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20 outubro 2019

Comemoração do nascimento de Benjamin Constant, o Fundador da República Brasileira

No dia 11 de Descartes de 48 (18 de outubro de 1836) - no dia de Vauvenargues - nascia em Niterói (então capital da província do Rio de Janeiro) Benjamin Constant Botelho de Magalhães. Seu nome foi uma homenagem que seu pai rendeu ao pensador liberal franco-suíço Benjamin Constant (1767-1830), falecido alguns anos antes e que produziu algumas reflexões políticas memoráveis, como a famosa conferência pronunciada no Athenée Royal em 1819, Da liberdade dos modernos comparada à dos antigos.


Benjamin Constant Botelho de Magalhães
Fonte: Wikipédia.

Como muitas pessoas de sua época, Benjamin Constant Botelho de Magalhães ingressou no Exército devido às difíceis condições econômicas de sua família, seguindo a carreira técnica como engenheiro e preferindo, acima de tudo, a docência. Participou da Guerra da Tríplice Aliança (a Guerra do Paraguai, 1865-1870) por um curto período de tempo - 1866-1867 -, voltando à Corte devido a problemas de saúde. Durante sua presença no campo de batalha redigiu cartas pessoais em que considerava de maneira bastante negativa a condução da guerra e a atuação do futuro Duque de Caxias.

Foi professor de Matemáticas em diversas escolas superiores, como a Escola Politécnica, onde teve inúmeros alunos ilustres, entre os quais os futuros Diretor e vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil, respectivamente Miguel Lemos (1854-1917) e Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), além do engenheiro e escritor Euclides da Cunha (1866-1909) e do engenheiro militar e indianista Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), o "Marechal da Paz".

Chegou a ser tutor dos netos de d. Pedro II. Inteligência brilhante e professor de altíssimas qualidades didáticas, foi aprovado em primeiro em três concursos para o magistério superior; nessas três ocasiões, a despeito de apresentar-se como "sábio", como "cultor das artes e das ciências", como "estadista", o Imperador nomeou para os cargos os candidatos que tinham ficado em segundo lugar, preterindo o mérito docente e intelectual de Benjamin Constant.

Desde cedo perfilhou o Positivismo e a Religião da Humanidade; em suas cartas escritas na frente paraguaia, Benjamin Constant refere-se ao Positivismo como sendo "a minha religião". A modernidade, a clareza, o altruísmo, o republicanismo pregados pelo Positivismo, somados ao caráter honesto e reto de Benjamin Constant levaram a ser altamente respeitado por seus alunos da Escola Militar. Além disso, perfilhava com o Positivismo o combate à escravidão, o que tornava toda sua atuação intelectual motivo de respeito e também de interesse político.

Docência, abolicionismo e republicanismo

Os sacrifícios que os soldados brasileiros fizeram durante a Guerra da Tríplice Aliança foram desprezados pelos governantes após 1870; ao mesmo tempo, o republicanismo e o abolicionismo tornaram-se temas da pauta pública a partir daquela data. O desrespeito do governo ao Exército configurava-se de diversas maneiras: a existência paralela da Guarda Nacional, de caráter civil e miliciano, embora de muito mais prestígio; a vedação à participação política franca dos militares, embora os oficiais fossem constantemente chamados a ocupar cargos públicos; os baixos salários, a falta de preparo e o baixíssimo prestígio do Exército.

Na década de 1880 houve sérios problemas políticos entre os civis e alguns militares que externavam opiniões políticas, no que foi chamado de "Questão Militar". O baixo prestígio geral de que a tropa gozava uniu-a corporativamente e levou os militares paulatinamente a oporem-se ao governo, senão à própria monarquia.

Em 1887 as duas grandes partes do Exército - os "troupiers", a gente sem formação teórica mas habituados à vida militar, e os "doutores", os militares formados nas escolas superiores - criaram em conjunto o Clube Militar, por meio da associação e da amizade pessoal dos dois grandes líderes de cada uma dessas partes: Deodoro da Fonseca, Presidente do Clube, e Benjamin Constant, vice-Presidente da associação. O Clube Militar tornou-se o órgão político do Exército; uma de suas primeiras medidas foi negar o apoio ao escravagismo da monarquia, ao recusar-se a caçar os escravos fugidos.

O papel de liderança intelectual, moral e política levou Benjamin Constant a tornar-se líder do movimento republicano, em especial pondo-se à frente dos cadetes da Escola Militar que ansiavam, justamente, um líder da modernidade, do esclarecimento, do republicanismo, da abolição da escravatura.

Assim, se na manhã de 15 de novembro de 1889 foi Deodoro da Fonseca quem fez a proclamação da República, foi Benjamin Constant quem articulou o movimento, quem convenceu Deodoro, quem evitou a violência.

Deposta a monarquia, Benjamin Constant integrou o governo provisório na pasta da Guerra (novembro de 1889 a março de 1890) e, em seguida, na recém-criada pasta da Instrução Pública (março de 1890 a janeiro de 1891).

Foi um dos principais responsáveis pela separação entre igreja e Estado no Brasil - estabelecida pelo Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890 - e também pela nossa atual bandeira nacional (de autoria de Teixeira Mendes, com arte de Décio Villares) - estabelecida no dia 19 de novembro de 1889.

