29 março 2022

Curso livre de política positiva: roteiro da 2ª sessão

Reproduzo abaixo o roteiro da primeira sessão do Curso livre de política positiva, ocorrida no dia 15 de março, transmitida no canal Facebook.com/ApostoladoPositivista e também disponível no canal The Positivism (aqui).

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Súmula

Preliminares à Política Positiva II: historicismo; visão de conjunto e visão de detalhe; objetividade e subjetividade; descrições e prescrições; escala enciclopédica e graus de generalidade

 

Roteiro

-        Preliminares à Política Positiva II

o   Historicismo:

§  O ser humano é um ser social e histórico:

·         Se há um traço específico do ser humano, esse traço é a historicidade, ou seja, a sucessão de gerações e o acúmulo de materiais ao longo do tempo

§  Afirmação da solidariedade e, ainda mais, da continuidade

·         O rompimento da continuidade humana é o principal sintoma da doença moral-intelectual moderna

·         Essa tendência, que já era percebida e criticada na época de Augusto Comte, é cada vez mais e radicalmente constituinte do mundo – evidentemente, para nosso prejuízo

§  A experiência histórica não ser desperdiçada: os contextos mudam, mas há grandes continuidades (e mesmo essas continuidades mudam)

·         Desenvolvimento de atributos ao longo do tempo

·         Em particular: desenvolvimento da paz, da indústria, do trabalho livre, da ciência; do relativismo e da própria historicidade

§  A história não é passado-presente-futuro, mas passado-futuro-presente

§  Essas concepções são o fundamento último da Sociologia (cujo método específico é a “filiação histórica”)

o   Visão de conjunto, visão de detalhe

§  Afirmação constante da visão de conjunto filosófica, histórico-sociológica e moral sobre a visão de detalhe científica, industrial e política

·         Prevalência da visão de conjunto sobre a visão de detalhe; mas, ao mesmo tempo, diálogo constante entre ambas as visões à relações entre síntese e análise

·         Em termos histórico-sociológicos: continuidade sobre solidariedade; Humanidade sobre pátrias; pátrias sobre famílias; famílias sobre indivíduos

o   Sociologicamente, a “célula social” é a família, não o indivíduo; não existem “indivíduos” abstratos, apenas sociedades; do ponto de vista filosófico e sociológico, o indivíduo é uma abstração perniciosa e imoral à isso não quer dizer que os indivíduos não ajam, não atuem, não tenham sentimentos, nem que não tenham responsabilidades

§  Espírito positivo versus ciência

§  ciência: conhecimento analítico da realidade, por meio das leis naturais abstratas; conjunto mais ou menos homogêneo de doutrinas e métodos empregados na exploração de um determinado âmbito da realidade

§  espírito positivo: compreensão sintética da realidade, elaborada pela filosofia, abrangendo a ciência, a atividade prática (que deve ser sinergética) e os sentimentos (que devem ser simpáticos)

§  enquanto a ciência tende a secar e a isolar o ser humano (em termos intelectuais, afetivos e práticos), o espírito positivo busca desenvolver o espírito e a integrar o ser humano

§  o objetivo da ciência é auxiliar o ser humano em seu desenvolvimento à antes de mais nada moral e, depois, material à é assim que se deve julgar e avaliar a ciência

o   Objetividade e subjetividade:

§  Toda concepção humana consiste de diferentes porções de objetividade e de subjetividade

§  Existe uma realidade objetiva, independente da vontade dos seres humanos, a que temos acesso por meio da subjetividade à assim, em certo sentido a oposição objetividade-subjetividade reflete a oposição mundo-homem

§  A relação entre objetividade e subjetividade é, ela mesma, histórica:

·         Todas as concepções do ser humano são subjetivas; a teologia é radicalmente subjetiva, mas pretende-se objetiva

·         A ciência assume a objetividade da realidade; começando pelas ciências mais gerais, mais abstratas e mais fáceis, estabelece o relativismo; daí, subindo até a Biologia, disciplina a subjetividade, por meio dos diversos métodos particulares

·         A Sociologia aplica a objetividade à sociedade, ao mesmo tempo que reconhece e revaloriza a subjetividade; esse movimento é aprofundado na Moral, que então pode fundar o método subjetivo

§  O Positivismo respeita a objetividade mas rejeita o servilismo em face dela

·         O servilismo em face da objetividade – ou, dito de outra maneira, o excesso de objetividade – constitui a idiotia

·         O Positivismo institui uma nova subjetividade – daí a “síntese subjetiva”, que é um novo antropocentrismo

o   Descrições e prescrições

§  O Positivismo estuda o que é a fim de saber o que será a fim de estipular como agir: “saber para prever a fim de prover”

§  As descrições seguem o diálogo entre objetividade e subjetividade

·         As descrições, portanto, são sempre e necessariamente “interpretativas”

§  As prescrições são a sequência natural das descrições: afinal, a ciência tem que ser útil

·         O fundamento das prescrições é a combinação do conhecimento da realidade (incluindo aí da natureza humana) com a moral (pacífica, relativa, positiva)

§  “Para completar as leis são necessárias vontades”: essa fórmula aplica-se tanto na fase das descrições quanto na das prescrições

·         A subjetividade humana está em operação ao querer conhecer as leis naturais, ao formular as leis e ao aplicar na prática as leis

o   Escala enciclopédica e graus de generalidade

§  Lei explicativa da lei intelectual dos três estados

·         A lei intelectual dos três estados, como sabemos, é esta: “os conhecimentos humanos passam sucessivamente por três estados – teológico, metafísico e positivo –, com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes”

·         A escala enciclopédica esclarece quais os fenômenos são mais gerais e, portanto, quais concepções tornam-se positivas mais rapidamente

§  A escala enciclopédica afirma a multiplicidade das ciências: daí, portanto, ela estabelece a multiplicidade das leis naturais; por sua vez, isso estabelece a autonomia das várias ciências fundamentais entre si

