09 outubro 2017

Gazeta do Povo: "Ensino religioso confessional, uma catástrofe anunciada"

A Gazeta do Povo publicou no dia 8 de outubro um artigo de minha autoria sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal em favor do ensino religioso confessional nas escolas públicas. Em minha opinião, essa decisão é catastrófica - aliás, daí a clareza com que exponho idéias que, geralmente e de outra maneira, apresentaria de maneira mais branda.

Felizmente, como a Gazeta do Povo tornou-se um jornal principalmente eletrônico, agora é possível escrever textos um pouco mais longos, em que se pode expor com um pouco mais de calma os argumentos e as questões de interesse.

O original encontra-se disponível aqui.

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Ensino religioso confessional, uma catástrofe anunciada

O ideal seria simplesmente suprimir da Constituição (e, por extensão, da LDB) a exigência de ensino religioso nos currículos das escolas públicas

Gustavo Biscaia de Lacerda  
[08/10/2017]  [10h00]

A recente decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), segundo o qual é constitucional o ensino religioso confessional nas escolas públicas brasileiras, é desastrada – ou melhor, é catastrófica; não há como qualificá-la em termos mais brandos. Pura e simplesmente, a maioria da corte – composta, no caso, pela presidente do tribunal, a ministra Cármen Lúcia; pelo “filopetista” Ricardo Lewandowski; pelos petistas Edson Fachin e Dias Toffoli; e pelos paragovernistas Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes – errou e esse erro custará caro ao país, em diversos sentidos. Antes de prosseguirmos, convém notar que a maioria favorável ao ensino religioso confessional votou contrariamente ao parecer do relator, o ministro Luís Roberto Barroso (embora este tenha tido o apoio dos ministros Luiz Fux, Rosa Weber, Marco Aurélio Mello e Celso de Mello).

Qual a polêmica? A possibilidade ou não de as aulas de Ensino Religioso nas escolas públicas terem um caráter laico ou confessional: no caso de serem laicas, seriam cursos que conjugariam história, filosofia e antropologia das religiões, com um caráter comparativo e científico; no caso de serem confessionais, seriam aulas ministradas por sacerdotes das várias religiões, mormente os cristianismos (católico, luterano e evangélicos de modo geral). Na opinião do Ministério Público Federal, que iniciou a ação em 2010, essa disciplina teria de ser laica, entendendo que a versão confessional feriria a laicidade do Estado e permitiria o proselitismo.

Qual a necessidade de inscrever na Constituição Federal a obrigatoriedade de lecionar uma disciplina qualquer?

A base para essa polêmica está na Constituição Federal de 1988, a que se segue, como consequência, a Lei 9.394/1996, a Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional (LDB): ambas citam expressamente a disciplina de “Ensino Religioso”, a ser ministrada nas escolas públicas nos horários regulares, embora com caráter facultativo. O que se deve notar é que a Constituição Federal de 1988 estabelece em seu artigo 19 – como uma de suas cláusulas pétreas – a impossibilidade de o Estado professar, apoiar ou obstar qualquer fé ou doutrina religiosa, o que consiste precisamente na laicidade do Estado. Mas, ao mesmo tempo, a única disciplina expressamente citada na Constituição, no artigo 210, é a de Ensino Religioso: nem Português, nem Matemática, nem História, Geografia ou qualquer outra goza desse monstruoso privilégio. Deve-se notar que, se houvesse a necessidade de citar na Constituição alguma disciplina obrigatória, ela deveria ser a Língua Portuguesa, que, afinal de contas, é definida como a língua oficial da República (artigo 13).

E é mesmo um privilégio. Afinal de contas, qual a necessidade de inscrever na Constituição Federal a obrigatoriedade de lecionar uma disciplina qualquer? Será que havia, ou há, algum medo de que, sem a imposição da força do Estado, a “religião” perdesse influência social e política? Ora, ninguém tem medo de que a língua portuguesa vá “perder influência” social no Brasil; ou, por outra, ninguém teme que a matemática se torne um conhecimento obsoleto: por esses motivos, ninguém se deu ao trabalho estapafúrdio de torná-las disciplinas constitucionalmente obrigatórias.

Mas por que é “monstruoso” esse privilégio? Porque ele se utiliza da força do Estado para impor aos estudantes (jovens e adultos) as doutrinas teológicas, conforme ensinadas e propaladas pelos respectivos sacerdotes. Sem dúvida alguma os ministros do STF que defenderam o ensino religioso confessional observaram, todos, que esse ensino não pode ser proselitista; entretanto, a esse respeito, ou os ministros são ingênuos ou são ignorantes. Embora a decisão do STF seja federal, a disciplina de Ensino Religioso deve ser oferecida e regulamentada pelas redes municipais e estaduais de ensino; nesse sentido, há estados brasileiros que estabeleceram um Ensino Religioso claramente confessional, com sacerdotes fazendo concursos públicos para serem professores: é o caso do Rio de Janeiro, que, sabidamente, há décadas é governado por evangélicos (de direita ou de esquerda, tanto faz). É certo que também há estados que definiram o ensino religioso em bases laicas, como no caso exemplar de São Paulo. Entre esses dois extremos, as unidades da Federação definiram diretrizes “pluriconfessionais”, sempre com a restrição que veda o proselitismo; todavia, o mais das vezes essa limitação é pura letra morta, com padres e pastores (ou seus epígonos) fazendo pregação em sala de aula à custa do erário. Isso, é claro, para não falar dos crucifixos onipresentes nas escolas, nas orações (cristãs) antes das aulas etc. Nesses termos, a ressalva de que o ensino religioso não deve ser proselitista deve ser entendida meramente como uma forma de os ministros do STF terem um mínimo de paz de espírito enquanto violam claramente a laicidade do Estado.

Antes de prosseguirmos na argumentação mais teórica, convém notar que o caráter confessional do ensino religioso exigirá dos estados e municípios sacerdotes de todas as religiões professadas pelos alunos. Ora, isso é completamente impraticável: nenhuma escola poderá perder tempo procurando sacerdotes de cada uma das religiões dos seus alunos. Problemas arquiconhecidos, como o absenteísmo dos professores, as questões salariais, a violência nas escolas, as instalações precárias, o baixo aproveitamento dos alunos e muitos outros ocupam à exaustão o dia a dia das escolas: a procura de sacerdotes é um incômodo que diretores e pedagogos das escolas não quererão ter. A consequência disso, sem dúvida, é que buscarão apenas dois ou três sacerdotes, provavelmente um padre católico e um pastor de alguma seita evangélica: alunos de outras religiões (incluindo aí os que não têm religião) serão forçados a aceitar a solução imposta pelo menor esforço. Esses sacerdotes, além disso, a despeito de suas divergências teológicas, organizar-se-ão em associações de professores de Ensino Religioso e passarão a atuar como grupos de pressão no sentido de tornarem-se funcionários públicos, como ocorre no Rio de Janeiro.