Morto em 22 de Moisés de 103 (22 de janeiro de 1891), recebeu o título de "Fundador da República Brasileira" pela Constituição de 24 de fevereiro de 1891. Como foi Diretor do Instituto de Meninos Cegos, essa instituição recebeu em 1891 o nome de Instituto Benjamin Constant. Além disso, a casa em que morava no bairro carioca de Santa Tereza virou o Museu Casa de Benjamin Constant. Em 1926 foi inaugurado na Praça da República um monumento em homenagem a Benjamin Constant, de autoria dos artistas positivistas Décio Villares e Eduardo de Sá.


Inauguração do monumento a Benjamin Constant na Praça da República, em 1926.
Fonte original: revista O Malho. Reproduzido de Inventário de Monumentos do Rio de Janeiro (http://inventariodosmonumentosrj.com.br/?iMENU=catalogo&iiCOD=66&iMONU=Benjamim%20Constant).


Importância histórica e legado de Benjamin Constant

Logo após sua morte, Raimundo Teixeira Mendes publicou uma alentada biografia em dois volumes, intitulada Benjamin Constant: esboço de uma apreciação sintetica da vida e da obra do fundador da República Brazileira (disponível aqui) - biografia que, aliás, permanece como a maior e melhor obra sobre a vida de Benjamin Constant até hoje

Observava Teixeira Mendes que Benjamin Constant não era um positivista completo nem seguia sempre as orientações de Augusto Comte, nem mesmo demonstrava a energia necessária em todos os momentos; mas, a despeito desses defeitos, ele mostrou-se à altura das necessidades do momento, em particular em 1889, além de sempre se ter afirmado positivista e adepto da Religião da Humanidade.

De nossa parte, queremos enfatizar que a atuação de Benjamin Constant era positiva e seguia o Positivismo em alguns aspectos centrais, que servem de exemplo até - e mesmo principalmente - nos dias de hoje:

1) afirmava a decadência social do militarismo;

2) afirmava a liberdade de pensamento e de expressão;

3) afirmava a preeminência social, intelectual e moral do pacifismo;

4) afirmava a necessidade da cultura afetiva juntamente com o conhecimento científico e a atividade produtiva.

Em outras palavras, embora devido às suas necessidades materiais fosse um militar de carreira, Benjamin Constant não era militarista e, entendendo o sentido histórico da civilização ocidental, compreendia que o pacifismo e as liberdades de pensamento e de expressão constituem os traços permanentes de nossas sociedades. 

Nesse sentido, por exemplo, propunha a doutrina do soldado-cidadão, em que o soldado deveria antes de mais nada ser um cidadão, um membro produtivo, pacífico e respeitador das leis - ao contrário do que, duas décadas depois, Olavo Bilac proporia, afirmando que os cidadãos deveriam ser soldados. Não é à toa que o ensino de Benjamin Constant tenha sido, depois, ao longo do século XX, combatido ativamente por militares que se revelariam fascistas, golpistas e autoritários - militares como Góes Monteiro, Eurico Gaspar Dutra, Olympio Mourão Filho, Cordeiro de Farias (entre muitos outros), vinculados à "Liga da Defesa Nacional", à revista A Defesa Nacional e, acima de tudo, às missões militares alemãs e francesas.

16 setembro 2019

A sociedade industrial para Augusto Comte - roteiro de uma prédica

No dia 15 de setembro de 2019 fiz uma prédica na Igreja Positivista do Rio Grande do Sul sobre a "sociedade industrial", conceito sociológico elaborado por Augusto Comte em sua Sociologia Dinâmica para entender a realidade contemporânea e orientar a ação prática.

Para essa prédica elaborei um pequeno roteiro, que foi mais ou menos seguido na ocasião - os improvisos e as digressões são parte de qualquer exposição oral. Reunindo as anotações iniciais com algumas das observações feitas de improviso, apresento o resumo abaixo, que é razoavelmente explicativo. É claro que se os leitores tiverem dúvidas ou sugestões, elas serão bem-vindas.


*   *   *


-        É um ótimo exemplo de conceito que reúne considerações sociológicas, históricas, filosóficas e morais – e também políticas
o   Assim, é um exemplo de aplicação prática dos preceitos religiosos da Religião da Humanidade
-        A “sociedade industrial” é o conceito com que Augusto Comte define a organização social, política e econômica das sociedades modernas
o   Um paralelo com “capitalismo”, de Marx, é útil: ambos os conceitos referem-se mais ou menos às mesmas coisas e ao mesmo período, igualmente com juízos de valor subjacentes; mas para Marx o “capitalismo” é um sistema totalmente impessoal que deve ser destruído por meios revolucionários em prol do comunismo; já a “sociedade industrial” é uma organização social e política vigente que deve ser aperfeiçoada, mas que permite o desenvolvimento das forças humanas
-        A melhor forma de expor a idéia da sociedade é industrial é adotando o procedimento de Comte, ou seja, por meio da contraposição com as sociedades militares
-        Na verdade, isso consiste na conjugação das leis dinâmicas do entendimento humano, que correspondem às leis VII a IX da Filosofia Primeira:

2ª série: leis dinâmicas do entendimento
1ª Cada entendimento oferece a sucessão dos três estados, fictício, abstrato e positivo, em relação às nossas concepções quaisquer, mas com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes (VII)
2ª A atividade é primeiro conquistadora, em seguida defensiva e enfim industrial (VIII)
3ª A sociabilidade é primeiro doméstica, em seguida cívica e enfim universal, segundo a natureza peculiar a cada um dos três instintos simpáticos [apego, veneração e bondade] (IX)

