem por objetivo ser retrógrada; o progresso é sempre entendido como anarquia

·         Para a esquerda, a ordem é sempre autoritária e injusta; o progresso ou não é definido ou, quando é definido, é entendido como destruidor da ordem

o   “Conservador”

§  Muitas vezes o Positivismo é chamado de “conservador”, com isso se querendo dizer que ele é retrógrado, reacionário e/ou oposto ao progresso

§  O conjunto deste curso evidencia que o Positivismo simplesmente não é “conservador”

§  O conservadorismo pode ser entendido no sentido dado por Edmund Burke: respeito ao legado histórico, mudanças sociopolíticas paulatinas e incrementais

·         O Positivismo reconhece o valor dessa concepção; por exemplo, assumimos como nossa a frase de Danton, “Só se destrói o que se substitui” à todavia, a concepção burkeana tem sérios problemas: ela é estática (e não dinâmica); o respeito ao legado histórico converte-se em imobilismo e em rejeição de mudanças; ela aceita que instituições arcaicas e/ou injustas permaneçam existindo (como a monarquia, a sociedade de castas, a escravidão etc.); de maneira mais profunda, ela rejeita as mudanças racionais sugeridas pela ciência e pela moralidade

§  Quase em sua totalidade, quem afirma que o Positivismo é “conservador” é de “esquerda” e marxista, portanto defensor do mito da revolução social e dos meios políticos violentos: como o Positivismo é contra a violência e, portanto, contra o infantilismo moral, político e intelectual da “revolução”, somos acusados de “conservadorismo”

·         Ora, não é que o Positivismo seja “conservador”: quem nos chama de “conservadores” é que é adepto da violência e da destruição

·         É uma definição plenamente relacional e maniqueísta: como os positivistas não somos extremistas (e, em particular, não somos adeptos do extremismo revolucionário), seríamos por definição “conservadores”

§  No Apelo aos conservadores, Augusto Comte faz um apelo justamente aos conservadores, ou seja, àqueles que estão no partido da ordem não porque sejam reacionários ou retrógrados, mas porque detestam a violência e a destruição; o apelo de Comte é que deixem o partido da ordem e incorporem-se ao partido construtivo, positivista

·         Da mesma forma, embora em grau menor, Comte faz também no Apelo aos conservadores um apelo aos adeptos do partido do progresso que são contra a violência e a destruição para que assumam seu lugar no partido construtivo

o   “Moralismo”

§  Em várias ocasiões o Positivismo também é chamado de “moralista”, por apresentar parâmetros morais claros e aplicá-los na avaliação da sociedade à o mero fato de ter e empregar explicitamente parâmetros morais seria o “moralismo”

§  Quem critica o Positivismo de “moralista” quase sempre parte de uma perspectiva supostamente “objetiva”, em que o exame “objetivo” da realidade apresentaria por si só os defeitos da realidade

·         Essa perspectiva “objetiva” (ou objetivista) também é materialista; na verdade, a objetividade dessa perspectiva viria do seu materialismo à o melhor e mais forte exemplo de objetivismo materialista é o marxismo

·         Para esse objetivismo materialista, toda avaliação da realidade (ou da sociedade) que tenha parâmetros morais explícitos será “moralista”

·         Se os parâmetros morais são rejeitados como critérios explícitos de avaliação, eles também são rejeitados como elementos de mudança social à o objetivismo materialista aceita apenas “soluções” materialistas, isto é, políticas e econômicas

o   Vale notar que as “soluções” materialistas reduzem todos os problemas sociais a questões de poder, isto é, a disputas sobre quem impõe a vontade e os próprios valores sobre os demais

o   Em outras palavras, as “soluções” materialistas desprezam a negociação, o convencimento, o aconselhamento

§  Entretanto, como ficou bastante claro ao longo deste curso de política positiva, é simplesmente impossível fazer qualquer avaliação da realidade (ou da sociedade) sem ter valores morais, sejam eles explícitos (como no caso dos positivistas), sejam eles implícitos (como no caso dos marxistas)

§  Assim, quem supõe que não é “moralista” porque suas críticas provêm da própria realidade comete vários erros de uma única vez:

·         É ingênuo em termos epistemológicos:

o   Ignora a necessidade intelectual dos valores morais

o   Supõe que existe uma realidade abstrata e fantasmagórica cujas avaliações impor-se-iam por si sós;

·         É ingênuo em termos morais, pois rejeita a importância do altruísmo e, portanto, dá livre vazão ao egoísmo à de acordo com essa concepção, existe apenas o egoísmo e a violência; o altruísmo e o convencimento leal e legítimo seriam recursos retóricos e hipócritas;

·         É mau caráter em termos políticos, pois despreza quem valoriza explicitamente o altruísmo;

·         No caso de saber que tem valores morais mas rejeitar sua exposição às claras, é hipócrita e cínico.