·         “Os fenômenos mais nobres modificam os mais grosseiros subordinando-se a eles”

o   Relações entre subordinação e dignidade

o   Esse é o fundamento da diferença entre as “ciências superiores” e as “ciências inferiores” e, por extensão, do “método subjetivo”

·         Anti-reducionismo

o   A unidade da ciência é dada subjetivamente (por meio da síntese subjetiva), nunca doutrinariamente (por meio das teorias próprias a cada ciência)

·         Mudanças ao longo do tempo: fundação da Moral como ciência suprema; Sociologia como preparatória da Moral (v. II-III da Política)

§  Critérios:

§  Lógicos e históricos

§  Generalidade decrescente e especificidade (complexidade) crescente

§  Dedutibilidade decrescente e empiricidade crescente

§  Quanto mais elevada a ciência, mais complexa e nobre ela é; assim, mais modificável ela é; daí, maior a capacidade de intervenção humana

§  Classificação das ciências (abstratas) e respectivos métodos:

·         Matemática: dedução

·         Astronomia: observação

·         Física: experimentação

·         Química: nomenclatura

·         Biologia: comparação

·         Sociologia: filiação histórica

·         Moral: construção

Curso livre de política positiva: roteiro da 1ª sessão

Reproduzo abaixo o roteiro da primeira sessão do Curso livre de política positiva, ocorrida no dia 8 de março, transmitida no canal Facebook.com/ApostoladoPositivista e também disponível no canal The Positivism (aqui).

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Súmula

Apresentação: justificativa; foco geral do curso; estrutura do curso

Notas sobre a biografia de Augusto Comte e sua época

Preliminares à Política Positiva I: relativismo 

Roteiro

-        Apresentação

o   Apresentação pessoal:

§  Positivista ortodoxo

§  Sociólogo, doutor em Sociologia Política

o   Justificativa:

§  Preocupação do Positivismo com o esclarecimento público e popular

§  Inspiração nos cursos públicos ministrados no século XIX pelos positivistas franceses e no século XX por Luís Hildebrando Horta Barbosa

·         No caso dos positivistas franceses: exemplo do próprio Comte (cursos de filosofia positiva, de Astronomia popular, de Geometria; Associação Livre para a Instrução Positiva do Povo em Todo o Ocidente Europeu); Sociedade Positivista de Ensino Popular

§  Difusão do espírito positivo, conjugando as vistas gerais com vistas de detalhe

§  Importância renovada e ampliada nos últimos anos, com a proliferação e o sistemático uso político da desinformação, do “espírito crítico”, da manipulação dos sentimentos populares e dos golpes publicitários

o   Foco geral do curso:

§  Sociologia Política proposta por Augusto Comte

§  O título – “curso livre de política positiva” – refere-se ao seguinte:

·         O “curso livre” significa que ele consiste no que se pode chamar de “divulgação científica”, ou seja, que busca apresentar elementos teóricos, filosóficos, sociológicos e políticos para o grande público, leigo ou não, acadêmico ou não

·         A “política positiva” refere-se às duas etapas presentes na fase “positiva” da lei dos três estados: é o estudo real da política (em termos analíticos) seguido da avaliação filosófico-moral (sintética) da política

·         Em suma: é um curso público, não institucional, sobre a Sociologia Política desenvolvida por Augusto Comte

o   Estrutura do curso:

§  15 sessões, apresentadas todas as terças-feiras a partir das 19h, com duração de cerca de 45 minutos, seguidas por perguntas (se houver) e respostas

-        Breves comentários biográficos sobre Augusto Comte e sua época:

o   Indicações biográficas: nascimento; ingresso na Escola Politécnica; casamento com Carolina Massin; curso de filosofia positiva; publicação da Filosofia; separação de Carolina; encontro e relacionamento casto com Clotilde de Vaux; Revolução de 1848 e Discurso sobre o conjunto do Positivismo; instituição da Religião da Humanidade e publicação da Política, do Catecismo, do Apelo; a síntese subjetiva; falecimento

o   A época de Augusto Comte: Revolução Francesa destruindo a antiga ordem social, mas sem pôr efetivamente nada no lugar; fim das antigas doutrinas e estruturas, necessidade de novas; oscilação entre retrógrados e revolucionários (ordem e progresso); desenvolvimento das ciências; desenvolvimento da sociedade industrial; necessidade e oportunidade da ciência da sociedade; necessidade e oportunidade de um novo poder espiritual

-        Necessidade de exposição de alguns conceitos preliminares

o   Para entender o Positivismo e a política positiva, é necessário entender vários conceitos preliminares

§  Esses conceitos são “pressupostos”, mas não são meras postulações axiomáticas, como se Augusto Comte tivesse-os tirado de sua cabeça pura e simplesmente; são conceitos históricos, no duplo sentido de que (1) foram elaborados ao longo do tempo e (2) resultam de testes e experiências humanas ocorridas ao longo do tempo

§  Além disso, vale notar que, muito ao contrário do que se afirma geralmente, tais preliminares não são a “metafísica” de Comte, seja porque a metafísica para Comte não corresponde a tais preliminares, seja porque, como indicamos, a metafísica no sentido vago de que “preliminares” ou “pressupostos” geralmente apresenta o caráter de princípios axiomáticos, ou seja, de verdades autoevidentes, a priori e deduzidas como que do nada

o   Proponho duas ordens de preliminares: filosóficas e sociológicas

§  Essas duas ordens evidentemente estão relacionadas entre si (em particular porque a filosofia comtiana é uma filosofia sociológica, da mesma forma que sua sociologia é filosófica), mas elas são suficientemente distintas para serem apresentadas de maneira separada e, mais do que isso, de maneira subsequente uma em relação à outra

§  Nesta aula pretendo apresentar, ou pelo menos começar a apresentar, as preliminares filosóficas; na próxima sessão apresentarei as preliminares sociológicas

