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02 novembro 2022

Teoria positiva da felicidade

No dia 25 de Descartes de 168 (1º de novembro de 2022) fizemos mais uma prédica positiva. Demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua terceira conferência (teoria geral do culto) e, em seguida, fizemos comentários sobre o que podemos chamar de teoria positiva da felicidade.

Como de hábito, a prédica foi gravada ao vivo; ela está disponível no canal Positivismo (aqui) e no canal Apostolado Positivista (aqui). A partir de 52' 50" a exposição da teoria positiva da felicidade começa.

Para quem tiver interesse, reproduzo abaixo as minhas anotações pessoais que guiaram a exposição oral da teoria da felicidade.

*   *   *

O que é ser feliz?

 

-        É uma sensação bastante pessoal, difícil de expressar e definir

o   Talvez seja possível definir da seguinte maneira: ser feliz é sentir-se realizado, é sentir-se pleno

§  Por sua vez, sentir-se realizado é sentir que os objetivos que se traça na vida foram, de alguma forma, atingidos

-        A felicidade pode durar mais ou menos e, talvez de maneira surpreendente, ela também pode ser maior ou menor

o   A ausência de felicidade não é a tristeza, nem a dor; é possível estar estável, sem alegria nem tristeza

§  A alegria não é o mesmo que a felicidade; a alegria é mais transitória e localizada; a felicidade é mais profunda e ampla – assim, é possível estar alegre sem estar feliz

o   Por outro lado, é importante notar que, embora ninguém deseje ficar triste, a tristeza faz parte da vida tanto quanto a alegria (ou a felicidade) – seja porque realmente todos temos momentos de tristeza, seja porque em certo sentido a tristeza dá sentido à alegria e à felicidade

-        Como em grande medida a felicidade é um sentimento pessoal, à primeira vista isso gera um problema para a harmonia social: afinal, sendo pessoal, não deixa de ser egoísta e a soma dos egoísmos não tem como produzir a felicidade coletiva

o   A solução para esse problema é fazer convergir a felicidade pessoal e o bem-estar coletivo - ou melhor, consiste em transformar o bem-estar coletivo em objetivo da felicidade pessoal

o   Essa é outra forma de apresentar o problema fundamental do ser humano, que consiste em, da melhora maneira possível, conjugar o egoísmo individual com o bem-estar coletivo

o   A solução apresentada acima – transformar o bem-estar coletivo no objetivo da felicidade pessoal – é uma outra forma de apresentar a solução indicada por Augusto Comte, que é subordinar o egoísmo ao altruísmo, dando uma orientação altruísta para o egoísmo

§  A metafísica, a partir de suas origens teológicas, opõe a felicidade individual ao bem-estar coletivo

·         Por um lado, o liberalismo afirma que a felicidade individual é sempre oposta ao bem-estar coletivo; a partir daí, muitas metafísicas políticas atuais (que com freqüência apoiam teologias morais) afirmam que só é possível ser feliz rejeitando a sociedade

·         Por outro lado, o comunismo afirma só o bem-estar coletivo e nega a individualidade (rejeitando, portanto, a noção de felicidade individual)

·         Isso deixa claro que nem o liberalismo nem o comunismo propõe soluções reais e verdadeiras para o problema da felicidade

o   Essa solução é possível porque, embora a sensação da felicidade seja em si mesma uma única, as fontes de sua obtenção variam de acordo com a época, com a sociedade, com a classe social etc., além de com o indivíduo: em outras palavras, os objetos e os objetivos da felicidade não são únicos e não são estáticos

§  Assim, pode-se orientar as concepções de felicidade rumo a projetos exeqüíveis, reais, relativos e simpáticos

o   Na orientação altruística do egoísmo e da felicidade individual, a mesquinhez própria ao egoísmo é depurada e a felicidade pessoal é enobrecida

-        Outros dois elementos integrantes da felicidade, que conduzem a ela, são os sentimentos de pertencimento e de objetivo na vida

o   Quando sentimos que pertencemos a algum grupo e que realizamos atividades que têm sentido, isto é, que resultarão em alguma coisa boa, também ficamos felizes

o   O sentimento de pertencimento e o sentimento de objetivo são diferentes entre si, embora com freqüência estejam profundamente vinculados

o   Assim como a felicidade em si mesma, o pertencimento e o sentido de missão podem ser profundamente egoístas – e aí os surgem os problemas com o bem-estar público

o   A solução para esses eventuais problemas é o mesmo já indicado:

§  Devemos todos sempre pertencer a grupos (famílias, pátrias, Humanidade; classes sociais, clubes, escolas, partidos, associações etc.), mas esse pertencimento deve sempre ser subordinado aos supremos interesses da Humanidade; se não se afirmar essa subordinação à Humanidade (e no sentido da continuidade histórica), os pertencimentos parciais podem sempre correr o risco de degradarem-se em termos egoísticos

·         É igualmente importante lembrar que reconhecer a Humanidade, isto é, reconhecer a realidade e também imagem idealizada da Humanidade consiste, por si só, em assumir um pertencimento

§  No que se refere aos objetivos, o que indicamos antes já basta para entendermos a solução positiva: os objetivos devem ser sempre altruístas e devem sempre se subordinar à noção superior de Humanidade

-        A felicidade é um sentimento mundano, ou imanente; ou seja, em última análise, ela só faz sentido para quem vê nesta vida o objetivo de suas ações

o   Os teológicos, em particular os monoteístas, mantêm uma relação complicada com a felicidade, na medida em que seus objetivos dirigem-se para uma suposta “outra” vida, basicamente negando esta vida; inversamente, os monoteístas que se realizam nesta vida mantêm relações complicadas com a própria fé

