18 novembro 2021

Sobre a peça "Medéia" e sua "atualização" brasileira

Recentemente li a peça Medéia, de Eurípedes (480 aec-408 aec), em uma desafiadora tradução de Trajano Vieira, publicada pela ed. 34. Vale notar que Eurípedes integra o calendário positivista concreto (o "calendário histórico"), no mês de Homero (o segundo mês do ano, dedicado à poesia antiga), na semana de Ésquilo.



A história é terrível e impressionante. Medéia era uma princesa-bruxa que vivia no extremo oriental do Mar Negro. Traindo sua família, ela ajudou Jasão a obter o velo de ouro. Depois de muitas aventuras e de terem um par de filhos, ao chegarem a Corinto Jasão renega a esposa, para casar-se com a princesa local. Medéia fica profundamente encolerizada e, para vingar-se do ex-marido, após matar o rei local e a nova esposa de Jasão, mata os próprios filhos. E, ao contrário do que ocorre em outros ciclos terríveis (como o ciclo de Édipo ou a Oréstia), em que é o destino que impõe aos indivíduos os sofrimentos, na Medéia é a vontade autônoma que decide e realiza os atos.

Ao mesmo tempo, lembro-me da peça A gota d'água, de Chico Buarque. Essa peça, escrita em 1974 em coautoria com Paulo Pontes, "atualiza" e "contextualiza" "criticamente" a peça de Eurípedes. Embora tenha ganhado prêmios, seja sucesso de vendas etc., a versão de Chico Buarque parece-me uma porcaria. A "atualização contextualizada" significa mudar alguns nomes (em particular o de Medéia, que vira "Joana") e inserir a tragédia de Medéia em um ambiente de favela com vistas a criticar a luta de classes.

Não tenho nada contra peças e obras que abordem a luta de classes, nem que tratem da situação social brasileira. Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, está à disposição de todos e é muito eficiente no que se propõe. Mas Gota d'água joga fora o elemento trágico de Medéia e da "solução" assassina que ela trama para vingar-se do ex-marido (o assassinato dos filhos). Não que na versão brasileira não haja esse assassinato, mas não há o sacrifício inicial de Medéia (que renega as próprias família e pátria por amor a Jasão); por outro lado, a versão brasileira insere a loucura de Medéia em um conflito de classes e, em particular, caracteriza a nova esposa e o novo sogro de Jasão como desprezíveis e exploradores burgueses.

Em suma, enquanto na peça de Eurípedes tem-se clareza do drama que se desenrola, na peça de Chico Buarque não se sabe o que importa, se a vingança assassina de Medéia-Joana ou se o conflito de classes (em que a traição de classes é recompensada pela infanticídio dos favelados). O resultado é que nem o drama de Medéia é efetivamente valorizado nem a luta de classes é "denunciada". Como eu disse antes, o resultado é uma porcaria. Mas, mesmo assim, os autores ganharam prêmios e recebem direitos autorais por isso.

15 novembro 2021

Entendendo a série "Lost"

Saindo um pouco do âmbito habitual deste blogue, apresento aqui algumas reflexões sobre a série televisiva Lost, no sentido de entender o que (e quais) são os principais grupos e personagens dela. Como se verá, embora refira-se a um seriado comercial, os mistérios de fundo da séria exigem uma solução que não é trivial - ainda que seja profundamente teológico-metafísica.

Como o canal pago Sy-Fy repete sem cessar a série Lost (produzida e exibida entre 2004 e 2010), resolvi acompanhá-la desde o início. Vendo todos os episódios, muita coisa na história faz sentido, mas o conjunto da trama exige um distanciamento analítico.

A série apresenta elementos que realmente chamam e prendem a atenção; mas, por outro lado, quando ela terminou, na sexta temporada, uma quantidade enorme de problemas e mistérios apresentados ao longo da história ficaram simplesmente sem solução, isto é, sem resposta, o que, claro, é muito insatisfatório. Além disso, a dubiedade moral de várias personagens incomoda muito – pelo menos, incomoda a mim. Isso tudo fez-me pensar em como entender a intrincada trama exposta ao longo das seis temporadas: as anotações abaixo são o resultado das minhas reflexões. 

Antes de mais nada, durante muito, muito tempo fiz questão de manter distância da história confusa apresentada na série. Eu só passei a assistir a ela porque, mais ou menos na terceira temporada (ou seja, em 2006 ou 2007), o ator que interpretou a personagem de Benjamin Linus – o inglês Michael Emerson – recebeu um prêmio por sua atuação e agradeceu de maneira tão gentil, tão cortês, que fiquei impressionado com seu comportamento e, a partir disso, com vontade de ver a atuação que lhe rendeu o prêmio.

Parece-me que a série teve três atrativos principais. O primeiro e mais evidente eram os seus curiosos mistérios: por exemplo, logo no episódio inicial vimos ursos polares em florestas tropicais, monstros de fumaça negra durrando árvores e assim por diante. Entretanto, esses mistérios, à medida que se acumulavam sem serem explicados com facilidade, acabavam não sendo tão atrativos quanto se poderia pensar à primeira vista (no meu caso, assim como no de várias outras pessoas, foi a esquisitice desses mistérios que me afastou da série desde o início). E não podemos deixar de lado o trocadilho: o nome "Lost" ("Perdidos") refere-se tanto às personagens retratadas na série quanto aos expectadores; uns e outros tentam entender o que se passa na "ilha".

O segundo fator atrativo é a estrutura narrativa da série, em que cada episódio entremeava ações comuns a todas as personagens e no presente com cenas no passado, específicas de uma das personagens principais. Na verdade, a partir da quarta temporada as cenas no passado deram lugar a cenas no futuro, enquanto na sexta temporada elas deram lugar a cenas de uma realidade paralela (que, depois, descobrimos que também são cenas no futuro). Enfim, essa alternância entre os tempos da narrativa deu um bom ritmo à série.

Em terceiro lugar, em parte como decorrência do elemento anterior, as personagens principais eram realmente interessantes, densas e carismáticas (cada uma à sua maneira). Assim, víamos os mocinhos enfrentando problemas pessoais e profissionais desafiadores, vilões realizando atos generosos, anti-heróis alternando entre a generosidade, a canalhice e a diversão etc. A estrutura narrativa com alternância entre ações no presente e no passado também permitia desenvolver mais e melhor essas personagens, indicando como e porquê elas chegaram a ser quem eram na história e, da mesma forma, como e porquê chegaram, afinal, à ilha em que estavam perdidos.

Passando agora para o entendimento da série: sem maiores rodeios, o quadro mais geral é dado pela “ilha”, que consiste em u’a metáfora para a mitologia monoteísta judaico-cristã (o deus caprichoso, ora violento, ora distante, do Velho Testamento; a divina trindade do Novo Testamento). Tudo isso tem a pista do “pastor cristão” (Christian Shepard) que aparece esporadicamente ao longo de toda a série. E, claro, há a referência evidente a Jacó (“Jacob”), que, na mitologia judaico-cristã, é o fundador dos israelitas e que também é irmão-rival de Esaú (a quem trapaceia e com quem entra em conflito). Jacó (“Jacob”) e seu preposto Ricardo (“Richard”) Alpert no fundo são criminosos; o grupo chamado “Os Outros” é um culto de fanáticos (também criminosos); Benjamin Linus e Charles Widmore meramente disputam a liderança do culto de fanáticos, estabelecendo uma guerra civil. Todas (todas!) as outras personagens são vítimas dessas quatro pessoas e de seus seguidores fanáticos. Por fim, esse conjunto é disfarçado com uma cobertura de confeitos de nomes de pensadores liberais (Edmund Burke, John Locke, David Hume, Jeremy Bentham - embora tenham faltado John Stuart Mill e seu pai James Mill; Thomas Hobbes e Francis Bacon) - que no fundo são pequenas piadas, com a função de distrair e confundir.

Esse quadro, todavia, só se torna claro quando se assiste a todos os episódios, em particular da quarta temporada em diante, e quando se deixam de lado os dramas pessoais e coletivos que constituem o grosso do drama.

Sumariando tudo, o que temos é isto:

-        um líder imortal que assassina o irmão e gera um conflito multimilenar insolúvel; que, extremamente à distância, estimula a criação de um culto de fanáticos por meio de um preposto; que se apresenta como um dos “mocinhos” e manipula a vida de dezenas de pessoas para que tenham vidas miseráveis e sejam obrigados a chegar à “ilha”; como líder imortal, é o “defensor” da “ilha” e assim é uma emanação dessa “ilha”;

-        um preposto tornado imortal que organiza o culto de fanáticos mas atua como eminência parda desse culto ao aceitar-indicar o líder da vez do culto de fanáticos;

-        um irmão imortal assassinado pelo líder imortal em última análise porque desejava sair da “ilha” e que, assim, vê-se transformado em um “monstro” de fumaça capaz de assumir a forma de pessoas mortas; na medida em que é um “monstro”, é também uma emanação da “ilha”;

-        um culto de fanáticos que manipula, chantageia, seqüestra, faz lavagem cerebral, estimula a síndrome de Estocolmo e/ou mata todos os que têm a desgraça de chegar à “ilha”, em particular durante sua guerra civil;

-        uma equipe de pesquisadores bem intencionados mas com inclinação para o misticismo e com alguns integrantes perturbados;

-        vários grupos de náufragos e de sobreviventes de acidentes aéreos que são manipulados e/ou que têm o azar de chegarem à “ilha”;

-        uma “ilha” que “age certo por meio de linhas tortas”, com “poderes” imensos mas de emprego arbitrário e caprichoso; que pode fazer muito mas também, por algum motivo, precisa ser “defendida”; que age às vezes diretamente, às vezes por meio de prepostos; que tem um “defensor” imortal adventício que é também a própria “ilha”; que tem prepostos, profetas, intérpretes e seguidores fanáticos.

Diário de Caratinga - entrevista sobre Positivismo e República

O jornal Diário de Caratinga, do interior de Minas Gerais, fez uma entrevista por escrito comigo sobre o Positivismo e a República, para ser publicado em sua edição de final de semana, de 13 e 14 de novembro de 2021. Realizada pelo jornalista José Horta da Silva, essa longa entrevista foi publicada na íntegra; eu reproduzo-a abaixo.


*     *     *




O que é Positivismo?

Essa pergunta é simples mas exige uma resposta que pode ser um pouco complexa.

Ele é uma filosofia, uma política e uma religião, ou seja, é um sistema de pensamento que busca explicar o conjunto do mundo e do ser humano e, a partir daí, busca orientar as condutas humanas (individuais e coletivas). O Positivismo baseia-se na realidade e na importância do amor e do altruísmo para orientar a conduta humana; como precisamos conhecer a realidade para satisfazer as nossas necessidades, o conhecimento científico é a base desse conhecimento. Isso tudo é sintetizado na Religião da Humanidade, que é uma religião humanista, secular e laica, que afasta o absoluto e busca a fraternidade universal.

 

Como o Positivismo influenciou a Proclamação da República?

O Positivismo influenciou pelo menos de duas maneiras.

Por um lado, ele criou um forte ambiente progressista, modernizador, secular, laico, que propunha a ultrapassagem dos traços profundamente atrasados da sociedade brasileira do século XIX, como a monarquia e a sua base social, política e econômica, a escravidão.

Por outro lado, o positivista Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) era professor de matemática na Escola Militar; suas aulas eram consideradas excelentes, por seu estilo e por sua profundidade filosófica. Além disso, o Positivismo afirma que a ciência pela ciência é imoral, ou seja, que a ciência tem que ter uma preocupação, uma orientação social. Tudo isso foi reconhecido por seus alunos (entre os quais estavam, por exemplo, Rondon e Euclides da Cunha) como importante e correto, o que os levou a empolgarem-se politicamente; naquela época, a militância social e política era bastante clara: contra a escravidão e a favor da república.

Aqui é necessário narrar vários fatores daquela época. Após a abolição da escravidão em 1888, as pressões em favor da república cresceram muito, devido a vários motivos. Em parte porque muitos reconheciam que a monarquia sacraliza uma sociedade atrasada, baseada em privilégios de casta, isto é, vinculados ao nascimento, e que deveria ser substituída por uma sociedade de isonomia (igualdade perante a lei), socialmente inclusiva e que valorize o mérito, não o berço. Vinculado a isso está o fato de que a monarquia nunca foi solidamente implantada no Brasil; havia um certo respeito pela figura de d. Pedro II, mas a monarquia em si era vista em termos meramente instrumentais: não havia uma adesão à monarquia como um princípio moral a ser seguido. O fato de a monarquia ter-se baseado durante toda a sua duração na escravidão indicava o quanto ela era retrógrada, assim como a ausência de indústrias no Brasil e a falta de trabalho livre (e da dignidade do trabalho e dos trabalhadores). A princesa Isabel era clericalista e, ainda por cima, era casada com um francês: mesmo quem não era republicano tinha medo do possível terceiro reinado (o possível futuro reinado da princesa Isabel), que viam como retrógrado ou até reacionário. O excessivo centralismo monárquico, em prejuízo das autonomias provinciais (isto é, dos estados), era bastante criticado, como nos casos de São Paulo e, ainda mais, do Rio Grande do Sul. Da mesma forma, os antigos donos de escravos, principalmente da atual região Sudeste (São Paulo em particular) ficaram muito irritados com o fim da escravidão, ou seja, com seus prejuízos econômicos.