§  Os conceitos preliminares que me proponho apresentar não são exaustivos; eles são apenas alguns conceitos que me parecem ser minimamente necessários para que se compreenda a política positiva

o   Preliminares filosóficas: relativismo; historicismo; visão de conjunto, visão de detalhe; objetividade e subjetividade

o   Preliminares sociológicas: descrições e prescrições; escala enciclopédica e graus de generalidade; estática e dinâmica; a síntese subjetiva; o “estado normal”

-        Preliminares filosóficas:

o   Relativismo:

§  Conceito fundamental do Positivismo:

·         Expressado desde o início da carreira de Augusto Comte: “tudo é relativo, eis o único princípio absoluto” (1819)

·         Desenvolvido e aplicado cada vez mais em cada vez mais casos ao longo da carreira

§  “Relacionismo” cognitivo (sensações) e intelectual (relações entre fenômenos)

§  Antiabsolutismo

§  “Subjetivismo social”, relativo ao ser humano em geral à novo antropocentrismo

§  Lei dos três estados:

·         Lei de interpretação intelectual da realidade

·         De caráter qualitativo

·         Em última análise, estabelece a transição entre as concepções absolutas e as concepções relativas


25 março 2022

Hernani Gomes da Costa: "Positivismo e psicanálise - teorias e psicoterapia"

No dia 15 de março, durante a segunda sessão do Curso livre de política positiva, durante a exposição surgiu uma questão: considerando a importância da subjetividade, quais seriam as relações entre o Positivismo e a psicanálise? Essa questão, por mais interessante e sugestiva que seja, não poderia ser tratada durante o curso - seja porque ela ensejaria, necessariamente, muitas reflexões; seja porque, embora seja necessário falar sobre subjetividade, o curso em si é sobre política e não sobre psicologia; seja enfim porque eu mesmo não tenho condições de responder a essa questão.

Assim, pedi a meu amigo Hernani Gomes da Costa a grande gentileza de elaborar uma resposta; ele imediatamente começou a respondê-la, concluindo as suas anotações no dia 22 de março, uma semana depois, a tempo da terceira sessão do curso. Nessa terceira sessão eu não teria condições de ler a íntegra da resposta; por isso me limitei a apenas citar os quatro aspectos indicados inicialmente pelo Hernani; mas, com a autorização do autor, formatei o texto e publico-o agora, na forma abaixo.

Espero que gostem e que apreciem essas reflexões!

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Positivismo e psicanálise - teorias e psicoterapia

Hernani Gomes da Costa


Introdução

Uma forma que me parece bastante fecunda de começar a examinar a relação entre a psicanálise e o positivismo consiste em distinguir logo de início a teoria psicanalítica de sua correspondente técnica psicoterápica e, em seguida, comparar a primeira à Moral Teórica e a segunda à Moral Prática. Embora o caráter metafísico da psicanálise deva oferecer, tanto em um caso como mesmo no outro, um contraste marcante com o espírito positivo, isso não nos deve demover de buscar entre essas duas grandes concepções da alma humana o maior número possível de pontos de contato, pontos esses, aliás, que devem poder formar toda uma base a partir da qual se poderá fazer a psicanálise percorrer, ela própria, a lei dos três estados.

Moral Teórica e teoria psicanalítica

Devo assinalar quatro grandes pontos de contato, cujo conjunto, assim me parece, chega mesmo a suplantar todas as diferenças e oposições que decerto existem entre essas duas formulações pioneiras; são elas:

1)                 primado da emocionalidade sobre a racionalidade;

2)                 identidade fundamental das leis naturais que regulam os estados de saúde e de doença mental;

3)                 plena caracterização do fenômeno mental como distinto dos (e irredutível aos) processos químicos, biológicos e sociológicos que o acompanham e malgrado estejam-lhe associados indissoluvelmente; por fim,

4)                 valorização da vida onírica como legítima (e segundo Freud como preferencial) via de acesso ao conhecimento e ao aperfeiçoamento profundo de si.

Examinemos agora, um a um, a relevância desses quatro pontos.

1) Primado da emocionalidade sobre a racionalidade

A grande revolução esboçada por Franz Gall e sistematizada por A. Comte sobre o psiquismo humano, segundo a qual se deveria buscar sempre em motivações emocionais as mais fundas raízes dos nossos pensamentos e das nossas ações, precisou esperar por Freud até se traduzir como parte de uma efetiva busca pelo alívio dos nossos transtornos psicológicos. No decorrer da evolução do movimento psicanalítico, não me consta que nenhuma de suas inúmeras dissidências tenha jamais dado ensejo à mínima insurreição contra essa tese, que representa, insistimos, uma semelhança essencial com a concepção positiva da alma. Pelo contrário, esta manteve-se intacta resistindo a todas as demais correntes que haveriam de formar-se na psicologia (mesmo fora da psicanálise) e que no fundo limitaram-se apenas à resolução do problema de identificar, dentre todo o inventário das nossas punções instintivas, a qual delas deveria caber o primado de nossa dinâmica mental.

2) Identidade fundamental das leis naturais que regulam os estados de saúde e de doença mental

O segundo ponto que me parece convir apresentar consiste no modo como tanto a teoria psicanalítica da alma quanto a comtiana formulam a seu próprio modo a identidade comum que subjaz aos fenômenos patológicos e aos que concernem à saúde. Prosseguindo ambas, nesse particular, as bases lançadas por François Broussais, elas vieram estabelecer o continuum que, ligando um desses extremos ao outro, permitem teoricamente que se conceba tanto a recondução da mente da doença para à saúde, quanto sua recaída à doença, e permitem ainda conceber essa dupla passagem como se constituindo, no fundo, de um só e mesmo processo, apenas funcionando em dois sentidos opostos. Foi assim que se tornou possível transpor o abismo em que jaziam ininteligíveis os mais grotescos sintomas psicopatológicos, que doravante puderam ser rastreados até sua origem mais remota e então compreendidos nos termos de uma intrincada deformação daqueles mesmos processos que a mente elabora em seu estado são.