-        As sociedades militares foram as características da Antigüidade e da Idade Média, em que as concepções mais amplas de sociabilidade eram a família e a pátria (Antigüidade) e a pátria e a igreja (Idade Média)
o   Como são concepções parciais, a família e a pátria tendem a gerar competições entre as várias famílias e as várias pátrias: essas competições logo se transformaram em guerras
o   É necessária uma concepção universal para que se instaure a paz: somente a Humanidade pode gerar a paz mundial e perpétua
o   O Império Romano, embora baseasse-se na idéia de pátria, tinha uma concepção tendencialmente universalista de ser humano, o que o politeísmo facilitava, ao permitir com maior ou menor facilidade a incorporação dos vários grupos sociais; os romanos diziam, acertadamente, que “faziam a guerra para levar os hábitos da paz”
§  O Império Romano extinguiu até certo ponto as guerras de conquistas, incessantes na Europa e na Ásia Menor até então e criou uma enorme área de relativa estabilidade política, jurídica, econômica (e monetária e de pesos e medidas) na Europa e ao redor do Mar Mediterrâneo; com isso, lançou as bases necessárias para a civilização católico-feudal e para o desenvolvimento posterior da sociedade industrial
o   Na Idade Média o catolicismo permitiu a conjugação da pluralidade política (feudal) com a unidade de fé (católica); mas o caráter absoluto do catolicismo impede a sua plena universalização e, de qualquer maneira, ele entra em choque com outros sistemas absolutos, em particular o Islã
-        A atividade militar, então, foi inicialmente conquistadora (Antigüidade) e depois defensiva (Idade Média)
o   A partir de meados da Idade Média – grosso modo, no século XI – começa a ocorrer um movimento importante: a emancipação das comunas, isto é, das cidades, dos burgos (os habitantes dos burgos eram os burgueses), especialmente pelos reis
o   Essa expressão – “emancipação dos burgos” – significa o seguinte: até então os burgos estavam submetidos à autoridade política e social dos nobres, dos senhores feudais; com a emancipação, os burgos passaram a submeter-se apenas à autoridade dos reis e/ou a ter grande autonomia decisória à as repúblicas italianas, do Norte da Europa e outras surgiram dessa forma
o   As comunas obtiveram essa emancipação porque seus habitantes eram ativos politicamente e pressionavam nesse sentido; da mesma forma, eram artesãos, comerciantes, banqueiros etc., isto é, eram indivíduos e grupos que trabalhavam e produziam bens, serviços e riquezas
o   A emancipação das comunas indica, portanto, a mudança na organização social, que passava de militar e rural para industrial e urbana
-        A sociedade industrial, portanto, surge como um desenvolvimento das sociedades militares
o   Embora surja do desenvolvimento das sociedades militares, a sociedade industrial não é uma continuação delas: antes de mais nada, a sociedade industrial é pacífica
o   Na sociedade industrial há geração da riqueza e não somente espólio e rapinagem, como na atividade militar
-        A sociedade industrial gera riqueza; mas essa “geração de riqueza” não é só ou principalmente o acúmulo de riquezas: é a produção de bens e serviços com vistas ao bem-estar humano
o   Importa lembrar e afirmar com todas as letras: a ação militar visa à destruição dos bens e à morte dos inimigos; se há a busca de algum bem-estar, é da sociedade que conquista, não a da que é conquistada
o   Assim, enquanto as sociedades militares buscam a glória, as sociedades industriais buscam o bem-estar e o conforto
-        Uma precondição fundamental da sociedade industrial é a valorização do trabalho
o   Nas sociedades militares o trabalho é desvalorizado, sendo reservado aos escravos e/ou aos servos da gleba
o   A valorização do trabalho resulta também na repulsa à escravidão e na valorização dos trabalhadores, cuja dignidade é afirmada
o   Aliás, em contraposição às sociedades militares, a sociedade industrial valoriza a vida humana
-        A sociedade industrial suceder as sociedades militares não é somente uma questão de antecedentes e conseqüentes históricos; é necessário ativamente aperfeiçoar a sociedade industrial
o   Antes de mais nada, é necessário ultrapassar os hábitos militares, a busca da glória, o desejo da dominação, o estímulo ao militarismo
o   A noção militar de pátria tem que ser substituída pela concepção pacífica e altruísta de mátria
o   Os trabalhadores têm que ser valorizados e suas condições de vida têm que ser dignas
o   A burguesia (mesquinha e egoísta) tem que ser substituída pelo patriciado positivo (altruísta, generoso, de vistas e ações largas)
o   Os meios violentos têm que ser substituídos radicalmente pelos meios pacíficos
o   O poder Espiritual tem que ter um ascendente sobre a sociedade, em contraposição à ação violenta do poder Temporal
o   Os positivistas devem deixar de ser militares ou, caso permaneçam sendo militares, que orientem suas ações para fins positivos à apoio decidido ao civilismo dos militares
§  Exemplos máximos no Brasil: Benjamin Constant e Marechal Rondon
§  Ensino civilista de Benjamin Constant no Exército à não é à toa que a ação de Benjamin Constant foi duramente combatida pelos militaristas (Jovens Turcos, revista A Defesa Nacional, Olavo Bilac, Missão Alemã, Missão Francesa) e pelos fascistas (Góes Monteiro)
§  Benjamin Constant e doutrina do “soldado-cidadão”: ênfase no “cidadão” e na “civilização” da caserna, ao contrário do que Olavo Bilac pregava, que era a ênfase no “soldado” e na militarização da sociedade
§  Marechal Rondon: o “Marechal da Paz”; frase característica: “morrer se for preciso, matar nunca”
o   O militarismo antigo e medieval era justificável e aceitável; o militarismo moderno é aberrante e inaceitável
§  O nazismo, o fascismo e até o comunismo são militarismos modernos
§  O nacionalismo do século XX apresenta todos os defeitos ligados ao militarismo: xenofobia, intolerância, violência, busca da glória nacional, conservadorismo; situação exemplar do caso Dreyfus (1895-1905)
·         Caso Dreyfus: Exército francês reacionário, monarquista, belicista, xenófobo e antissemita; a libertação de Dreyfus e a reversão de sua condenação uniu vitoriosamente os republicanos e os progressistas franceses contra os grupos reacionários (monarquistas, Igreja Católica, alto comando do Exército, intelectuais literários)
-        Augusto Comte propôs um conjunto de medidas com vistas à consolidação e ao aperfeiçoamento da sociedade industrial, já com vistas à sociocracia