Há outros fatores, mas importa também indicar a situação dos militares. Havia também um forte ressentimento dos militares contra a monarquia: soldos baixos, desprestígio político e social, falta de reconhecimento pelos seus esforços na violentíssima Guerra da Tríplice Aliança (“Guerra do Paraguai”). A Guerra da Tríplice Aliança foi uma aventura militar imperialista do Brasil contra o Paraguai e a favor do intervencionismo brasileiro nos países platinos, especialmente no Uruguai. Durante o conflito os soldados brasileiros travaram contato com as repúblicas platinas livres, isto é, repúblicas sem escravidão; isso os impressionou muito, bem como a resistência heróica dos cidadãos livres do Paraguai e as promessas (cumpridas pela metade) de alforria dos soldados brasileiros escravos. Por fim, a guerra acabou com a caçada a Solano López, ordenada pelo próprio d. Pedro II ao Conde d'Eu, consorte da princesa Isabel.

Na década de 1880 os militares quiseram expressar-se politicamente e foram seguidamente reprimidos, na chamada “Questão militar”; em um regime que se baseava no militarismo mas que se proclamava civilista, isso foi fatal.

Enfim: em 1887 foi fundado o Clube Militar, com Deodoro da Fonseca como presidente e Benjamin Constant como vice-presidente; eles eram os dois militares fora do governo que gozavam de maior prestígio, representantes das duas principais alas dos militares, os vinculados à vida na caserna (Deodoro) e os que buscavam fundamentos científicos para sua atuação (Benjamin Constant). Com isso os militares passaram a manifestar-se politicamente de maneira organizada, atuando nas duas principais questões da época, a abolição e a república. Em 1887 eles recusaram-se a caçar os escravos fugitivos; depois disso, a pressão política pela república aumentou cada vez mais e Benjamin Constant tornou-se o foco dessas pressões.

Embora pessoalmente Benjamin Constant não quisesse participar das conspirações, naquela conjuntura ele era realmente o foco das atenções e um líder natural; buscando evitar o caudilhismo, o militarismo na política e a violência, ele aceitou. Com isso, ele convenceu Deodoro a participar da ação e, juntamente com outros líderes militares e civis, planejavam proclamar a república na segunda quinzena de novembro. Entretanto, os acontecimentos precipitaram-se e na madrugada de 15 de novembro houve, afinal, a proclamação.

Essas várias críticas são importantes também porque atualmente há uma expressiva mas estranha revalorização da monarquia e, em particular, de d. Pedro II. Essa revalorização é bastante romântica e deixa de lado todos os problemas criados e mantidos pela monarquia (e pelo próprio d. Pedro II).

 

Ainda sobre a questão da influência do Positivismo na Proclamação da República, muito se fala do lema “O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”. Porque 'amor' ficou fora da bandeira nacional?

Essa é uma boa questão.

A atual bandeira nacional foi tornada oficial em 19 de novembro de 1889, ou seja, apenas quatro dias após a proclamação. O esboço é da autoria de Raimundo Teixeira Mendes (fundador e vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil) e a sua pintura ficou a cargo do também positivista Décio Villares, importante pintor e escultor da I República.

A frase central do Positivismo é um pouco diferente da que você indicou; é assim: “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”. Essa é a fórmula religiosa mais importante do Positivismo; já o “Ordem e Progresso” corresponde a uma fórmula política, que indica os anseios de todos os cidadãos por ordem e progresso, isto é, por uma ordem que propicie o progresso e um progresso que respeite a ordem (é claro que, nesse sentido, a “ordem” não pode ser estática). Tanto a fórmula “O amor por princípio...” quanto o “Ordem e Progresso” foram propostas desde o início por Augusto Comte, fundador do Positivismo, em suas obras; o que Teixeira Mendes fez foi seguir as indicações de Comte para a bandeira do Brasil, em que há a permanência da sociedade brasileira (com o fundo verde e o losango amarelo, que já estavam na bandeira do império) e também a evolução nacional (com a esfera azul e a faixa branca com o “Ordem e Progresso” em letras verdes).

Em outras palavras, na bandeira o “amor” não ficou de fora, pois o “Ordem e Progresso” é um programa político e não religioso.

Dito isso, eu tenho que admitir que vejo com grande simpatia as propostas de incluir o “amor” na bandeira nacional. O único erro de tais propostas é considerar que Teixeira Mendes teria “errado”, teria “alterado” as propostas originais de Comte ao deixar lado – querendo com isso dar-se a impressão de que Teixeira Mendes teria desprezado – o “amor”.

 

Hoje é muito comentada a questão o Estado Laico, mas o Positivismo já tratava dessa separação do Estado com a Religião. Poderia nos explicar?

Um dos princípios políticos mais elementares do Positivismo é a separação entre o poder Temporal e o poder Espiritual, isto é, entre o governo e todos aqueles que emitem opiniões. Isso significa que o Estado não pode ter religião oficial, ou seja, não é aceitável que o Estado imponha alguma doutrina sobre o conjunto da sociedade. Se pensarmos na situação do império brasileiro, o catolicismo era a religião oficial do Estado: havia uma limitada tolerância, em que os protestantismos eram aceitos (em grande parte devido à imigração de alemãoes e suíços para o Rio de Janeiro e para a atual região Sul) e também os positivistas; mas as religiões de origem africana, o espiritismo e muitas outras eram simplesmente proibidas e tratadas com base em prisões e espancamentos. (Os templos não católicos eram permitidos, desde que suas fachadas não exibissem o aspecto de templo.) Além disso, só eram aceitos como cidadãos brasileiros quem professasse o catolicismo. Algo muito parecido ocorre ainda hoje na Inglaterra: como a religião oficial de Estado lá é o anglicanismo (e a rainha é a chefe da igreja), somente anglicanos podem ser primeiros-ministros.

A separação entre os dois poderes também implica, inversamente, que nenhuma doutrina pode valer-se do Estado para sua promoção, para seu financiamento. Isso significa que é inaceitável que as igrejas (como instituições e como prédios físicos) usem o Estado para financiarem-se; ou seja, os impostos não podem ser empregados na promoção das doutrinas. Isso vale tanto para as teologias quanto para as doutrinas metafísicas quanto para as doutrinas científicas.

A separação entre igreja e Estado foi uma das primeiras medidas adotadas pela República, dois meses após a proclamação, por meio do Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890. A proposta inicial era de Demétrio Ribeiro (positivista gaúcho) e previa a separação entre igreja e Estado, o fim do catolicismo como religião oficial, as liberdades de consciência, expressão e organização, a instituição dos registros civis de nascimento, casamento e morte e a manutenção dos salários dos sacerdotes católicos que até então eram pagos pelo Estado. O texto que finalmente foi aprovado é da lavra de Rui Barbosa e, além dos dispositivos iniciais, apresenta um forte caráter anticlericalista (isto é, contrário às igrejas, em particular a católica) – anticlericalismo que era ausente do projeto positivista.

Vale notar que a separação entre igreja e Estado, com as liberdades civis, era pedida fazia muitos anos por muitos grupos políticos e que, após 1890, não houve nenhuma reação popular contra ela. A igreja católica reclamou da perda dos seus privilégios, mas, anos depois, reconheceu que a laicidade do Estado deu-lhe a liberdade para reorganizar-se; a partir de 1916, com a proposta de “neocristandade” de Sebastião Leme uma nova ofensiva sobre o Estado teve início e foi coroada de êxito em 1931, quando esse cardeal intimou Getúlio Vargas, na inauguração do Cristo Redentor, a apoiar a igreja para que Vargas tivesse apoio político (a Revolução de 1930 ocorrera um pouco antes e Getúlio Vargas precisava muito de apoio).

 

Algumas correntes filosóficas costumam marcar um determinado período. E hoje, ainda podemos notar traços do Positivismo no mundo?

Sim e não. É bem verdade que o período de maior importância do Positivismo no Brasil e no mundo foi entre o final do século XIX e o início do século XX – digamos, entre 1870 e 1914. De lá para cá muitas outras correntes políticas, sociais e filosóficas surgiram, a maior parte delas negando o Positivismo, seja por meio do irracionalismo, seja por meio do culto à violência, seja por meio da busca do absoluto, seja por meio do cientificismo. Além disso, o período que vai da I Guerra ao fim da II Guerra foi muito difícil para o mundo e para a Europa em particular; esse período exterminou as elites sociais européias e no fim marcou a ruína da Europa e do mundo legado pelo século XIX como parâmetros para o mundo. O que surgiu com clareza após a II Guerra foi um mundo realmente diferente, com a hegemonia dos EUA – e da sua superficialidade filosófica – e o conflito da Guerra Fria, seguidos pela descolonização da Ásia e da África e a crítica correta e cada vez maior ao colonialismo ocidental. Embora o Positivismo não seja eurocêntrico, é certo que o declínio da Europa teve um impacto poderoso sobre seus destinos. Em termos intelectuais, o século XX apresentou uma série de correntes que negam o Positivismo: as filosofias do entre-guerras, como os irracionalismos dadaísta e existencialista, o culto à violência próprio aos fascismos, os totalitarismos nazi-soviéticos; depois da II Guerra, ainda o totalitarismo soviético, o liberalismo materialista dos EUA, as críticas “descoloniais”, o pós-modernismo inaugurado em 1968, o neoliberalismo vitorioso a partir da década de 1980 e, mais recentemente, as políticas identitárias antiuniversalistas desde os anos 1990...

Mas, por outro lado, outras tendências políticas, sociais e filosóficas retomam valores claramente positivistas: políticas sociais combinadas com as liberdades, como nos casos do Welfare State e/ou da proclamação presente em nossa Constituição Federal de 1988 que a propriedade privada tem que ter objetivos sociais (concepções que foram resgatadas no Hemisfério Norte depois da crise de 2008 e, no Brasil e no mundo em geral, com a atual pandemia); o pacifismo cada vez mais generalizado; a preocupação cada vez maior com as gerações futuras, na forma do ambientalismo; o respeito à autonomia dos povos indígenas; a busca de vidas humanas plenas de sentido mas seculares, com a afirmação generalizada da importância dos sentimentos na vida humana... mesmo o desenvolvimento de práticas religiosas seculares nos EUA e na Europa vai na direção do Positivismo.

É certo que as tendências positivas indicadas acima têm muitas lacunas e muitas vezes são pouco sistemáticas; mas, no conjunto, elas realizam o que o Positivismo afirma como certo e como o futuro do ser humano. Em outras palavras: as tendências acima indicam que o Positivismo está certo, embora a doutrina positivista em si muitas vezes não seja seguida.

Sobre o legado do Positivismo hoje: há uma importante e crescente atividade positivista no Rio Grande do Sul, na igreja positivista de lá (e que fica em Porto Alegre).

04 novembro 2021

Augusto Comte e militância editorial na edição nova de “Os pensadores”

          A Folha de S. Paulo recentemente lançou uma nova edição da famosa e importante coleção “Os pensadores”. É uma coleção bonita, bem acabada, com volumes extremamente bem produzidos: papel de qualidade, capa dura, artes agradáveis nas capas. Muitos dos volumes são sumamente interessantes e informativos; entre os 30 volumes dessa nova edição figura, como segundo publicado, uma obra de Augusto Comte, o seu Discurso sobre o espírito positivo. A inclusão de Comte e, em particular, desse volume específico, suscitam algumas reflexões; mas, para tratarmos disso, temos antes que considerar o conjunto da nova coleção.

1. Sobre o viés identitário-crítico-militante da nova coleção “Os pensadores”

A coleção foi lançada em 24 de outubro de 2021, em 30 volumes, com os números 1 e 2 lançados promocionalmente juntos, como é habitual; são os volumes dedicados respectivamente a Platão (A República) e a Augusto Comte (Discurso sobre o espírito positivo)[1]. Na página eletrônica promocional (https://pensadores.folha.com.br/index.html) não há indicação de quem seria o seu organizador (está na moda falar-se em “curadoria”); na página dos volumes impressos dedicada aos dados bibliográficos há apenas a menção às responsáveis pela “Organização geral do projeto”: Ana Paula Duarte, Letícia Carvalho e Mariana Dalmaso, as três do jornal Folha de S. Paulo. Sobre Letícia Carvalho e Ana Paula Duarte obtemos informações apenas na matéria propagandística de outra coleção do jornal, lançada no início de 2021 e dedicada a fotografias (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/02/colecao-de-livros-da-folha-revisita-fotos-memoraveis-do-jornal-dos-ultimos-100-anos.shtml): Carvalho é “gerente geral de marketing” e Duarte é analista de projetos. A partir de seu perfil na rede Linkedin (https://br.linkedin.com › in › mariana-dalmaso-603471133), descobrimos que Mariana Dalmaso é “analista de marketing sênior”. Como é difícil ver de que maneira especialistas em propaganda teriam qualificações para decidir questões de filosofia, o resultado é que simplesmente não é possível saber quem de fato organizou a coleção; todavia, na absoluta ausência de indicações de quem de fato selecionou os volumes da presente coleção e com quais critérios, resta a essas três profissionais os ônus das escolhas efetivamente feitas.

Vale a pena prestarmos atenção ao nome da coleção: é “coleção Folha Os Pensadores”. Bem vistas as coisas, não se trata de uma edição nova de “Os pensadores”, anteriormente publicada pela editora Abril e subsidiárias; de fato, é uma coleção inteiramente nova. Assim, o que a Folha de S. Paulo fez foi valer-se de um nome já consagrado para lançar e divulgar o seu próprio projeto comercial-editorial (e político).

Dito isso, a nova coleção distingue-se bastante das edições anteriores, seja pela quantidade de volumes, seja pelos títulos incluídos.

Em relação à quantidade de volumes, ela é bastante limitada: pelo menos em uma primeira leva, são apenas 30, o que a distingue muito das edições anteriores, em particular da primeira e da segunda, que tiveram mais de 60 volumes, alguns com obras de vários autores encartados em um único livro.