3) O fenômeno mental como distinto dos processos inferiores

É sabido que a escola positivista encontrou profunda resistência do materialismo junto ao mundo acadêmico em que, na menos pior das hipóteses, apenas foi possível acompanhar – de um seguro distanciamento – as concepções comtianas até os estritos limites sugeridos pelo Curso de Filosofia Positiva que faziam então da Moral tão-só o capítulo final da Biologia e o preâmbulo à Sociologia (concebida esta como a última e a mais alta ciência). De fato, em uma atmosfera em que predominavam concepções como as de Carl Vogt (que afirmava ser o pensamento a secreção do cérebro), declarar, como Comte o fez em sua fase religiosa, a identidade própria do fenômeno moral em relação aos da neurofisiologia, inclusive a erguendo acima da Sociologia, era algo que parecia ameaçar a tão sonhada unidade objetiva da ciência materialista, com um retorno à tenebrosas concepções de um espiritualismo teológico ou de um vitalismo metafísico não menos funesto. Esse quadro só mudou a partir dos experimentos de Charcot (um dos mestres de Freud) com pacientes histéricos cujas paralisias parciais exóticas conduziriam a verdadeiros paradoxos se houvessem de ser anatomicamente compreendidas como associáveis apenas a lesões neurológicas. Foram tais experimentos que arrancaram Freud do materialismo vulgar, conduzindo-o a um caminho que, embora não exatamente novo (uma vez que já havia sido apontado por A. Comte e trilhado por seu discípulo Georges Audiffrent), havia, para todos os efeitos, permanecido à margem do mundo acadêmico, sufocado até mesmo pelo littreísmo que ainda hoje passa por ser o positivismo comtiano. Eis aí como foi que em mais esse aspecto fundamental a psicanálise veio assemelhar-se ao positivismo já a partir da própria consideração do fenômeno moral como detentor de um status próprio e superior, que, conquanto subordinado a todos os demais, não se reduz a nenhum deles.

4) Vida onírica como via de acesso ao conhecimento e ao aperfeiçoamento profundo de si

Se, como Freud afirmou, a interpretação dos sonhos é a via régia do inconsciente, então podemos dizer que Comte apresenta-se (no cenário de uma então embrionária Psicologia) como um genuíno precursor não só da psicanálise como do que hoje chamamos sonhos lúcidos. De fato, quanto a isso, Comte escrevera no Catecismo positivista – e, note-se, quase 50 anos antes da publicação dos dois célebres volumes que abrem o século XX e aos quais Freud carinhosamente se referia como “o meu livro de sonhos” – o seguinte: “pode-se esperar que a teoria cerebral conduza finalmente a bem interpretar os sonhos e mesmo a modificá-los, segundo o voto de toda a Antigüidade”. Se livrarmo-nos dos preconceitos que pairam sobre o positivismo, poderemos compreender como foi possível a Comte encetar tamanho adiantamento, uma vez que em uma síntese que sempre tendeu e pretendeu tornar-se plenamente relativa e subjetiva, a valorização da vida onírica não poderia senão corresponder a um dos corolários da própria valorização geral conferida a essa faculdade complexa da imaginação – isto é, ao recurso lógico de elaborar imagens e de intensificá-las deliberadamente. Tal faculdade vem, pois, com a nova síntese, reocupar natural e necessariamente no conjunto da nossa natureza, (e assim também nas concepções e práticas que a ela correspondem) o seu primitivo lugar de honra dignamente reconstituído, tanto quanto em contrapartida deveu-o ser posta sob suspeita e desprezada por um grosseiro academicismo materialista, que aliás perdura até hoje. Acrescente-se a isso que, além da esperança depositada por A. Comte (e compartilhada por Freud) na capacidade de bem interpretar os sonhos, também a expectativa do fundador do positivismo na possibilidade moral representada pelo dom complementar de modificá-los (assunto que, tanto quanto sei, jamais entrou na pauta da obra freudiana) veio enfim realizar-se sob nossos olhos, mediante técnicas do sonho lúcido sistematizadas apenas em meados dos anos 1970.

Moral Prática e técnica psicoterápica psicanalítica

Se na primeira parte de nosso exame foi simples identificar alguns pontos de contato significativos entre as teorias comtiana e freudiana da alma, a presente segunda parte, referente à atuação direta de ambas sobre a subjetividade humana, vem oferecer ao contrário um contraste radical que as torna, a meu ver, antagônicas; o que aliás sugere imediatamente a questão de saber se, afinal, existiria hoje alguma outra linha pedagógica e psicoterápica que melhor se assemelhasse à moral prática conforme concebida por Comte. Examinaremos também esse último ponto. Convém notar, porém, que a morte prematura de Comte representou a catástrofe que privou a Humanidade do que seriam os demais três volumes que se seguiriam ao tratado matemático (único publicado) que forma o primeiro tomo da sua Síntese Subjetiva. Seria justamente no segundo e no terceiro tomo dessa tetralogia há tanto tempo anunciada que Comte trataria de constituir a Moral Teórica e a Moral Prática (ou, como diríamos hoje, a Psicologia e a psicoterapia/pedagogia positivas, respectivamente). Assim, tudo quanto dispõe aquele que deseja debruçar-se hoje sobre tal problema encontra-se disperso heterogeneamente ao longo da obra comtiana, apenas sob forma de indicações mais ou menos incidentais e sumárias. Só o que nos resta fazer, pois, é conjecturar tomando tais bases – sugestivas porém necessariamente incompletas (somadas, é claro, a tudo o mais que a Humanidade conseguiu realizar convergentemente em termos de especulação e de investigação psicológica, psicoterápica e pedagógica) e, a partir daí, inferir (e mesmo assim apenas como mera plausibilidade) como haveriam de constituir-se as suas morais Teórica e Prática. Limitar-nos-emos apenas a indicar o que nos parece esse novo caminho que Comte começava a vislumbrar (e cuja mais precisa caracterização só pôde ser apresentada já em seu leito de morte como em um último ensinamento) e que, se percorrido, guiá-lo-ia – assim nos parece – a uma inteira e nova possibilidade de interação e de compreensão interpessoal, a qual, por sua vez, corresponde, a nada menos que à própria chegada da comunicação humana como um todo ao seu estado positivo.