Do ponto de vista pedagógico, mesmo que seja “facultativo” o ensino religioso, e mesmo que se diga que ele não deve ser proselitista, o fato é que ele criará uma distinção profundamente danosa para os alunos, geradora de exclusão e preconceito – exatamente o oposto do que se pretende para a escola, pública ou não. Por que terá esses efeitos? Porque, como a maioria dos alunos é (nominalmente) cristã, alunos que professam outras doutrinas não participarão das atividades da maioria: se a preocupação com a aceitação coletiva é grande entre os adultos, entre crianças e adolescentes é gigantesca. Quem não participar das atividades da maioria será e sentir-se-á excluído, percebido como alguém “de fora”, que não participa da coletividade que é a turma. Em vez de integrar, haverá exclusão; para evitar essa exclusão, muitos alunos fingirão professar uma fé que, na verdade, não professam: hipocrisia institucionalizada e incentivada pelo Estado. Isso não é uma simples hipótese: é prática corrente em escolas do país inteiro; notícias de discriminação religiosa realizada entre alunos – quando não estimulada francamente pelos professores – são lidas todos os dias nos meios de comunicação.

Voltemos à argumentação dos ministros do STF. Os defensores do ensino religioso confessional consideraram que o modelo laico não seria apropriado devido a duas ordens gerais de motivos sociológicos: em termos históricos, o catolicismo teria tido uma importância central na formação do país, devendo-se valorizar e respeitar esse legado; em termos atuais, a maioria dos brasileiros é cristã ou, de qualquer maneira, professa alguma religião. Esses dois fatos estão vinculados e, sem dúvida, são verdadeiros: o problema consiste em deduzir deles qualquer política pública. Alguns ministros do STF disseram que a laicidade não pode ser entendida como a proibição das manifestações públicas dos valores religiosos; daí a defesa do ensino religioso confessional.

Ora, de fato, a laicidade não proíbe a manifestação pública dos valores e das práticas religiosas; bem ao contrário, é precisamente a laicidade que garante a liberdade às religiões quaisquer para manifestarem-se em público. A história do Brasil – que foi usada como esteio para a defesa canhestra do ensino religioso confessional – é a maior prova de que a laicidade é a garantia das liberdades: a primeira Constituição do Brasil foi a imperial, de 1824. Nela afirmava-se o catolicismo como a religião oficial, permitindo-se o exercício privado de outras religiões. O que significa o “exercício privado” de outras religiões? Os adeptos de outras crenças poderiam realizar seus cultos em suas casas; até poderiam ter seus próprios templos, desde que esses templos não tivessem o “aspecto exterior” de templos, ou seja, desde que não rivalizassem com as igrejas católicas. Além disso, os registros de nascimento, casamento e óbito, bem como a administração dos cemitérios, cabiam todos à Igreja Católica; apenas católicos podiam ser registrados como nascidos, casados e mortos, além de enterrados em cemitérios oficiais.

Valorizar a história não é o mesmo que a aceitar passivamente, como dão a entender os ministros da mais alta corte do país. Um exemplo banal, ainda que polêmico: em suas obras infantis, Monteiro Lobato expressou, por meio da Emília, ideias e valores que hoje chamamos de preconceituosas, denegrindo Dona Benta, que era negra. Embora haja diversos movimentos sociais favoráveis à exclusão desses belos livros das bibliotecas públicas, ou seja, a favor da censura, o mais correto é manter esses livros nas bibliotecas e nos currículos, ao mesmo tempo em que, nas salas de aula e nos textos que circulam pela sociedade, faz-se a contextualização das palavras da Emília, o reparo de que são palavras injuriosas etc. Aliás, o mesmo pode ser dito a respeito da Bíblia: nela há dezenas de passagens assustadoras, como apostas entre Deus e o diabo, o elogio da escravidão, do genocídio, da venda de filhos, do assassinato de primogênitos etc.; ou, então, com prescrições que hoje consideramos risíveis, como a impossibilidade de comer frutos do mar; mesmo as supostas mensagens de amor do essênio Jesus Cristo eram dirigidas aos seus irmãos judeus, tendo sido necessário que Paulo de Tarso (re)inventasse o mito de Cristo para que sua religião fosse propagada. Em suma: respeitar o papel histórico de Monteiro Lobato ou até da Bíblia e do catolicismo não equivale a aceitar suas observações como válidas perenemente.

O argumento demográfico é o mais perigoso e o mais especioso. Afirmar que a maioria da população brasileira é cristã, ou, de modo equivalente, que ela tem crenças “religiosas” é o primeiro passo para acabar com a laicidade, ou seja, para instituir a religião oficial de Estado: esse é o primeiro – na verdade, o único – argumento de quem é contrário à laicidade. Mas esse argumento estabelece que o mero peso numérico de uma determinada crença torna aceitável que ela seja imposta a todos os indivíduos em matérias de foro íntimo. Mais do que isso: esse raciocínio estabelece que o mero peso numérico de uma concepção estabelece a verdade, a realidade dessa concepção. Dessa forma, porque caso (digamos) 99% dos brasileiros acreditem que todas as maçãs são rosa-choque, o 1% restante também deverá necessariamente acreditar nisso. Em outras palavras, são as liberdades de pensamento e de expressão que estão em jogo aí: não é precisamente esse um dos argumentos do movimento “Escola sem Partido” (o fato contraditório de que esse movimento é favorável ao ensino religioso confessional diz bastante a seu respeito)? Afastando-nos um pouco do Brasil: não é exatamente esse o raciocínio dos líderes muçulmanos do Estado Islâmico, da Arábia Saudita e de outros lugares?

Valorizar a história não é o mesmo que a aceitar passivamente, como dão a entender os ministros da mais alta corte do país

 Assim, o que subjaz ao “argumento demográfico” é uma concepção profundamente equivocada do que significa o “governo pela opinião pública”. Essa concepção postula que a “opinião pública” é a mera soma aritmética dos humores individuais a respeito de algum assunto, em algum momento – e que tal soma tem valor normativo. Diga-se de passagem, esse mesmo raciocínio serviu de base para a recente e desastrada iniciativa de um ministro do Supremo Tribunal de Justiça para avaliar, na internet (!), o apoio popular a uma eventual intervenção militar na República.

Justamente ao contrário, o “governo pela opinião pública” consiste em que as ações dos governantes têm de se pautar pela moralidade humana e pela busca do bem comum, com políticas e valores universais, universalistas e includentes, assim como pelo diálogo com a sociedade. Sem dúvida que o escrutínio público contínuo das ações governamentais integra o “governo da opinião pública”, mas, como estamos vendo, a parte mais importante deste conceito consiste em que as diretrizes políticas dele decorrentes não ficam à mercê de humores momentâneos das disputas políticas, nem consistem em versões gigantescas do assembleísmo. A crítica à laicidade é feita justamente por intelectuais e grupos que, embora digam-se “populares” ou “progressistas”, na verdade são excludentes, particularistas e que buscam a obtenção do poder, para imporem seus valores.

Assim, a laicidade é um dos parâmetros fundamentais do “governo pela opinião pública”; como observamos antes, ela garante as liberdades de pensamento e de expressão e evita que questões de foro íntimo sejam impostas pelo Estado e/ou decididas pelo peso numérico dos demais concidadãos. Não é à toa que, integrando o artigo 19 da Constituição Federal de 1988, ela é uma cláusula pétrea da nossa pólis.

Face a isso, é claro que o ideal seria simplesmente suprimir da Constituição (e, por extensão, da LDB) a exigência de ensino religioso nos currículos das escolas públicas; mas, como isso é virtualmente impossível no Brasil atual, a solução menos daninha é, ou seria, implantar um ensino religioso laico. Como o STF decidiu em contrário, tendo à frente no clericalismo de Estado os ministros Cármen Lúcia e Gilmar Mendes, as perspectivas sociais e políticas que se descortinam para o país são as piores possíveis: é um completo desastre que se anuncia.


Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Teoria Política e sociólogo da UFPR.

07 outubro 2017

Foto de Miguel Lemos

Reproduzimos abaixo uma foto de Miguel Lemos (1854-1917), fundador da Igreja e Apostolado Positivista do Brasil e seu primeiro Diretor.

Infelizmente, não temos informação de quando é essa foto, nem por quem ela foi tirada. O original foi-me gentilmente cedido pelo meu amigo Hernani Gomes da Costa.



29 setembro 2017

Feriados nacionais na I República - inspiração positivista

A laicidade do Estado, a valorização dos seres humanos, a inclusão social, as concepções universalistas de sociedade são princípios importantes para que se realize no Brasil (como, aliás, em todos os países) os ideais de liberdade, fraternidade e eqüidade. 

Entretanto, a despeito disso, nos últimos vários anos esses princípios têm sofrido ataques reiterados dos mais diversos lados, a partir de intelectuais e grupos sociais que, embora digam-se "progressistas", são na verdade retrógrados, particularistas, autoritários e/ou excludentes.

Face a isso, vale a pena reproduzir abaixo o texto do Decreto n. 155-B, de 14 de janeiro de 1890, que instituiu os feriados nacionais. Como é possível perceber, são todos feriados de caráter cívico e humanista, festejando seja a união dos povos, seja a vida coletiva brasileira.

Convém notar que esse calendário de comemorações foi sugerido pelo vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil, Raimundo Teixeira Mendes, e levado à consideração do governo provisório da República pelo Ministro da Agricultura, Demétrio Ribeiro. Aliás, o mesmo procedimento foi adotado a respeito da lei de separação entre igreja e Estado, que se converteu no Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890.

Desde pelo menos 1930, entretanto, esse calendário de festividades vem sendo atacado, modificado - e pervertido e mutilado. Não por acaso, em 1930 assumiu o poder Getúlio Vargas, que tinha como um de seus apoios a Igreja Católica e diversos grupos que, depois, aproximar-se-iam do integralismo. Da mesma forma, há cerca de duas décadas o racismo oficial tem-se afirmado de diversas maneiras, também ganhando espaço na forma de feriados (ainda que, felizmente, sem haver - ainda - uma comemoração nacional do racismo).

Mantenho a grafia da época. Obtive o texto da coleção de leis mantida na internet pela Casa Civil da Presidência da República, mais precisamente aqui.

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O GOVERNO PROVISORIO DA REPUBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL, considerando:

que o regimen republicano basêa-se no profundo sentimento da fraternidade universal;

que esse sentimento não se póde desenvolver convenientemente sem um systema de festas publicas destinadas a commemorar a continuidade e a solidariedade de todas as gerações humanas;

que cada patria deve instituir taes festas, segundo os laços especiaes que prendem os seus destinos aos destinos de todos os povos;

DECRETA:

São considerados dias de festa nacional:

1 de janeiro, consagrado á commemoração da fraternidade universal;

21 de abril, consagrada á commemoração dos precursores da Independencia Brazileira, resumidos em Tiradentes;

3 de maio, consagrado á commemoração da descoberta do Brazil;

13 de maio, consagrado á commemoração da fraternidade dos Brazileiros;

14 de julho, consagrado á commemoração da Republica, da Liberdade e da Independencia dos povos americanos;

7 de setembro, consagrado á commemoração da Independencia do Brazil;

12 de outubro, consagrado á commemoração da descoberta da America;

2 de novembro, consagrado á commemoração geral dos mortos;

15 de novembro, consagrado á commemoração da Patria Brasileira.

Sala das sessões do Governo Provisorio, 14 de janeiro de 1890, 2º da Republica.

- Manoel Deodoro da Fonseca.
- Ruy Barbosa.
- Q. Bocayuva.
- Benjamin Constant Botelho de Magalhães.
- Eduardo Wanderkolk.
- Aristides da Silveira Lobo.
- M. Ferraz de Campos Salles.
- Demetrio Nunes Ribeiro.

04 setembro 2017

O Positivismo não é um otimismo providencialista

Na longa passagem abaixo Augusto Comte afirma com todas as letras que o Positivismo não é um otimismo providencialista; dito de outra maneira, o Positivismo considera que postular a naturalidade da ordem não é o mesmo que dizer que essa ordem é perfeita e impassível de alterações (em termos técnicos e morais). Isso se aplica à ordem natural e - Comte di-lo explicitamente - aplica-se ainda mais à ordem social: as sociedades, por serem extremamente complexas, são também mais imperfeitas. A maior complexidade aumenta também a possibilidade de modificação - o que, para Comte, está longe de ser uma compensação por suas imperfeições.

Logo após a citação textual há a tradução, de minha autoria.

