No dia 2 de César de 170 (23.4.2024) realizamos a prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).
No sermão abordamos a oposição entre o ideal e o real e como agir considerando a distância entre ambos.
A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/iKkQa) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/snJFS). O sermão começou aos 48 min 30 s.
As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.
* * *
O ideal vs.
o real: como lidar?
-
A questão desta semana é ao mesmo tempo bastante
simples e extremamente importante: como lidar com a oposição entre o ideal e o
real?
o Esse
tema foi sugerido pelo nosso amigo Hernani G. Costa, nos seguintes termos: “O
equilíbrio entre o preenchimento do ideal e a frustração de quando não o
realizamos. Como agir diante disso? Como conjugar a vida vivida em nome de um
ideal, diante de uma realidade que por tantas vezes parece desmenti-lo?”
-
Essa questão apresenta muitos aspectos, vários
deles à primeira vista insuspeitos:
o Em
um primeiro lugar, há o aspecto moral
(“psicológico”), em relação a como lidar com a distância entre o que se deseja
e o que se obtém
o Mas
o aspecto moral implica o conhecimento da realidade (científico)
o Também
há as questões relativas à idealização da realidade, ou seja, são aspectos artísticos
o Há
também a idealização no sentido do que é bom, ou seja, é um outro aspecto moral
o Tudo
isso se reúne nas leis da filosofia
primeira, em particular na primeira lei, a chamada “lei-mãe”
-
Comecemos pela oposição entre o real e o ideal,
isto é, a oposição entre a realidade vivida e o que gostaríamos que ocorresse
o Duas
ou três observações iniciais:
§ Trata-se
verdadeiramente de uma oposição entre
o real e o ideal
§ Os
comentários abaixo concentrar-se-ão no comportamento individual de cada um de nós
§ Além
disso, concentrar-nos-emos nas dificuldades enfrentadas e, ainda mais, nos
fracassos que por vezes temos que enfrentar
o Todos
vivemos enfrentando os desafios da vida; esses desafios são “desafios” porque
nos impõem dificuldades, que devem ser enfrentadas, ou seja, que têm que ser enfrentadas: todos temos
contas para pagar, por isso todos temos que trabalhar; temos contas para pagar
porque temos necessidades que têm que ser satisfeitas: alimentação, moradia,
saúde, transporte, relacionamentos, previdência, divertimentos
o Os
desafios que indiquei acima são todos eles materiais; mas é claro que viver é
muito mais que só se preocupar com questões materiais; como sabemos, sem negar
a importância desses aspectos, viver
significa acima de tudo ter ideais, planos, projetos; significa viver orientado
por valores e concepções do que é bom e belo
§ É
importante dizê-lo com todas as letras para termos clareza a respeito: a vida
orientada por valores e idéias existe por si só, independentemente das
preocupações materiais e, na verdade, com freqüência até em oposição a elas
§ Citamos
inicialmente as preocupações materiais apenas porque elas são fáceis de
entender e porque elas realmente se impõem a todos
§ Mas
é claro que há toda uma série de outras dificuldades na vida: entendimento
falho da realidade; necessidade de cooperação com outras pessoas; disposições
pessoais; acidentes tecnológicos; desastres naturais etc.