Para melhor examinar o contraste efetivo entre o modo de operar da psicanálise e da Moral Prática, conviria examinar a proposta desta, indicada já por sua posição mesma na escala enciclopédica. O conceito que emerge de tal posição, e que me parece o mais caracterizador do seu espírito geral, traduz-se na sua condição única (e que apenas aí é possível) de uma plena concretude em que toda abstração torna-se a um tempo tão impossível quanto indesejável. Se à Moral Teórica apenas coube investigar e inventariar o que há de comum a cada individualidade, é à Moral Prática que cabe, ao invés, desenvolver os esforços no sentido de estabelecer as atitudes do que poderíamos chamar de “ciência da excepcionalidade”. Ocupando uma posição singularmente privilegiada na escala dos saberes, fronteiriça às demais artes práticas cujos seis restantes elementos formarão uma hierarquia que descerá sucessivamente da política até as artes ligadas à matemática, a Moral Prática caracteriza-se, de fato, pelo trabalho contínuo de deter-se tão-só em cada indivíduo no seu aqui e agora, ou seja na concentração total de nossa emocionalidade e de nossa atenção em uma determinada pessoa concreta, que se apresenta de fato a nós em um determinado lugar e tempo concreto e que, dessa forma, momento a momento vem revelar-se na qualidade da subjetividade singular e incomparável (ou antes a-comparável) que é. Os elementos únicos para uma tal compreensão não podem, pois, deixar de consistir exclusivamente naquilo que essa própria pessoa concreta venha revelar por meio da sua comunicação verbal ou não verbal conosco e que por nós possa ser assimilada e a ela devolvida como forma de confirmar, por tal pessoa mesma, se (ou em que medida) fomos capazes de alcançar o sentido subjetivo do que nos comunicou. Outrossim, esse nosso esforço por seu turno não carece de nenhum construto teórico, resumindo-se antes na consequência natural de um gesto único que consiste, ao contrário, em despirmo-nos cada vez mais de quaisquer abstracionismos (mesmo os oferecidos pela própria Moral Teórica) bem como de hipóteses, pressupostos, expectativas, juízos de valor etc. que possamos acaso formular sobre alguém e por mais plausíveis ou necessários que nos pareçam. É assim, pois, que tudo de quanto dispomos como instrumento para alcançar essa compreensão é a nossa própria emoção e atenção, inteira e integralmente voltadas e votadas a quem de fato apresenta-se a nós, no desejo imenso e intenso de captar assim a totalidade do significado subjetivo real do que nos é oferecido na interação – também única – dessa pessoa conosco. Em uma palavra, só o que nos resta como instrumento efetivo para tal compreensão humana somos nós mesmos, com nossas próprias faculdades naturais de empatia, de congruência e de receptividade positiva e incondicional.

Embora haja um certo consenso de que a psicanálise não é mais, hoje, o que foi nos tempos de Freud, parece-me inegável que ela tenha recebido da Medicina a herança de uma certa postura profissional típica, herança esta de que seus profissionais, em geral, ainda não se dispuseram a abrir mão. Refiro-me a um posicionamento no qual o psicanalista apresenta-se como um especialista, como um “doutor de almas”, ou – o que é ainda pior – como um “fulano-de-tal-ólogo”. Ela parte do pressuposto de que existem verdades universais e necessárias sobre os mecanismos mais profundos responsáveis pelo padecimento moral do ser humano, verdades que precisariam ser eficientemente identificadas nos sintomas que o “paciente” manifesta e em seguida “tratadas” pelo psicanalista. A palavra do psicanalista substitui, no caso, o bisturi; o divã substitui a mesa de cirurgia; as sessões são o equivalente a uma operação; o trauma é a causa do sintoma e a catarse, a extrusão do mal. Bem se vê que em uma ambiência como essa a relação deve pautar-se na suposta dependência quase total em que o “paciente” encontra-se na sua relação com o psicanalista. É essa dependência que faz o paciente requer uma ajuda impessoal cujas propostas e solicitações são tão específicas que ninguém mais – nem parentes, nem amigos, nem médicos, nem sacerdotes e nem ele próprio, paciente – teria como oferecer e à qual ele apenas vem contribuir na qualidade de um colaborador involuntário no desenvolvimento da teoria e no aprimoramento da técnica, oferecendo a ambas novos insumos de “material” a compor ilustrações adicionais que enriquecerão a psicanálise, confirmando, complementando ou, vez por outra, infirmando a verdade de seus pressupostos e a eficácia de seus procedimentos.

Uma evidência sensível do teorismo psicanalítico revela-se muito particularmente na barreira iniciática imposta pelo Estado na ocasião mesma do ingresso do recém-formado psicólogo em sua vida profissional: o gigantesco aparato teórico da psicanálise adjunto ao seu correspondente repositório terminológico (que já formou, diga-se, grossos léxicos) prestam-se – como talvez os de nenhuma outra linha de psicoterapia – a oferecer quase todo o conteúdo das questões de múltipla escolha presentes nas provas de concursos públicos para os cargos de psicólogo. Nada em Psicologia consegue ser tão farto e nada consegue ajustar-se tão bem e ser tão precisamente caracterizável (quando se trata de comportar um inequívoco “assinale a única resposta correta”) do que a psicanálise.