SUMÁRIO DAS MEDIDAS ESPECÍFICAS À TRANSIÇÃO ORGÂNICA

MEDIDAS
ÂMBITO DAS MEDIDAS
COMENTÁRIOS
Liberdade especulativa com o fim dos orçamentos teóricos
Temporal
Necessárias em todos os lugares
Substituição das Forças Armadas pela polícia
Instituição do triunvirato sistemático
Desenvolvimento do culto histórico
Espiritual
Estabelecimento das escolas positivistas
Ascendente do Positivismo sobre o comunismo
Decomposição dos grandes estados
Resume as duas séries anteriores

20 junho 2018

Ivan Lins: "Sobre o 'Ordem e Progresso', de Gilberto Freyre"

O sociólogo Gilberto Freyre, que adaptou para o Brasil algumas técnicas antropológicas dos EUA ao descrever em detalhes a intimidade da sociedade colonial brasileira, publicou no final dos anos 1950 um livro chamado Ordem e Progresso.

Embora G. Freyre reconhecesse que seus informantes podiam ter suas memórias alteradas pelo tempo e pela afetividade, em vários casos tomou as recordações alheias ao pé da letra, como se fossem a descrição da verdade - e sem se preocupar em verificar se as afirmações obtidas correspondiam ou não à verdade.

Assim, nesse livro ele reproduz, chamando de "interessantíssimo", o relato de um monarquista idoso e ressentido, que narra uma história que poderia detratar a ação política de Benjamin Constant, o fundador da República.

Pois bem: Ivan Lins - o historiador, não o cantor - publicou um artigo em que comenta criticamente a história publicada e o procedimento de Gilberto Freyre, notando o quão injuriosos e incorretos eles foram.

Graças à internet e à digitalização de documentos, é possível (re)ler essa notável réplica de Ivan Lins. Ela foi publicada na revista História, da Universidade de São Paulo, em seu v. 24, n. 49, de 1962, e pode ser lida aqui.

01 abril 2018

Gazeta do Povo: "Conservadores à deriva no Brasil"

Artigo publicado em 1º de abril de 2018 na Gazeta do Povo, de Curitiba. O original pode ser lido aqui.

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Conservadores à deriva no Brasil

Os conservadores brasileiros estão à deriva, ou assim parece; a falta de rumo que eles apresentam é tão grande que em muitos casos eles não deveriam ser chamados de “conservadores”, porém, sim, de “reacionários” ou de “retrógrados”. Cada vez mais se ouvem notícias ao mesmo tempo chocantes e tristes de pessoas que comemoram aniversários de adolescentes valorizando as relações sociais características da escravidão negra extinta em 1888; ou que chicoteiam manifestantes que expõem idéias contrárias; ou que se rejubilam com o assassinato de políticos esquerdistas... o ápice dessa perspectiva consiste em apoiar um Capitão reformado do Exército que, embora afirme apoiar as ações das Forças Armadas, começou sua carreira política na década de 1980 por meio de motins e da instalação de uma bomba em um quartel – e que, desde então, pauta suas atividades parlamentares pelo radicalismo, pela violência, pelo combate às liberdades públicas e pela negligência em relação aos temas vinculados às Forças Armadas.

Entrementes, deixarei para comentar esse militar demagogo mais adiante; neste momento é necessário concentrar-me no conservadorismo em geral e no conservadorismo brasileiro em particular.

Historicamente, os conservadores começaram a definir-se dessa forma no final do século XVIII, na Inglaterra, em reação à Revolução Francesa. O expoente inicial do conservadorismo foi o político e pensador irlandês Edmund Burke, que, no livro Reflexões sobre a revolução em França (1790), rejeitou as mudanças rápidas e violentas introduzidas na França, propondo, ao contrário, o respeito pelo passado e mudanças incrementais nas instituições. Dessa forma, a concepção histórica de Burke não era estática, reconhecendo que as sociedades e as instituições mudam ao longo do tempo; em sua concepção, as instituições são frágeis e, de qualquer maneira, são cristalizações da experiência histórica, de modo que convém respeitá-las e fazer modificações pequenas, ao longo do tempo, a fim de testar a eficácia das alterações propostas. Além disso, para Burke e para a tradição conservadora que ele iniciou, as instituições devem ser respeitadas não apenas devido a um respeito quase místico pelo “passado” – o que é o mero tradicionalismo –, mas também porque se considera que elas asseguram as liberdades públicas e as garantias jurídicas dessas liberdades (habeas corpus, devido processo legal, direito à ampla defesa; liberdades de pensamento, expressão e associação etc.).