-        Os vários aspectos indicados até agora da felicidade positiva deixam claro que ela exige esforços ativos, nunca o quietismo, ou o afastamento ou a rejeição desta vida

o   Embora cada um, pessoalmente, deva procurar evitar a dor e o sofrimento e buscar a felicidade, sabemos que nem sempre isso é possível; a solução para isso não é afastar-se do mundo e adotar uma postura basicamente passiva: a solução é aprender a lidar com a dor e a aproveitar a felicidade

o   O afastamento do mundo e o quietismo são particularmente problemáticos também (1) porque são radicalmente egoístas e negam o caráter coletivo do ser humano, ao afirmar que a vida em sociedade é necessariamente, sempre e apenas fonte de sofrimento, e (2) porque não reconhecem que a vida ativa é a condição da felicidade e da regulação dos sentimentos e das idéias

o   Afirmar a vida ativa não é o mesmo que rejeitar o descanso ou que rejeitar a vida intelectual; também não é afirmar que devemos ficar o tempo todo ativos, mexendo-nos incessantemente: é apenas afirmar que vivemos, que essa vida implica a atividade e que essa atividade é o que permite a regulação humana que conduz à felicidade


25 maio 2022

Curso livre de política positiva: roteiro da 12ª sessão

Reproduzo abaixo o roteiro da duodécima sessão do Curso livre de política positiva, ocorrida no dia 24 de maio, transmitida no canal Positivismo (disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=a086aIR_0Po) ou no próprio canal Apostolado Positivista (disponível aqui: https://www.facebook.com/watch/live/?ref=watch_permalink&v=547214340294348). 


Nessa seção, continuei a exposição sobre a Sociologia Dinâmica, concluindo os comentários sobre a lei prática dos três estados, expondo a lei afetiva (ou da sociabilidade) dos três estados e fazendo observações gerais e conclusivas sobre as três leis.


* * *


Súmula

Sociologia Dinâmica III: lei prática dos três estados (concl.); lei afetiva dos três estados

 

Roteiro

-        Lei prática dos três estados (conclusão):

o   A lei prática dos três estados estabelece que a atividade é primeiro militar conquistadora, depois militar defensiva e por fim pacífico-industrial

o   A afirmação plena da paz industrial requer o relativismo e a ciência, bem como a sua disseminação social e geográfica

§  A indústria por si só existe desde sempre

§  O trabalho e os trabalhadores têm que ser valorizados e dignificados

§  O domínio do homem sobre a natureza tem que ocorrer e isso só é plenamente possível por meio da ciência

§  O relativismo também tem que prevalecer, a fim de deixar para trás o absolutismo político e moral, a desvalorização da vida, o estímulo à guerra e à violência

-        Sociologia Dinâmica III: os três estados dos sentimentos: família, pátria, Humanidade

o   A lei dos três estados dos sentimentos refere-se não tanto aos sentimentos em si mesmos, mas aos âmbitos superiores de sociabilidade ou, em outro sentido, de vinculação social e afetiva

§  Há uma correspondência entre os âmbitos da sociabilidade e os sentimentos altruístas: família à veneração; pátria à apego; Humanidade à bondade

§  Além disso, há que se notar que, ao mesmo tempo, os âmbitos de sociabilidade têm diferentes fundamentos no que se refere à natureza humana:

·         Família: vínculos afetivos

·         Pátria: vínculos práticos (economia e política)

·         Humanidade: vínculos intelectuais (religião)

o   A seqüência família, pátria, Humanidade é rigorosamente histórica, embora, como ocorre com as outras leis dos três estados, seja necessário apreendê-la em grandes períodos temporais

§  Vale notar que mesmo em momentos de afirmação das pátrias ocorreram vislumbres da noção de Humanidade

·         Isso é possível de notar nos gregos e, ainda mais, entre os romanos

§  Considerando o caráter masculino (e bélico) da palavra “pátria”, Augusto Comte sugeria a sua substituição, no estado normal, por “mátria”

o   Uma particularidade da lei afetiva dos três estados é que ela, ao contrário das duas leis anteriores, permite a coexistência dos três estados

§  Essa coexistência evidentemente é compatível com a coexistência dos três instintos altruístas

§  No caso das duas leis anteriores, os estados preliminares têm que ser ultrapassados e convictamente deixados para trás: temos que ultrapassar e rejeitar o absolutismo teológico-metafísico e também o militarismo

§  A coexistência dos três estados afetivos não significa, todavia, mera justaposição: ela implica a subordinação sucessiva dos âmbitos de sociabilidade: as famílias subordinam-se às pátrias (ou mátrias) e estas subordinam-se à Humanidade

-        Há alguns aspectos adicionais que devem ser indicados a respeito das leis dos três estados:

o   Cada uma das leis indica uma tendência importante por si só, mas a reunião e a combinação delas elabora um quadro cada vez mais completo, complexo e específico da realidade histórica humana

o   É fácil perceber que os três estados finais e os três estados iniciais são solidários entre si:

§  O relativismo, a noção de Humanidade e a atividade pacífico-industrial apoiam-se e são condições uns dos outros; inversamente, o mesmo pode ser dito do absolutismo, das sociabilidades inferiores e do militarismo

§  Em outras palavras, essa mútua solidariedade significa que a plena realização do estágio final de cada lei implica e exige a realização do estágio final das outras leis: por exemplo, a noção de Humanidade exige o relativismo e enseja a atividade pacífica

o   As leis dos três estados correspondem a tendências gerais da evolução humana:

§  A idéia de tendência indica que elas são direções gerais, que variam em intensidade e mesmo em direção ao longo do tempo: assim, às vezes elas andam mais rapidamente, às vezes são mais lentas; às vezes vão na direção das leis, às vezes sofrem recuos temporários

§  Augusto Comte usava a imagem das curvas assintóticas, que tendem para uma posição no infinito, mas que nunca chegam plenamente ao limite indicado

§  No limite, todos os povos seguirão voluntariamente as leis dos três estados; mas, em todo caso, diferentes temperamentos e necessidades conduzem a comportamentos diversos à daí a necessidade da pressão coletiva em favor das leis, seja a pressão temporal (política), seja a pressão espiritual (intelectual e moral)

Curso livre de política positiva: vídeo da 12ª sessão

No dia 24 de maio ocorreu a duodécima sessão do Curso livre de política positiva, com transmissão ao vivo no canal do Facebook Apostolado Positivista.

Nessa seção, continuei a exposição sobre a Sociologia Dinâmica, concluindo os comentários sobre a lei prática dos três estados, expondo a lei afetiva (ou da sociabilidade) dos três estados e fazendo observações gerais e conclusivas sobre as três leis.