§  Há uma outra possibilidade de entender a palavra “moralista”: seria aquele que aplica conceitos morais na análise social desconsiderando aspectos sociais e políticos da realidade social avaliada à em outras palavras, seriam as pessoas que avaliam a realidade apenas a partir de critérios morais, sem outros parâmetros

·         Augusto Comte chama esse tipo de defeito intelectual e moral de “espiritualismo”

·         O Positivismo fundou a Sociologia: o estudo da realidade social integra plenamente a doutrina; assim, não faz sentido dizer que o Positivismo aplica parâmetros morais desconsiderando a realidade social avaliada à o conjunto da escala enciclopédica e o relativismo impedem o vício espiritualista no âmbito do Positivismo

29 março 2022

Curso livre de política positiva: roteiro da 1ª sessão

Reproduzo abaixo o roteiro da primeira sessão do Curso livre de política positiva, ocorrida no dia 8 de março, transmitida no canal Facebook.com/ApostoladoPositivista e também disponível no canal The Positivism (aqui).

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Súmula

Apresentação: justificativa; foco geral do curso; estrutura do curso

Notas sobre a biografia de Augusto Comte e sua época

Preliminares à Política Positiva I: relativismo 

Roteiro

-        Apresentação

o   Apresentação pessoal:

§  Positivista ortodoxo

§  Sociólogo, doutor em Sociologia Política

o   Justificativa:

§  Preocupação do Positivismo com o esclarecimento público e popular

§  Inspiração nos cursos públicos ministrados no século XIX pelos positivistas franceses e no século XX por Luís Hildebrando Horta Barbosa

·         No caso dos positivistas franceses: exemplo do próprio Comte (cursos de filosofia positiva, de Astronomia popular, de Geometria; Associação Livre para a Instrução Positiva do Povo em Todo o Ocidente Europeu); Sociedade Positivista de Ensino Popular

§  Difusão do espírito positivo, conjugando as vistas gerais com vistas de detalhe

§  Importância renovada e ampliada nos últimos anos, com a proliferação e o sistemático uso político da desinformação, do “espírito crítico”, da manipulação dos sentimentos populares e dos golpes publicitários

o   Foco geral do curso:

§  Sociologia Política proposta por Augusto Comte

§  O título – “curso livre de política positiva” – refere-se ao seguinte:

·         O “curso livre” significa que ele consiste no que se pode chamar de “divulgação científica”, ou seja, que busca apresentar elementos teóricos, filosóficos, sociológicos e políticos para o grande público, leigo ou não, acadêmico ou não

·         A “política positiva” refere-se às duas etapas presentes na fase “positiva” da lei dos três estados: é o estudo real da política (em termos analíticos) seguido da avaliação filosófico-moral (sintética) da política

·         Em suma: é um curso público, não institucional, sobre a Sociologia Política desenvolvida por Augusto Comte

o   Estrutura do curso:

§  15 sessões, apresentadas todas as terças-feiras a partir das 19h, com duração de cerca de 45 minutos, seguidas por perguntas (se houver) e respostas

-        Breves comentários biográficos sobre Augusto Comte e sua época:

o   Indicações biográficas: nascimento; ingresso na Escola Politécnica; casamento com Carolina Massin; curso de filosofia positiva; publicação da Filosofia; separação de Carolina; encontro e relacionamento casto com Clotilde de Vaux; Revolução de 1848 e Discurso sobre o conjunto do Positivismo; instituição da Religião da Humanidade e publicação da Política, do Catecismo, do Apelo; a síntese subjetiva; falecimento

o   A época de Augusto Comte: Revolução Francesa destruindo a antiga ordem social, mas sem pôr efetivamente nada no lugar; fim das antigas doutrinas e estruturas, necessidade de novas; oscilação entre retrógrados e revolucionários (ordem e progresso); desenvolvimento das ciências; desenvolvimento da sociedade industrial; necessidade e oportunidade da ciência da sociedade; necessidade e oportunidade de um novo poder espiritual