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« Une semblable philosophie pourrait, sans doute, quelquefois conduire momentanément à un dangereux optimisme, comme j’en ai déjà franchement averti; mais cette aberration passagère ne pourrait avoir lieu que chez des esprits peu scientifiques, qu’un défaut naturel de précision, aggravé par une vicieuse éducation intellectuelle, doit rendre radicalement impropres à cultiver, avec aucun succès réel, une science aussi profondément difficile [la Sociologie]. Toute intelligence convenablement organisée et rationnellement préparée, digne, en un mot, d’une telle destination, saura bien éviter scrupuleusement de jamais confondre, en ce genre de phénomènes, pas plus qu’en aucun autre, cette notion scientifique d’un ordre spontané avec l’apologie systématique de tout ordre existant. Envers des phénomènes quelconques, la philosophie positive, d’après son principe fondamental des conditions d’existence, enseigne toujours, comme je l’ai souvent expliqué dans les volumes précédents [du Système de philosophie positive, t. I-III], que, dans leurs relations à l’homme, il s’établit spontanément, d’après leurs lois naturelles, un certain ordre nécessaire; mais sans jamais prétendre que cet ordre ne présente point, sous cet aspect, de graves et nombreux inconvénients, modifiables, à un certain degré, par une sage intervention humaine. Plus les phénomènes se compliquent en se spécialisant davantage, plus ces imperfections s’aggravent et se multiplient inévitablement; en sorte que les phénomènes biologiques sont surtout inférieurs, à cet égard, aux phénomènes de la nature inorganique. En vertu de leur complication supérieure, les phénomènes sociaux doivent donc être nécessairement les plus subordonnés de tous, en même temps qu’ils en sont aussi les plus modifiables, ce qui est loin de faire compensation. Si donc on considère, en général, la notion des lois naturelles, elle entraîne aussitôt l’idée correspondante d’un certain ordre spontané, toujours liée à toute conception d’harmonie quelconque. Mais cette conséquence n’est pas plus absolue que le principe d’où elle dérive. En le complétant par l’indispensable considération de la complication croissante des phénomènes, suivant la hiérarchie scientifique fondamentale établie au début de ce Traité, on complète aussi la conception de cet ordre, d’après l’accroissement simultané de son inévitable imperfection. Tel est, à cet égard, le véritable esprit caractéristique de la philosophie positive, sommairement rappelé ici dans son ensemble. On voit aisément combien il diffère profondément de cette tendance systématique à l’optimisme, dont l’origine est évidemment théologique, puisque l’hypothèse d’une direction providentielle, continuellement active dans la marche générale des événements, peut seule naturellement conduire à l’idée de la perfection nécessaire de leur accomplissement graduel. Il faut cependant reconnaître que, dans le développement fondamental de la raison humaine, la conception positive est primitivement dérivée du dogme théologique lui-même, dont elle constitue la régénération finale, comme pourrait le confirmer une exacte analyse historique: mais c’est essentiellement de la même manière que le principe des conditions d’existence découle originairement de l’hypothèse des causes finales, et que la notion philosophique des lois mathématiques était antérieurement issue du mysticisme métaphysique sur la puissance des nombres; l’analogie est pleinement identique en tous ces cas divers. Elle tient toujours à cette tendance nécessaire de notre intelligence à conserver indéfiniment ses moyens généraux de raisonnement, à quelque âge qu’ils aient été découverts, en les appropriant ensuite graduellement à ses nouveaux modes d’activité, d’après certaines transformations convenables, qui conservent à ces précieuses inspirations primitives du génie humain toute leur valeur essentielle, en l’augmentant même radicalement par une indispensable épuration, comme je l’ai indiqué, il y a longtemps, dans l’écrit [Plan des travaux scientifiques nécessaires pour réorganiser la société, de 1822] auquel j’ai déjà fait plusieurs allusions depuis le commencement de ce volume. Mais, en un cas quelconque, la moindre sagacité philosophique suffira pour faire aussitôt sentir les différences caractéristiques qui désormais séparent profondément le principe nouveau [i. e., l’esprit positive et relative] du dogme ancien [i. e., l’esprit téologique-métaphysique et absolut]. Au cas spécial que nous considérons ici, il est très clair que la philosophie positive, en indiquant la conformité spontanée de chaque régime politique effectif à la civilisation correspondante, afin que ce régime ait pu s’établir et surtout durer, enseigne aussi, d’une manière non moins nécessaire, que cet ordre naturel doit être le plus souvent fort imparfait, par suite de l’extrême complication des phénomènes. Bien loin donc de repousser, en ce genre, l’intervention humaine, une telle philosophie en provoque, au contraire, éminemment la sage et active application, à un plus haut degré que pour tous les autres phénomènes possibles, en représentant directement les phénomènes sociaux comme étant, par leur nature, à la fois les plus modifiables de tous, et ceux qui ont le plus besoin d’être utilement modifiés d’après les rationnelles indications de la science. Elle se réserve seulement la direction intellectuelle de cette indispensable intervention, dont elle circonscrit d’abord les limites nécessaires, soit générales, soit spéciales: sans en exagérer l’efficacité réelle, elle n’en interdit jamais l’usage que dans les seuls cas où il ne pourrait certainement constituer qu’une inutile consommation de forces suivant la même économie fondamentale qu’envers tous les autres phénomènes naturels, et surtout indépendamment de tout vain prestige quelconque, soit divin, soit humain. » 

(Augusto Comte, 1831, Système de philosophie positive, v. IV, 48è leçon, p. 273-276.)


“Uma semelhante filosofia poderia, sem dúvida, algumas vezes conduzir momentaneamente a um perigoso otimismo, como já francamente adverti; mas essa aberração passageira não poderia ter lugar senão entre espíritos pouco científicos, que uma falha natural de precisão, agravada por uma viciosa educação intelectual, deve tornar radicalmente impróprios para cultivar, com qualquer sucesso real, uma ciência tão profundamente difícil [a Sociologia]. Toda inteligência convenientemente organizada e racionalmente preparada, digna, em uma palavra, de uma tal destinação, saberá bem evitar escrupulosamente não confundir nunca, nesse gênero de fenômenos, não menos que em qualquer outro, essa noção científica de uma ordem espontânea com a apologia sistemática de toda ordem existente. A respeito de fenômenos quaisquer, a filosofia positiva, de acordo com seu princípio fundamental das condições de existência, ensina sempre, como com freqüência expliquei nos volumes precedentes [do Sistema de filosofia positiva, tomos I-III], que, em suas relações com o homem, estabelece-se espontaneamente, de acordo com suas próprias leis naturais, uma certa ordem necessária; mas sem nunca pretender que essa ordem não apresente, sob esse aspecto, graves e numerosos inconvenientes, modificáveis, em um certo grau, por uma sábia intervenção humana. Quanto mais os fenômenos complicam-se ao especializarem mais, mais essas imperfeições agravam-se e multiplicam-se inevitavelmente; de tal sorte que os fenômenos biológicos são sobretudo inferiores, a esse respeito, aos fenômenos da natureza inorgânica[1]. Em virtude de sua complicação superior, os fenômenos sociais devem então ser necessariamente os mais subordinados de todos, ao mesmo tempo que eles são também os mais modificáveis, o que está longe de ser uma compensação. Se, então, considera-se em geral a noção das leis naturais, ela implica também a idéia correspondente de uma certa ordem espontânea, sempre ligada a toda concepção de harmonia qualquer. Mas essa conseqüência não é mais absoluta que o princípio de que ela deriva. Ao completá-la pela indispensável consideração da complicação crescente dos fenômenos, seguindo a hierarquia científica fundamental estabelecida no início deste Tratado, completa-se também a concepção dessa ordem, de acordo com o crescimento simultâneo de sua inevitável imperfeição. Tal é, a esse respeito, o verdadeiro espírito característico da filosofia positiva, sumariamente evocado aqui em seu conjunto. Vê-se facilmente quanto ele difere profundamente dessa tendência sistemática ao otimismo, cuja origem é evidentemente teológica, pois somente a hipótese de uma direção providencial, continuamente ativa na marcha geral dos eventos, pode naturalmente conduzir à idéia da perfeição necessária de sua realização gradual. É necessário, todavia, reconhecer que, no desenvolvimento fundamental da razão humana, a concepção positiva é primitivamente derivada do próprio dogma teológico, de que ele constitui a regeneração final, como poderia confirmar uma exata análise histórica: mas é essencialmente da mesma forma que o princípio das condições de existência resulta originariamente da hipótese das causas finais e que a noção filosófica das leis matemáticas era anteriormente oriunda do misticismo metafísico sobre o poder dos números; a analogia é plenamente idêntica em todos esses casos diversos. Ela tem sempre essa tendência necessária de nossa inteligência a conservar indefinidamente seus meios gerais de raciocínio, em qualquer idade que eles tenham sido descobertos, ao apropriá-los em seguida gradualmente de seus novos modos de atividade, seguindo certas transformações convenientes, que conservam dessas preciosas inspirações primitivas do gênio humano todo o seu valor essencial, ao aumentá-lo mesmo radicalmente por uma indispensável depuração, como já indiquei, faz tempo, no escrito [Plano dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade, de 1822] ao qual já fiz diversas alusões desde o começo deste volume. Mas, em um caso qualquer, a menor sagacidade filosófica bastará para fazer logo sentir as diferenças características que doravante separam profundamente o princípio novo [o espírito positivo, relativo e histórico] do dogma antigo [o espírito teológico-metafísico e absoluto]. No caso especial que consideramos aqui, é bastante claro que a filosofia positiva, ao indicar a conformidade espontânea de cada regime político efetivo com a civilização correspondente, a fim de que esse regime possa ter-se estabelecido e sobretudo durado, ensina também de uma forma não menos necessária, que essa ordem natural deve ser o mais freqüentemente muito imperfeita, em decorrência da extrema complicação dos fenômenos. Bem longe, então, de repelir, nesse gênero, a intervenção humana, uma tal filosofia provoca, ao contrário, eminentemente a sábia e ativa aplicação, em um mais alto grau que para todos os outros fenômenos possíveis, ao representar diretamente os fenômenos sociais como estando, por sua natureza, ao mesmo tempo como os mais modificáveis de todos e aqueles que têm mais necessidade de serem utilmente modificados de acordo com as racionais indicações da ciência. Ela reserva-se unicamente a direção intelectual dessa indispensável intervenção, de que ela circunscreve inicialmente os limites necessários, seja gerais, seja especiais: sem exagerar a sua eficácia real, ela não interdita nunca o uso senão nos únicos casos em que não poderia certamente constituir senão um inútil consumo de forças de acordo com a mesma economia fundamental que a respeito de todos os outros fenômenos, sobretudo independentemente de todo vão prestígio qualquer, seja divino, seja humano”.