O vídeo pode ser visto no canal Positivismo (disponível aqui: https://youtu.be/a086aIR_0Po) ou no próprio canal Apostolado Positivista (disponível aqui: https://www.facebook.com/watch/live/?ref=watch_permalink&v=547214340294348). 

A programação completa do Curso pode ser vista aqui.

21 dezembro 2021

Moralidade podre de "Homem-Aranha: sem volta para casa"

(ATENÇÃO: FAÇO REFERÊNCIAS À TRAMA. OU SEJA: DIVULGO SPOILERS.)

Assisti ao filme Homem-Aranha: sem volta para casa. Estava ansioso por isso - tanto pelo filme em si, que prometia por exemplo um retorno parcial do Tobey Maguire (o primeiro Homem-Aranha no cinema), quanto porque não ia ao cinema desde o início da pandemia.

Enfim, o filme é tudo o que prometeram e muito mais, tendo encontros inesperados, muitos momentos divertidos e também muito drama e choro. (E muitas cenas extremamente violentas.)

Mas já na metade do filme fiquei muito irritado. A moralidade apresentada é a típica moral de super-heróis: destroem tudo o que há pela frente e as únicas considerações pelos demais referem-se às pessoas ao redor (amigos e família); além disso, todas as decisões de âmbito público são tomadas na mais estrita esfera privada (ou melhor, no mais completo segredo). Se morre alguém próximo aos "heróis", a reação é imediata e violenta; se qualquer outra pessoa morre, ninguém dá a menor atenção. E, claro, quem exige que os "super-heróis" sejam responsabilizados por suas condutas é tratado como adversário, ou melhor, como inimigo ou até "vilão".

Mas o filme Homem-Aranha: sem volta para casa dá um passo além mesmo nessa odiosa moralidade de "super-heróis": enquanto nos filmes anteriores havia "vilões" que realmente agiam de maneira negativa e os super-heróis limitavam-se a reagir, neste filme todas as ações negativas decorrem das decisões conscientes do próprio Homem-Aranha, "aconselhado" ou não por sua tia e/ou por seus amigos. Essas decisões incluem (1) duas tentativas de lavagem cerebral em todo o planeta; (2) a libertação de cinco perigosíssimos criminosos; (3) a destruição de monumentos públicos, prédios residenciais, pontes e estradas e muitos e muitos carros; (4) o combate a quem deseja evitar todos esses problemas.

Para não ser injusto, há dois momentos em que o filme muda um pouco essa moralidade de super-herói. O primeiro momento é quando Peter Parker decide tentar mudar os vilões, revertendo os acidentes que os transformaram em vilões: essa decisão em si é bastante generosa, mas, ainda assim, no contexto do filme, ela é irrefletida e inconseqüente; em outras palavras, ela é absoluta e infantil. O segundo momento é quando a tia May repete para Peter Parker a bela fórmula "grandes poderes trazem grandes responsabilidades". No conjunto do filme essa fórmula não tem nenhuma conseqüência, mas a fórmula em si é correta e relativa - e, aliás, é de origem positivista (https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/.../gran...). No fim das contas, esses dois momentos acabam reafirmando os problemas da moralidade de super-heróis, seja porque (no primeiro momento) essa moralidade é reafirmada, seja porque (no segundo momento) de fato a moralidade verdadeira, que não é a dos super-heróis, não é aplicada.

Em suma, a moralidade apresentada e desenvolvida no filme é absoluta, infantil - e não consigo pensar em outra palavra que não seja "podre". Não dá para gostar de um filme assim.

(A qualidade técnica do filme - realmente excepcional - não muda nem evita os graves problemas acima. Na verdade, essa qualidade técnica apenas realça os problemas, na medida em que está a serviço dessa moralidade podre.)

06 agosto 2021

Sobre a moralidade das séries e dos super-heróis

É possível usarmos séries de super-heróis para pensarmos sobre moralidade individual e coletiva?

Não somente é possível como é necessário. Isso porque o comum das pessoas não se dedica à reflexão sistemática sobre as coisas morais, limitando-se a apenas as praticar e seguir a moralidade corrente. Não há nisso nenhuma crítica; não há porquê nem como que todos sejam filósofos.

Enfim, se o comum das pessoas pratica a moralidade corrente, isso nos dias atuais significa que são influenciadas pela moralidade exposta pelos meios de comunicação; não é por outro motivo, por exemplo, que as novelas brasileiras de Glória Peres procuram sempre “conscientizar” a audiência a respeito de “temas sociais”, assim como o seriado estadunidense Lei e Ordem – SVU procura “amplificar as vozes” (como afirma a propaganda do canal Universal, a respeito das séries produzidas por Dick Wolf).

Pois bem: há alguns dias assisti ao seriado Wanda Visão, do serviço Disney +. (Assinei tal serviço, por apenas um mês, só para ver esse seriado e mais alguns produzidos pelos estúdios Marvel.)

Em termos de qualidade da produção, a série é excelente: tudo muito bem feito, bonito, elaborado. O roteiro também impressiona, especialmente porque se decidiu que a primeira metade da série, ou seus primeiros 2/3 (de um total de nove), imitaria séries cômicas antigas, em que cada episódio da séria corresponderia a uma década (começando nos anos 1950 e indo até os anos 2000).

Até aí, tudo bem. Mas é no final da série, em particular no seu episódio final, que estão os problemas, em número de pelo menos dois:

(1)   por um lado, uma agência governamental verifica que uma cidade inteira – cidade pequena, com cerca de 3.600 habitantes, mas, enfim, uma cidade inteira – foi feita de refém e que seus habitantes sofreram lavagem cerebral; portanto, essa agência tem que libertar esses cidadãos. Após algumas investigações, identifica o seqüestrador na figura de Wanda (a suposta heroína) e adequadamente passa a tratá-la como inimiga, bem ou mal agindo conforme essa nova premissa. Com isso a narrativa da série muda a abordagem a respeito dessa agência governamental: de heróis passam a vilões, apenas porque decidiram perseguir, talvez eliminar, uma criminosa. Em concordância com isso, as personagens secundárias passam a rebelar-se contra a agência “malvada”, sublevando-se, sabotando a agência e até auxiliando a criminosa. No episódio final da série, a condição “malvada” da agência governamental é confirmada e, de maneira correlata, as personagens que apoiaram a criminosa são deixadas ilesas.