-        Necessidade de exposição de alguns conceitos preliminares

o   Para entender o Positivismo e a política positiva, é necessário entender vários conceitos preliminares

§  Esses conceitos são “pressupostos”, mas não são meras postulações axiomáticas, como se Augusto Comte tivesse-os tirado de sua cabeça pura e simplesmente; são conceitos históricos, no duplo sentido de que (1) foram elaborados ao longo do tempo e (2) resultam de testes e experiências humanas ocorridas ao longo do tempo

§  Além disso, vale notar que, muito ao contrário do que se afirma geralmente, tais preliminares não são a “metafísica” de Comte, seja porque a metafísica para Comte não corresponde a tais preliminares, seja porque, como indicamos, a metafísica no sentido vago de que “preliminares” ou “pressupostos” geralmente apresenta o caráter de princípios axiomáticos, ou seja, de verdades autoevidentes, a priori e deduzidas como que do nada

o   Proponho duas ordens de preliminares: filosóficas e sociológicas

§  Essas duas ordens evidentemente estão relacionadas entre si (em particular porque a filosofia comtiana é uma filosofia sociológica, da mesma forma que sua sociologia é filosófica), mas elas são suficientemente distintas para serem apresentadas de maneira separada e, mais do que isso, de maneira subsequente uma em relação à outra

§  Nesta aula pretendo apresentar, ou pelo menos começar a apresentar, as preliminares filosóficas; na próxima sessão apresentarei as preliminares sociológicas

§  Os conceitos preliminares que me proponho apresentar não são exaustivos; eles são apenas alguns conceitos que me parecem ser minimamente necessários para que se compreenda a política positiva

o   Preliminares filosóficas: relativismo; historicismo; visão de conjunto, visão de detalhe; objetividade e subjetividade

o   Preliminares sociológicas: descrições e prescrições; escala enciclopédica e graus de generalidade; estática e dinâmica; a síntese subjetiva; o “estado normal”

-        Preliminares filosóficas:

o   Relativismo:

§  Conceito fundamental do Positivismo:

·         Expressado desde o início da carreira de Augusto Comte: “tudo é relativo, eis o único princípio absoluto” (1819)

·         Desenvolvido e aplicado cada vez mais em cada vez mais casos ao longo da carreira

§  “Relacionismo” cognitivo (sensações) e intelectual (relações entre fenômenos)

§  Antiabsolutismo

§  “Subjetivismo social”, relativo ao ser humano em geral à novo antropocentrismo

§  Lei dos três estados:

·         Lei de interpretação intelectual da realidade

·         De caráter qualitativo

·         Em última análise, estabelece a transição entre as concepções absolutas e as concepções relativas


15 novembro 2021

Diário de Caratinga - entrevista sobre Positivismo e República

O jornal Diário de Caratinga, do interior de Minas Gerais, fez uma entrevista por escrito comigo sobre o Positivismo e a República, para ser publicado em sua edição de final de semana, de 13 e 14 de novembro de 2021. Realizada pelo jornalista José Horta da Silva, essa longa entrevista foi publicada na íntegra; eu reproduzo-a abaixo.


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O que é Positivismo?

Essa pergunta é simples mas exige uma resposta que pode ser um pouco complexa.

Ele é uma filosofia, uma política e uma religião, ou seja, é um sistema de pensamento que busca explicar o conjunto do mundo e do ser humano e, a partir daí, busca orientar as condutas humanas (individuais e coletivas). O Positivismo baseia-se na realidade e na importância do amor e do altruísmo para orientar a conduta humana; como precisamos conhecer a realidade para satisfazer as nossas necessidades, o conhecimento científico é a base desse conhecimento. Isso tudo é sintetizado na Religião da Humanidade, que é uma religião humanista, secular e laica, que afasta o absoluto e busca a fraternidade universal.

 

Como o Positivismo influenciou a Proclamação da República?

O Positivismo influenciou pelo menos de duas maneiras.

Por um lado, ele criou um forte ambiente progressista, modernizador, secular, laico, que propunha a ultrapassagem dos traços profundamente atrasados da sociedade brasileira do século XIX, como a monarquia e a sua base social, política e econômica, a escravidão.