Comte, em seu leito de morte, afirmara, porém, como consistindo em um verdadeiro vício lógico enraizado na Medicina a prática de aplicar princípios gerais a casos particulares. Jung, discípulo dissidente de Freud, chegaria mesmo a dizer: “conheçam-se todas as teorias, dominem-se todas as técnicas, mas ao estarmos diante de outra alma humana, sejamos apenas outra alma humana”. Ora, pergunta-se então: como ficaria (e em que consistiria) uma Psicologia, uma Psicoterapia e uma Pedagogia que procurassem rastrear as mais longínquas consequências de tal vício lógico, tentando o mais que possível evitá-las e contorná-las? Como dissemos inicialmente, na obra comtiana apenas poderemos encontrar sobre isso sentenças esparsas e incidentais. Esse tema tão capital (e que, desgraçadamente, em virtude de apenas dois anos de vida que o destino não concedeu ao fundador do positivismo) não pôde ter nenhuma apresentação direta e sistemática, conquanto representasse desde há muito o próprio coroamento de toda a doutrina. Contudo, pensamos que, apesar disso, o oferecido aqui, se largamente desenvolvido, possa servir como a primeira base de um esboço de tentativa no sentido de compreender o que foi aquela antiga e esquecida proposta, assim como de estabelecer algum critério por meio do qual seja possível investigar se existe hoje alguma linha de Psicologia naturalmente mais próxima dela. Penso que a resposta a essa última questão seja afirmativa e que tal linha esteja cabalmente representada nas chamadas abordagem centrada na pessoa (ACP) e na pedagogia centrada no aluno, de Carl Rogers.

Torna-se uma tarefa das mais melindrosas e arriscadas fazer derivar todo um conjunto de práticas de uma única indicação extrema tomada como fundamental, mas, a menos que nos arrisquemos a algo assim, não estaremos realmente em condições de avançar. As linhas psicoterápicas podem ser grosso modo divididas em três grandes grupos segundo a base que tomaram para o acesso à subjetividade humana: de natureza predominantemente prática (behaviorismo, orgonoterapia, rolfing, rebirthing, terapia do grito primal etc.), intelectual (psicanálise e suas dissidências, gestalt, terapia cognitivo-comportamental, filosofia clínica etc.) ou afetiva (abordagem centrada na pessoa, terapia existencialista, psicodrama etc.).

Essa decomposição mais ou menos assente nos meios acadêmicos forma um critério adicional que favorece o nosso trabalho, o qual passa a incidir de preferência sobre o último desses três grupos, tão bem a propósito caracterizado pela denominação de psicoterapias humanistas.

Assim como Comte precisou livrar-se até mesmo de determinadas especulações e ambições científicas para atingir a plenitude do estado positivo, Rogers também precisou fazê-lo para alcançar a cristalinidade da visão do outro como a de uma total alteridade mutável instante a instante. Em uma analogia com a Matemática, podemos dizer que a diferença entre a abordagem centrada na pessoa e as demais formas diretivas e abstratas de acesso à subjetividade assemelha-se à que existe entre a idéia de somatório quando comparada à de integral. Da mesma forma – e explorando ainda mais a analogia com a Matemática –, a diferença entre a pessoa conforme concebida nas demais terapias e na ACP assemelha-se à diferença fundamental entre o conjunto dos números reais, em que é cabível a relação “maior do que” e “menor do que”, e o conjunto dos números imaginários, em que esse componente quantitativo deixa de fazer sentido, malgrado seus elementos característicos consistam de entidades aritméticas tão bem definíveis como aquelas encontráveis no conjunto dos números reais[1].

Finalizando, devemos dizer que, embora os conceitos de doença, alta, cura, sintoma, inconsciente, trauma, diagnóstico, tratamento, terapia, neurose, psicose, obsessão, compulsão, id, ego, superego, paciente etc. etc. etc. não encontrem absolutamente lugar na abordagem centrada na pessoa, isso não significa que ela rejeite, a bem dizer, o fato reconhecido de que psicólogos de outras linhas tenham dito haver identificado (segundo seus próprios construtos – e designado segundo seu próprio jargão) muito do que efetivamente acontece no interior de uma sessão da ACP, quer na condição fenômenos a eles familiares, quer mesmo na condição de consistirem estes nas mesmas exatas e genuínas ocorrências que historicamente atestaram desde o início, a realidade de cada uma suas próprias e inúmeras teorias. A rejeição a esses conceitos obedece, no caso, a uma outra ordem de considerações e de atitudes distinta do que seria uma simples rejeição teórica. Trata-se aqui de evitar a todo custo o abstracionismo, considerando, por exemplo, que por mais bem descritos que possam vir a tornar-se conceitos como os de neurose, tão exaustivamente tratados, tais descrições jamais poderiam equivaler – em termos de informação real – ao que a própria pessoa que busca ajuda teria a dizer sobre si mesma, assim como jamais equivalerão ao que uma pessoa que busca compreender a outrem possa obter de sua própria empatia, quando se compara isso a qualquer suposto conhecimento a priori que estivesse fora do contato direto e íntimo com ela, pela intermediação dos mais experientes e argutos intérpretes.

 

Nota pessoal: Caro Gustavo, eis aí em síntese o meu prometido texto. Penso haver chegado a um resultado mais ou menos satisfatório nessa minha primeira tentativa sistemática de situar a psicanálise no contexto das concepções positivas, sobretudo considerando-se o tempo que tive disponível, bem como a necessidade de encurtá-lo tanto quanto convém a uma simples resposta. Precisamos desenvolver esse tema, inclusive no sentido de colher da própria psicanálise alguns conceitos mais tardios que eventualmente a aproximem mais da Moral Teórica e Prática.



[1] Melhor seria dizer “conjunto dos números complexos”, de que o conjunto dos imaginários é apenas uma parte , ou seja, aquele em que, na expressão geral “A+Bi”, A é igual a zero.