Em relação aos títulos incluídos, eles chamam a atenção por serem inovadores em vários aspectos: por um lado, em vez de os volumes publicarem excertos de várias obras (às vezes artigos isolados), com ou sem traduções de obras completas, a nova edição publica um único título de cada autor. Por outro lado, autores que anteriormente já haviam sido publicados receberam traduções de novos títulos, como nos casos de Augusto Comte – que, por exemplo, recebeu uma nova tradução do Discurso sobre o espírito positivo (de 1844, até então publicado apenas pela Martins Fontes), em vez de dos dois primeiros capítulos do Sistema de filosofia positiva (de 1830-1842, vulgarmente chamado de Curso de filosofia positiva), dos 2/3 iniciais do capítulo 1 do Discurso sobre o conjunto do Positivismo (de 1848) e da integralidade do Catecismo positivista (de 1853). Por fim – e isto é o mais importante –, vários “novos” autores foram incluídos, resultando em que, embora o conjunto da seleta de título não seja muito coerente, o viés geral é bastante claro: trata-se de uma coleção organizada para ser “crítica” e militante, com um certo pendor identitário.

O viés identitário-crítico-militante salta aos olhos com os seguintes autores e títulos:

  • bell hooks – Ensinando a transgredir (v. 3)
  • Voltaire – O preço da justiça (v. 6)
  • Michel Foucault – A sociedade punitiva (v. 9)
  • Mary Wollstonecraft – Reivindicação dos direitos das mulheres (v. 10)
  • Jean-Jacques Rousseau – Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (v. 11)
  • Karl Marx – Manuscritos econômico-filosóficos (v. 14)
  • Carter G. Woodson – A (des)educação do negro (v. 16)
  • Luiz Gama – Humor e crítica: armas do pioneiro abolicionista (v. 20)
  • Étienne de la Boétie – Discurso sobre a servidão voluntária (v. 21)
  • John Stuart Mill – Sobre a liberdade (v. 24)
  • Arthur Schopenhauer – A arte de ter razão (v. 25)
  • Edison Carneiro – Ladinos e crioulos (v. 27)
  • Ludwig Feuerbach – A essência do cristianismo (v. 28)

A seqüência de títulos não segue a ordem cronológica, nem de nascimento dos autores nem, portanto, de publicação das obras; na verdade, não parece haver nenhum critério de lançamento. Enfim, dos 30 volumes inicialmente propostos, podemos considerar que 13, ou seja, 43,33%, têm o perfil aproximado de identitário-crítico-militantes. Essa classificação, não há dúvida, pode ser discutida, como nos casos de Boétie e de Stuart Mill: o primeiro por ser medieval e o segundo por ser comum ao liberalismo; mas, ainda assim, salta à vista as editoras terem escolhido logo esses autores e esses títulos em meio a centenas de outros possíveis. Por outro lado, as escolhas de Bell Hooks, Michel Foucault, Mary Wollstonescraft, Jean-Jacques Rousseau e Karl Marx, além das novidades na coleção Carter Woodson, Luiz Gama e Edison Carneiro dão o inequívoco tom crítico-militante e identitário. Voltaire era claramente um polemista e podemos considerar que Schopenhauer integra a relação por ser seu livro um manual de manipulação da verdade e do discurso, ou seja, é um manual de produção de desinformação. (O que dissemos sobre Schopenhauer pode ser aplicado, mutatis mutandis, ao volume escolhido de Sto. Agostinho.)

Há alguns autores cuja inclusão é discutível ou estranha: Lévi-Strauss é bem-vindo, mas o seu Antropologia estrutural 1 é um livro estritamente técnico e acadêmico, não sendo passível de consumo pelo grande público; melhor seria incluir o Antropologia estrutural dois, o Antropologia estrutural 3, algum dos vários volumes das Mitológicas, o Pensamento selvagem, o Totemismo hoje ou até os Tristes trópicos. O mesmo pode ser dito, a fortiori, de Aristóteles: sua Política ou sua Ética nicomaquéia, quem sabe mesmo sua Constituição de Atenas, seria muito mais adequado ao perfil da coleção (e tanto a Política quanto a Ética nicomaquéia são infinitamente superiores à República de Platão, ou melhor, a qualquer coisa de Platão). De Maquiavel escolheram A arte da guerra: entretanto, essa é uma obra menor (de um autor também menor): dele poderia ser publicado, com muito mais proveito, os seus Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. De Sto. Agostinho, suas Confissões seriam uma escolha mais interessante que a estranha escolha feita de Sobre a mentira.

Essa pequena coleção apresenta alguns títulos que satisfarão também os liberais: Bastiat, Mises, Léo Strauss e, novamente, Stuart Mill; quem sabe Weber e Adam Smith. Além disso, há volumes mais claramente morais, como os de Descartes, Sto. Agostinho, Adam Smith. Por fim, os volumes de Lévi-Strauss, Ruth Benedict, Durkheim e Hobbes servem, talvez, para indicar que a verdade e a mentira, a justiça e a injustiça têm que ser entendidos de maneira relativa e nos quadros de sociedades estruturadas em termos de culturas e de estados e, nesse sentido, integram o viés crítico-militante da coleção. Se adicionarmos aos 13 volumes inicialmente relacionados como “identitário-crítico-militantes” os quatro volumes sociológicos, teremos 17 volumes; se somarmos a esses os volumes liberais – cuja inclusão pode ser entendida também como uma forma de a militância crítico-identitária conhecer os argumentos de seus adversários –, teremos um total de 22 volumes, correspondentes a 73,33%, isto é, cerca de 3/4 do total. (Esse valor é subestimado, pois deixamos de lado Sto. Agostinho, Maquiavel e Augusto Comte: com esses três volumes adicionais, teríamos 25 livros crítico-militantes, ou 83,33%.)

Em suma, a relação de títulos selecionados para a nova edição da coleção “Os pensadores” é variada e incoerente a respeito de vários títulos; essa incoerência talvez tenha o objetivo de satisfazer a diversos públicos. Ainda assim, o conjunto da coleção exibe uma orientação bastante clara; seu objetivo não é meramente informar, ilustrar e fornecer elementos intelectuais e morais para a edificação dos leitores e a sua ampliação do entendimento do mundo. Em vez disso, o objetivo da coleção é fornecer elementos intelectuais para a militância política e social, com um sentido “crítico” e identitário – em outras palavras, em favor do combate da metafísica esquerdista contra a metafísica direitista.

Feitas essas considerações iniciais, podemos avaliar a inclusão do volume Discurso sobre o espírito positivo, de Augusto Comte.

2. Sobre a inclusão de Augusto Comte na atual coleção “Os pensadores”

Em face do viés caracterizado acima, torna-se legítima perguntar: por que incluíram Augusto Comte nessa nova edição de “Os pensadores”? De modo mais específico: por que incluíram uma nova tradução do Discurso sobre o espírito positivo?

Na matéria propagandística que anunciava o lançamento da coleção (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/10/colecao-folha-os-pensadores-reune-escritos-essenciais-do-pensamento-ocidental.shtml), somos informados que Durkheim é o “‘fundador’” da Sociologia – a palavra “fundador” posta entre aspas na matéria acima: “Isso para não falar no "fundador" da sociologia como ciência, Émile Durkheim, em As regras do método sociológico”. Augusto Comte é considerado apenas “filósofo” (como se não tivesse fundado a Sociologia) e fundador do Positivismo. A explicação dada pela matéria para a inclusão de Augusto Comte é esta: “O segundo [volume] é o Discurso sobre o espírito positivo, em que o francês Auguste Comte formulou a doutrina do positivismo – inspiradora do lema inscrito na bandeira do Brasil”.

As matérias propagandísticas servem apenas para divulgar para o grande público um determinado produto; como se sabe, elas combinam informação, desinformação, omissões e exageros; no caso de uma coleção de livros de filosofia, essas características acentuam-se, na medida em que se torna muito difícil vender conceitos filosóficos. Ainda assim, as propagandas em questão têm algo de sugestivo.

Parece-nos que Augusto Comte foi incluído pelo menos por dois motivos, ambos vinculados ao atual contexto político brasileiro. O primeiro motivo é que, devido à renovada militarização promovida por Bolsonaro no governo federal, fala-se muito em “Positivismo” – embora de maneira extremamente errada e mentirosa[2] –; esse motivo é o que se depreende da propaganda indicada acima. Apesar de o motivo anterior poder vincular-se ao viés crítico-militante da nova coleção “Os pensadores”, o fato é que podemos conceber outro motivo, mais diretamente crítico-militante, para a inclusão de Augusto Comte nessa coleção: trata-se de uma afirmação do valor social, político e moral da ciência e – é importante dizê-lo com clareza: a despeito das idéias e das intenções do próprio Comte – também é a busca de um cientificismo anticlericalista. Senão, vejamos.

As três obras presentes nas versões anteriores da coleção “Os pensadores” oferecem dificuldades intransponíveis para os objetivos crítico-militantes e editoriais da coleção.

  • Cada um dos volumes publicados nesta nova edição apresenta a obra completa: ora, o Sistema de filosofia positiva foi originalmente publicado em seis volumes e 60 capítulos, dos quais apenas os dois primeiros capítulos foram publicados nos “Pensadores” anteriores. É possível crer que a extensão dessa obra completa inviabilizou a sua inclusão na presente edição dos “Pensadores”.
  • Já o Discurso sobre o conjunto do Positivismo é menor, com seis capítulos (grandes), oferecendo a vantagem – supostamente desejada pela edição nova dos “Pensadores” – de expor as idéias centrais do Positivismo. Entretanto, contrariando o viés crítico-militante da coleção, Augusto Comte afirma com todas as letras em Religião da Humanidade nessa obra. Além disso, os 2/3 iniciais do capítulo 1 desse livro expõem as características principais do espírito positivo e criticam o espírito teológico; mas o 1/3 final desse mesmo capítulo 1 critica o espírito metafísico, que é justamente o espírito que informa o materialismo marxista e, de modo mais amplo, o viés crítico-militante da atual “Pensadores”. (Não por acaso, o tradutor desse trecho foi o marxista José Artur Gianotti, que omitiu o 1/3 final do capítulo 1 para não fornecer instrumentos para a crítica ao seu próprio marxismo.)
  • O Catecismo positivista foi a única obra comtiana publicada na íntegra nas edições anteriores dos “Pensadores”; entretanto, esse livro oferece o evidente problema de que se trata de um “catecismo”, isto é, da exposição sistemática de uma “religião”. Isso vai de encontro à militância crítica da edição atual dos “Pensadores” e, em particular, à projetada perspectiva cientificisto-anticlericalista desejada em Comte.

Outras obras de Comte, aliás também já traduzidas para o português, poderiam ter sido publicadas (talvez retraduzidas): os seus Opúsculos de juventude (1819-1828) e o Apelo aos conservadores (1855). O primeiro desses volumes – cuja segunda tradução é da autoria dos positivistas Ivan Lins e João Francisco de Souza e foi publicada em 1972 pela Universidade de São Paulo – é muito interessante e apresenta em germe inúmeras das perspectivas de Comte; entretanto, essas perspectivas estão presentes apenas em germe e há o emprego de expressões que produzem equívocos, como no caso da “física social” (equívocos que, claro, são amplamente explorados pela desinformação inspirada em preocupações políticas). Em todo caso, não consigo identificar o motivo para as organizadoras da atual coleção “Os pensadores” terem preferido o Discurso sobre o espírito positivo e não os Opúsculos de juventude – ainda que essa escolha pareça-me acertada, pela maturidade maior do Discurso em relação aos Opúsculos. Já o Apelo aos conservadores é também uma obra pequena e de divulgação, com a vantagem de ser eminentemente política; sua tradução para o português data de 1899 e foi feita por Miguel Lemos (fundador e diretor da Igreja Positivista do Brasil). Se o objetivo da atual coleção “Os pensadores” fosse expor as perspectivas filosóficas do Positivismo tendo em vista apenas a conjuntura política atual, esse livro seria ideal; mas, como estamos argumentando, o objetivo da inclusão de Comte na coleção foi um pouco diferente.

Augusto Comte, fundador do Positivismo e da Religião da Humanidade, também fundador da Sociologia, da Moral Positiva e da História das Ciências, era radicalmente contrário ao anticlericalismo e ao cientificismo. Sua oposição ao anticlericalismo e ao cientificismo baseava-se em motivos históricos, sociológicos, filosóficos e morais: essas duas perspectivas são absolutistas e antirrelativistas; elas negam a historicidade e desviam o ser humano da fraternidade, do altruísmo, do conhecimento e da atividade positiva; elas estimulam a arrogância, a vaidade, o orgulho, a violência, o intelectualismo. Em suma, são contra o amor, a ordem e o progresso.

As organizadoras da atual coleção “Os pensadores” com toda a certeza ignoram todas as afirmações e concepções indicadas no parágrafo acima, provavelmente porque se limitam a ser crítico-militantes.O Discurso sobre o espírito positivo consiste na verdade no discurso de abertura do curso público ministrado por Augusto Comte durante algumas décadas, intitulado “Curso filosófico de Astronomia popular”. Esse curso era dedicado à instrução científica dos proletários parisienses e oferece de maneira exemplar uma forma filosófica de estudo das ciências, em termos de seus métodos, de seus principais resultados específicos e de suas importâncias filosóficas. Nesse curso, o discurso inicial expunha os princípios filosóficos que orientavam a apresentação e o entendimento subseqüentes da Astronomia; mas não se trata de mera exposição epistemológica e metodológica do curso. São várias idéias concatenadas aí; senão, vejamos.