Por outro lado, o positivista Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) era professor de matemática na Escola Militar; suas aulas eram consideradas excelentes, por seu estilo e por sua profundidade filosófica. Além disso, o Positivismo afirma que a ciência pela ciência é imoral, ou seja, que a ciência tem que ter uma preocupação, uma orientação social. Tudo isso foi reconhecido por seus alunos (entre os quais estavam, por exemplo, Rondon e Euclides da Cunha) como importante e correto, o que os levou a empolgarem-se politicamente; naquela época, a militância social e política era bastante clara: contra a escravidão e a favor da república.

Aqui é necessário narrar vários fatores daquela época. Após a abolição da escravidão em 1888, as pressões em favor da república cresceram muito, devido a vários motivos. Em parte porque muitos reconheciam que a monarquia sacraliza uma sociedade atrasada, baseada em privilégios de casta, isto é, vinculados ao nascimento, e que deveria ser substituída por uma sociedade de isonomia (igualdade perante a lei), socialmente inclusiva e que valorize o mérito, não o berço. Vinculado a isso está o fato de que a monarquia nunca foi solidamente implantada no Brasil; havia um certo respeito pela figura de d. Pedro II, mas a monarquia em si era vista em termos meramente instrumentais: não havia uma adesão à monarquia como um princípio moral a ser seguido. O fato de a monarquia ter-se baseado durante toda a sua duração na escravidão indicava o quanto ela era retrógrada, assim como a ausência de indústrias no Brasil e a falta de trabalho livre (e da dignidade do trabalho e dos trabalhadores). A princesa Isabel era clericalista e, ainda por cima, era casada com um francês: mesmo quem não era republicano tinha medo do possível terceiro reinado (o possível futuro reinado da princesa Isabel), que viam como retrógrado ou até reacionário. O excessivo centralismo monárquico, em prejuízo das autonomias provinciais (isto é, dos estados), era bastante criticado, como nos casos de São Paulo e, ainda mais, do Rio Grande do Sul. Da mesma forma, os antigos donos de escravos, principalmente da atual região Sudeste (São Paulo em particular) ficaram muito irritados com o fim da escravidão, ou seja, com seus prejuízos econômicos.

Há outros fatores, mas importa também indicar a situação dos militares. Havia também um forte ressentimento dos militares contra a monarquia: soldos baixos, desprestígio político e social, falta de reconhecimento pelos seus esforços na violentíssima Guerra da Tríplice Aliança (“Guerra do Paraguai”). A Guerra da Tríplice Aliança foi uma aventura militar imperialista do Brasil contra o Paraguai e a favor do intervencionismo brasileiro nos países platinos, especialmente no Uruguai. Durante o conflito os soldados brasileiros travaram contato com as repúblicas platinas livres, isto é, repúblicas sem escravidão; isso os impressionou muito, bem como a resistência heróica dos cidadãos livres do Paraguai e as promessas (cumpridas pela metade) de alforria dos soldados brasileiros escravos. Por fim, a guerra acabou com a caçada a Solano López, ordenada pelo próprio d. Pedro II ao Conde d'Eu, consorte da princesa Isabel.

Na década de 1880 os militares quiseram expressar-se politicamente e foram seguidamente reprimidos, na chamada “Questão militar”; em um regime que se baseava no militarismo mas que se proclamava civilista, isso foi fatal.

Enfim: em 1887 foi fundado o Clube Militar, com Deodoro da Fonseca como presidente e Benjamin Constant como vice-presidente; eles eram os dois militares fora do governo que gozavam de maior prestígio, representantes das duas principais alas dos militares, os vinculados à vida na caserna (Deodoro) e os que buscavam fundamentos científicos para sua atuação (Benjamin Constant). Com isso os militares passaram a manifestar-se politicamente de maneira organizada, atuando nas duas principais questões da época, a abolição e a república. Em 1887 eles recusaram-se a caçar os escravos fugitivos; depois disso, a pressão política pela república aumentou cada vez mais e Benjamin Constant tornou-se o foco dessas pressões.

Embora pessoalmente Benjamin Constant não quisesse participar das conspirações, naquela conjuntura ele era realmente o foco das atenções e um líder natural; buscando evitar o caudilhismo, o militarismo na política e a violência, ele aceitou. Com isso, ele convenceu Deodoro a participar da ação e, juntamente com outros líderes militares e civis, planejavam proclamar a república na segunda quinzena de novembro. Entretanto, os acontecimentos precipitaram-se e na madrugada de 15 de novembro houve, afinal, a proclamação.