Como se vê, o conservadorismo filosófico combina a resistência às mudanças sociais – em particular, às mudanças provocadas, conscientes – com a aceitação de que as coisas mudam. Não há dúvida de que essa fórmula varia de autor para autor, no sentido de que alguns concentram-se mais na resistência que na aceitação, ou vice-versa; assim, em geral, embora o conservadorismo não tenha uma concepção estática da história, para ele a história tem um ritmo bastante lento; por outro lado, de modo geral essa forma de pensar (ou esse “temperamento”) vincula-se à defesa das liberdades. Evidentemente, refiro-me aqui a algo chamado “conservadorismo político-filosófico”, em sua vertente inglesa, ou seja, a uma tradição intelectual que surgiu em conjunto com e mesmo em reação à modernidade ocidental, após 1789. Um comentário desse tipo é importante para enfatizar a deriva em que se encontra o “conservadorismo” brasileiro – que, como indicado acima, tem dado mostras de que não “resiste” aos avanços, mas que os rejeita, e que não defende as liberdades e a solução pacífica de disputas, mas celebra a violência, a truculência, a opressão e – o que, sem dúvida, é o mais chocante, também a escravidão.

De qualquer maneira, a relação com os movimentos da história (rejeição ou aceitação) e o sentido aplicado a essa relação (proteção da liberdade ou estímulo ao progresso) permite caracterizar também a chamada “esquerda”, para além dos conservadores. Cabe notar que é de propósito que não estou assumindo como equivalentes “conservadores” e “direita”, por um lado, e “progressistas” e “esquerda”, por outro lado. Em um livro dos anos 1990 que se tornou famoso (Direita e esquerda – razões e significados de uma distinção política), o italiano Norberto Bobbio estabeleceu que o conteúdo específico da “direita” seria a defesa da liberdade, ao passo que o conteúdo da “esquerda” seria a promoção da igualdade. Bobbio reconhecia que essa proposta seria polêmica e sujeita a uma infinidade de objeções; da minha parte, considero que, embora seja extremamente didático e simpático, de fato esse livro difunde um sério equívoco político. Qual equívoco? Associar a “esquerda” à “igualdade” não é em si problemático (nem, da mesma forma, associar a “direita” à “liberdade”): o problema surge quando se vincula a esquerda ao progresso, isto é, à concepção de que a história (1) tem uma direção, considerando o conjunto dos séculos, e (2) que é possível acelerar a marcha histórica para que se percorra mais rapidamente esse caminho. Ora, nos termos de Bobbio, se a esquerda é o campo do progresso, esse progresso está vinculado à igualdade; inversamente, a direita seria o campo do “não progresso”, isto é, o campo da “ordem” e/ou do “conservadorismo” e/ou do reacionarismo.

Assim, o problema que Bobbio não quis perceber, ou reconhecer, ou enfrentar, é que o progresso exige a liberdade e, na medida em que ele consiste no desenvolvimento das capacidades humanas, o progresso estimula a diferenciação social e individual, ou seja, atua na direção contrária à igualdade; inversamente, face ao progresso, a igualdade só pode ser promovida por meio da limitação das habilidades humanas, via compressão das liberdades. Em suma: o progresso exige a liberdade e estimula as diferenças (ou as desigualdades), ao passo que a igualdade exige a restrição ou a supressão das liberdades: isso é sabido pelo menos desde o início do século XIX.

A concepção de que a esquerda seria “boa” porque seria “progressista” reside, portanto, em um profundo mal-entendido sobre em que consiste o progresso; a chancela moral positiva vinculada ao progressivismo conduziu a esquerda a erros monumentais por todo o mundo desde o início do século XX, incluindo aí o Brasil: a intentona comunista de 1935, os arroubos populistas nos anos 1950 e 1960, as guerrilhas urbanas e rurais durante o regime militar – e, mais recentemente, o ódio social promovido por Lula em seus mandatos e a falência econômica do Brasil nos mandatos de Dilma Rousseff. Não há necessidade de estender-me sobre as mancadas práticas da esquerda (no Brasil ou no mundo), nem sobre os seus defeitos intelectuais – tudo isso é público e notório.

O problema que se verifica no Brasil, entretanto, é que a reação recente à esquerda consiste tão-somente nisso: em uma reação. São idéias e atos que se definem apenas pela negação do outro, não pela proposição de idéias alternativas que visem a melhorar a sociedade e as instituições. Por certo que há exceções a esse diagnóstico, mas elas consistem em exceções, não na regra. O que os “conservadores” brasileiros fazem frente à esquerda e ao seu igualitarismo? Afirmam a liberdade e o mérito; todavia, tanto a liberdade quanto o mérito afirmados são abstratos – e abstratos demais –; no que se refere à fórmula da Revolução Francesa “Igualdade, liberdade, fraternidade”, afirmam apenas a liberdade, rejeitam totalmente a igualdade e desprezam a fraternidade.