(Augusto Comte, 1831, Système de philosophie positive, v. IV, 48è leçon, p. 273-276.)



[1] A “complicação superior” e as idéias próximas a ela referem-se à escala das ciências abstratas estabelecidas por Augusto Comte desde o início de sua carreira. Essa escala é a seguinte: Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia e Moral. Da Matemática à Moral há um aumento progressivo de complexidade, uma diminuição progressiva de generalidade objetiva e um aumento progressivo de generalidade subjetiva. Entre 1822 e 1851 Augusto Comte parava a escala na Sociologia, que tinha, portanto, apenas seis degraus; a partir de 1852, no v. II do Sistema de política positiva, Comte acrescentou a Moral (que, por sua vez, dividia-se em duas ciências, a Moral Teórica e a Moral Prática), de tal sorte que a escala enciclopédica passou a ter sete degraus.

08 agosto 2017

Entrevista sobre o Positivismo: maçonaria, política, pseudociência, Brasil, mérito

Entrevista sobre o Positivismo


Entrevista eletrônica feita por Daniel Araújo, bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba (campus de Campina Grande), realizada em quatro partes: em 21.11.2016, em 30.11.2016, em 21.6.2017 e em 9.8.2017.
Após respondidas as questões, editei o conjunto de perguntas e respostas, organizando-o em três seções, a fim de torná-lo mais orgânico e didático: (I) “Sobre o Positivismo em geral”; (II) “Sobre o Positivismo no Brasil, maçonaria e política brasileira”; (III) “Sobre pseudociência”.

I – Sobre o Positivismo em geral


Boa tarde, Prof. Gustavo Lacerda – tudo bem? Vi seu trabalho na internet e seu Lattes. Estou estudando RI (Relações Internacionais, quase concluído), fazendo TCC sobre o primeiro ministério da república. Tenho algumas dúvidas importantes e gostaria da ajuda de um especialista. Independente disso, desde adolescente acho que o positivismo é muito ignorado nas escolas e gostaria de compreender melhor.

Minha pesquisa diz que quase todo o primeiro ministério da república brasileira era maçom, mas diz também que muitos desses maçons eram positivistas. Vi autores dizerem que o positivismo é de linha ateísta por obrigação, e outros dizerem que e agnosticista por sentido de libertação da religião (o que me pareceu mais correto), e segundo minha pesquisa, acreditar em algum criador é pré-requisito para ser aceito na maçonaria. Pode me explicar isso ou indicar alguma referência?

Uma observação preliminar: o que eu entendo por “Positivismo” é a doutrina elaborada por Augusto Comte, incluindo aí a chamada Religião da Humanidade. Há várias outras correntes chamadas de positivismo, isto é, autodenominadas assim ou chamadas dessa forma por críticos ou comentadores. O “positivismo lógico”, o chamado “positivismo” em RI e nas Ciências Sociais etc. – nada disso eu entendo por “Positivismo”, o que pode não ser o seu caso. (Um amigo meu, que também cursou RI (na Uninter, aqui em Curitiba), chegou à conclusão de que, no âmbito de RI, o Positivismo, de Comte, aproxima-se mais do “pós-positivismo” que do que se chama de “positivismo” nessa área.)

Uma mente livre que busque o ideal positivista pode usar alguns valores da religião cristã (ou mesmo de outras) ou necessariamente o indivíduo deve evoluir para um estado de agnosticismo por ser toda forma de religião uma forma de superstição e mitologia? Em seu blog, o senhor diz: “a emancipação em relação à teologia é condição necessária, mas é não é nem suficiente nem pode ser o estado permanente do ser humano”. Gostaria de entender melhor.