Essas várias críticas são importantes também porque atualmente há uma expressiva mas estranha revalorização da monarquia e, em particular, de d. Pedro II. Essa revalorização é bastante romântica e deixa de lado todos os problemas criados e mantidos pela monarquia (e pelo próprio d. Pedro II).

 

Ainda sobre a questão da influência do Positivismo na Proclamação da República, muito se fala do lema “O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”. Porque 'amor' ficou fora da bandeira nacional?

Essa é uma boa questão.

A atual bandeira nacional foi tornada oficial em 19 de novembro de 1889, ou seja, apenas quatro dias após a proclamação. O esboço é da autoria de Raimundo Teixeira Mendes (fundador e vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil) e a sua pintura ficou a cargo do também positivista Décio Villares, importante pintor e escultor da I República.

A frase central do Positivismo é um pouco diferente da que você indicou; é assim: “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”. Essa é a fórmula religiosa mais importante do Positivismo; já o “Ordem e Progresso” corresponde a uma fórmula política, que indica os anseios de todos os cidadãos por ordem e progresso, isto é, por uma ordem que propicie o progresso e um progresso que respeite a ordem (é claro que, nesse sentido, a “ordem” não pode ser estática). Tanto a fórmula “O amor por princípio...” quanto o “Ordem e Progresso” foram propostas desde o início por Augusto Comte, fundador do Positivismo, em suas obras; o que Teixeira Mendes fez foi seguir as indicações de Comte para a bandeira do Brasil, em que há a permanência da sociedade brasileira (com o fundo verde e o losango amarelo, que já estavam na bandeira do império) e também a evolução nacional (com a esfera azul e a faixa branca com o “Ordem e Progresso” em letras verdes).

Em outras palavras, na bandeira o “amor” não ficou de fora, pois o “Ordem e Progresso” é um programa político e não religioso.

Dito isso, eu tenho que admitir que vejo com grande simpatia as propostas de incluir o “amor” na bandeira nacional. O único erro de tais propostas é considerar que Teixeira Mendes teria “errado”, teria “alterado” as propostas originais de Comte ao deixar lado – querendo com isso dar-se a impressão de que Teixeira Mendes teria desprezado – o “amor”.

 

Hoje é muito comentada a questão o Estado Laico, mas o Positivismo já tratava dessa separação do Estado com a Religião. Poderia nos explicar?

Um dos princípios políticos mais elementares do Positivismo é a separação entre o poder Temporal e o poder Espiritual, isto é, entre o governo e todos aqueles que emitem opiniões. Isso significa que o Estado não pode ter religião oficial, ou seja, não é aceitável que o Estado imponha alguma doutrina sobre o conjunto da sociedade. Se pensarmos na situação do império brasileiro, o catolicismo era a religião oficial do Estado: havia uma limitada tolerância, em que os protestantismos eram aceitos (em grande parte devido à imigração de alemãoes e suíços para o Rio de Janeiro e para a atual região Sul) e também os positivistas; mas as religiões de origem africana, o espiritismo e muitas outras eram simplesmente proibidas e tratadas com base em prisões e espancamentos. (Os templos não católicos eram permitidos, desde que suas fachadas não exibissem o aspecto de templo.) Além disso, só eram aceitos como cidadãos brasileiros quem professasse o catolicismo. Algo muito parecido ocorre ainda hoje na Inglaterra: como a religião oficial de Estado lá é o anglicanismo (e a rainha é a chefe da igreja), somente anglicanos podem ser primeiros-ministros.

A separação entre os dois poderes também implica, inversamente, que nenhuma doutrina pode valer-se do Estado para sua promoção, para seu financiamento. Isso significa que é inaceitável que as igrejas (como instituições e como prédios físicos) usem o Estado para financiarem-se; ou seja, os impostos não podem ser empregados na promoção das doutrinas. Isso vale tanto para as teologias quanto para as doutrinas metafísicas quanto para as doutrinas científicas.

A separação entre igreja e Estado foi uma das primeiras medidas adotadas pela República, dois meses após a proclamação, por meio do Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890. A proposta inicial era de Demétrio Ribeiro (positivista gaúcho) e previa a separação entre igreja e Estado, o fim do catolicismo como religião oficial, as liberdades de consciência, expressão e organização, a instituição dos registros civis de nascimento, casamento e morte e a manutenção dos salários dos sacerdotes católicos que até então eram pagos pelo Estado. O texto que finalmente foi aprovado é da lavra de Rui Barbosa e, além dos dispositivos iniciais, apresenta um forte caráter anticlericalista (isto é, contrário às igrejas, em particular a católica) – anticlericalismo que era ausente do projeto positivista.