Se a liberdade é a condição para o progresso social e se o progresso desenvolve as potencialidades humanas, tanto a liberdade quanto o progresso caminham na direção oposta da igualdade. Todavia, ao longo do século XX evidenciou-se que há alguns tipos de “igualdade” que precisam ser valorizadas, especialmente em termos “formais”, ou institucionais; essas modalidades constituem alguns dos fundamentos das sociedades livres contemporâneas: a isonomia (a igualdade de todos perante a lei), a igualdade de educação (como fundamento intelectual, cívico e técnico do progresso) e condições mínimas de vida para todos, a fim de acabar com a miséria e garantir a dignidade humana. Esses elementos são as condições do progresso social e, nesse sentido, constituem elementos da “ordem social”; mas, além disso, eles exigem que à liberdade seja adicionada um aspecto central, a fraternidade – ou a generosidade, o altruísmo. Deixando de lado os termos ariscos, polêmicos e problemáticos que são “direita” e “esquerda”, as relações sociológicas, políticas e morais entre ordem e progresso foram estabelecidas no século XIX por Augusto Comte: “O progresso é o desenvolvimento da ordem; a ordem são as condições do progresso” e “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”.

Em nome da igualdade social, a esquerda sacrifica a liberdade mas, ainda que nominalmente, aceita a fraternidade; já a direita, ou os conservadores, supostamente celebra a liberdade, mas ignora elementos da igualdade “formal” e despreza a fraternidade. Tanto em um caso como no outro, o que há são simulacros de progresso e de ordem: é um progresso que não desenvolve as potencialidades humanas e uma ordem que não permite esse desenvolvimento. Novamente Augusto Comte tem a palavra: ordem sem progresso e progresso sem ordem resultam em oscilação terrível entre uma ordem autoritária e um progresso anárquico.

Voltemos ao tema do conservadorismo. Como vimos, os conservadores – pelo menos aqueles influenciados pela tradição britânica – em princípio aceitam o progresso, ainda que a contragosto; eles também valorizam as liberdades e respeitam a experiência histórica: esses fatores permitem que esses conservadores possam dar uma contribuição efetiva para a sociedade. O que os assim chamados “conservadores” brasileiros têm feito afasta-se desse programa, em particular no sentido de rejeitarem a experiência histórica e de desvalorizarem as liberdades e o sistema de garantias institucionais das liberdades. O elogio da escravidão – encoberto por festas de aniversário de crianças (!!!) ou pelo chicotear manifestantes –; a afirmação do racismo; o desprezo pelas mulheres e por suas contribuições à sociedade; o elogio desbragado do autoritarismo militar, da “solução” violenta de conflitos e das torturas: nada disso corresponde a um programa de liberdades, não se aproxima do conservadorismo britânico e, por fim, é contrário tanto ao progresso quanto à ordem. As corretas e necessárias noções de “mérito” e “meritocracia”, por exemplo, são pegas no fogo cruzado desses vários conceitos equivocados.

Dito isso, desde 2013, uma estranha nostalgia pelo autoritarismo militar tem-se organizado em corrente política, associada ao “conservadorismo”: isso exige alguns comentários. Devido ao regime militar de 1964, até há poucas décadas costumava-se associar os militares (e a “direita” e os “conservadores”) a autoritarismo, a truculência e a torturas; inversamente, o pacifismo era vinculado à sociedade civil, ao progresso e à esquerda.

Entretanto, essas diversas associações são bastante conjunturais: simplesmente não há motivo para vincular os militares a brucutus acéfalos e violentos. Três exemplos bastam para ilustrar o ponto. No final da década de 1880 o Tenente-Coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães lecionava Matemática na Escola Militar; embora pertencesse profissionalmente às Forças Armadas (tendo mesmo lutado na Guerra do Paraguai (1864-1870)), Benjamin Constant adotava uma abordagem filosófica e histórica em seu ensino, resultando em um viés cívico, civilista e pacifista: os seus alunos de modo geral viam-se antes como cidadãos e depois como soldados; em particular, eles entendiam que o progresso é um ideal a ser perseguido, mas que, para isso, as condições da ordem têm que ser satisfeitas: liberdades, condições dignas de vida, primado da lei. Um dos seus mais ilustres alunos foi Cândido Mariano da Silva Rondon, o “Marechal da Paz”, aquele que dizia – e praticava! – a bela fórmula “morrer se for preciso, matar jamais”.

Em reação ao ensino cívico, civilista e pacifista de Benjamin Constant, procedeu-se nas décadas de 1910 a 1930 diversas alterações no ensino militar, promovidas principalmente pelo futuro General Góes Monteiro: autoritário, esse militar esteve envolvido nas conspirações civil-militares de 1930, 1937, 1945, 1954 e, claro, 1964. Os exemplos de Benjamin Constant e Rondon ilustram que a vinculação entre militares e truculência não é algo necessário: o autoritarismo militar pode ser um projeto político, como no caso de Góes Monteiro. Aliás, convém notar que, apesar desse profundo defeito político (seu autoritarismo), Góes Monteiro era também um intelectual, ou seja, ele estudava e procurava articular racionalmente suas idéias: assim, não há porque vincular militarismo e anti-intelectualismo. Ainda mais: até mesmo o autoritarismo militar pode rejeitar o estilo brucutu, anti-intelectual e demagógico de proceder: as ações cuidadosas e firmes do General Ernesto Geisel, durante seu governo, sugerem que ele seria contra o Deputado Federal que supostamente “representa” os militares. Dessa forma, esse Deputado revela-se apenas um demagogo incoerente, que desconhece a história das Forças Armadas brasileiras e que, portanto, não a honra no que ela teve de melhor.