A ciência é o resultado da busca humana de entendimento da realidade conjugada com a busca de soluções para os problemas práticos; satisfazendo necessidades gerais da natureza humana (que se desenvolve ao longo do tempo, em face das realidades sociais e ambientais), a ciência é o resultado de um longo processo de desenvolvimento de modos de satisfazer essas necessidades – desenvolvimento que passou antes pelos absolutos teológico-metafísicos e que agora entre na positividade científica. Todavia, apesar da importância dos resultados próprios a cada ciência, cada uma delas tende a fechar-se em si mesma, a ignorar as demais e desconsiderar totalmente as necessidades humanas profundas, ou seja, as ciências entregues a si mesmas tendem a ser incoerentes e a tornarem-se absolutas: a única solução possível é elaborar uma filosofia que organize os vários resultados das ciências, de modo a permitir que elas relacionem-se entre si de maneira permanente e sistemática; que elas mantenham-se sempre no âmbito do relativismo; que – e isto é o principal – elas atenham-se à satisfação das necessidades humanas. Essa filosofia não é uma “filosofia científica”, pois não se trata da aplicação dos métodos da ciência à filosofia; ao contrário, é a reflexão filosófica sistematizando, organizando e orientando a prática e a reflexão científicas. Com isso, fica evidente que há diferenças entre o “espírito científico” (próprio à atividade cotidiana dos cientistas) e o “espírito positivo” (mais amplo, generalizante, coordenador e orientador). As conseqüências práticas disso eram evidentes para Augusto Comte desde o início, seja em termos políticos e sociais, seja em termos morais e intelectuais; o desenvolvimento e a sistematização dessas concepções levaram o fundador do Positivismo a fundar também a Religião da Humanidade nos anos seguintes, em parte graças à poderosa ação moral e intelectual exercida sobre ele por Clotilde de Vaux.

O Discurso sobre o espírito positivo, assim como todas as demais obras de Comte, apresenta um forte espírito histórico: por si só isso já rejeita o anticlericalismo, isto é, o combate sistemático às religiões teológicas, predecessoras da religião positiva que afirma o ser humano. Da mesma forma, a cuidadosa distinção entre a prática científica e a avaliação filosófica dos resultados das ciências rejeita o que se chama atualmente de cientificismo. Nas obras posteriores de Comte essas duas perspectivas estarão ainda mais claras, como no Sistema de política positiva e na Síntese subjetiva. Mas, de qualquer maneira, publicado em 1844, o Discurso sobre o espírito positivo é a derradeira obra pré-religiosa de Augusto Comte – não por acaso, posterior ao Sistema de filosofia positiva (1830-1842) mas um pouco anterior ao seu intenso, breve e respeitoso relacionamento com Clotide de Vaux (no “ano sem par” – 1845-1846). A próxima obra escrita e publicada por A. Comte já evidenciaria a Religião da Humanidade e também o viés marcadamente político e social do Positivismo, como efeitos tanto de Clotilde quanto da II República Francesa (1848-1851): o Discurso sobre o conjunto do Positivismo, de 1848.

A inclusão do Discurso sobre o espírito positivo na versão nova da coleção “Os pensadores” apresenta, portanto, um caráter bastante ambígüo. A publicação em si desse volume tem quer comemorada; o fato de ele ser vendido promocionalmente em conjunto com o v. 1 certamente o disseminará de uma forma que os demais volumes não conseguirão. Entretanto, os motivos profundos que levaram à sua inclusão baseiam-se em preconceitos; enquanto Augusto Comte desejava superar a oposição suicida entre a ordem e o progresso, as organizadoras da versão nova dos “Pensadores” insistem nessa oposição, transformando e mantendo, por um lado, a ordem em uma ordem retrógrada e o progresso em um progresso anárquico.

3. Sobre a edição e a tradução do Discurso na atual coleção “Os pensadores”

Para concluir, convém fazermos alguns comentários sobre as presentes edição e tradução do Discurso.

Como dissemos logo no início deste texto, os livros da nova coleção “Os pensadores” estão bastante bem cuidados em termos editoriais: papel de qualidade (Chambril Avena 80 g/cm2, agradável ao tato), tamanho aceitável (16,3 x 23,8 cm), capa dura, arte da capa agradável. A edição é boa e, além do sumário no início do livro, há também uma tabela sinóptica no final, indicando os temas de cada um dos parágrafos do livro.

 

Fonte: https://pensadores.folha.com.br/index.html.

 

Todavia, essa edição apresenta uma série de pequenos erros que incomodam e que podem atrapalhar um pouco a leitura; todos esses erros são devidos às decisões editoriais, mas alguns deles poderiam ter sido sanados antes da publicação caso a editora tivesse tomado a decisão simples – e, aliás, muito razoável – de consultar positivistas para rever a tradução e/ou a edição; por outro lado, alguns outros erros foram impostos pelo lamentável acordo ortográfico de 1990 (cujo objetivo, no fundo, era aumentar o mercado editorial brasileiro nos países lusófonos, especialmente africanos).

Comecemos pelo nome do autor: Augusto Comte. Desde que o Positivismo passou a ser difundido no Brasil, em meados do século XIX, a versão em português do nome francês “Auguste” era corrente; assim, em todos os bem mais de 500 títulos da Igreja Positivista do Brasil, publicadas entre c. 1880 e c. 1930, o nome do filósofo está devidamente em português: Augusto. Esse hábito saudável, de verter para a língua pátria os prenomes estrangeiros, manteve-se até bem depois, como se pode ver na capa da tradução de Ivan Lins para os Opúsculos de filosofia social, de 1972. Esse hábito de traduzir para a língua pátria é comum também nos países de línguas espanhola, inglesa, francesa e alemã.

 

Fonte: https://www.estantevirtual.com.br/sebotraca/augusto-comte-biblioteca-dos-seculos-opusculos-de-filosofia-social-2615776725?show_suggestion=0

 

Entretanto, em meados dos anos 1980, talvez já na década de 1970, passou a constituir-se no Brasil um estranho consenso, no sentido de que os prenomes não seriam traduzíveis. É verdade que há nomes que são, de fato, intraduzíveis, na medida em que não há versões em português para eles: nomes em japonês ou em mandarim apresentam em particular essa dificuldade. Acessoriamente, pode-se considerar o respeito aos países de origem e, portanto às suas culturas. Mas o fato é que nenhuma dessas considerações obriga-nos a rejeitar a tradução dos prenomes. É evidente que “Pierre”, “Pietro” e “Peter” são as versões em francês, italiano e inglês para “Pedro” e, como sabem por exemplo os hispanofalantes, não há nenhum problema, nem há nenhuma ofensa, em ler no original “Pierre”, “Pietro” ou “Peter” e passar para “Pedro” na tradução. Adicione-se a isso o fato de que o nome “Augusto” já estava consagrado no Brasil (e, convém notar, também em Portugal), com um uso extremamente difundido e, acima de tudo, mais que centenário.

Um outro problema derivado do nome do autor, mas agora relativo ao seu sobrenome, é o adjetivo derivado de “Comte”. Mais uma vez: tradicionalmente, por um hábito mais que centenário, sempre se usou no Brasil o adjetivo “comtiano”. O “i” surgiu da pronúncia carioca dessa palavra, o que não é problema nenhum. Mas, contrariando a forma consagrada, o malogrado acordo ortográfico de 1990, entre suas inúmeras e equívocas previsões estipulou que o nome de origem deve ser rigorosamente seguido para que se forme o respectivo adjetivo. Dito de outra maneira: devido ao acordo, literalmente por decreto deixou-se de lado o “comtiano” e passou-se ao “comteano”, a partir do nome “Comte”.

Vejamos o título do livro. Na capa aparece apenas “Discurso sobre o espírito positivo”; até aí, tudo bem: está conforme o título original. Mas na folha de rosto percebemos um estranho subtítulo: “ordem e progresso” – e, pior, em caixa baixa (isto é, em letras minúsculas). Mas o original não possui esse tal subtítulo, ainda que o “Ordem e Progresso” seja uma das máximas do Positivismo.

Essa estranha inclusão de subtítulo poderia ter sido decidida arbitrariamente pela editora, como se achasse bonito, ou conveniente, ou sagaz (em uma “sacada” comercial). Mas há algumas referências no texto que nos informam que o texto de base seria uma “segunda edição”, publicada em 1908, sendo que a “primeira edição” seria de 1898. Uma busca rápida pelo portal Internet Archive logo nos fornece o resultado que esclarece a situação; veja-se a imagem abaixo, que corresponde à folha de rosto da edição francesa usada na tradução do volume ora publicado na coleção “Os pensadores”.

 


Fonte: https://archive.org/details/discourssurlesp00parigoog/page/n11/mode/2up.

 

O “Ordem e Progresso”, que o tradutor (Walter Sólon) entendeu ser um subtítulo, atua na folha de rosto do original precisamente como o que é: u’a máxima política; se quiserem, pode ser entendida como uma epígrafe, mas de maneira nenhuma como um subtítulo. Vejamos a capa de um opúsculo da Igreja Positivista do Brasil escolhido um pouco ao acaso e que ilustra o que argumentamos.

 

Fonte: arquivo pessoal.

 

Esse opúsculo, que é uma prestação pública de contas (financeiras mas, acima de tudo, políticas) de 1892, apresenta uma grande quantidade de elementos informativos; alguns são elementos de instituição, data e lugar, outros referem-se ao tema (o título, o subtítulo, a epígrafe) e outros referem-se aos valores religiosos e políticos mobilizados: neste último caso, as máximas positivistas encontram-se entre a instituição promotora (“Relijião da Humanidade”, com a ortografia simplificada proposto por Miguel Lemos) e o título do opúsculo. Deve-se notar que, mesmo em meio à profusão de informações, não há a menor dúvida de que as frases “O Amor por Princípio i a Ordem por Baze; o Progresso por Fim”, “Viver para outrem” e “Viver às claras” não integram o título ou o subtítulo e que poderiam, em certo sentido, ser entendidas como epígrafes do documento.

Certo: podemos admitir, sem dificuldade, que o erro de inserir o “Ordem e Progresso” como subtítulo acaba sendo fácil de cometer. Mas é exatamente essa a questão: sendo fácil de cometer, bastaria às organizadoras da coleção e/ou ao tradutor do livro que fizessem uma simples consulta aos positivistas brasileiros para dirimir a dúvida.

Ao longo deste texto comentamos em vários momentos que o Discurso é de 1844; entretanto, a informação dada logo no início da tradução é que a “primeira edição” seria de 1898 e a “segunda”, de 1908. Esses dois erros são bem menos escusáveis e são bem mais devidos às decisões das organizadoras da coleção e/ou do tradutor. A decisão que eles tomaram, juntamente com a inclusão de um suposto subtítulo, foi a exclusão às referências de que a edição que empregaram para traduzir o livro era a edição comemorativa do centenário de nascimento de Augusto Comte. No alto da folha de rosto do original está escrito com todas as letras, de maneira muito clara e em caixa alta: “Edição do centenário de Augusto Comte”. Mais do que isso: na suposta “primeira edição”, há apenas um “Aviso do editor”; no final desse “Aviso” há uma nota adicional, cujo início é o seguinte: “Nesta segunda edição...”. Embora haja aí uma ambigüidade a respeito da “segunda” edição, o fato é que não há nenhum título, como aparece na atual versão brasileira (“Nota do editor à 2ª edição”) e, de qualquer maneira, deveria ser evidente que se trata de uma segunda edição em relação à versão comemorativa anteriormente publicada. Nada disso está claro na atual versão da coleção “Os pensadores”; mas, como já indicamos, uma simples consulta aos positivistas brasileiros resolveria tudo isso com rapidez e facilidade.

 

 

Fonte: https://archive.org/details/discourssurlesp00parigoog/page/n21/mode/2up.

 

Por fim: limitando-nos à “Nota do editor da 1ª edição” (cuja tradução correta seria “Aviso do editor”), notamos que na edição brasileira o ano de 1851 – em que o v. 1 do Sistema de política positiva foi publicado – aparece como sendo 1951. Mais uma vez, um erro que poderia ser muito facilmente sanado com uma consulta simples aos positivistas brasileiros.

Para concluir estes comentários, vale a pena lembrarmos que não é só a atual versão dos “Pensadores” que trata mal o volume dedicado a Augusto Comte: as edições anteriores cometeram também erros mais ou menos graves no volume dedicado a Augusto Comte; esses erros foram deliberados desde o início e sua perpetuação, ao longo das várias edições da coleção, foi igualmente deliberada. Sem nos deter em pormenores, podemos de pronto indicar quatro problemas:

1)      o emprego da forma francesa para o prenome do pensador, contra o uso consagrado no Brasil;

2)      o uso de “h” minúsculo para escrever “Humanidade” – que, tanto nos originais de Comte quanto nos escritos da Igreja Positivista do Brasil e dos positivistas brasileiros de modo geral, sempre foram escritos com “h” maiúsculo –;

3)      a inclusão de um parágrafo presente no “Prefácio” da primeira edição francesa do Catecismo positivista, em que A. Comte refere-se ao czar Nicolau I: esse parágrafo Comte decidiu suprimir das edições seguintes, o que foi feito na tradução brasileira desse volume, da lavra de Miguel Lemos, mas que a editora Abril Cultural, por obra de J. A. Gianotti, decidiu incluir novamente – sem que essa inclusão indevida fosse explicada ou justificada e ainda menos afirmada com clareza para os leitores –;

4)      um erro tipográfico presente no título do Calendário positivista concreto, o famoso “Calendário histórico” positivista. O título correto é “Calendário positivista para um ano qualquer ou quadro concreto da preparação humana”; entretanto, na palavra “preparação” faltou o “p” inicial, convertendo a palavra em “reparação”. O sentido de cada uma das duas palavras é muito diferente e, sem sombra de dúvida, gera equívocos.