Vale notar que a separação entre igreja e Estado, com as liberdades civis, era pedida fazia muitos anos por muitos grupos políticos e que, após 1890, não houve nenhuma reação popular contra ela. A igreja católica reclamou da perda dos seus privilégios, mas, anos depois, reconheceu que a laicidade do Estado deu-lhe a liberdade para reorganizar-se; a partir de 1916, com a proposta de “neocristandade” de Sebastião Leme uma nova ofensiva sobre o Estado teve início e foi coroada de êxito em 1931, quando esse cardeal intimou Getúlio Vargas, na inauguração do Cristo Redentor, a apoiar a igreja para que Vargas tivesse apoio político (a Revolução de 1930 ocorrera um pouco antes e Getúlio Vargas precisava muito de apoio).

 

Algumas correntes filosóficas costumam marcar um determinado período. E hoje, ainda podemos notar traços do Positivismo no mundo?

Sim e não. É bem verdade que o período de maior importância do Positivismo no Brasil e no mundo foi entre o final do século XIX e o início do século XX – digamos, entre 1870 e 1914. De lá para cá muitas outras correntes políticas, sociais e filosóficas surgiram, a maior parte delas negando o Positivismo, seja por meio do irracionalismo, seja por meio do culto à violência, seja por meio da busca do absoluto, seja por meio do cientificismo. Além disso, o período que vai da I Guerra ao fim da II Guerra foi muito difícil para o mundo e para a Europa em particular; esse período exterminou as elites sociais européias e no fim marcou a ruína da Europa e do mundo legado pelo século XIX como parâmetros para o mundo. O que surgiu com clareza após a II Guerra foi um mundo realmente diferente, com a hegemonia dos EUA – e da sua superficialidade filosófica – e o conflito da Guerra Fria, seguidos pela descolonização da Ásia e da África e a crítica correta e cada vez maior ao colonialismo ocidental. Embora o Positivismo não seja eurocêntrico, é certo que o declínio da Europa teve um impacto poderoso sobre seus destinos. Em termos intelectuais, o século XX apresentou uma série de correntes que negam o Positivismo: as filosofias do entre-guerras, como os irracionalismos dadaísta e existencialista, o culto à violência próprio aos fascismos, os totalitarismos nazi-soviéticos; depois da II Guerra, ainda o totalitarismo soviético, o liberalismo materialista dos EUA, as críticas “descoloniais”, o pós-modernismo inaugurado em 1968, o neoliberalismo vitorioso a partir da década de 1980 e, mais recentemente, as políticas identitárias antiuniversalistas desde os anos 1990...

Mas, por outro lado, outras tendências políticas, sociais e filosóficas retomam valores claramente positivistas: políticas sociais combinadas com as liberdades, como nos casos do Welfare State e/ou da proclamação presente em nossa Constituição Federal de 1988 que a propriedade privada tem que ter objetivos sociais (concepções que foram resgatadas no Hemisfério Norte depois da crise de 2008 e, no Brasil e no mundo em geral, com a atual pandemia); o pacifismo cada vez mais generalizado; a preocupação cada vez maior com as gerações futuras, na forma do ambientalismo; o respeito à autonomia dos povos indígenas; a busca de vidas humanas plenas de sentido mas seculares, com a afirmação generalizada da importância dos sentimentos na vida humana... mesmo o desenvolvimento de práticas religiosas seculares nos EUA e na Europa vai na direção do Positivismo.

É certo que as tendências positivas indicadas acima têm muitas lacunas e muitas vezes são pouco sistemáticas; mas, no conjunto, elas realizam o que o Positivismo afirma como certo e como o futuro do ser humano. Em outras palavras: as tendências acima indicam que o Positivismo está certo, embora a doutrina positivista em si muitas vezes não seja seguida.

Sobre o legado do Positivismo hoje: há uma importante e crescente atividade positivista no Rio Grande do Sul, na igreja positivista de lá (e que fica em Porto Alegre).