(2)   Por outro lado, e em concordância com os fatos acima, a criminosa – mais uma vez: uma seqüestradora em massa que faz lavagem cerebral – mantém sua condição de “heroína”, mesmo que seja uma heroína problemática, sujeita a variados e profundos traumas; mas, de modo central para o que nos interessa, os seus traumas justificam, desculpam e redimem todos os seus crimes. Aliás, mais do que isso: a heroína-criminosa sai impune e as personagens secundárias, que haviam sabotado os esforços para neutralizar a criminosa, acabam concordando com os valores, os sentimentos e a conduta dessa criminosa. Essa concordância dá-se em bases estritamente individuais, ou melhor, individualistas: “se eu estivesse na sua situação e se tivesse os seus poderes, com certeza faria algo bem parecido”; nenhuma palavra sobre seqüestro e lavagem cerebral de 3.600 pessoas, nem sobre depredação de bens (sim, pois, afinal, há sempre “lutas” e “batalhas” que destroem tudo ao redor).

Qual o problema de fundo nisso tudo? Quais os problemas com a moralidade exposta acima?

Os “super-heróis” são indivíduos que realizam grandes feitos, a partir de habilidades extremamente extraordinárias (capacidade de vôo, superforça, resistência física descomunal, superinteligência, emissão de raios pelos olhos e pelas mãos etc. etc.), sendo que esses grandes feitos consistem basicamente em lutas físicas de proporções gigantescas. Qualquer consideração adicional ou é desconsiderada ou é vista como um empecilho (indevido e imoral) à ação dos super-heróis. O que está no caminho dos super-heróis pode e deve ser desconsiderado, ignorado ou, no limite, destruído: leis, instituições, prédios, pessoas; claro que essa possibilidade só é dada aos super-heróis, sendo negada aos “supervilões”. Caso haja desastres, os super-heróis devem caçar os supervilões; mas, no caso de os próprios super-heróis causarem esses desastres, suas responsabilidades são ignoradas (como se não tivessem ocorrido desastres) ou são minimizadas (com a recorrente afirmação de que “não foi culpa sua”) (nas raras vezes em que os heróis são responsabilizados, rapidamente são reintegrados à atividade legítima, sem maiores implicações – e, de qualquer maneira, sempre com o viés de que são mais vítimas que criminosos).

Os super-heróis são uma criação estadunidense. A ênfase a ser dada na definição acima é no “indivíduo”: só o indivíduo importa, todo o resto (isto é, tudo ao redor, seja sociedade, sejam objetos físicos) sendo apenas “resto” e/ou empecilho. Em outras palavras, a moralidade própria aos super-heróis é caracteristicamente estadunidense: super-individualista, antissocial (e, deve-se também notar, anti-histórica), autocentrada.

O agressivo e irresponsável individualismo dos “super-heróis”, exemplificado à perfeição na série Wanda Visão, fica mais evidente quando contrapomos essas figuras estadunidenses a outras criações, também ocidentais mas “antigas.

Os heróis gregos – por exemplo, Hércules – e os heróis medievo-modernos – por exemplo, El Cid – são “heróis” não necessariamente porque possuem habilidades extraordinárias, mas porque realizam grandes feitos. Esses grandes feitos são “grandes” porque envolvem dificuldades enormes, insuperáveis e insolúveis pelo comum dos seres humanos, mas, mais do que isso, são dificuldades que envolvem a coletividade, os seus vínculos e as obrigações daí decorrentes. Em outras palavras, são problemas que implicam as individualidades dos heróis mas que só ganham sentido porque são problemas coletivos; as individualidades só se realizam na medida em que se vinculam aos vários níveis e âmbitos da sociedade.

Mais: o caráter heróico dos heróis aumenta, ou consolida-se, ou mesmo se realiza, na medida em que os heróis têm que se submeter às regras e às sanções morais coletivas. Hércules e El Cid são exemplares nesse sentido: os 12 trabalhos de Hércules, nos quais labutou por mais de dez anos, foram uma expiação por um terrível crime (pelo qual, aliás, ele não foi propriamente "responsável" – a morte de sua esposa e de seus filhos em um acesso de loucura causado pela deusa Hera); já El Cid – pelo menos na poderosa versão de Corneille – vê-se na contingência de não poder casar-se com sua amada porque ambos estavam presos a fortes laços morais e familiares. Essas dificuldades aumentam muito o valor moral e a nobreza de Hércules e de El Cid e é por elas que eles são verdadeiramente conhecidos e valorizados.

Os heróis gregos eram, realmente, superiores ao comum dos mortais; mas aí temos Ulisses, que, embora fosse um grande guerreiro, distinguia-se de fato apenas pela astúcia. O seu valor é dado, na Ilíada, pelos serviços que presta à causa helênica; já na Odisséia o seu valor é de fato mais individual, mas mesmo assim se vincula de maneira inegável e indissolúvel aos seus laços sociais (o amor pela esposa Penélope, a amor por seu filho Telêmaco, a preocupação com seus súditos na pequena e pedregosa Ítaca); mesmo o desafio à autoridade e à existência dos deuses tem, claramente, um sentido social, como fica evidente na preocupação da deusa Palas Atena que o destino de Ulisses sele o destino dos próprios deuses.

Coroando o caráter social das individualidades dos heróis antigos e modernos, o que se vê em todas as grandes tragédias é o drama enfrentado por seus protagonistas para cumprirem suas responsabilidades, quer eles desejam-nas mas sejam impedidos (ou seja-lhes fatal), quer eles não as desejem mas vejam-se obrigados a cumpri-las. As responsabilidades, ou melhor, as responsabilizações correspondem, o mais das vezes, à afirmação dos vínculos sociais; os protagonistas das grandes tragédias aceitam suas responsabilidades e lidam com suas conseqüências, por mais duras que elas sejam (e elas sempre são duríssimas). (Pensemos em Antígona, primeiro exilada com seu pai Édipo (em Édipo rei) e depois condenada à morte por insistir em realizar os funerais de seu irmão Polinice, considerado traidor de Tebas (em Antígona). Pensemos também no titã Prometeu, que, fiel à sua natureza oracular, sabe de antemão que suas ações em prol dos seres humanos custar-lhe-ão duras e prolongadas punições; mas, mesmo assim, aceita com altivez e orgulho o fardo de seu comportamento (em Prometeu acorrentado).)