o O
que se apresenta, então, é uma oposição entre o que nós, como seres humanos,
desejamos e aquilo que, enfrentando os desafios e as dificuldades, conseguimos
realizar: às vezes conseguimos, às vezes fracassamos
o Como
se diz, o sucesso tem muitos pais e mães, mas o fracasso é sempre órfão: ninguém
gosta de fracassar, seja porque evidentemente o fracasso conduz a um sentimento
muito desagradável, seja porque ninguém gosta de assumir a responsabilidade
pelo fracasso
§ O
fracasso é desagradável; com freqüência sentimos a sensação de derrota, de
incompetência, de incapacidade, até mesmo de merecimento no fracasso
o Para
lidarmos com isso e, de qualquer maneira, para obtermos o sucesso, temos que
nos preparar das mais diferentes maneiras:
§ Temos
que lembrar que cada pessoa é uma pessoa, cada empreendimento é um
empreendimento diferente, cada situação é uma situação específica
§ É
necessário conhecer a realidade, (1) para sabermos se nosso projeto é
realizável; em seguida, (2.1) para sabermos quais as condições e as
possibilidades de sucesso; (2.2) inversamente, quais as condições e as
possibilidades de fracasso)
§ Assim,
a partir do conhecimento da realidade e, de qualquer maneira, é necessário
estarmos preparados, antecipadamente, para maiores dificuldades ou mesmo para
um eventual fracasso
·
Essa preparação é tanto material quanto
emocional
§ Caso
fracassemos, é sempre bom e sempre importante lembrarmos a ótima observação de
Winston Churchill: “O sucesso nunca é definitivo e o fracasso nunca é fatal”;
em outras palavras, devemos estar sempre preparados para reerguer-nos, ou seja,
devemos ter a resiliência
§ Todos
podemos, e até devemos, lamentar a derrota durante um certo período de tempo;
quanto mais importante essa derrota, maior o tempo despendido; mas o luto não
pode durar para sempre e, no final das contas, trata-se de uma questão de
amadurecimento: quem é mais maduro passa mais rapidamente pelo luto
·
Na verdade, inversamente, em certo sentido o amadurecimento
consiste na capacidade de cada um de lidar com as dificuldades e com os
fracassos, não se deixando abalar em demasia com eles, sabendo olhar para os
fracassos com serenidade (o que não equivale a olhá-los com satisfação), superando-os
com maior facilidade e seguindo em frente
§ Quando
acontece o fracasso, ele pode ter ocorrido devido a muitos motivos: falta de preparo
intelectual, falta de preparo moral, falta de preparo técnico, falta de
cooperação, eventos inesperados
§ É
sempre importante avaliar cuidadosamente cada uma dessas possibilidades, para (1)
determinar os diversos fatores que conduziram ao fracasso: com isso, (2) é
possível determinar as responsabilidades; (3) em uma eventual nova tentativa,
esses fatores têm que receber mais atenção; finalmente, (4) conseguir
determinar as diversas responsabilidades integra o processo de luto e, daí, o
de resiliência e amadurecimento
-
Em suma,
do ponto de vista estritamente individual, na oposição entre o ideal e o real,
o problema que nos conduz a considerar o “como lidar?” é como lidar com as
dificuldades e, em particular, com o fracasso
o A resposta para isso é tão simples de
enunciar quanto difícil de executar: preparar-se o máximo possível com
antecedência em termos morais (“psicológicos”), intelectuais e práticos e, no
caso do fracasso, saber avaliar os fatores que conduziram ao fracasso
o O entendimento intelectual ajuda na
preparação moral prévia e, depois, no caso de fracasso, auxilia na resiliência
-
Como sugerimos no início, os comentários acima
apresentam parte da questão; modestamente fizemos observações que seriam um
começo de apoio: mas foi apenas um começo
o Vejamos
agora outros aspectos do tema – aspectos que são fundamentais de serem
afirmados em conjunto com as observações acima, a fim de lidar-se de maneira
adequada (digna, madura, eficiente) com as dificuldades e os fracassos na vida
o Esses
outros aspectos são: (1) aspectos intelectuais e científicos; (2) questões de
moralidade; (3) aspectos artísticos