Antes de mais nada, o Positivismo não é um ateísmo. Por que não? Porque o ateísmo é uma negação de deus. Essa negação apresenta vários problemas:
1)      embora a idéia de deus (ou melhor, de deuses) não faça sentido em termos empíricos, isto é, embora a experiência prática reiteradamente indique que não há nada que se possa entender como intervenção divina na existência humana, ao mesmo tempo não há como provar que não há essa atividade subjacente.
2)      O ateísmo nega uma resposta – as divindades – mas mantém a pergunta: “de onde viemos?” ou “para onde vamos?”. O problema é que essas perguntas têm como resposta, no final das contas, a idéia de deus, que, como foi visto, não é defensável empiricamente, nem muito menos racionalmente (ou até moralmente).
3)      O ateísmo concentra-se em negar a idéia de deus, quando o que importa de fato para o ser humano é a valorização do ser humano como um ser histórico, social e moral, em que o desenvolvimento histórico permite e, em grandes linhas, conduz ao pacifismo, à atividade colaborativa e ao altruísmo.
4)      O ateísmo de modo geral conduz ao individualismo mais rasteiro, negando o caráter social do ser humano e, a partir daí, o seu caráter histórico.
O conjunto das observações acima indica que o Positivismo é um humanismo agnóstico. Isso significa, de modo mais prático, que a emancipação relativamente à teologia é uma condição, isto é, é uma etapa preliminar, mas não consideramos que o objetivo da emancipação seja negar a teologia, mas, muito mais, ela consiste em valorizar o ser humano. A lei dos três estados intelectuais (a sucessão dos modos de interpretar teológico, metafísico e positivo) indica isso: não se trata de negar a teologia e/ou a metafísica, mas de valorizar a positividade e, portanto, o ser humano.
Você usou a expressão “mente livre”: sociologicamente, isso não existe. Para o Positivismo, o que há como ideal é a positividade, que é o conhecimento da realidade moral, social e cósmica; o desenvolvimento do altruísmo e a orientação altruística do egoísmo; a atividade pacífica orientada para o melhoramento da condição humana.
Falei várias vezes em “historicidade do ser humano”: para o Positivismo, isso não quer dizer apenas que o ser humano desenvolve-se em um ritmo talvez próximo à idéia sociológica da path dependence, mas que há uma acumulação ao longo da história. Acumulação do quê? De experiências, de idéias, de valores e, é claro, de tecnologias e de riquezas. Mas é importante notar que, bem ou mal, só chegamos aonde estamos porque passamos pelas etapas anteriores. Em outras palavras, só é possível estarmos em uma sociedade mais positiva, mais fraterna, mais pacífica, porque atravessamos milênios e inúmeras sociedades e valores que nos orientavam para a teologia, para a guerra, para o particularismo. Mais do que isso: sem passarmos por essas etapas anteriores, não seria possível chegar aonde chegamos. Assim, por exemplo, só vivemos em uma época em que a idéia de humanidade é um princípio normativo em nível global porque, antes, passamos por associações familiares, depois citadinas (das cidades, das pólis), depois nacionais.
Sem querer voltar a essas experiências anteriores, é necessário que elas sejam respeitadas e valorizadas. Bem entendido, essa valorização não é um convite ao retorno a elas: não faz sentido, não é praticável e não é moral voltarmos a sociedades familistas (como as descritas por Fustel de Coulanges em A cidade antiga) quando nós vivemos em uma sociedade que almeja a humanidade e que tem instituições como a ONU para isso. Desse modo, a valorização é de caráter histórico ou até antropológico: não se trata de encarar essas sociedades como peças de museu, como coisas externas a nós mesmos, mas como etapas de nossa própria existência, a que podemos aceder subjetivamente para compreendê-las e, eventualmente, para utilizar aspectos positivos delas.
A partir dos valores e das idéias acima, o humanismo positivista respeita e valoriza o cristianismo, entendendo-o como uma etapa necessária na evolução específica do Ocidente. Além disso, mais que uma valorização abstrata, o Positivismo considera que o cristianismo permitiu durante a Idade Média a separação entre a igreja e o Estado, a emancipação e a valorização da mulher, a emancipação dos servos da gleba e um princípio geral de coordenação política – isso para não citar as obras artísticas. Trata-se, portanto, de uma valorização humanista, enfatizando os aspectos humanos do cristianismo; as questões teológicas são simples e resolutamente deixadas de lado (exceto como etapas do desenvolvimento intelectual).
Os humanistas, de modo geral, tendem a concordar com essas perspectivas do Positivismo. Os movimentos humanistas dos EUA, da Europa e da América Latina têm esse viés, como se pode ver, de certa forma, no livro do Christopher Hitchens, Deus não é grande. Em contraposição – e confirmando o que observei no início desta resposta -, os ateus apresentam um comportamento bastante agressivo e destruidor, de modo geral rejeitando sem maiores considerações a história humana e adotando um racionalismo cru, individualista e anistórico.
(Sobre a concepção de historicidade no Positivismo, publiquei há pouco um capítulo no livro Curso livre de teoria política, lançado pela editora Appris e intitulado “Violência e política em Comte”.)

Posso encontrar alguma semelhança entre positivismo e socialismo?

Sim, embora seja necessário definir o que é “socialismo”. Hoje em dia nós entendemos por essa palavra, basicamente, alguma forma de marxismo, em que também é necessário distinguir o socialismo do comunismo. Na época de A. Comte, o socialismo eram as doutrinas que, depois, Marx chamaria de “socialismos utópicos”.
Há vários elementos próximos: valorização da historicidade e da fraternidade, respeito ao proletariado e às mulheres, preocupação com os problemas materiais das sociedades. Assim, o próprio Comte observava que há uma aproximação grande especialmente em termos afetivos. Mas, ao mesmo tempo, há importantes aspectos divergentes: o socialismo enfatiza os aspectos materiais – econômicos e políticos – em detrimento dos morais, preferindo fazer reformas econômicas e/ou políticas, ou mesmo “revoluções”, de modo geral à força, a fazer as necessárias mudanças morais prévias. Além disso, o socialismo prefere a igualdade à liberdade, de modo que se torna opressor (quando não violento) para impedir que as diferenças sociais desenvolvam-se e sejam reguladas. Por fim, o socialismo é contra o Estado e a propriedade privada, ao contrário do Positivismo: no que se refere a esses dois elementos, o Positivismo considera que eles são necessários, que eles são socialmente inescapáveis, mas que, ao mesmo tempo, eles devem ser socialmente regulados, isto é, o uso da riqueza e da propriedade deve atender a critérios sociais e o Estado não pode ser nem autoritário nem pode impedir que suas decisões sejam discutidas ou mesmo criticadas.
Os comentários acima, como eu observei, foram feitos por Augusto Comte em relação ao que ele chamava de socialismo, mas podem ser aplicados sem muita dificuldade ao que se chama, atualmente, de socialismo.
O livro A Sociologia de Augusto Comte, de Jean Lacroix, tem um capítulo dedicado a isso (você encontra-o com facilidade na Estante Virtual). Além disso, eu tratei de muitas dessas questões em alguns artigos meus, reunidos no livro Teoria Política positivista (que só é vendido em versão eletrônica: https://www.amazon.com.br/Teoria-pol%C3%ADtica-positivista-Filosofia-Positivismo-ebook/dp/B00H0ENRLS/ref=sr_1_2?ie=UTF8&qid=1479764280&sr=8-2&keywords=gustavo+biscaia+de+lacerda).

O senhor tem uma opinião pessoal, ou a igreja positivista tem alguma posição, sobre o socialismo (crítica ou elogiosa)?

A minha opinião pessoal segue muito a do Positivismo, ou seja, a proposta por Augusto Comte e indicada acima. A ela é necessário acrescentar o que a experiência histórica indicou-nos: que o comunismo – ou seja, o regime praticado inicialmente na União Soviética e a partir dela em vários outros países – é um regime totalitário e liberticida, ou seja, tirânico. Da mesma forma, não se pode deixar de lado as ações terríveis que os comunistas desenvolveram no Ocidente ao longo do século XX e que foram analisadas em inúmeras ocasiões pelo Raymond Aron e, mais recentemente, pelo François Furet e pelo Tony Judt.

Maquiavel teria um lugar de destaque entre positivistas?

Não tem – pelo menos, não uma posição de “destaque”. Evidentemente, os positivistas conhecem o livro O príncipe e é possível que os eruditos conheçam outras obras do florentino, como os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio ou A mandrágora. Mas o que importa notar são dois aspectos. Em primeiro lugar, no Sistema de filosofia positiva, Augusto Comte faz uma rápida referência a Maquiavel, em tom bastante crítico, no sentido de que ele (Maquiavel) fez algumas observações bastante interessantes, mas que ignorou, ou melhor, desconheceu o caráter da política moderna. Qual seria esse caráter? A progressiva pacificação das relações sociais e políticas. As reflexões de Maquiavel, embora tenham por meta serem aplicadas à Itália de sua época (séculos XV e XVI), claramente se baseiam nos modelos práticos e mentais da Antigüidade clássica, em particular na de Roma: uma leitura direta de O príncipe, dos Discursos e também A arte da guerra evidenciam-no sobejamente.
Maquiavel tem sido celebrado nas últimas décadas como um dos fundadores da Ciência Política moderna – se não o próprio fundador. A observação de Augusto Comte indica a direção contrária: ele não fundou a Ciência Política moderna, na medida em que, dirigindo-se para o presente, tinha os olhos postos no passado, não no futuro.
Em contraposição, Augusto Comte concede um lugar de grande importância para Thomas Hobbes, que ele associa a Aristóteles: esses dois pensadores é que teriam sido os fundadores da Ciência Política, ou melhor, da Sociologia Estática. Enquanto o conjunto da obra de Aristóteles estabeleceu o princípio de que a sociedade consiste na separação dos ofícios e na convergência dos esforços – do que se deduz a existência da sociedade civil e do governo –, Hobbes evidenciou que o fundamento do poder Temporal (ou seja, do que chamamos habitualmente de “governo”, ou de “Estado”) é a força física – o que é um complemento fundamental ao princípio de Aristóteles e sugere a necessidade do poder Temporal (baseado na força física e que regula os atos) separado do poder Espiritual (baseado no aconselhamento e que regula as idéias e os valores).
As obras políticas e morais de Aristóteles são primorosas; por exemplo: a sua Constituição de Atenas, descoberta no final do século XIX, é uma obra de Ciência Política que não deve nada a ninguém, mesmo hoje em dia. Já o princípio de Hobbes, que Augusto Comte considerava o único passo decisivo na constituição da Sociologia Política desde a obra de Aristóteles, evidentemente é a verdadeira origem da idéia imputada erroneamente a Max Weber sobre o fundamento do Estado. (A originalidade de Weber, a respeito, consiste apenas em dar uma roupagem economicista ao princípio de Hobbes, ao afirmar que o Estado busca deter o monopólio da força física.)