Enfim, retornemos a Wanda Visão: a sua moralidade extremamente individualista tem que ser qualificada como um defeito – um defeito profundo e próprio à mentalidade dos EUA. Esse defeito choca-se com a alta qualidade técnica (“plástica”) da série. Inversamente, a qualidade técnica acentua o defeito moral e, bem vistas as coisas, essa própria qualidade técnica avilta-se ao servir de veículo para uma moralidade desprezível.

É essa moralidade que é servida – pela Disney, conhecida por seu suposto “moralismo” e seu suposto conservadorismo moral! – para consumo popular nos EUA e, daí, por extensão, para o resto do mundo.

28 junho 2020

Augusto Comte: o cão doméstico e o leão enjaulado

O trecho abaixo é um dos mais famosos escritos pela pena de Augusto Comte. Ele foi redigido em 1852 no v. 2 do seu Sistema de política positiva, que foi dedicado à exposição da estática social, isto é, da teoria da ordem; em particular, ele está no cap. 1, que por sua vez é dedicado à teoria geral da religião, ou "teoria positiva da unidade humana". 

(Vale notar que a teoria positivista da religião é de fato uma teoria geral da religião, pois não se limita a considerar que a "religião" é apenas a teologia, como aliás todos os filósofos e cientistas sociais fazem quase desde sempre: para Augusto Comte, a religião é o "re-ligare", é cada indivíduo ligar-se duas vezes, a primeira internamente (produzindo a harmonia mental individual) e a segunda externamente (resultando na harmonia social). Nesses termos, a religião para Augusto Comte pode ser teológica, metafísica ou positiva: a religião positiva, ou seja, o Positivismo, a Religião da Humanidade, é uma religião humanista, imanente, altruísta, histórica, relativa... todos esses predicados permitem que ela consagre o progresso social sendo também um elemento da ordem.)

O trecho abaixo apresenta uma belíssima comparação entre o cachorro doméstico e o leão enjaulado, a título de ilustrar a idéia de que a verdadeira harmonia mental e moral, por um lado, tem que ser voluntária e, por outro lado, tem que incluir a veneração pelos mais velhos, pelos superiores, pelos mais fortes. O caráter voluntário é condição para que a veneração não se torne abjeta nem desprezível; inversamente, a submissão dos mais fracos, dos inferiores e dos posteriores tem que ser complementada sempre e necessariamente pelo respeito e pela dedicação dos mais fortes, dos superiores e dos anteriores. Em outras palavras, a submissão - como todos os verdadeiros laços sociais - implica sempre um sistema de mútuos deveres, de complementaridades.

A comparação entre o cachorro doméstico - que é um dos melhores, se não o melhor, exemplo de dedicação voluntária de um animal para seu dono - e o leão enjaulado serve de ilustração preparatória para a comparação entre os proletários antigos (isto é, da Antigüidade clássica, greco-romana) e modernos. A referência aos animais não busca degradar os trabalhadores, como deve(ria) ser evidente; o que importa aí é indicar que as características afetivas e morais do ser humano são compartilhadas por vários animais superiores e que, assim, é possível ao mesmo tempo entendermos um pouco de nossa própria natureza ao comparar-nos com alguns animais superiores e também deixar de lado o orgulho - de origem teológica e mantido pela metafísica - de que apenas o ser humano teria características morais (o que é vertido pela teologia na concepção de que apenas os seres humanos, e apenas algumas "raças" entre nós, teriam "alma").

Adicionalmente, o trecho abaixo expõe de maneira clara que o Positivismo não é uma forma de mecanicismo moral e social, que ele não é contra a afetividade, que ele não é contra a subjetividade, que ele não é contra o estudo das intencionalidades humanas - mais uma vez, ao contrário do que diz a quase totalidade dos filósofos e cientistas sociais que se referem ao Positivismo e que apenas fingem conhecê-lo.

Após a citação em português incluímos o texto original em francês.

*   *   *

“Para melhor caracterizá-la [a disposição afetiva e coletiva do ser humano], retomemos por um momento a disposição teórica que prevaleceu mais ou menos até a época muito recente em que a Biologia demonstrou suficientemente a existência natural das afeições benevolentes. A unidade moral não poderia então resultar senão de um princípio egoísta. Ora, já provei suficientemente a inaptidão espontânea de um tal regulador. O sentimento de dependência exterior não poderia realmente o substituir. Por mais profunda que possa ser essa crença, ela inspira no máximo uma resignação forçada, se o exterior opuser uma resistência evidentemente intransponível. Mas essa triste situação moral difere muito da verdadeira disciplina afetiva, que deve sempre ser livre para tornar-se plenamente eficaz. É fácil senti-lo ao comparar o estado moral de um cachorro doméstico com o de um leão cativo. Quando uma longa experiência inspira ao segundo uma resignação passiva, a unidade moral não existe nele: ele flutua sem cessar entre uma luta impotente e um ignóbil torpor. Ao contrário, o desenvolvimento emocional do primeiro torna-se direto e contínuo assim que ele é capaz de subordinar suas inclinações egoístas aos seus instintos simpáticos. A comparação torna-se ainda mais decisiva ao opor-se o escravo antigo ao proletário moderno. Ainda que ambos, em termos materiais, apresentem quase a mesma existência pessoal, tanto ativa quanto passiva, a liberdade deste é unicamente o que o torna suscetível à verdadeira unidade moral, ao permitir o desenvolvimento de seus afetos benevolentes. A condição mais dura da escravidão antiga consistia, nas belas almas, em não poder nunca realmente viver para outrem, suas funções sendo sempre forçadas ou, pelo menos, sendo supostas assim. Também sentimos até que ponto a convicção usual da sujeição externa está longe de bastar para a unidade humana, embora seja indispensável até certo ponto. Afinal, quando essa dependência torna-se intensa demais, ela impede mesmo a disciplina afetiva que tende a resultar de um desenvolvimento espontâneo dos instintos altruístas. A felicidade e a dignidade de todos os seres animados requerem, portanto, o concurso habitual de uma necessidade sentida e de uma livre simpatia” (Augusto Comte, Sistema de política positiva, 1929 (1852), v. II, p. 15).