-
Qualquer projeto exige que conheçamos a
realidade:
o O
conhecimento da realidade, seja abstrato, seja concreto, é condição fundamental
para qualquer atividade e, bem vistas as coisas, para a vida
o A
realidade, nesse caso, consiste principalmente nas condições objetivas do mundo, ou seja, aquelas que
não dependem da vontade humana (e que, com freqüência, opõem-se à vontade
humana)
§ Para
evitar confusões e mal-entendidos: as condições sociológicas gerais e também as
morais integram, no presente caso, as condições objetivas
o Como
vimos antes, é necessário conhecer a realidade para podermos determinar as
possibilidades de êxito de qualquer projeto e, inversamente, as suas
possibilidades de fracasso; com isso, podemos preparar-nos em termos práticos
(reunindo os elementos necessários para o sucesso do empreendimento) e em
termos morais (ficando de sobreaviso para as dificuldades e, ainda mais, para um
eventual fracasso – e, assim, criando uma espécie de “almofada” moral)
o O
conhecimento abstrato da realidade consiste
nas leis naturais, isto é, das
relações necessárias de sucessão ou coexistência dos fenômenos
§ O
conhecimento da realidade (abstrato e concreto) conduz a uma idealização da
realidade, basicamente em termos apenas intelectuais: o “ideal”, aí, é uma
elaboração intelectual e simplificada da realidade
o Esse
conhecimento tem que estar ligado
sempre a uma regra prática de sabedoria, que consiste em determinar o que
podemos e o que não podemos fazer; ou, dito de outra forma, o que podemos e o
que não podemos mudar
§ Na
verdade, a determinação do que podemos e do que não podemos mudar antecede sempre a proposição de qualquer
projeto
§ Em
relação ao que podemos mudar, seguindo as leis naturais, é necessário avaliar
se é moralmente correto; no que se refere ao que não podemos mudar, a única
possibilidade é a digna resignação
·
Em outras palavras, a digna submissão (a digna
aceitação) é sempre o único caminho possível tendo em vista as
leis naturais, seja reconhecendo as possibilidades de atuação, seja
reconhecimento a impossibilidade de ação
§ Inversamente,
não faz sentido desejar algo que vai contra as leis naturais: desejar algo francamente
impossível implica uma vontade caprichosa
e o fracasso certo
·
A “resiliência” nesse caso consiste não em retomar
o projeto, mas em abandoná-lo e retomar
a vida com outros objetivos
·
A maturidade, nesse caso, consiste em reconhecer
a inutilidade dos esforços e a necessidade de mudar de objetivos: não há dúvida
de que isso pode exigir maiores esforços, que, por sua vez, aumentarão o “grau”
de maturidade
-
Também há os vários aspectos relativos à moralidade dos ideais
o Tudo
o que comentamos acima pressupõe que os nossos objetivos são moralmente
corretos
o Mas
é claro que a avaliação moral deve sempre ser feita – e, além disso, deve
sempre ser feita antes de qualquer
outra avaliação
o A
moralidade das ações é sempre dada pelo altruísmo: melhorará o bem-estar? Não
prejudicará? Estimulará o altruísmo? Não estimulará o egoísmo?
§ Vale
notar que a “bondade”, aí, consiste no altruísmo e que a “maldade” consiste no
estímulo direto e único do egoísmo (incluindo o sadismo); não há que falar em
“bondade” e “maldade” como se elas existissem por si sós, como abstrações
personificadas (ou seja, metafísicas)
o Os
valores e as idéias que são moralmente corretos – ou seja, que estimulam e/ou
realizam o altruísmo – podem tornar-se “ideais”, ou seja, concepções (1)
abstratas da realidade que (2) indicam os bons caminhos a seguir
§ É
importante insistir: não é porque algo é
factível que também é moralmente desejável e que, portanto, deve ser feito
o É
igualmente importante lembrar que, no caso de projetos moralmente corretos, com
freqüência um fracasso momentâneo não pode impedir a continuidade dos esforços:
em outros termos, um fracasso momentâneo
não nega nem invalida o ideal
§ Isso
se aplica às dificuldades, aos desastres e também às injustiças da vida
§ A
palavra “momentâneo” é central aqui: por vezes, um ideal factível não se