O positivismo diria que a humanidade tem dificuldade para suportar o clímax, ou algo próximo deste, e por isso sempre ocorre alguma ruptura, regresso, ou destruição de tudo o que foi conquistado (tal como ocorreu com grandes civilizações, mesmo a Europa durante o contexto de surgimento do positivismo)?

Eu não diria que a humanidade não sabe lidar com o “clímax” – mesmo porque é necessário definir o que seria esse “clímax”. Agora, sem dúvida alguma, é mais ou menos fácil perceber que todas as sociedades precisam de objetivos coletivos e que a busca da realização desses objetivos é fonte de organização e disciplina. (É importante ver que, para o Positivismo, “disciplina” não é o mesmo que “disciplina militar” ou “ordem policial”: tem mais a ver com valores compartilhados, com regras de conduta pública e privada etc.) A ausência de objetivos coletivos, necessariamente de longo prazo, conduz à desorientação moral e política; essa ausência pode ocorrer pela realização dos objetivos ou pela sua ausência pura e simples.
No que se refere ao “contexto do surgimento do Positivismo”, havia metas coletivas mais ou menos claras em todo o Ocidente: o desenvolvimento da sociedade, no sentido do progresso moral, material, político. O que ocorria era a dificuldade de uma nova ordem social estabelecer-se em meio às ruínas da antiga ordem: a Revolução Francesa foi um dos grandes indícios disso, as disputas havidas durante o século XIX podem (e devem) ser entendidas assim e, bem vistas as coisas, o longo conflito social, político e econômico da “II Guerra dos 30 Anos” (ou seja, o período que vai de 1914 a 1945) é a etapa final desses esforços.

Como o positivismo trata justamente dessa evolução e procura entender essa necessidade constante de mudança, como interpretar o desejo de destruição aparente em certos momentos? Isso é uma resposta violenta e instintiva ao fato de não conseguirmos mudar de modo mais brando?

Para o Positivismo, o instinto destruidor integra a natureza humana; nesse sentido, ele pode ser estimulado ou reprimido, da mesma forma que ele pode ser orientado para fins altruístas ou fins egoístas. Certamente, momentos ou situações em que os anseios de mudança vêem-se constrangidos exasperam as tendências destruidoras do ser humano: sublevações, revoluções, revoltas estão aí para comprová-lo. O que o Positivismo diria, adicionalmente, é o que o bom senso sugere: as mudanças fazem parte da vida e, no caso de serem justas, corretas e necessárias, há que se proceder a elas.
Convém notar, por outro lado, que a inteligência orienta a ação prática e informa os sentimentos: há inúmeras teorias filosóficas, sociológicas e psicológicas que estimulam a violência, a revolta etc. O fascismo, o nazismo, o comunismo, diversas formas de socialismo e inúmeras teorias da democracia claramente defendem as virtudes e as belezas da violência.
Há momentos em que a confusão social permite a afirmação da violência: o surgimento e o desenvolvimento do fascismo evidenciam-no bastante. O fascismo surgiu do socialismo radical; durante e após a I Guerra Mundial, o elogio da violência passou da extrema esquerda para a extrema direita e desgraçadamente isso se tornou um objetivo coletivo, capaz de organizar as massas e dar vazão aos ressentimentos resultantes da I Guerra e do processo de modernização (no caso, da Itália). A Igreja Católica, aliás, de maneira desprezível, abriu mão de seu papel de orientadora de consciências em favor do poder político e da possibilidade de impor pela força do Estado seus dogmas (isso se realizou por meio do Tratado de Latrão e, depois, das inúmeras concordatas): por esse motivo, a Igreja desde o início e sempre apoiou o regime fascista.
Em suma: há momentos em que as pressões sociais acabam vendo a violência como uma forma de satisfazer suas necessidades ou de dar vazão aos seus anseios. A solução normativa para isso é conhecida: a “cultura da paz”, a rejeição da violência, o entendimento de que as mudanças ocorrem – e o estímulo do altruísmo e do relativismo.

II – Sobre o Positivismo no Brasil, maçonaria e política brasileira


Existiram mesmo positivistas maçons no primeiro ministério da república? Isso é possível?

O primeiro ministério republicano tinha oito pessoas:
1)      Marechal Deodoro;
2)      Aristides Lobo;
3)      Rui Barbosa;
4)      Benjamin Constant;
5)      Eduardo Wandenkolk;
6)      Campos Salles;
7)      Demétrio Ribeiro;
8)      Quintino Bocaiúva.
Dessas oito pessoas, eram positivistas apenas Benjamin Constant e Demétrio Ribeiro. O gaúcho Demétrio Ribeiro não era maçom; talvez Benjamin Constant tivesse sido, embora eu não tenha certeza.
(Dependendo de quem fala, é possível considerar Quintino Bocaiúva um positivista; isso me parece errado – o que não quer dizer que ele não tenha eventualmente sido influenciado pelo Positivismo, mais ou menos como todos os seus contemporâneos.)
Se tiver interesse, acabei de lançar um livro sobre a ação dos positivistas ortodoxos na I República, especialmente a respeito da separação entre igreja e Estado (Laicidade na I República brasileira, pela Appris.)

Um maçom disse-se que, contanto que o indivíduo não seja ateu, ele pode ser maçom. Mas como uma sociedade que mistura tanto misticismo e que nesse sentido parece ir na contramão de um ideal como o positivismo que busca cada vez mais racionalismo podem se confraternizar dessa forma?