 



[1] Eis a relação completa dos títulos, por ordem de lançamento:

  1. Platão – A República
  2. Auguste Comte – Discurso sobre o espírito positivo
  3. bell hooks – Ensinando a transgredir
  4. René Descartes – Regras para a orientação do espírito
  5. Max Weber – Ciência e política: duas vocações
  6. Voltaire – O preço da justiça
  7. Claude Lévi-Strauss – Antropologia estrutural
  8. Santo Agostinho – Sobre a mentira
  9. Michel Foucault – A sociedade punitiva
  10. Mary Wollstonecraft – Reivindicação dos direitos das mulheres
  11. Jean-Jacques Rousseau – Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens
  12. Nicolau Maquiavel – A arte da guerra
  13. Adam Smith – Teoria dos sentimentos morais
  14. Karl Marx – Manuscritos econômico-filosóficos
  15. Frédéric Bastiat – A lei
  16. Carter G. Woodson – A (des)educação do negro
  17. Aristóteles – Sobre a alma
  18. Ludwig von Mises – As seis lições
  19. Immanuel Kant – Crítica da razão pura
  20. Luiz Gama – Humor e crítica: armas do pioneiro abolicionista
  21. Étienne de la Boétie – Discurso sobre a servidão voluntária
  22. Ruth Benedict – Padrões de cultura
  23. Émile Durkheim – As regras do método sociológico
  24. John Stuart Mill – Sobre a liberdade
  25. Arthur Schopenhauer – A arte de ter razão
  26. Friedrich Hayek – O caminho da servidão
  27. Edison Carneiro – Ladinos e crioulos
  28. Ludwig Feuerbach – A essência do cristianismo
  29. Thomas Hobbes – Leviatã
  30. Leo Strauss – Direito natural e história

[2] A esse respeito, cf. meus textos “Positivismo como cortina de fumaça para os erros da direita brasileira” (disponível em https://monitormercantil.com.br/positivismo-como-cortina-de-fumaca-para-os-erros-da-direita-brasileira/) e “Os conservadores entre alguns acertos e muitos erros – avaliando o conservadorismo à luz do Positivismo” (disponível em https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2021/10/a-revista-insight-inteligencia-em-sua.html).

30 outubro 2021

Insight Inteligência: "Nem todos os 'conservadores' são conservadores"

A revista Insight Inteligência, em sua edição de julho a setembro de 2021 (v. XXIV, n. 94, p. 62-75), publicou um artigo de minha autoria, sob o título "Nem todos os 'conservadores' são conservadores". Na verdade, ele é a versão muito reduzida de um outro texto, em que desenvolvo pormenorizadamente uma avaliação do conservadorismo à luz do Positivismo. Abaixo eu publico essa versão longa e completa  do texto. 

A motivação para redigir esse texto é clara: a importância política que os assim-chamados, ou autoproclamados, "conservadores" têm atualmente no Brasil. Sob o rótulo geral mas ilusório de "conservadores", um grupo heterogêneo e contraditório tem tentado implantar mudanças retrógradas e reacionárias no país, com críticas variadas a tudo o que eles chamam genericamente de "progressistas" - e que inclui também o Positivismo. A questão que me preocupou foi a seguinte: será que o "conservadorismo", por si só, tem que ser reacionário? Ou, o que dá na mesma: o conservadorismo tem que ser contrário ao progresso? 

*   *   *

Os conservadores entre alguns acertos e muitos erros –

avaliando o conservadorismo à luz do Positivismo

  

1. Introdução

É fato conhecido por todos que o “conservadorismo” é uma corrente e uma tendência política que integra os debates públicos no Brasil, para bem ou para mal, quer gostemos, quer não gostemos disso[1]. Esse conservadorismo, claro, está adaptado ao nosso ambiente social, cultural e político, ao mesmo tempo em que não deixa de apresentar incoerências e “tensões” mais ou menos graves; de fato, considerando a atual realidade brasileira, a maior fonte de tensão está em conservadores apoiarem, em nome desse conservadorismo (mas também considerando o fantasma do antipetismo), a gestão do atual Presidente da República, que desrespeita de maneira sistemática as liberdades públicas, a tolerância, o cuidado com o meio ambiente, o multilateralismo internacional etc. etc.[2]. Nos últimos anos, em diversos momentos (LACERDA, 2018a; 2019a; 2019b; 2020c) procuramos indicar algumas das limitações do conservadorismo, menos com um espírito destruidor e mais no sentido de evidenciar, mesmo para os próprios conservadores, que o conservadorismo não é nem precisa ser sinônimo de reacionarismo nem, de modo mais central, sinônimo de autoritarismo.

Considerando que aos intelectuais cabe a tarefa de constituir um “poder Espiritual” (nos termos precisos de Augusto Comte (1929; 1972)) ou de realizar uma “Sociologia pública” (nos termos mais ambíguos de Michael Burawoy (2009)), a participação contínua nos debates públicos é quase uma obrigação (auto)imposta, que assume um caráter tanto político quanto pedagógico e moral. No que se refere à discussão com e sobre o conservadorismo, é possível, ou melhor, é necessário darmos um passo além em relação às intervenções anteriores e indicar com clareza no que ele erra em termos históricos (e, daí, políticos) e também em termos epistemológicos (e, daí, morais). É a esse exame que nos dedicaremos neste artigo.

Antes de passarmos à discussão substantiva, convém esclarecermos que a nossa perspectiva é positivista, ou seja, baseada nas concepções e propostas de Augusto Comte, fundador da Sociologia, da Sociologia das Ciências e, mais importante, da Religião da Humanidade. Bem vistas as coisas, o emprego da perspectiva positivista ao exame crítico do conservadorismo pode oferecer diversas possibilidades: por um lado, isso reafirma um dos aspectos centrais do Positivismo, a sua já citada proposta de um novo “poder Espiritual”; por outro lado, isso indica que as propostas comtianas não são peças de museu, que variam entre o exótico e a pura velharia, mas que são instrumentos efetivos de compreensão da realidade e de intervenção nos debates públicos; por fim, mas não menos importante, considerando que uma longa tradição de esquerda, especialmente da esquerda marxista, apoda ao Positivismo o título de “conservador” (com isso querendo significar “reacionário” ou “retrógrado”), o exame do conservadorismo a partir do Positivismo pode oferecer um contraponto no mínimo interessante ao que é, por seu turno, um preconceito político faccioso[3].

2. Algumas premissas do pensamento conservador

Os conservadores – talvez não todos, mas com certeza muitos deles – definem-se afirmando que não são contra as mudanças sociais, mas que, muito mais importante que isso, para eles as longas tradições históricas, as instituições legadas pelo passado é que são importantes; nesse sentido, o que foi legado pelo passado como que passou pelo crivo da história, passou por uma espécie de teste histórico; essa aprovação garantiria não apenas que as instituições e as tradições herdadas são resistentes mas que, mais do que isso, são boas. A partir dessa concepção, para os conservadores, as mudanças não seriam ruins em si mesmas, mas elas devem ser incrementais e lentas, de modo a poderem ajustar-se às instituições e tradições herdadas e, de qualquer maneira, devem também ser postas à prova do tempo. Em contraposição ao legado histórico, as mudanças “bruscas” e/ou as mudanças feitas com base em projetos racionais são vistas com forte suspeição e/ou repudiadas pelos conservadores[4].

A concepção exposta acima tem várias características dignas de nota. Em primeiro lugar, ela tem o evidente mérito de respeitar o passado e, com isso, afirmar a historicidade humana, no sentido de que o ser humano é, por definição, acima de tudo, um ser histórico, um ser que resulta do acúmulo da atividade das gerações, umas após e sobre as outras. Em segundo lugar, os defensores dessa concepção preocupam-se em particular em afirmar que ela é apenas uma “noção”, uma concepção geral, não uma doutrina formalizada; o que mais lhes importa, ao afirmá-lo, não é que eles movam-se por um sentimento, mas é que eles desejam evitar a todo custo um roteiro claro que aponte para a frente; em outras palavras, eles querem limitar-se a respeitar o passado e, por isso, não querem indicar caminhos para o futuro: sua rejeição de um pensamento bem estruturado não visa a um irracionalismo (ainda que ele possa de fato aproximar-se do irracionalismo[5]), mas à rejeição de projetos de engenharia político-social, vistos como essencial e necessariamente traumáticos. Em terceiro lugar, está implícita a noção de que as instituições devem ajustar-se à natureza humana; essa concepção é correta em si mesma, embora seja criticada por pensadores para quem o ser humano é infinitamente plástico e que ele pode ser, literalmente, qualquer coisa, incluindo deixar de ser humano.

As três características indicadas acima são importantes e, até certo ponto, devem ser valorizadas e preservadas. Entretanto, importa notar que elas são insuficientes e que, em particular as duas primeiras, devem necessariamente ser complementadas por outras. Quais outras? Concepções que reconheçam, afirmem e valorizem as mudanças sociais, intencionais ou não.

Em si mesmo, o respeito às tradições e às instituições herdadas do passado tende ao mais completo imobilismo; se o respeito às tradições for erigido em valor último, o resultado é que nenhuma alteração será possível, pois não será tolerada, exceto com hipocrisia e/ou amnésia, ou, talvez, com incoerência doutrinária. Mas, de qualquer maneira, esse imobilismo exige também o controle centralizado das instituições e das tradições sociais, a fim de que se certifique de que nada mude; tal centralização pode ser maior ou menor, isto é, ocorrer em um indivíduo ou em uma corporação, embora, em todo caso, a necessidade da centralização mantém-se.

Outro aspecto que deve ser indicado é que as sociedades caracterizadas pelo respeito geral às tradições são muitas vezes chamadas de “tradicionais”, em que o que importa é apenas refazer hoje e amanhã o que se fez ontem, isto é, em que a condução das atividades humanas teria um certo automatismo. A palavra “automatismo” não é a melhor no presente momento, pois ela sugere mecanismos, ou melhor, máquinas e, daí, indústria; o que nos importa sugerir aqui não são as idéias de máquinas e indústria, mas, simplesmente, a repetição contínua, mais ou menos cíclica, de comportamentos. Claro está que esses comportamentos são realizados conscientemente pelos seres humanos, mas, ao mesmo tempo, há a concepção de que não cabe ao ser humano escolher o seu destino (individual e/ou coletivo), muito menos acelerar esse destino. Mesmo que a concepção cíclica do tempo não seja muito intensa, permanece a outra concepção, segundo a qual não cabe ao ser humano decidir os rumos que deve seguir, especialmente em termos coletivos. Assim, em certo sentido, o ser humano vive às cegas – e é precisamente o respeito às tradições herdadas que, supostamente, preveniria os danos desse viver às cegas.

O que se evidencia dos comentários acima é que a concepção de historicidade presente em tais sociedades é estática, no máximo cíclica: as coisas devem ser como sempre foram; temos ciclos mais ou menos regulares (as fases da Lua, o movimentos diário e anual do Sol, o movimento das estrelas, as estações do ano, o nascimento, amadurecimento, envelhecimento e morte de todos os seres vivos), mas não é possível e não se deve romper essa ordem geral, quer nossa vida esteja inserida em um desses ciclos, quer não esteja. Entretanto, de fato não importa aqui tanto a adequação aos ciclos, na medida em que a vida humana pode realizar-se independentemente da ocorrência dos ciclos: por exemplo, na teologia católica (e, de modo geral, cristã), o sentido da vida humana está em aguentar o que ocorre nesta vida para viver-se “de verdade” no outro mundo (seja na punição eterna, seja na fruição eterna, seja, ainda, na antecâmara da fruição eterna). No Ocidente, esse quadro que procuramos descrever, claro está, refere-se à Idade Média, especialmente nas fases e nas regiões menos urbanizadas e fora dos centros de poder e de riquezas.

Ora, quando os conservadores definem-se pelo respeito às tradições legadas pela história, com isso afirmando que preferem mudanças incrementais e lentas, eles são completamente incoerentes e deslocados, pelo menos por dois motivos: (1) porque eles consideram uma realidade histórica falseada e (2) porque a nossa sociedade não é imobilista, tradicional e/ou cíclica, nem anda às cegas.

3. Uma concepção histórica falseada

A concepção de conservadorismo como o respeito às tradições legadas pelo passado e aprovadas na prova do tempo foi elaborada pelo irlandês Edmund Burke; não por acaso, ela foi exposta na obra Considerações sobre a revolução em França, de 1790 (BURKE, 1997); na verdade, pode-se considerar essa obra como a fundadora do conservadorismo como forma de pensar. Refletindo sobre a Revolução Francesa, iniciada no ano anterior, Burke criticava a destruição social e institucional generalizada que começava a ter lugar na França, no curso do processo revolucionário; cada vez mais rápido, em pouco tempo e até 1794 os revolucionários franceses aboliram o feudalismo (isto é, as leis que mantinham vigente a ordem feudal), a nobreza, a monarquia e ainda executaram o rei (por alta traição, após o vergonhoso episódio da “fuga a Varennes”); instituíram a República, a igualdade perante a lei e ainda enquadraram o clero católico e nacionalizaram os bens da igreja católica. Ao mesmo tempo em que esses eventos desenrolavam-se, era necessário manter a ordem pública na França e fazer frente a sucessivas guerras contra-revolucionárias e invasões externas; tudo isso resultou na radicalização política e na instituição do tribunal revolucionário, com o “grande terror” mantido em 1794 pelo Comitê de Salvação Pública. Parte desses eventos decorreu da dinâmica política e social daquele período, mas as bases intelectuais e morais tinham sido lançadas ao longo do século XVIII – ou seja, nas décadas anteriores à Revolução – pelos pensadores do Iluminismo, em particular os das suas três grandes escolas (a de Voltaire, a de Rousseau e a de Diderot)[6].