02 julho 2020

Réplica a S. Schwartzmann: Positivismo e falsa analogia das crises de 1904 e 2020

O texto abaixo é uma réplica a um artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo no dia 12.6.2020, de autoria do sociólogo Simon Schwartzmann. Embora, como observo abaixo, o artigo original tenha feito inúmeras sugestões extremamente maliciosas contra o Positivismo e os positivistas e, portanto, uma réplica tenha-se mostrado necessária, o jornal paulistano recusou-se a publicar essa minha réplica. Assim, publico-a no espaço que me é permitido, a despeito do inflamado discurso do conservador jornal paulistano a respeito do "pluralismo", da "democracia" e do "debate de idéias".

Além disso, como também observo abaixo, o Positivismo é habitualmente empregado como o bode expiatório preferencial por todos os grupos político-intelectuais que querem encontrar algum responsável pelos problemas nacionais. Esse comportamento é intelectualmente desonesto e politicamente irresponsável, sem contar que, na quase totalidade das vezes, é historicamente mentiroso. Já passou da hora de os autodenominados "intelectuais" brasileiros abandonarem esse hábito infantil, de amadurecerem e de passarem a valorizar as inúmeras, enormes e profundas contribuições do Positivismo para o país, para o Ocidente e para o mundo.

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Positivismo e falsa analogia das crises de 1904 e 2020

Desde o início do governo Bolsonaro, devido à renovada importância que os militares assumiram no poder Executivo federal, o Positivismo voltou à baila. Entretanto, esse retorno do Positivismo dá-se mais por referências oblíquas e insinuações que por alguma influência direta e, mais importante, por alguma influência efetiva. Em outras palavras, o Positivismo serve como bode expiatório, como uma justificativa ad hoc para todos os incontáveis e injustificáveis erros, problemas e desvios que o governo apresenta. O mais notável é que esse papel atribuído ao Positivismo é mobilizado tanto pelo próprio governo e por seus apoiadores – basta ver as virulentas e assustadoras referências feitas por filhos do Presidente da República, pelo seu guru-astrólogo e pela grande imprensa conservadora – quanto por setores “liberais” e mesmo oposicionistas: no que se refere ao governo e aos conservadores, já tive ocasião de publicar uma refutação mínima (na Gazeta do Povo e no Monitor Mercantil); agora o sociólogo Simon Schwartzman retoma a tradição do liberalismo conservador brasileiro para, com argumentos que parecem inspirados no realismo mágico, atribuir ao Positivismo vícios da política nacional.

No artigo “A revolta da vacina”, publicado em O Estado de S. Paulo de 12.6.2020, Schwartzman afirma que a atual politização da crise sanitária encontra um precedente na Revolta da Vacina de 1904; supostamente em ambos os episódios notam-se políticos radicalizados afirmando a falta de eficácia de medidas sanitárias recomendadas pelas autoridades públicas, estimulando a resistência do comum do povo a essas medidas, com o apoio de militares. Embora décadas atrás Schwartzman tenha feito algumas pesquisas de história da ciência no Brasil, ele limita-se a citar literatura de segunda e terceira mão para reiteradamente afirmar que o Positivismo como doutrina e os positivistas como agentes teriam apoiado os radicais do início da I República – os “jacobinos” – na Revolta; essa insistência em referir-se ao Positivismo tem o claro e evidente efeito de sugerir que essa mesma doutrina inspiraria ainda hoje o radicalismo conservador da extrema direita. Vamos aos fatos, então.

Em primeiro lugar, o procedimento de Schwartzman é sofístico. O atual governo é ao mesmo tempo ultraconservador (com sua apologia da “tradição” e da monarquia (sociedade de castas, escravismo, nacionalismo estreito), mas contra todas as tradições republicanas efetivamente afirmadas pelo Positivismo (pacifismo, tolerância, fraternidade universal, racionalidade científica, civilismo, respeito ao meio ambiente, aos índios, às minorias, às liberdades de pensamento e de expressão)) e revolucionário (com o combate ativo e militante contra os “progressistas”, o “globalismo”, o “marxismo cultural”); assim, Schwartzman é incapaz, por ser impossível, de provar qualquer influência do Positivismo no governo Bolsonaro. Dessa forma, o sociólogo mineiro sugere um paralelo entre duas situações históricas; essa mera sugestão atua como “prova” de seu argumento. Ele não demonstra; ela faz uma afirmação e deixa para o leitor o trabalho de tirar as consequências, que, todavia, permanecem sem qualquer base empírica. Vale notar que esse mesmo procedimento está na base de todas as teorias da conspiração – que, como tristemente se sabe, têm enorme relevância política nos dias atuais.