“Afin de mieux caractériser, reprenons un moment la disposition théorique qui prévalut plus ou moins jusqu’à l’époque trés-récente où la biologie démontra suffisamment l’existence naturelle des affections bienveillantes. L’unité morale ne pouvait alors résulter que d’un principe égoïste. Or, j’ai assez prouvé déjà l’inaptitude spontanée d’un tel régulateur. Le sentiment de la dépéndance extérieure ne saurait y suppléer réellement. Quelque profonde que puisse être cette croyance, elle inspire tout au plus une résignation forcée, si le dehors oppose une résistance évidemment insurmontable. Mais cette triste situation morale diffère beaucoup d’une véritable discipline affective, qui doit toujours être libre pour devenir pleinement efficace. Il est aisé de le sentir en comparant l’état moral d’un chien domestique avec celui d’un lion captif. Quand une longue expérience inspire au second une passive résignation, l’unité morale n’existe point en lui : il flotte sans cesse entre une lutte impuissante et une ignoble torpeur. Au contraire, l’essor affectif du premier devient direct et continu aussitôt qu’il a pu subordonner ses penchants égoïstes à ses instincts sympathiques. La comparaison se trouve encore plus décisive en opposant l’esclave antique au prolétaire  moderne. Quoique tous deux, sous le rapport matériel, présentent à peu près la même existence personnelle, tant active que passive, la liberté de celui-ci le rend seul susceptible d’une véritable unité morale, en permettant l’essor de ses affections bienveillantes. La plus dure condition de l’ancien esclavage devait consister, chez les belles âmes, à ne pouvoir jamais vivre réellement pour autrui, leur office étant toujours forcé, ou du moins supposé tel. On sent aussi combien la conviction habituelle de l’assujettissement extérieur est loin de suffire à l’unité humaine, quoiqu’elle y soit indispensable à un certain degré. Car, lorsque cette dépendance devient trop intense, elle empêche même la discipline affective qui tend à résulter d’un essor spontané des instincts altruistes. Le bonheur et la dignité de tout être animé exigent donc le concours habituel d’une nécessité sentie et d’une libre sympathie”.

07 maio 2020

Lamento por uma burguesia abaixo do mínimo político-moral


Quando eu era aluno de graduação, do mestrado e do doutorado, sempre que ouvia falar em "burguesia" ficava irritado: essa palavra quase sempre era proferida por marxistas, que de fato têm uma escabrosa metafísica político-moral. Para o marxismo, a "burguesia" é uma entidade e sempre é ruim, sempre é maléfica.

Entretanto, se deixarmos de lado a metafísica marxista e entendermos de maneira concreta a palavra "burguesia", ela assume um caráter descritivo. Nesse caso, a burguesia nacional é o conjunto dos grandes capitalistas brasileiros, isto é, dos donos de lojas, de fábricas, de empresas de investimento, dos especuladores financeiros.

Sem dúvida que também há a pequena burguesia, isto é, os micro e pequenos empresários, além dos empresários individuais; da mesma forma, podemos incluir na categoria geral de burguesia a classe média profissional, isto é, os profissionais liberais, aqueles que têm sua renda e seu status social ligados a um diploma universitário: médicos, engenheiros, advogados, professores universitários, consultores etc. Creio que atualmente os "youtubers", os "influenciadores" também entram nessa categoria.

Mas deixemos de lado a pequena burguesia e os profissionais liberais; o que me interessa aqui é a burguesia, isto é, o grande capital.

Se até 2018 eu tinha paciência e boa vontade com a burguesia brasileira, desse ano em diante não dá mais para levá-la a sério.

Não me incomoda o fato de que a burguesia é rica e que, por isso, tem poder e/ou influência. A vida, a sociedade são assim; se não fossem, seria estranho.

Mas quem é rico tem responsabilidades coletivas. Ao contrário do que diz a metafísica liberal e individualista, cujo grande centro de difusão atualmente são os EUA, a riqueza não é sinal de mérito individual e não existe para prazer dos ricos. A riqueza é um fardo, pois implica sempre e necessariamente responsabilidades gigantescas: os donos do capital não têm que ficar sempre e cada vez mais ricos, eles têm que produzir mais riqueza para sempre e cada vez mais alimentar (e vestir e educar e entreter) a população, seja por meio da geração de empregos - esse deveria ser o seu principal instrumento e, portanto, a sua principal preocupação -, seja por meio de ações sociais diretas (como deveria ser a ação do Sistema S), seja por meio do pagamento de impostos.

Ora, desde 2018 a burguesia brasileira aderiu a um projeto político-social fascista, de desprezo sistemático aos trabalhadores, de destruição das sociedades indígenas, de destruição das nossas florestas, de venda do patrimônio nacional, de redução sistemática dos salários, de precarização sistemática das condições de trabalho. Em outras palavras, a burguesia brasileira faz tudo o que é possível para destruir o que há de civilizado no país, mesmo que tenha a audácia de conspurcar as palavras "modernidade" e "progresso".

(Diga-se de passagem que "fascismo" é outra palavra que o marxismo e a esquerda degradou, ao usar de maneira cínica contra tudo o que não era marxismo e esquerda. Mas, ainda assim, a palavra "fascismo" tem um conteúdo descritivo que resiste à sua degradação pelo marxismo; é considerando esse conteúdo que eu emprego, de maneira concreta, para referir-me a um governante que é, sim, fascista.)

Aliás, o governo fascista insiste em degradar outra bela expressão de que os brasileiros têm a honra de tomar como divisa política; em outras palavras, os fascistas degradam e conspurcam o belo "Ordem e Progresso".

Para a burguesia nacional é ótimo dizer-se contra o "marxismo cultural"; a burguesia não se importa com o conteúdo específico dessa corrente, mas também não deseja ser criticada como parasitária, como irresponsável, como... inútil. (Não por acaso, essa burguesia emprega um especulador financeiro altamente suspeito como porta-voz, para dizer que os servidores públicos é que seriam parasitários.)

Mas a verdade é que, como observei acima, o marxismo consiste em uma enorme metafísica político-moral; sua acusação à "burguesia" no final não passa de indignação política para adolescentes rebeldes.