Enfim, foi contra o conjunto da Revolução Francesa que Burke definiu o conservadorismo; até mesmo a rejeição de uma definição doutrinária do conservadorismo liga-se ao temor de estabelecer parâmetros norteadores semelhantes aos desenvolvidos pelo Iluminismo. Ao mesmo tempo em que defendeu o primado do legado histórico, Burke contrapôs o processo revolucionário francês à história inglesa – entendida por ele como exemplar de sua concepção “conservadora” (mudanças incrementais, respeito à história etc.).

Ora, ainda que a crítica feita por Burke naquele momento à Revolução fosse até certo ponto justificada[7], o quadro histórico inglês contra o qual ele avaliou a França e, portanto, a partir do qual ele definiu o conservadorismo nada mais era do que pura ilusão. As instituições tão valorizadas por Burke, conservadas após a prova do tempo – a representação baronial no parlamento britânico, a submissão do rei inglês ao parlamento, a manutenção da monarquia britânica, a existência da igreja anglicana, a constituição dos partidos políticos e até mesmo a participação da sua Irlanda natal na comunidade britânica –, tudo isso e muito mais foi resultado não de mudanças incrementais transformadas em longas tradições históricas testadas e aprovadas pela prova do tempo, mas, bem ao contrário, foi o resultado de rupturas dramáticas, com freqüência violentas, na história da Inglaterra; mais do que isso: várias vezes, essas mudanças foram o resultado de engenharia social-institucional consciente. Senão, vejamos:

-        a representação baronial começou com a revolta dos barões contra o poder divino do rei, em 1215;

-        o rei foi submetido ao parlamento após revoltas, guerras civis, violências, golpes e contragolpes que encerraram em 1689 um século tormentoso, que incluiu a decapitação de um rei e o fim temporário da monarquia;

-        a monarquia só foi garantida em 1689 na Revolução Gloriosa porque o Commonwealth britânico (1649-1660), governado por Cromwell, tinha sido visto como autoritário, embora os ingleses, ou melhor, os barões ingleses de modo geral detestassem os reis que antecederam e sucederam Cromwell, ao mesmo tempo em que esses mesmos barões decidiram submeter de vez a coroa ao parlamento;

-        a igreja anglicana surgiu a partir de uma violenta revolta de Henrique VIII contra a milenar igreja católica, que incluiu a imolação dos dissidentes (como Thomas More);

-        os partidos políticos foram uma inovação completa em termos políticos, defendida, justamente, pelo próprio Burke (BURKE, 1770);

-        a Irlanda foi anexada à Grã-Bretanha após séculos de violências entre irlandeses e ingleses[8].

A bem da verdade, é necessário termos clareza de que muitas dessas engenharias institucionais, embora conscientes, nem sempre ocorriam no sentido de romperem os grandes laços históricos; de fato, era comum a referência às tradições para sinceramente justificar esses rompimentos[9]. Além disso, deixando de lado a revolta baronial que instituiu no século XIII a Magna Charta, todas as demais alterações ocorreram em um período de cerca de 250 anos (entre a criação da igreja anglicana, em 1534, e a redação de Considerações sobre a revolução em França, em 1790).

Dito isso, o que temos é que o idílico teste histórico das instituições e tradições é pura tolice, portanto. Mas, se não fosse pouco, também importa notar que antes (e também depois) de escrever as Considerações, Burke defendeu a justeza da Revolução Americana (nome adotado nos ambientes anglossaxões para a independência dos EUA), que foi um violento processo de ruptura histórica, social e institucional (embora o próprio Burke lamentasse a guerra revolucionária em que a Inglaterra e os futuros Estados Unidos estivessem então envolvidos). Para coroar tudo isso, não deixam de ser altamente irônicos – pelo menos para os conservadores atuais – os fatos de que Burke era amigo pessoal e apoiador de pensadores iluministas (como Adam Smith)[10], era membro não do partido conservador inglês (Tory), mas do partido liberal (“progressista” – Whig), que ele era defensor da tolerância religiosa e crítico da escravidão.

Se o pano de fundo a partir do qual Burke definiu o conservadorismo é pura ilusão, isto é, reconstrução histórica fantasiosa, o fato é que, como Augusto Comte (1929, v. III; 1972) observava, desde o final da Idade Média, o conjunto do Ocidente vive um processo revolucionário, em que a antiga ordem católico-feudal tem que ser e é paulatinamente destruída, mas em que, ao mesmo tempo, a nova ordem demora para constituir-se e firmar-se. Todos os acontecimentos históricos indicados nos parágrafos acima pertencem a esse grande movimento revolucionário ocidental, cujo clímax foi, precisamente, a Revolução Francesa, devido ao descompasso entre os dois movimentos (rapidez da destruição com resistência conservadora; demora da constituição de instituições substitutivas, baseadas em elementos dissolventes). Mas, o que expusemos até agora corresponde apenas ao aspecto destruidor; entre muitos outros elementos, o aspecto construtivo do movimento moderno corresponde, para o que nos interessa aqui, à constituição da ciência moderna. É claro que essa constituição não se dá no vazio nem de maneira isolada; entretanto, não podemos deter-nos nesses vários outros elementos; também não nos interessa examinar cada uma das ciências em particular nem as inúmeras disputas travadas em seus interiores e com as instituições que as cercavam, nem, por fim, não nos interessa abordarmos a epistemologia das ciências[11]. O que nos interessa da ciência é algo mais específico e ao mesmo mais global; são os aspectos ligados à sua poderosa crítica às crenças teológicas; a possibilidade de ação humana consciente e racional sobre a natureza; por fim, mas não menos importante, a constituição da Sociologia.

4. Ocidente e ciência moderna como não imobilistas

Comecemos pela parte destruidora: o poder dissolvente da ciência sobre a teologia não é ignorado por ninguém; a famosa distinção sofístico-metafísica entre “razão” e “fé” corresponde justamente à incapacidade crescente de a teologia explicar o mundo, acossada de maneira inapelável pela concomitante capacidade da ciência em fazê-lo com clareza, eficiência e estreita relação com a realidade (empírica) (cf. COMTE, 1972). Não se trata aqui de problemas abstratos ou de detalhistas reflexões epistemológicas, mas acima de tudo da dissolução das crenças, das tradições e das instituições baseadas na teologia: grosso modo, a maior parte das instituições medievais, que se presume respeitadas pelo “conservadorismo”[12].

De maneira complementar ao poder dissolvente da ciência em relação às interpretações teológicas da realidade, a ciência descortina, ou melhor, permite uma enorme possibilidade de intervenção humana consciente e racional, o que, por seu turno, põe por terra, de maneira decisiva, aquele comportamento próprio às sociedades tradicionais que denominei antes de “automático”, isto é, aquele comportamento repetitivo e realizado às cegas. Buscando ao mesmo tempo explicar e prever, o conhecimento científico permite ao ser humano passar a agir de modo cada vez mais consciente do que pode e não pode fazer, dominando os resultados de suas ações[13]. De posse do conhecimento científico, deixamos de agir de determinada maneira apenas porque nossos antepassados agiam dessa forma e passamos a examinar se essa forma de agir é correta, é boa, é eficiente; os parâmetros morais deixam de ser as crenças herdadas do passado apenas porque foram herdadas do passado e porque apontam para uma suposta outra vida (caracterizada pela punição ou pela recompensa eterna) e passam a seguir parâmetros imanentes, como o benefício coletivo, o estímulo ao altruísmo, o combate à violência, o combate à miséria etc. Vale notar que, por mais que ainda existam crenças que resistem ao poder dissolvente da ciência e ao crescimento do humanismo moral, o fato é que mesmo essas crenças sofrem uma constante e crescente pressão pelo seu término e por sua substituição pelo humanismo. Não podemos deixar de notar que a própria ciência foi estimulada por muitas tradições e instituições tradicionais ao longo dos séculos; por exemplo, nos estertores do movimento progressista da Igreja Católica e seguindo justamente essas tradições, o padre polonês Nicolau Copérnico foi o autor moderno da teoria heliocêntrica (cf. REPCHECK, 2011), com seu bem conhecido efeito devastador sobre a crença bíblica de que o mundo foi criado pela divindade e que, portanto, o homem e a Terra são o centro do universo (cf. COMTE, 1972).

O terceiro aspecto relativo à ciência que tem interesse para a discussão sobre o conservadorismo refere-se à fundação da Sociologia. Esse acontecimento, no início do século XIX – não por acaso, após a Revolução Francesa –, continua, consolida e aperfeiçoa os processos intelectuais e sociais assinalados acima para a ciências. A Sociologia, todavia, contribui pelo menos com dois elementos fundamentais para essa marcha: por um lado, ela afirma com clareza a noção de progresso, isto é, a noção de que a história humana não é caminho às cegas nem rota cíclica, mas uma caminhada – longa, com muitas curvas, desvios, pedras e buracos, não há dúvida – com uma direção determinada; essa caminhada pode ser acelerada ou retardada, mas, enfim, é uma rota que pode ser e é cada vez mais seguida de maneira consciente, racional e intencional, em direção à paz universal, às liberdades de pensamento e de expressão, às concepções positivas. Por outro lado, a Sociologia sugere que a intervenção consciente e racional do ser humano sobre a própria história não apenas é possível como, acima de tudo, é necessária: mudanças e inovações institucionais são freqüentes, com os mais variados objetivos, desde regular a atividade econômica (por exemplo, com a fixação de taxas de juros) até garantir a isonomia jurídica, passando pela proibição da escravidão, o respeito aos trabalhadores, a proibição da violência contra as mulheres e muito mais... não podemos deixar de mencionar a constituição do aparato do Estado de bem-estar social, que corresponde, justamente, a uma forma de intervenção prática na realidade social, a partir de estudos e concepções propriamente sociológicos, embora com preocupações políticas. Essas duas contribuições específicas da Sociologia têm como contrapartida a superação, a extinção e/ou, pelo menos, a desvalorização de um sem-número de tradições e instituições herdadas historicamente; para citar apenas algumas bastante evidentes, a escravidão, as guerras de conquista, o homem como dono da esposa e dos filhos, o ser humano como inerente e tão-somente egoísta. Mas podemos ir muito além: as vacinas, as técnicas pedagógicas, os procedimentos psicoterapêuticos, a biotecnologia, os fármacos específicos, as fontes renováveis de energia... todas essas formas de intervenção humana na realidade, sempre mediadas pela moral, ao mesmo tempo que correspondem à ampliação da capacidade humana de definir os seus próprios destinos, exigem que se deixe para trás os hábitos e os valores puramente tradicionais, ou melhor, os hábitos e os valores mantidos por mero automatismo. Na verdade, bem vistas as coisas, mesmo os valores “tradicionais” têm que ser afirmados atualmente com enormes clareza e autoconsciência, em um processo racional de escolha e de justificação que é totalmente tributário da revolução científica que comentamos aqui.

Diversas manifestações intelectuais chamadas atualmente de “conservadoras” mas que, no fundo, são “só” e assustadoramente irracionais e antimodernas correspondem, portanto, não a manutenções contemporâneas de valores e concepções conservadoras, mas, em um sentido bem diverso, a gritos desesperados de visões de mundo que estão fadadas a desaparecer – e que, em certos círculos, têm a consciência contraditória de que devem desaparecer: assim é o negacionismo atual, que afirma coisas moral e faticamente despropositadas mas que encontram guarida apenas em termos “tradicionais”, como a Terra plana, a ineficácia das vacinas, as vacinas com possibilidade de transmutar-nos em jacarés, a irrealidade do aquecimento global e por aí vai. Mais que esquisitices defendidas por políticos retrógrados e/ou por empresas que desprezam o bem-estar humano e a preservação do ambiente, essas concepções são mantidas por pensadores que rejeitam em bloco, na totalidade, a civilização moderna e o legado do Iluminismo e desejam, em contrapartida, a restauração de uma idílica mas há muitíssimo inexistente “época de ouro” das tradições: esse é pensamento de fundo dos olavistas no Brasil, dos trumpistas nos EUA etc.[14].

5. A natureza humana encontra o conservadorismo

Notamos antes que os conservadores pressupõem que as instituições que sobrevivem ao teste do tempo são boas porque correspondem às características da natureza humana. Já vimos que essa concepção é essencialmente imobilista; embora ela afirme valorizar a história, ela acaba sendo anti-histórica; além disso, ela tem como conseqüência a idéia de que as mudanças operadas consciente e racionalmente nas instituições não correspondem à natureza humana. Para usar uma metáfora marinha, enquanto a natureza humana seriam as correntes submersas, as mudanças seriam apenas as ondas superficiais.

Essa concepção tem o evidente mérito de considerar que o ser humano é histórico, ou seja, que é o resultado da acumulação paulatina dos esforços de geração após geração. Entretanto, se a história deve ser valorizada, ela deve ser valorizada pelas várias lições que ela pode ensinar, quer gostemos, quer não gostemos dessas lições; em particular, a história ensina que... as coisas mudam. Novamente a imagem marinha: se tudo muda e se as mudanças ocorrem o tempo inteiro, podemos considerar que nada muda (ou, talvez, que nada deva mudar); daí a mudança do foco das ondas superficiais para as correntes submersas, da agitação constante e sem sentido (aparente) para a calmaria e permanência das profundezas. Ora, a Sociologia reconhece ambas as possibilidades, mas percebe que as tendências profundas conduzem as agitações superficiais; que as correntes profundas não são estáticas, mas que se dirigem para diferentes lados e que se encontram com outras correntes, modificando-se à medida que percorrem seus caminhos; que, às vezes, intensas agitações superficiais (no caso de tempestades) podem modificar mais ou menos os trajetos submersos; que a água das correntes profundas e das agitações superficiais é a mesma; que as correntes e as agitações resultam em outros elementos (a vida marinha), que vão modificando aos poucos essas mesmas correntes; que é possível alterar de maneira mais drástica muitas das correntes por meio de barragens e canais[15].