Mas, em segundo lugar, é claro que a atuação dos positivistas na I República e, de modo particular, na Revolta da Vacina está muito mal contada por Schwartzman. Em 1904 o médico Oswaldo Cruz decidiu combater a febre amarela, empregando o que era então uma técnica inovadora: a inoculação de patógenos enfraquecidos por meio de injeções, a fim de gerarem-se anticorpos contra a doença. Ora, esse procedimento da vacina foi estabelecido ao longo do século XX como correto e necessário; todavia, no início do século XX isso não estava firmemente estabelecido como adequado e seguro e – isto é o principal – os procedimentos adotados por Oswaldo Cruz eram anti-higiênicos e profundamente autoritários. As exitosas campanhas de vacinação levadas a cabo no Brasil pelo menos desde a década de 1980 buscam conscientizar a população da necessidade da vacinação; em outras palavras, tais campanhas postulam o caráter voluntário da vacinação: respeita-se a livre decisão individual e familiar. Ao mesmo tempo, a aplicação das vacinas é cercada por inúmeros protocolos higiênicos, incluindo aí a assepsia da pele (no caso da inoculação da vacina via injeções) e o descarte de seringas e agulhas descartáveis.

Nada disso estava presente na campanha de 1904: as agulhas e as seringas eram reutilizadas (e sem assepsia entre uma aplicação e outra) e, mais importante, os agentes sanitários forçavam os cidadãos a serem vacinados, injetando à força as agulhas em seus corpos, invadindo casas e violentando as pessoas para submeterem-se aos seus desígnios; evidentemente, essa violência era particularmente empregada contra a população pobre – que, ao fim e ao cabo, acabou revoltando-se contra invasões, espancamentos, a disseminação de doenças e a aplicação de um procedimento cuja eficácia estava então longe de estar estabelecida (e que, nas condições específicas daquela “campanha”, era efetivamente muito discutível). Não é por acaso que o vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil e autor da bandeira nacional republicana, Raimundo Teixeira Mendes, chamava toda essa lamentável situação de “despotismo sanitário”. Dessa forma, os positivistas foram, sim, favoráveis à revolta popular contra a vacina; entretanto, ao contrário do que Schwartzman consegue apenas “sugerir”, não se tratava de uma postura anticientífica e de radicalismo anti-intelectualista, mas de um profundo respeito à dignidade humana, à inviolabilidade dos corpos e dos domicílios e às liberdades de pensamento e expressão. Em outras palavras, os positivistas defendiam todos os valores mais caros ao liberalismo – aliás, justamente ao liberalismo que supostamente Schwartzman defende –; da mesma forma, os positivistas opunham-se ao que se chama hoje em dia de “tecnocracia” e de “cientificismo”, ao contrário do que Schwartzman parece defender em seu artigo.

O sociólogo mineiro dá a entender que todos os que se opunham à campanha de vacinação de Oswaldo Cruz eram (1) positivistas e (2) políticos demagógicos que politizavam e radicalizavam sentimentos populares irracionais contra a vacina. Essas duas presunções são exageradas e estapafúrdias. É aceitável considerar que houvesse demagogos explorando a insatisfação popular; a política da I República era infelizmente e por vezes dada a disputas agressivas; entretanto, como vimos, quem se opunha à campanha da vacinação estava longe de ser necessariamente irracional, anticientífico, favorável a guerras civis. Entre os republicanos radicais, os “jacobinos”, havia efetivamente alguns que se identificavam com e como positivistas; todavia, o próprio Teixeira Mendes afirmava que a política republicana deve ser pacífica e, assim, condenava tanto a violência governamental do despotismo sanitário quanto a explosão popular e a exploração demagógica dela. Vale notar que todos esses argumentos são públicos e, embora um tanto restritos, são facilmente acessíveis para qualquer pesquisador minimamente preparado, como supomos ser Schwartzman, cuja carreira tem muitas décadas de duração.

Para concluir: a conjuntura político-sanitária de 2020 é muito, muito diferente da de 1904. As campanhas de vacinação respeitam a dignidade humana e são higienicamente adequadas; a racionalidade científica subjacente a elas está bem estabelecida. Assim, ao contrário do que ocorreu em 1904, a politização sistemática de uma crise sanitária é, sim, demagógica, mesmo quando realizada pelo governo; mas, assim como em 1904, o governo e os liberais opõem-se aos positivistas, ao “Ordem e Progresso”, em seus desígnios. É difícil não considerar que as coisas estão bastante erradas.