O resultado das reflexões acima – das quais tive que deixar de lado o crescente papel político do conservadorismo cristão – é que a “direita” brasileira em geral e os chamados “conservadores” em particular estão profundamente desorientados. Essa desorientação não é daninha apenas para eles mesmos, como eventual grupo político ou como defensores de determinados valores culturais e morais: essa desorientação é prejudicial para o Brasil como um todo, ao difundir concepções erradas de ordem e progresso, de igualdade, liberdade e fraternidade, e ao estabelecer uma dinâmica viciada com a esquerda – cujos problemas intelectuais, morais e políticos são sobejamente conhecidos. Em vez de buscarem aliar-se em projetos claros em prol das condições de ordem e progresso, cada vez mais conservadores e esquerdistas alimentam entre si um relacionamento de ódio mútuo e acusações constantes – em que, a despeito de acertos políticos ocasionais e específicos, nenhum dos dois lados está efetivamente na direção correta.

Gustavo Biscaia de Lacerda é Sociólogo da UFPR e Doutor em Sociologia Política pela UFSC.

13 novembro 2017

Gazeta do Povo: "Pós-verdades liberais contra o Positivismo"

Artigo de minha autoria, publicado na Gazeta do Povo de 11.11.2017. O original pode ser lido aqui.


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Pós-verdades liberais contra o Positivismo