O que podemos concluir da digressão sobre a imagem marinha a respeito da natureza humana entendida pelos conservadores? Talvez o seguinte: para os conservadores, assim como a história é imóvel, a natureza humana para eles resulta em apenas duas possibilidades, agitação constante mas superficial e calmaria durável e constante; o movimento, quando existe, é apenas o superficial – e que, como superficial, pode e deve ser desconsiderado no cômputo geral das coisas. Entretanto, não há motivo para considerar que a natureza humana é estática; essa concepção só faz sentido de verdade quando temos pouca história atrás de nós (como era o caso dos antigos, isto é, dos gregos e dos romanos) (cf. BURY, 1920; COMTE, 1929) e/ou quando queremos que o mundo fique parado; mas se tivermos uma longa história e percebermos que o movimento integra de pleno direito a existência humana, a natureza humana será entendida de modo dinâmico[16].

Os conservadores, portanto, escolhem o que querem apoiar, no sentido de que decidem ignorar aspectos que lhes são desagradáveis. Eles escolhem ignorar as mudanças sociais que o espetáculo histórico, muito mais por meio da Sociologia que da própria História, oferece; analogamente, eles escolhem uma concepção estática da natureza humana, deixando de lado todas as evidências em favor da concepção dinâmica. Essas escolhas incoerentes ocorrem desde a fundação do conservadorismo pela pena de Edmund Burke, na medida em que esse irlandês escolheu deixar de lado em sua definição a Revolução Americana como revolução, a revolta baronial contra o rei como revolta, as guerras civis inglesas com guerras, a Revolução Gloriosa como revolução e muito mais; em suma, ele escolheu entender a história inglesa moderna como se fosse a história das antigas dinastias egípcias ou chinesas, ou seja, como grandes imobilismos temporais (cf. LAFFITTE, 1861; 1928). Os conservadores atuais igualmente fazem escolhas desse tipo, à la carte, adotando o que lhes convém, rejeitando também o que lhes convém e sendo vagos a respeito dos critérios para adoções e rejeições[17]. Um exemplo banal é a total incoerência a respeito da aceitação de trechos bíblicos: por um lado, são vigorosamente aceitos por muitos conservadores trechos que, supostamente, condenam a homossexualidade; mas, por outro lado, são ignorados pela virtual totalidade de conservadores os trechos que condenam ao apedrejamento as mulheres que não se casarem virgens: se é para aceitar a Bíblia como a palavra da divindade, ela deve ser aceita literalmente e em sua totalidade; mesmo que critérios heterodoxos sejam adotados na interpretação, de qualquer maneira é necessário adotar-se parâmetros homogêneos e consistentes – o que está claro que não ocorre nos exemplos da homossexualidade e do apedrejamento de não virgens.

Outro exemplo em que os conservadores são ambíguos, ou confusos, ou contraditórios, ao escolherem à la carte as suas tradições: a rejeição da escravidão. Como sabemos, no Ocidente moderno, ela desgraçadamente vigeu por mais de 300 anos; esse prazo – três séculos – deveria ser suficiente para garantir-lhe a aprovação no teste do tempo, mas, no caso do Brasil, quando ela foi abolida de uma vez, de verdade ninguém resistiu à mudança[18]. Embora durante a monarquia – que, aliás, fundou e manteve-se enquanto houve escravidão no Brasil – houvesse conservadores que defendiam a escravidão (como José de Alencar (2008)), não vemos nenhum conservador de hoje lamentando, no Brasil, a mudança não incremental que foi o fim do trabalho servil no país[19]. Outro exemplo: a despeito do cinismo envolvendo o suposto “tratamento precoce” contra a covid-19, não vemos nenhum dos autodenominados conservadores defendendo de verdade tratamentos tradicionais, como rezas, a colocação de pedras aquecidas na testa, o consumo de alface ou coisas assim: todos fazem questão de usar o mais atual, o mais moderno, o mais eficiente tratamento científico, mesmo que seja na forma enganosa do emprego da hidroxicloroquina (supostamente justificada com base em pesquisas científicas).

Vale a pena repetir: o suposto respeito à historicidade, proclamado pelos conservadores, é apenas meio respeito; na verdade, é apenas um apego a algumas instituições e práticas, escolhidas segundo suas conveniências políticas, econômicas, filosóficas e por vezes até estéticas.

6. Um conservadorismo progressista

Em suma, diferentemente do que propõem os conservadores, atuais ou não, a fórmula “respeito às instituições que passaram pelo teste do tempo”, amparada pela concepção estática da natureza humana e contrária ao “progressivismo”, é inadequada e insuficiente em termos políticos, mas, de modo mais central para o presente artigo, ela é ruim para a própria concepção “conservadora”.

Um verdadeiro respeito às experiências históricas, isto é, àquilo que pode, de fato, ter passado no teste da resiliência histórica, ao mesmo tempo que aceitando as mudanças exigidas pela própria experiência histórica e pelas necessidades advindas da vida em sociedade – mudanças incrementais ou não –, pode ser sumariada em uma outra fórmula, muito superior à proposta por Burke e, talvez não por acaso, proveniente do lado que o irlandês criticava: é o “só se destrói o que se substitui”, criada pelo líder revolucionário Georges Danton, adotada por Augusto Comte e empregada pelos positivistas desde meados do século XIX (cf. TRINDADE, 2007). Este líder e patriota, que no final da vida pôs-se contra o rousseauniano Robespierre, teve a memória louvada por Augusto Comte como o representante da escola construtiva de Diderot na Revolução Francesa (cf. ROBINET, 1865; COMTE, 1899); a sua fórmula afirma ao mesmo tempo a necessidade de respeitarmos o que já existe e de sermos responsáveis em face das necessidades sociais e políticas; além disso, de maneira central para os nossos propósitos, essa fórmula conjuga a conservação com as mudanças. É possível que, se em vez da vaga fórmula proposta por Burke, fosse a fórmula dantoniana a adotada na Inglaterra, atualmente a rainha Isabel II já não seria mais a governante daquele país, havendo algum(a) presidente no lugar...

Para concluir estas longas anotações, é necessário lembrar que, não por acaso, os conservadores definem-se em oposição ao progresso e aos chamados “progressistas”. Não cabe aqui criticarmos a concepção de “progresso” que rejeita todo o passado histórico, ou que considera que o passado é um peso que nos oprime – como dizia Marx (2011) e que tanto a esquerda quanto liberais (!) citam alegremente, com isso querendo afetar “criticidade” –; essa concepção de progresso é errada do ponto de vista sociológico e desastrosa do ponto de vista político. Em todo caso, ocorre que os conservadores, a partir de sua concepção estática da história (e da natureza humana), rejeitam de roldão tanto o progressivismo que nega toda historicidade quanto o progressivismo que respeita a historicidade mas reclama mudanças; para usar a famosa fórmula francesa, os conservadores jogam fora o bebê juntamente com a água do banho.

Se a definição do conservadorismo é vaga e tende ao imobilismo, embora com clareza valorize a história, ou melhor, valorize uma faceta da historicidade humana, por outro lado os “progressistas” não se saem melhor; na verdade, tendem a definir-se de modo pior. A concepção que o comum dos autoproclamados progressistas defende de progresso é largamente tributária da oposição ao imobilismo tendencial dos conservadores e, por isso, não raras vezes tende simplesmente a ser sinônima de “mudança” – qualquer mudança. Entretanto, como bem sabemos, de modo mais específico os progressistas também são chamados de “esquerda”; nesse caso, as referências passam a ser a valores e a concepções mais determinados: ao marxismo e, em virtude disso, às ideias correlatas de luta de classes e de extinção do “capitalismo”; isso dá um caráter virulentamente classista à esquerda, que, em seu projeto de revolução mundial, afirma-se equivocamente como “universalista”. De qualquer maneira, a tendência geral nesse movimento, como observou Norberto Bobbio (2001) há muitos anos, é que a esquerda busca a igualdade, ao passo que, por oposição, a direita buscaria a liberdade. No que se refere à “direita”, parece-nos que a busca da liberdade é apenas a forma que Bobbio encontrou para determinar uma oposição elegante mas principalmente fácil em relação à esquerda; ainda assim, o vínculo básico entre esquerda e igualdade proposto por Bobbio parece-nos correto[20].

A chamada “microssociologia” gosta de afirmar que o característico da sua abordagem, em oposição às demais concepções sociológicas, é o entendimento de que a vida em sociedade é “relacional”; isso é uma pretensão arrogante desses autores, que tomam exclusivamente para si uma concepção sociológico-filosófica fundamental. Mas, enfim, deixando de lado essas picuinhas academicistas, o fato é que, se há um aspecto sociológico verdadeiramente “relacional”, este é o das definições mútuas dos conservadores e dos progressistas: uns definem-se em função dos outros, a partir e contra as definições que cada qual dá para si mesmo. Em diversos artigos anteriores (por ex.: LACERDA, 2014a; 2014b; 2016) insistimos em o quanto a definição que os autoproclamados progressistas dão para si mesmos, a partir da definição que eles dão para o progresso, é ruim; se os conservadores negam a historicidade no sentido de mudanças, os progressistas negam a historicidade no sentido de legado. Ambas as definições tomadas isoladamente são ruins, ou melhor, são insatisfatórias – embora, evidentemente, possam e devam combinar-se. A combinação dessas definições não é a soma de cada uma das perspectivas, na medida em que elas têm pressupostos filosóficos, sociológicos e morais diversos: a combinação das duas perspectivas parciais necessariamente altera as definições parciais anteriores, de tal sorte que, analogamente, as perspectivas políticas dos conservadores e dos progressistas também deveriam mudar. Um progresso que respeite a ordem, uma ordem que permita (isto é, que seja aberta a e que desenvolva) o progresso: essa concepção é tão distinta filosófica e sociologicamente dos conceitos simples subjacentes a conservadores e progressistas quanto é diferente em termos políticos de cada um desses grupos. Esse movimento não se trata nem de conciliação, nem de apaziguamento, nem de justaposição; trata-se de uma nova composição, superior aos dois elementos prévios isoladamente tomados[21]. Essa foi e é a proposta positivista, de Augusto Comte: como argumentamos em Lacerda (2021), parece clara a necessidade de retomá-la – com urgência.

7. Para concluir

Para concluir, desejamos fazer algumas reflexões abertamente contemporâneas, afastando-nos um pouco das considerações mais abstratas feitas até aqui.

O atual movimento conservador no Brasil, a despeito da pretendida unidade política, é muito mais uma construção linguística (a partir do uso do rótulo “conservador”) que uma realidade fática. Ele consiste em um estranho amálgama intelectual, político e social: há católicos (como a professora Cláudia Helena Gomes); há tradicionalistas (como os olavistas); há evangélicos; há “liberais” (como o Deputado Kim Kataguiri); há autoritários; há retrógrados e monarquistas (como o Deputado Luiz P. Orleans e Bragança); há fascistas[22]. Na presente conjuntura, o que os une, além do rótulo genérico, são a rejeição a um certo progressivismo (ou melhor, a rejeição ao fantasma do “lulopetismo”) e o apoio ao Presidente da República, apodado de conservador apenas a partir de sua histeria antipetista. Esse estranho amálgama reúne sob o mesmo teto grupos heterogêneos, obrigando-os a compromissos morais e políticos que não têm necessidade de ocorrer. Ao mesmo tempo, ainda que sejam limitadas e que sejam parcialmente corretas, as concepções do conservadorismo burkeano emprestam dignidade filosófica e política aos demais grupos que estão agrupados no rótulo genérico do conservadorismo; isso ocorre por vontade própria, como podemos ler com todas as letras na defesa convicta, apresentada com uma condição bastante dúbia, que a professora Maria Helena Gomes faz do atual Presidente da República (PROFESSORA DA UFG EXPLICA, 2021):

Para quem vê de fora, o universo bolsonarista pode parecer um balaio de gatos. A impressão não está de todo incorreta. A direita é assim porque não há um conjunto de dogmas como na esquerda. O conservadorismo é, na verdade, a negação da ideologia. Não cabe aqui uma explicação mais detalhada, mas resumidamente posso dizer que o conservador é alguém que vê a continuidade da experiência humana como um caminho mais seguro, com pequenos ajustes na direção, em detrimento de um “grande salto” para construção do “paraíso socialista”, experimentados na China e em Cuba com seu milhões de mortos pela fome ou paredão de execução. Em particular, como católica, meio apoio está condicionado à obediência do presidente Bolsonaro aos valores professados pela minha Igreja. Enquanto o presidente Bolsonaro estiver ao lado do que ensina a Igreja Católica, terá meu apoio irrestrito.

Todavia, os elementos que reúnem os grupos “conservadores” são cada vez mais frágeis, menos coerentes e – isso é o principal – mais daninhos para o país: no cenário ideal, caber-lhes-ia uma reflexão profunda, uma “autocrítica”, que lhes permitisse perceber os danos institucionais, sociais e morais de que o Brasil cada vez mais padece. Não há dúvida de que os elementos autoritários, fascistas, retrógrados não farão nenhuma reflexão sobre si mesmos e suas ações, pois eles realizam agora que estão no poder exatamente o que desejam realizar, ainda que não realizem tudo o que desejam. Tornou-se famosa a sintomática frase dita pelo atual Presidente da República, logo após a sua eleição em 2018 ou no início do seu governo, em 2019, segundo a qual ele que tinha que destruir muito antes de fazer qualquer coisa positiva. Essa afirmação, dita com a aquiescência do seu ultraliberal Ministro da Economia, pode concordar com o perfil de autoritários, fascistas, retrógrados e mesmo ultraliberais; entretanto, é difícil entender como é que ela coaduna-se com o conservadorismo. Mas, mesmo assim, nutrimos um pouco de esperança e cremos existir conservadores que, apesar das limitações de sua perspectiva filosófica, valorizam mais as liberdades, a tolerância, o respeito mútuo, as instituições de bem estar social, a história republicana do Brasil, do que o apoio a um determinado Presidente da República a quem é atribuído o rótulo de “conservador”.