Curso livre de política positiva: vídeo da 3ª sessão

No dia 22 de março ocorreu a terceira sessão do Curso livre de política positiva, com transmissão ao vivo no canal do Facebook Apostolado Positivista: Facebook.com/ApostoladoPositivista.

Nessa sessão apresentamos os conceitos de Estática e Dinâmica; método subjetivo; estado normal; teoria da religião.

Houve alguns problemas na transmissão, que teve que ser interrompida e reiniciada. Apesar dessa dificuldade, reuni as duas partes da exposição em um único vídeo, disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=8Yjp1UDuoeg.

A programação completa do Curso pode ser vista aqui.



16 março 2022

Zequinha pela paz na Ucrânia

A tradicionalíssima personagem curitibana Zequinha une-se aos esforços mundiais pela paz na Ucrânia e pelo fim da invasão russa. E, de passagem, convida todos os interessados que se unam a manifestações públicas nesse sentido!




Canal Apostolado Positivista: celebração do nascimento de Augusto Comte

Inaugurando o canal Apostolado Positivista no Facebook (Facebook.com/ApostoladoPositivista), celebramos em 19 de janeiro de 2022 o aniversário de nascimento do fundador da Religião da Humanidade, o grande filósofo Augusto Comte (1798-1857).

Tal celebração, aliás, além de inaugurar o canal, também retomou a prática de celebrar essa data tão especial, interrompida por muito tempo.

O vídeo da celebração está disponível aqui: https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/377154660880499.  




Curso livre de política positiva: vídeo da 2ª sessão

No dia 15 de março ocorreu a segunda sessão do Curso livre de política positiva, com transmissão ao vivo no canal do Facebook Apostolado Positivista: Facebook.com/ApostoladoPositivista.

Nessa sessão apresentamos os conceitos de historicismo; objetividade e subjetividade; visão de conjunto e visão de detalhe; descrições e prescrições; escala enciclopédica e níveis de generalidade.

Com várias participações ao vivo, a segunda sessão está disponível aqui: https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/495457555587668/.

O vídeo da segunda sessão também está disponível no canal The Positivism, aqui: https://www.youtube.com/watch?v=QMxrAUxE4KI.

A programação completa do Curso pode ser vista aqui.



Curso livre de política positiva: vídeo da 1ª sessão

No dia 8 de março ocorreu a primeira sessão do Curso livre de política positiva, com transmissão ao vivo no canal do Facebook Apostolado Positivista: Facebook.com/ApostoladoPositivista.

Nessa sessão apresentamos a justificativa e o plano do curso; uma rápida biografia de Augusto Comte e uma contextualização de sua imensa obra; por fim, começamos a expor as preliminares da política positiva, tratando do conceito fundamental do relativismo.

Com várias participações ao vivo, essa primeira sessão está disponível aqui: https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/281799764032168/.

O vídeo também  pode ser visto no canal The Positivism, disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=bco6cWA47oQ.

A programação completa do Curso pode ser vista aqui.





04 março 2022

Mais alguns comentários sobre a invasão russa contra a Ucrânia

As observações abaixo dão continuidade à postagem feita em 2.3.2022 sobre a invasão russa da Ucrânia (disponível aqui). Elas não se referem às questões militares, mas à justificativa dada pela Rússia e às interpretações dadas no Brasil para essa invasão. Dessa forma, as observações tratam tanto de questões de fato quanto de questões de valores.

* * *

O "realismo" de Henry Kissinger que condena a inclusão da Ucrânia na OTAN é o mesmo que justifica o embargo econômico dos EUA contra Cuba: trata-se da idéia de "zonas de influência".

Como descrição política, as "zonas de influência" fazem sentido, é claro. Durante a Guerra Fria, essa era uma realidade fática e não havia muito o que falar: isso justificou a invasão soviética da Tchecoslováquia e da Hungria, da parte comunista, e o embargo contra Cuba, da parte dos EUA.
O problema é que não estamos mais na Guerra Fria. Assim, da mesma forma que o embargo dos EUA contra Cuba torna-se incompreensível e injustificável, deixar a Ucrânia à mercê da Rússia é inaceitável.
Foi a idéia das zonas de influência que justificou e legitimou, em última análise, a anexação violenta da Criméia pela Rússia em 2014. Em reação a essa violência, como nação soberana e preocupada com as questões mais elementares de segurança e de existência política, a Ucrânia foi atrás da OTAN (juntamente, e não por acaso, com inúmeros outros países da antiga Cortina de Ferro). Mas é ainda a idéia da "zona de influência" que justifica, da parte dos "realistas", a atual agressão russa contra a Ucrânia - pois a Ucrânia teria "provocado" a Rússia ao tentar defender-se, ao tentar preservar-se como país soberano e ao tentar evadir-se, dentro de suas possibilidades, da zona de influência russa.
O que não é explícito nesses raciocínios é que esse "realismo" acaba adotando um viés a favor das grandes potências: os países pequenos ou médios têm que se submeter às grandes potências. Em outras palavras, caso os países pequenos ou médios tentem ser, eles mesmos, realistas em favor de si mesmos, eles sofrerão punições das grandes potências a que estão submetidos. Para o realismo à la Henry Kissinger, as coisas são assim mesmo, não há muito o que dizer - e azar de quem não é grande potência.
É esse corolário meio fático, meio moral, de "azar de quem não é grande potência", que justifica a absurda afirmação de que a Ucrânia teria "provocado" a Rússia em 2022 ao solicitar a inclusão defensiva na OTAN, mesmo após ter sido desmembrada violentamente pela Rússia em 2014.
Para concluir: esse raciocínio "realista" encontra eco entre os esquerdistas que criticam a OTAN... bem entendido: encontra eco na medida em que os esquerdistas manifestam o seu antiamericanismo e seu anticapitalismo por meio da crítica à OTAN. Mas esses mesmos esquerdistas rejeitam essa teoria das zonas de influência quando se trata de Cuba. Enfim, é aquele negócio: dois pesos, duas medidas. (Nesse caso, o cinismo dos "realistas" é mais honesto que a hipocrisia dos esquerdistas; mas essa é outra questão.)