realiza devido a dificuldades materiais, a dificuldades sociais amplas, a
dificuldades políticas; mas cumpre perceber que, se em um determinado momento
algo não é possível, em outro momento, e/ou com outros esforços, esse projeto
pode vir a realizar-se
o Ainda
no que se refere a moral e à oposição entre o ideal e o real:
§ Como
“agimos por afeição”, todas as nossas ações são moralmente motivadas – daí a
necessidade de que essa motivação seja altruísta
§ Mas
é claro que os sentimentos não dão apenas a partida nas ações: são os
sentimentos que nos mantêm atuantes, mesmo (e até principalmente) em face das
adversidades
·
Os bons sentimentos de nossos familiares e
nossos amigos confortam-nos e apóiam-nos, seja durante as dificuldades, seja no
fracasso
·
Assim, é importante lembrar: não existimos no
vazio, ou melhor, não existem indivíduos,
mas apenas agentes da Humanidade; todas
as nossas ações são propostas, elaboradas e levadas a cabo na, pela e para a
Humanidade
§ Além
dos sentimentos e das idéias, a natureza humana atua por meio dos instintos
práticos: a coragem, a prudência e a perseverança
·
A coragem leva-nos a agir; é o impulso para a
frente
·
A prudência são os cuidados que tomamos, para
evitar problemas (ou problemas excessivos, ou problemas desnecessários, ou problemas
inesperados)
·
A perseverança é o que nos mantêm em atividade,
ao longo do tempo e a despeito das dificuldades
o Assim,
a resiliência é uma forma de perseverança, em que temos que retomar nossas
atividades quaisquer e, se for o caso, retomarmos os esforços das ações que
anteriormente fracassaram
-
Há ainda outros aspectos a considerar na
oposição entre o ideal e o real; todavia, esses outros aspectos serão somente
citados aqui
o As
observações acima se concentram nos indivíduos, nas dificuldades morais que
cada um enfrenta ao realizar seus projetos e, em particular, ao fracassar: mas,
como Augusto Comte afirmava desde o início de sua carreira e como consagrou na
Religião da Humanidade, de real só existe
a Humanidade
§ Isso
significa que todos os projetos só podem realizar-se pela Humanidade, devido
aos inúmeros fatores envolvidos:
·
O altruísmo realiza diretamente a Humanidade
·
Os projetos construtivos (não violentos, não destruidores)
desenvolveram-se ao longo da história
·
Da mesma forma, nossas concepções sobre a
realidade também se desenvolveram ao longo da história
·
Qualquer projeto implica, sempre, a
coletividade, seja nas idéias, seja nas palavras, seja na necessária colaboração
de qualquer atividade
·
Por fim – e de maneira central para esta prédica
–, no caso de maiores dificuldades e/ou de fracasso, o amparo é sempre dado pela Humanidade, seja com o afeto que nossos
amigos e familiares dão, seja com as idéias e os valores que nos confortam
o Como
vimos e como todos sabemos, a palavra “ideal” apresenta uma importante
ambigüidade:
§ Ela
pode ser uma concepção abstrata da realidade e/ou pode ser u’a meta considerada
correta
·
Temos aí as partes que cabem ao cérebro e ao
coração
·
Vale lembrarmos a bela frase de Vauvenargues: “os
grandes pensamentos provêm do coração”
§ Além
disso, há o espaço para a imaginação e, portanto, para as artes
·
Não podemos esquecer que as artes idealizam a realidade, ou seja,
descrevem um cenário que simplifica o mundo e que, ao mesmo tempo, é desejável
·
As artes, então, ajudam a inspirar-nos e a ter
coragem; enquanto enfrentamos dificuldades, elas confortam-nos, de modo que
apóiam a perseverança; por fim, no caso do fracasso, é fora de dúvida a
importância que elas apresentam para o conforto moral, para a resiliência e
para o nosso amadurecimento
o O
papel da idealização – considerando todos os aspectos indicados acima,
incluindo suas relações com a realidade – é resumido, sintetizado e/ou pressuposto
na primeira lei da filosofia primeira, cuja importância é tão grande que é
chamada de “lei-mãe”: “Formar a hipótese
mais simples e mais simpática que comporta o conjunto dos dados a representar”