Agora, dizer com clareza que a nossa burguesia é mesquinha, é egoísta, é covarde, é irresponsável - isso é muito pior e muito mais duro. Dizer que a nossa burguesia resolveu embarcar - quando não assumir - no fascismo para justificar seu individualismo antissocial é tudo o que ela não deseja. O que a nossa burguesia deseja é ser sempre e cada vez mais exploradora da população, insensível aos seus problemas, irresponsável em seus comportamentos.

O Positivismo, aquela mesma filosofia que formulou o belo "Ordem e Progresso", afirma que o capital, a riqueza, tem origem social e que, portanto, ela tem que ter destinação social. É o Positivismo que afirma que a destinação social da riqueza impõe pesadas responsabilidades sobre os ombros dos ricos, isto é, da burguesia. É o Positivismo que rejeita como mesquinha, como imoral, a idéia de que a riqueza por si só é sinal de mérito e que os ricos não têm nenhuma obrigação para com ninguém, exceto serem cada vez mais ricos.

(Não é por outro motivo que os representantes histérico-ideológicos dessa burguesia têm mirado cada vez mais no Positivismo, tornando-o o alvo preferencial de seu ódio e de suas mentiras, deixando de lado a lenga-lenga sobre o "marxismo cultural".)

Desde 2018, cada vez mais eu vejo a burguesia brasileira - os donos de grandes lojas, de grandes empresas, de grandes indústrias; os presidentes dessas empresas, os administradores de fundos de especulação - fazendo questão de defender o "direito" de ser mesquinha e inútil.

O comportamento degradante de nossa burguesia, que já seria extremamente condenável somente pelo seu ignóbil apoio ao fascismo, tem-se aprofundado nesta crise de saúde pública. A nossa burguesia, em vez de assumir republicanamente, civicamente, humanamente, que o isolamento social é a medida mais efetiva para combater as mortes; em vez de assumir esse fato e pagar para isso, o que nossa burguesia insiste em fazer é querer que os trabalhadores e a população continuem a trabalhar como se não houvesse nenhuma violenta emergência de saúde. Para essa burguesia, se a classe média e os trabalhadores morrerem nos hospitais, não há problema: essa mesma burguesia não tem vergonha de dizer que hoje, quando estamos longe do pico da epidemia no país, esse pico já foi ultrapassado para os ricos! Esses mesmos ricos têm a ilusão de que a pandemia não os atingirá apenas porque eles são ricos e porque, caso contraiam a doença, eles podem viajar em UTIs aéreas para os mais caros hospitais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Essa mesma burguesia tem até mesmo um representante no Ministro da Saúde!

É com um misto de crescentes tristeza e raiva que cada vez mais me convenço de que a burguesia brasileira tem um comportamento desprezível. Ricos, eles querem apenas ser mais ricos às custas da vida e da dignidade de nossa população; com influência política, eles apóiam o fascismo; com capacidade de manter empregados sem trabalhar por meses (como donos de cadeias de lojas e lanchonetes já se gabaram), eles insistem que "todos" (isto é, todos os outros) devem trabalhar normalmente, como se não houvesse uma pandemia mortal. Com influência moral, eles repetem discursos desprezíveis, que passam a ser os discursos da pequena burguesia, da classe média profissional e - isso é o mais chocante - mesmo dos trabalhadores!

Quando tudo isso acabar - isto é, quando a pandemia for passado e o fascismo tiver sido varrido do Brasil -, será que ainda haverá algum país para que essa burguesia possa agir?  Ou, de maneira mais importante: será que nossa burguesia terá aprendido a ser decente, responsável, humana, altruísta? Pessoalmente, eu acredito que não; entretanto, é como dizem: a esperança é a última que morre.

12 setembro 2019

Negação do aperfeiçoamento humano como crítica ao Positivismo

A citação abaixo oferece uma explicação prévia para a quantidade enorme de erros e distorções de que o Positivismo é vítima. Esse comentário de Augusto Comte é verdadeiramente lapidar e resume tanto o programa do Positivismo quanto o procedimento adotado pelos "críticos"; ele foi feito por A. Comte em uma carta a seu discípulo, o médico Georges Audiffrent (1823-1909), em meados de 1855.

"On hésitera toujours à se déclarer ouvertement contre une doctrine qui perfectionne autant le sentiment que la raison et l'activité".

("Sempre se hesitará a declarar-se abertamente contra uma doutrina que aperfeiçoa tanto o sentimento quanto a razão e a atividade".)

(Carta de Augusto Comte a Georges Audiffrent, 10 de março de 1855; in: Augusto Comte, Correspondance générale et confessions, t. VIII: 1855-1857; Paris, J. Vrin, 1990, p. 34.)

De alguns anos para cá há publicistas extremamente famosos atualmente, em particular no Brasil e que se definem como "conservadores" e "direitistas" - gente como Olavo de Carvalho e Luiz Felipe Pondé -, que se comprazem em ser contra o politicamente correto e contra o altruísmo, a generosidade, o pacifismo, a racionalidade etc. A despeito da "incorreção política" de tais publicistas, o fato é que, no fundo, eles acreditam, sim, no altruísmo, no aperfeiçoamento moral e assim por diante: ocorre apenas que eles negam essa possibilidade a seus adversários, mas (mesmo que secretamente) concedem-na às suas próprias preferências filosóficas.

Ora, o Positivismo baseia-se na afirmação da perfectibilidade humana: para os positivistas, é possível ao ser humano melhorar (ser mais altruísta e menos egoísta, ser mais racional e mais sintético, ser mais convergente). Mais do que isso: para os positivistas, é necessário que nos aperfeiçoemos (e, para isso, o Positivismo indica os inúmeros meios e procedimentos adequados).

Assim, deixando de lado os retrógrados que gostam de estar na moda e de aparecer nos telejornais do horário nobre, ninguém em sã consciência é contra a possibilidade e a necessidade de aperfeiçoamento humano. Como o Positivismo é radicalmente favorável a isso, o único meio de opor-se a ele é falseando sua proposta de aperfeiçoamento - daí as mais variadas e disparatadas críticas, formuladas pelos liberais, pelos marxistas, pelos católicos, pelos conservadores, pelos autoritários.
Augusto Comte.