Em tempos de “pós-verdade”, nada mais difícil de fazer que decidir o que é ou não verdade ou real. Isso se torna mais grave quando o autor de um texto afirma-se “historiador”, pois então a “pós-verdade” ganha ares de respeitabilidade, mesmo não tendo base factual. Nesse sentido, o artigo “Raízes autoritárias”, de Ney Carvalho, publicado na edição de 22 de outubro no jornal O Globo, é um monumento à pós-verdade.
A tradição liberal brasileira é extremamente particular. Ela abrange desde defensores do abolicionismo (Joaquim Nabuco) quanto de defensores da escravidão (José de Alencar, o romancista de O guarani), assim como figuras ambíguas como o legalista Rui Barbosa (que era e não era ateu, que queimou os registros da escravidão, que promoveu a primeira crise de hiperinflação do país e que assumia para si obras e ações de outros). O liberalismo brasileiro também abrange defensores do laissez-faire (Tavares Bastos, Eugênio Gudin), ex-comunistas (Carlos Lacerda) e ex-integralistas (Miguel Reale), passando por apoiadores do regime militar (Roberto Campos, Antônio Paim) e por intelectuais de qualidade como José Guilherme Merquior. Recentemente, entre as hostes liberais brasileiras podemos encontrar figuras tão – como dizer? – curiosas quanto Jair Bolsonaro, o Movimento Brasil Livre e o seu guru, o astrólogo Olavo de Carvalho.
Assim, é como integrante dessa particularíssima tradição liberal brasileira que Ney Carvalho afirma em seu artigo que o autoritarismo nacional tem suas origens no Positivismo, isto é, na doutrina fundada por Augusto Comte e nas práticas dela oriundas. Para isso, o autor adota a conhecida prática de citar palavras e expressões sem os explicar adequadamente e de abusar de adjetivos e juízos de valor. Como o espaço aqui disponível é curto, vamos diretamente aos pontos.
Atualmente o Positivismo é amplamente desconhecido do público brasileiro
O autor afirma que o Positivismo por definição é autoritário, e que desde o início de sua difusão no Brasil, em meados do século 19, ele estimula o golpismo, especialmente militar. Exemplos disso seriam a ação do professor de Matemática, o coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães, na Escola Militar; a Proclamação da República, em 1889; o projeto de constituição “ditatorial” da Igreja Positivista do Brasil e, por fim, a ação dos castilhistas no Rio Grande do Sul. Tudo isso o autor afirma, de maneira gratuita, tratar-se de antecedentes intelectuais e institucionais do golpismo sugerido recentemente pelo general Antônio Hamilton Mourão.
Por que essas afirmações são gratuitas? Porque são meras afirmações, sem quaisquer bases factuais. Aliás, pior que isso: são afirmações contrárias à verdade dos acontecimentos – de tal sorte que o conjunto dos comentários do “historiador” Ney Carvalho enquadra-se perfeitamente nas “desinformações” ou nas atuais “pós-verdades”. A isso se deve acrescentar o fato de que, embora tenha tido enorme importância social, política e intelectual entre o fim do Império e a Primeira República (ou seja, entre 1870 e 1930), atualmente o Positivismo é amplamente desconhecido do público brasileiro: nesses termos, basta assumir-se um ar doutoral e fazer afirmações bombásticas para que se crie a impressão de que é sabedor das coisas e possa-se dizer o que se quiser sobre temas menos conhecidos nos dias atuais, como é o caso do Positivismo.
Para perceber os erros e os problemas do que Ney Carvalho afirma, basta ler os artigos da Igreja Positivista do Brasil (situada no Rio de Janeiro, na Rua Benjamin Constant, no bairro da Glória) ou, caso leia-se em francês, as obras de Augusto Comte. Como, de qualquer maneira, esses documentos são um pouco difíceis de achar atualmente, é possível procurar na internet em repositórios eletrônicos de textos, como o portal Archive.org ou a página do Senado Federal. Uma outra possibilidade é consultar o livro Laicidade na I República brasileira: os positivistas ortodoxos, de minha autoria, em que apresento as características desses documentos e examino em profundidade diversos de seus argumentos.
De qualquer maneira, as publicações da Igreja Positivista e as obras de Augusto Comte são todas muito claras no sentido de que a ação política deve ser sempre pacífica, com amplas liberdades de pensamento e de expressão claramente garantidas e com as possibilidades permanentes de crítica pública ao governo e de sugestão às propostas governamentais, da parte de todos os cidadãos. Isso, aliás, é o que se chama atualmente de “república”, “democracia” e “Estado de Direito”. Os gaúchos seguidores de Júlio de Castilhos atuavam nesse mesmo sentido.
Embora afirme-se historiador, Ney Carvalho deixa de lado importantes pesquisas historiográficas que examinam precisamente as relações entre os positivistas e as escolas militares, em particular no caso de Benjamin Constant. O mineiro José Murilo de Carvalho há muito tempo indicou, no célebre artigo “O poder desestabilizador”, que os ensinamentos de Benjamin Constant para a juventude militar iam na direção da “civilização”, isto é, de tornar cada vez mais civil e menos militar o comportamento de seus alunos. Esse aspecto é central, pois foi justamente em reação explícita à orientação de Benjamin Constant que se constituíram os “jovens turcos” brasileiros. Esses militares, integrantes de uma geração posterior à formada por Benjamin Constant, a partir da década de 1910 procuraram adotar as doutrinas militares da França e da Alemanha e, com isso, mudaram os rumos do ensino militar, no sentido da “profissionalização” castrense. Essa “profissionalização” era politicamente ambígua: propunha que os militares deveriam ser apenas militares, mas ao mesmo tempo arrogava-se o papel institucional de fiscal do Estado, resultando em um ativismo político: o maior exemplo disso foi o general Góes Monteiro, inimigo declarado do Positivismo e da orientação de Benjamin Constant, além de justamente ter sido o articulador militar da Revolução de 1930. Aliás, Góes Monteiro também foi o inspirador de outro militar golpista, o general Olympio Mourão Filho, o realizador do golpe de 1964 – este, sim, o predecessor do atual general Antônio Hamilton Mourão.
A referência à proposta de constituição “ditatorial” exige comentários específicos. Como há muito tempo lembrava o social-liberal italiano Norberto Bobbio, ao contrário do que ocorre nos dias atuais, em que após a Revolução Russa e o nazismo a “ditadura” é sinônima de autoritarismo, no século 19 essa palavra era entendida com um sentido positivo, de modo geral como governo ativo. Dessa forma, seguindo em linhas gerais os hábitos linguísticos de sua época, Augusto Comte – o fundador do Positivismo, da sociologia e da história das ciências – adotava a palavra ditadura, com a particularidade de que a definia como sendo qualquer governo: nesses termos, Comte distingue ditaduras tirânicas, despóticas, retrógradas, conservadoras, assim como ditaduras liberais, progressistas, positivas. Uma longa comprovação disso está disponível na minha tese de doutorado, intitulada O momento comtiano, defendida em 2010.
A Igreja Positivista do Brasil e, de modo geral, os positivistas brasileiros, ao adotarem o linguajar proposto por Comte, adotavam também essas referências filosóficas; a constituição “ditatorial” por eles proposta consistia não em um regime autoritário, mas, bem ao contrário, em um regime de amplas liberdades, em que o governo limitar-se-ia a manter a ordem pública, consagrando a mais estrita separação entre igreja e Estado, sem se intrometer em questões morais, religiosas e “ideológicas”. Atribuir a esse projeto o caráter de autoritário com base em um problema semântico é, na melhor das hipóteses, desconhecer a história das ideias políticas; na pior das hipóteses, é profunda má-fé.
Mas, por outro lado, ao atribuir aos positivistas o autoritarismo nacional, Ney Carvalho obscurece o efetivo papel que outros grupos sociais, políticos e intelectuais desempenharam de fato para a constituição de uma tradição e de mentalidades liberticidas no país. Quais seriam esses grupos? Como é fácil de perceber a partir da década de 1930, os católicos, os marxistas e, também, os liberais. Durante toda a Primeira República, a Igreja Católica desejava retomar os privilégios de que gozava durante o Império; após a Revolução de 1930, Getúlio Vargas e a Igreja Católica mantiveram um regime de apoio mútuo que lembrava muito a estreita colaboração mantida, ao mesmo tempo, entre Mussolini e Pio XI: isso apenas se alterou (mas não muito) após 1966. Sobre o papel liberticida desempenhado pelos marxistas, não é preciso discorrer muito: basta pensar no golpismo estimulado por Luís Carlos Prestes, com o apoio de sua primeira esposa, a agente soviética de origem alemã Olga Benário Prestes. Por fim, embora tenha havido poucos liberais ao longo da Era Vargas, o fato é que houve muitos integralistas, muitos dos quais, após 1946, conveniente e rapidamente se transformaram em liberais.
Em suma, ao difundir “pós-verdades”, o liberal Ney Carvalho atribui ao Positivismo as origens e a estrutura da mentalidade autoritária brasileira; com isso, ele ao mesmo tempo contribui para manter em silêncio uma poderosa filosofia social de liberdade e para desviar a atenção das fontes reais do autoritarismo brasileiro. Talvez ele faça isso para tentar justificar a existência de alguns integrantes recentes, mas estranhos, do liberalismo nacional, como é Jair Bolsonaro: entretanto, como observamos, nesse caso, sua origem liga-se aos generais Mourão (Filho) e Góes Monteiro, não ao Positivismo e a Benjamin Constant.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.