02 março 2022

Curso livre de política positiva

A partir de 8 de março de 2022 (terça-feira), a partir das 19h.

Curso em 15 sessões

Programa:
Sessão 1) Dia 8.3 - Apresentação: justificativa; foco geral do curso; estrutura do curso; Preliminares à Política Positiva I: o estado normal; objetividade e subjetividade; descrições e prescrições; visão de conjunto, visão de detalhe e a síntese subjetiva
Sessão 2) Dia 15.3 - Preliminares à Política Positiva II: relativismo, historicismo; escala enciclopédica e generalidade
Sessão 3) Dia 22.3 - Sociologia Estática I: religião: concepções e regulações gerais da existência humana
Sessão 4) Dia 29.3 - Sociologia Estática II: família e linguagem; os indivíduos
Sessão 5) Dia 5.4 - Sociologia Estática III: propriedade: origem e destinação sociais, gestão individual
Sessão 6) Dia 12.4 - Sociologia Estática IV: poder temporal: a gestão material da sociedade
Sessão 7) Dia 19.4 - Sociologia Estática V: poder espiritual: a orientação moral e intelectual da sociedade
Sessão 8) Dia 26.4 - As relações entre os dois poderes: laicidade, independência, dignidade
Sessão 9) Dia 3.5 - Sociologia Dinâmica I: os três estados da inteligência: teologia, metafísica, ciência e positividade
Sessão 10) Dia 10.5 - Sociologia Dinâmica II: os três estados da atividade: guerra conquistadora, guerra defensiva, paz industrial
Sessão 11) Dia 17.5 - Sociologia Dinâmica I: os três estados dos sentimentos: família, pátria, Humanidade
Sessão 12) Dia 24.5 - A Religião da Humanidade; regulação religiosa da sociedade: concepção do novo Grande Ser; a Trindade Positiva
Sessão 13) Dia 31.5 - A transição própria ao Ocidente: teocracia, Grécia, Roma, Idade Média, duplo movimento moderno, Revolução Francesa; transição final
Sessão 14) Dia 7.6 - República e “ditadura”: presidencialismo de liberdades
Sessão 15) Dia 14.6 - Justiça social: luta de classes; responsabilidade social

Alguns comentários sobre a invasão russa contra a Ucrânia

A guerra da Rússia contra a Ucrânia começou na noite de 23 para 24 de fevereiro de 2022, após semanas de aumento de tensões e de ameaças russas contra a Ucrânia. Como não poderia deixar de ser – em particular nesta época de notícias e opiniões difundidas em tempo real –, isso deu azo às mais diversas perspectivas; como, por outro lado, a análise do conflito depende precisamente das perspectivas adotadas, convém tecermos algumas considerações a respeito de algumas delas.

À parte o antiamericanismo dos (cripto)comunistas, muitas pessoas razoáveis têm sido ambíguas a respeito da invasão da Ucrânia ao adotar o curioso realismo à la Henry Kissinger[1], dizendo que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) expandiu-se de maneira irresponsável entre os anos 1990 e 2020, irritando e “atemorizando” (!) cada vez mais a Rússia.

Ora, Letônia, Estônia, Lituânia, Hungria, Polônia[2]: todos esses países e diversos outros foram atrás da OTAN, em vez de terem sido buscadas pela organização. Esses países buscaram a OTAN não para “provocar” a Rússia, mas, muito ao contrário, por um medo histórico desse país – aliás, tão histórico quanto as alegadas relações umbilicais entre Rússia e Ucrânia.

A Ucrânia quer aderir à OTAN simplesmente porque tem medo – cada vez mais justificado – da Rússia. E a invasão da Criméia em 2014 parece que não ocorreu e que não foi um ato violentíssimo, praticado pela “irmã” Rússia. Se antes de 2014 o desejo ucraniano de ingresso na OTAN talvez pudesse ser condenado em termos do “realismo” de Kissinger, o fato é que após a tomada da Criméia essa condenação tornou-se mera figura de retórica e o medo ucraniano da prepotência russa (e não o contrário) tornou-se mais real do que nunca.

Da mesma forma, um dos argumentos para tentar-se justificar a invasão da Ucrânia – que, cada vez mais, evidencia que terminará por destruir o país em termos geográficos, políticos, econômicos e sociais – são os laços étnicos entre Rússia e Ucrânia. Isso não é desprezível, evidentemente. O problema é que esse argumento tem sido mobilizado para justificar a invasão (e a destruição) da Ucrânia pela Rússia; mais do que isso: o argumento da fraternidade étnica tem sido usado para negar aos ucranianos o direito soberano de decidirem coletivamente o que fazer de suas próprias vidas. Moldávia, Irlanda, Macedônia do Norte etc. etc. mais ou menos têm o direito à autodeterminação, a despeito de evidentes e seculares vínculos com outros países; mas à Ucrânia esse direito é negado.

Por fim, vale notar que, no caso da Polônia e da Hungria, por mais que desde há uns dez anos sejam países autoritários de extrema direita e próximos à Rússia, nem por isso abandonam a OTAN. O “realismo” pelo jeito vale para a Ucrânia e só para a Ucrânia – mas não para os outros.



[1] Cf.: Henry Kissinger, “How the Ukraine Crisis Ends” (The Washington Post, 6.3.2014) – https://www.henryakissinger.com/articles/how-the-ukraine-crisis-ends/.

[2] A relação dos estados-membros da OTAN e seus respectivos anos de ingresso na organização podem ser vistos aqui: https://es.wikipedia.org/wiki/OTAN#Estados_miembros.