Georges Audiffrent.
Fonte: http://cths.fr/an/savant.php?id=120841.

16 novembro 2017

Hernani G. Costa: "Sobre o 'Amor' na bandeira nacional"

O meu amigo e correligionário Hernani Gomes da Costa fez uma interessante intervenção a propósito da proposta de inclusão da palavra "Amor" na bandeira nacional republicana, feita recentemente por Hans Donner. Em virtude da alta qualidade desse texto, com sua autorização reproduzo abaixo a intervenção.

*   *   *

A exclusão do “amor” na bandeira nacional tem a ver com duas circunstâncias conexas na evolução do Positivismo. A primeira dessas circunstância refere-se ao fato de o lema principal (ou como Comte o chamava, a Fórmula Sagrada do Positivismo) haver passado por uma pequena mas significativa mudança.
  

Mas antes de se entrar nesse assunto é preciso definir os três termos da fórmula. Nossa mente é constituída por três elementos básicos: a afetividade, o intelecto e a ação.

Na fórmula sagrada, Comte procurou expressar sinteticamente cada um deles tal como se apresentam estaticamente em nossa vida psíquica, bem como, dinamicamente, caracterizando seus respectivos papéis e articulações no estabelecimento da harmonia tanto individual, quanto coletiva.

Por amor, Comte entendia o conjunto dos nossos três pendores sociais ou altruístas, os instintos inatos que nos predispõe (assim como a muitas outras espécies animais) a uma vida social. São eles (1) a amizade, ou amor aos iguais; isto é a camaradagem, o companheirismo, a cordialidade; (2) a veneração, o amor aos superiores; isto é, a admiração, a reverência; por fim, (3) a bondade, ou amor aos inferiores, isto é, a comiseração, a misericórdia, a compaixão, a solidariedade[1].

Por ordem Comte entendia o conjunto abstrato das leis naturais que regem o mundo e o homem, e cujo estudo forma o que se denomina a ciência; ordem, no caso se refere, pois, à ordem natural das coisas, ao conjunto das circunstâncias mediante as quais os fatos se dão, e por meio das quais estes podem ser inclusive antecipados com relativo sucesso.

Por progresso Comte entendia a dinâmica do mundo e do homem e, em conseqüência, o modo como podemos atuar sobre essas leis de modo a produzir determinados resultados almejados. O amor resume, na fórmula, o aspecto afetivo, emocional, passional da nossa natureza, a ordem, o aspecto intelectivo, teórico, científico, e o progresso, o aspecto prático, ativo, técnico, político (no sentido mais amplo da palavra).

Outra fórmula que caracteriza a articulação desses três elementos é “Agir por afeição e pensar para agir”.


 Pois bem. Primeiramente Comte redigiu a fórmula da seguinte maneira: “O Amor por Princípio, a Ordem por Base e o Progresso por Fim”. Assim, nesse primeiro esboço, o amor ficava isolado, e “ordem e progresso” ficavam juntos de modo a comportar uma possibilidade maior de decomposição.

Todavia, numa segunda redação Comte aperfeiçoou a fórmula, escrevendo-a da seguinte forma: “O Amor por Princípio e a Ordem por Base; o Progresso por fim”. Desse modo Comte passou a caracterizar antes de tudo o vínculo necessário do amor com a ordem (isto é, com o conhecimento) para conduzir consecutivamente ao progresso[2].

Em outras palavras, é o amor esclarecido que guia e conduz à atividade pacífica, e não este isoladamente, tal como a primeira redação parecia sugerir.

Comte foi o primeiro a reconhecer a insuficiência do lema "Ordem e Progresso", numa carta a um discípulo. Afinal, esse lema apenas versa sobre a harmonização entre as condições de existência (ordem) e de desenvolvimento (progresso) possuindo hoje uma expressão espontânea na idéia de desenvolvimento sustentável.

Como, porém, essa harmonização da sustentabilidade (ordem) com o desenvolvimento (progresso) é ainda o principal problema político a ser resolvido (isto é, tanto a superação da ordem retrógrada – que sacrifica em seu nome o progresso – quanto do progresso revolucionário – que em seu nome sacrifica as condições de ordem), Comte julgou dever manter o lema, como algo “separado”. Aliás é preciso lembrar que a bandeira positivista atual é necessariamente transitória, devendo o lema ordem e progresso ser incorporado na fórmula sagrada, quando houver de se operar a grande decomposição do Brasil em diversas pátrias (ou mátrias) independentes.

A segunda circunstância tem a ver com o fato de que, tal como concebida por Teixeira Mendes, a bandeira deveria conter duas fórmulas, uma de cada lado: “Ordem e progresso” (divisa política) de um lado e “Viver para outrem” (divisa afetiva correspondente ao amor universal) de outro. A meu ver a inclusão do amor na bandeira é, positivisticamente falando, ortodoxa, um “sinal dos tempos”, e portanto muito bem vinda, assim como, aliás, é bem vinda a presença do amor em qualquer outro lugar ou circunstância da vida.

Lamento apenas que Hans Doner não tenha exposto as origens de uma idéia que ele parece reputar como original[3]...




[1] Esses sentimentos também têm uma perspectiva temporal, ou histórica: o apego pode ser visto como os vínculos que nos unem aos seres humanos atualmente vivos, com quem neste momento e ao longo de nossas vidas dividimos nossas existências; a veneração são os sentimentos de respeito e gratidão para com os nossos antepassados; a bondade são os sentimentos mais puramente altruístas para com os nossos sucessores, não apenas com os nossos filhos e netos, mas principalmente para com todos aqueles que não conheceremos e virão após nós.
[2] É necessário notar que a palavra “fim”, aí, não significa “término” ou “encerramento”; é a tradução do francês “but”, que significa “objetivo”. Assim, o progresso deve ser entendido como o objetivo das nossas ações e do amor esclarecido.
[3] No início de novembro de 2017, o projetista gráfico Hans Donner propôs uma versão modificada da bandeira nacional republicana, incluindo a palavra “Amor” antes do “Ordem e Progresso”, além de outras alterações propriamente estilísticas (https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/11/09/bandeira-do-brasil.htm).