Enquanto isso, de qualquer maneira, a conclusão geral a que podemos chegar a respeito dos conservadores é o que dá título a este artigo: eles têm alguns acertos, mas muitos erros.

 

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[1] O presente artigo, como sói acontecer, deveria consistir apenas em uma curta nota crítica motivada por observações lidas na imprensa, mas que, aos poucos, assumiu maiores dimensões e ensejou reflexões mais amplas. De qualquer maneira, agradeço o apoio e os comentários de Christian Lynch.

[2] Exemplar dessas contradições e tensões foi o debate entre dois propagandistas do conservadorismo nacional, os agitadores Caio Coppola e Kim Kataguiri, em maio de 2021, que se dividiram entre apoiar ou rejeitar a figura e o governo do atual Presidente da República (cf. ZANINI, 2021). Além do seu “liberalismo” e do seu “conservadorismo”, o que realmente os une é a rejeição a um fantasma político e social chamado “lulopetismo” – fantasma que, até certo ponto, eles mesmos criaram.

[3] Um exame dos preconceitos antipositivistas pode ser lido em Lacerda (2009); várias interpretações positivistas de questões sociológicas gerais e brasileiras podem ser lidas em Lacerda (2018b).

[4] As opiniões que motivaram este artigo foram expostas en passant, no contexto de uma entrevista escrita, mas revelam muito do senso comum político atualmente prevalecente no Brasil e, em particular, no ambiente dito “conservador”. Essas opiniões foram exaradas por uma professora de Direito da Universidade Federal de Goiás, Cláudia Helena Nunes J. Gomes, em um texto encomendado a um periódico local de direita (Jornal Opção); nos termos desse mesmo periódico, Cláudia Helena Gomes seria “[...] uma das mais articuladas vozes da direita no Estado [...]”.

Embora o artigo como um todo seja digno de atenção devido ao ser caráter exemplar, foi o seguinte trecho que me chamou mais a atenção: “[...] o conservador é alguém que vê a continuidade da experiência humana como um caminho mais seguro, com pequenos ajustes na direção, em detrimento de um “grande salto” para construção do “paraíso socialista”, experimentados na China e em Cuba com seu milhões de mortos pela fome ou paredão de execução” (PROFESSORA DA UFG EXPLICA, 2021).

Na verdade, a professora Cláudia Helena Gomes também afirma que o político goiano Major V. Hugo – que integra a base política do atual Presidente da República – não seria “conservador, mas positivista”. Essa curiosa acusação de “positivismo” feita por uma conservadora a um militar é digna de nota, embora, como observamos em outro artigo (LACERDA, 2020), trata-se apenas de uma cortina de fumaça. De qualquer maneira, não é esse o tema principal que nos interessa no presente artigo.

[5] Ainda assim, sobre os inúmeros vínculos entre irracionalismo e conservadorismo, cf. Wolin (2006) e Sternhell (2010).

[6] A literatura sobre a Revolução Francesa é gigantesca. Para uma descrição ampla dos acontecimentos da Revolução Francesa, cf. Mignet (1899); sobre o ano de 1794, cf. Loomis (1965); para uma descrição histórica com uma interpretação sociológica, cf. Laffitte (1880).

[7]Até certo ponto justificada” porque, se por um lado Burke estava chocado com a destruição sistemática das instituições sociais feita pelos revolucionários franceses, por outro lado ele perdia totalmente de vista o sentido de progresso social. Em outras palavras, faltava-lhe ter uma concepção ampla da marcha humana, a partir da qual ele pudesse avaliar o presente e o passado; como argumentamos neste artigo, ele via apenas o passado. Adiantando o nosso argumento: conforme indicou posteriormente Comte (1899; 1929), são exatamente o apego excessivo ao passado e a concomitante incapacidade de discernir o futuro que estimula a manutenção cega de instituições, isto é, que estimula o conservadorismo e o imobilismo; o resultado disso, por sua vez, é a explosão destruidora realizada pelas forças do progresso. A solução para esse problema está em a história não ser sacralizada, mas respeitada e empregada como base para a Sociologia, que, por sua vez, atua como guia intelectual, política e moral para os negócios humanos, conjugando a ordem e o progresso.

[8] Vale notar que as violências anglo-irlandesas só cessaram, e de maneira muito parcial, apenas em 1912, quando foi proclamada afinal a República da Irlanda, ou Eire. Esse fato ocorreu após muitos conflitos, que se mantiveram entre 1797 (morte de Burke) e 1912 (fundação do Eire). Sobre Cromwell, cf. Harrison (1888) e Hill (1988); sobre a história inglesa de modo geral, cf. Harrison (1908) e Hill (2012).

[9] Esse é um traço importante do conservadorismo; em contraposição, os “progressistas” entendem que o rompimento com o passado é bom ou correto. Um exemplo da argumentação política inglesa em que um rompimento político baseou-se na tradição pode ser lido em Worden (2002); outro exemplo, agora do outro lado do Atlântico, é a Declaração de Independência dos EUA, escrita por Thomas Jefferson (cf. DRIVER, 2006).

[10] Essa amizade não pode ser desprezada, na medida em que torna atualmente difícil definir Burke como um conservador “puro sangue”. Por outro lado, outro iluminista britânico que também era amigo de Adam Smith era o escocês David Hume – que, entretanto, claramente se reconhecia como conservador e era favorável ao partido Tory (cf. ROSS, 1999).

[11] Para uma interessante exposição das discussões científicas modernas, cf. Rossi (2010); para discussões sobre as epistemologias de cada uma das ciências e de seus papéis destrutivos e construtivos, cf. Comte (1929; 1972).

[12] No Brasil isso se limita a uma defesa confusa e parcial do catolicismo – um catolicismo adotado à la carte, conforme as preferências e conveniências do freguês. A defesa de instituições herdadas da Idade Média faz um pouco mais de sentido na Inglaterra, em que o conservadorismo, com o apoio dos meios de comunicação, esforça-se por manter a sociedade de castas, a monarquia e a teologia oficial de Estado (e até um certo imperialismo). Ainda assim, ao longo do século XX o conservadorismo inglês viu-se cada vez mais acossado pelo progressivismo (cf. MARSHALL, 1967; JUDT, 2010); quando ele retornou ao poder com um projeto próprio, esse projeto consistiu acima de tudo em uma destruição generalizada, que é o sentido final do neoliberalismo (ou ultraliberalismo) de Margareth Tatcher. Sobre o liberalismo, suas vertentes em geral e no Brasil e suas relações com o progressivismo, cf. Lilla (2018) e Lynch (2020).

No caso dos Estados Unidos, cuja origem revolucionária transformou-o ao mesmo tempo em herdeiro e negador da Europa, o conservadorismo é muito mais vago, definindo-se, como no Brasil, muito mais pelo antiprogressivismo. Essa vagueza pode ser constatada no livro de Kimball (2010), que é muito preciso nas críticas à esquerda acadêmica estadunidense, mas que é incapaz – seja porque não podia, seja porque não queria – explicar como é que os valores “tradicionais” do Ensino Superior nos EUA foram estabelecidos, seja nos próprios EUA, seja no Ocidente; assim, a partir de uma perspectiva anti-histórica, o autor cria um mito chamado “valores tradicionais”, completamente descontextualizados, mas que servem bem aos seus objetivos políticos – nomeadamente, a crítica ao que ele chama de “progressivismo”. Sobre o antiprogressivismo nos EUA, cf. também McAllister (2017) e, sendo bem francos, de modo mais assustador, Teitelbaum (2020) e Sedgwick (2021).

[13] Usamos as palavras “dominar os destinos”, “controlar os resultados” etc. porque o objetivo é esse mesmo, o de sermos senhores de nossas vidas, tomadas coletiva e individualmente. Isso, evidentemente, não equivale, de maneira nenhuma, a afirmar que devemos tornar-nos autômatos a serem explorados pelo capitalismo e/ou pelo Estado (como argumenta fantasiosamente o marxismo místico-romântico da Escola de Frankfurt, com Adorno, Horkheimer e, depois, Habermas), nem se trata de aplicar às ciências humanas a lógica das ciências naturais (como defende a metafísica alemã da “compreensão”, com Dilthey, Weber e seus epígonos). Cf. Teixeira Mendes (1898), Grange (2008) e Lacerda (2009).

[14] É claro que essa rejeição em bloco da modernidade não os impede de usarem despudoradamente os meios mais atuais de manipulação das massas, de enriquecimento individual, de comunicação e até de preservação da vida. Apesar de serem arquiconservadores, eles também não têm pudor nenhum de proporem revoluções sociais e políticas para implementarem suas ideias e valores – a diferença com os “progressistas”, ou com a esquerda, é que esses arquiconservadores querem revoluções para irem para trás, não para frente; nesse sentido, eles são mais arquirretrógrados que arquiconservadores. A possibilidade de empregar a revolução para fins conservadores deve-se à admiração do propositor inicial do tradicionalismo (Julius Evola) por Lênin e seus métodos violentos; o apoio ao fascismo e ao nazismo, na conjuntura europeia dos anos 1920 a 1940, foi um passo fácil. Não é casual, portanto, a simpatia ou o apoio de vários conservadores atuais a políticos que não apenas são antiprogressistas mas que também são francamente autoritários. Novamente, cf. Teitelbaum (2020) e Sedgwick (2021).

[15] De modo geral, os historiadores compartilham dessas concepções, vendo ou apenas agitações superficiais e incessantes ou grandes imobilidades submersas. Do ponto de vista de obtenção de dados empíricos, essas concepções especificamente historiográficas são instrumentais e mais ou menos adequadas a seus respectivos objetos (as lutas políticas em um caso, as formas de pensar, em outro); mas é claro que são inadequadas e impróprias para o empreendimento da Sociologia, que exige uma outra percepção e que toma as pesquisas historiográficas como fontes de dados empíricos em seu esforço de comparação, abstração e generalização. Isso, infelizmente, de modo geral não é aceito pelos historiadores; mesmo muitos sociólogos, exageradamente inspirados pelos métodos historiográficos, não o entendem.

[16] Muitos “críticos” sociais afirmam que o ser humano não possui natureza humana; eles baseiam suas críticas nas afirmações de pensadores e políticos que entendem a sociedade de modo estático – e, em particular, contrário ao que os próprios críticos defendem.

Entretanto, isso não faz sentido; antes de mais nada, é necessário termos clareza de que não existem funções sem órgãos, isto é, de que o ser humano é tanto uma realidade biológica quanto social e psicológica. A constituição humana em termos biológicos estabelece uma natureza humana: inicialmente em termos genéticos, depois por meio da constituição cerebral e das interações sociais e históricas, é a esse conjunto que podemos e devemos nomear “natureza humana”. É claro que isso tem a conseqüência de que o ser humano, embora muito plástico (isto é, muito variável), não é infinitamente plástico nem é “qualquer coisa”; ele tem características específicas e definidas que tornam o ser humano o que é, para bem e para mal. Cf. Comte (1929).

[17] A vagueza não se deve, então, apenas à rejeição a um comportamento determinado por uma doutrina coerente; ela cumpre também a função de dificultar a determinação dos parâmetros adotados nas escolhas mais ou menos aleatórias realizadas. Ainda assim, vale notar que os conservadores não rejeitam por si mesmas doutrinas orientadoras, quer sejam doutrinas políticas, quer sejam doutrinas morais; por exemplo, na quase totalidade das vezes, eles são cristãos. Como notamos há pouco, o problema, de verdade, está na concepção de progresso; mas, novamente, não é o progresso por si só; é o progresso no que ele tem de necessariamente dissolvente das suas crenças morais e políticas.

[18] Evidentemente, o caso dos Estados Unidos é bem diferente, em que a escravidão só se encerrou após e devido a uma violenta guerra civil (cf. DAVIDSON, 2016).

[19] Bem entendido: nenhum conservador que não seja ao mesmo tempo um romântico saudoso da monarquia, com interesses estritamente familiares nisso, como o Deputado Federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança, que não por acaso justificou a escravidão com base em uma concepção estática da natureza humana (cf. ESCRAVIDÃO É “ASPECTO DA NATUREZA HUMANA”, 2019).

[20] Esse vínculo refere-se às disputas políticas até meados dos anos 1980; após esse momento, seja devido à influência da filosofia pós-moderna, seja devido à afirmação prática (em particular nos Estados Unidos) de movimentos identitários (negros, feministas, homossexuais), seja devido ao colapso do bloco comunista e ao consequente (e necessário) descrédito do marxismo, a esquerda passou a adotar uma pauta identitária, deixando de lado a igualdade (e a isonomia) e também as preocupações com os trabalhadores. Para uma crítica do identitarismo proveniente da esquerda dos EUA, cf. Lilla (2018); para uma crítica nacional, cf. Risério (2019).

[21] Em Lacerda (2020a) elaboramos um quadro com uma comparação sistemática entre as vistas do Positivismo e o espectro que vai da extrema esquerda à extrema direita.

[22] Em Lacerda (2020c) fizemos uma análise do apoio fascista ao atual governo federal.