A literatura católica costuma enfatizar o eventual viés maçom do início da República no Brasil. A impressão que tenho é que isso se deve a pelo menos duas ordens de motivos: (1) o catolicismo é contra a maçonaria (tendo sido essa sociedade secreta condenada pela bula Quanta Cura); atribuir um caráter maçom aos republicanos – que, afinal de contas, acabaram com a religião de Estado e combateram os privilégios católicos no Brasil – é uma forma de os católicos “demonstrarem” uma espécie de vileza da República. (2) Na França, efetivamente, as lojas maçônicas foram importantíssimas para o estabelecimento da República – bem entendido, da III República, em 1870, tendo também apoiado as medidas laicizantes da década de 1880 e, depois, a lei da separação entre igreja e Estado de 1905. Como os positivistas foram importantes lá e como muitos positivistas franceses eram efetivamente maçons, faz-se uma associação para o caso brasileiro. Mas importa notar que, na França, não eram apenas os positivistas que eram maçons: eram-no também católicos, livre-pensadores, socialistas e protestantes.
Não sou eu quem vai discutir a doutrina maçônica, especialmente com um maçom. Todavia, o que eu já ouvi de alguns maçons é que não se trata de rejeitar o ateísmo, mas de aceitar um “poder superior”: nesse caso, há espaço para interpretações. As concepções positivistas de “Humanidade” (que é o nosso Grão Ser) e de “leis naturais” constituem, sem dúvida alguma, uma forma de poder superior, mas sem o caráter absoluto e místico das teologias e/ou das metafísicas. Na França de meados do século XIX havia uma famosa loja maçônica chamada “Filosofia Positiva” e os positivistas (heterodoxos, é verdade) Émile Littré e Jules Ferry foram membros dela. Aliás, tornou-se famoso o discurso de ingresso de Jules Ferry na maçonaria, em que ele fez profissão de fé no Positivismo e no republicanismo[1].

Getúlio Vargas e JK eram positivistas em suas formas de governo? Vi vários textos na internet afirmando isso.

No que se refere a Getúlio Vargas, essa é uma afirmação bastante comum. Isso é um problema grande, que apresenta um elemento ainda maior de interpretação subjetiva. Evidentemente, Getúlio Vargas nasceu, cresceu e fez carreira em um ambiente marcadamente positivista, como era o Rio Grande do Sul da I República, com a constituição estadual de 14 de Julho, elaborada por Júlio de Castilhos. Nesse ambiente ele seguramente absorveu elementos positivistas, como a proteção social ao trabalho e aos trabalhadores, o apoio do Estado ao desenvolvimento econômico e até um certo nacionalismo. Todavia, nem o corporativismo nem o autoritarismo são positivistas; o corporativismo foi influência da legislação fascista italiana, assim como o autoritarismo. Aliás, convém notar que não existiu “um” governo Vargas, mas diversos: 1930-1932; 1932-1934; 1934-1937; 1937-1945 – e, depois, 1951-1954. Quando se fala em “influência positivista sobre Getúlio Vargas”, costuma-se considerar que a Era Vargas (1930-1945) foi um período inteiriço e marcado pelo autoritarismo, o que é errado e dificulta a análise.
A Constituição de 1891 sofreu grande influência do Positivismo. Entretanto, a década de 1920 assistiu a crises políticas e sociais constantes, em que o arranjo jurídico-político de 1891 foi posto em questão. De modo mais específico, as críticas eram contra as oligarquias, mas também contra o liberalismo da I República: nisso, havia concordância entre tenentes, comunistas e fascistas. Ora, por diferentes caminhos, foram esses os grupos que apoiaram Getúlio Vargas entre 1930 e 1945. Basta pensar que o Estado Novo foi instaurado por militares fascistas (Góes Monteiro, por exemplo) com o apoio de notórios autoritários (Francisco Campos, por exemplo): todos eles eram também declarados inimigos do Positivismo.
No caso de JK, isso é novidade para mim. É claro que o caráter “positivista” de seu governo depende da pessoa que afirma esse caráter. Em todo caso, o bisavô da minha esposa era positivista e da Marinha e quase foi ministro de JK – mas, nesse caso, creio que era um apoio mais pessoal que “filosófico”. (Aliás, esse mesmo positivista referia-se a Góes Monteiro como “Gás Morteiro”, querendo com isso dar a entender que não gostava dele – e, nesse caso específico, havia também um forte elemento de rejeição do Positivismo da parte de Góes Monteiro, o que é bastante significativo.)

O positivismo ainda tem alguma influência em algum nível sobre os militares brasileiros, incluindo o regime militar que por aqui passou?

Não tem nenhuma influência atual, nem teve no regime militar. Atribuir o regime de 1964-1985 ao Positivismo é um recurso bastante comum e uma ligação bastante fácil: como os militares que proclamaram a República eram positivistas, eles iniciaram uma tradição golpista que se repetiu em 1930, 1945 e até 1964. O problema disso é que os militares positivistas eram contrários ao militarismo; além disso, já na década de 1920 diversos líderes militares – entre os quais se destacava Góes Monteiro – opunham-se politicamente ao Positivismo, bem como condenavam fortemente a influência do Positivismo sofre o Exército, que, a par dos ensinamentos de Benjamin Constant, de Miguel Lemos e de Teixeira Mendes, era a favor da civilização dos militares e da sociedade. Dessa forma, logo antes e ainda mais após a I Guerra Mundial, houve profundas reformas no Exército, cujo resultado prático foi eliminar delas a tradição positivista. Ora, tanto os patrocinadores dessas reformas quanto os militares resultantes delas foram os articuladores da tradição golpista e intervencionista dos militares nas décadas seguintes. Há um longo artigo do José Murilo de Carvalho, intitulado “As Forças Armadas na República: o poder desestabilizador” (ou alguma coisa assim) que não deixa dúvidas a respeito dessas questões.

Existe a possibilidade de surgir algum partido positivista no Brasil? Sempre tenho a impressão de que o positivismo tem algo ainda por acrescentar ao Brasil.

No que se refere a um partido político positivista, eu acho bastante difícil. Laicidade do Estado e republicanismo como projeto político, que são temas básicos do Positivismo, não encontram guarida efetiva em nenhum partido brasileiro e são poucos os grupos sociais que desejam defendê-los, mesmo apesar de haver partidos que se dizem “republicanos”. Outros aspectos do Positivismo político são incorporados de diferentes maneiras pelos partidos: presidencialismo, Estado ativo, incorporação do proletariado.
Mas é necessário notar que, de acordo com as propostas de Comte, a função primordial do Positivismo é constituir-se como pólo da opinião pública; nesse sentido, ele deve(ria) ser o que se chama atualmente de “movimento social”.
Quanto a contribuições para a política brasileira, se você olhar o meu blogue, há algumas reflexões nesse sentido, motivadas principalmente devido às manifestações dos últimos anos. Essas reflexões são um pouco gerais, mas, creio, evidenciam que o Positivismo tem, sim, o que oferecer para os debates públicos e, portanto, para a política nacional.

O movimento integralista sofreu alguma influência do positivismo (além dos movimentos fascistas europeus)? O que o positivismo diria sobre os integralistas de Plínio Salgado?

Bem, isso é bastante simples e direto de responder: não, não sofreu. O Positivismo considera o fascismo um movimento retrógrado e reacionário, que é contrário às liberdades públicas, é clericalista e teológico, que prega a xenofobia e que adota a violência como instrumento básico da política. Em tudo e por tudo, é um movimento contrário às características da política moderna, conforme entendida por A. Comte: humanista, pacífica, fraterna, com vistas à forte cooperação internacional. Os comentários que fiz acima sobre Getúlio Vargas, creio, evidenciam o quanto o Positivismo afasta-se do integralismo em particular e do fascismo de modo geral. Um pequeno fato pode ilustrar também essa distância: o Hélgio Trindade, que é o autor do estudo mais importante sobre o integralismo, redigido ainda nos anos 1970, volta e meia vai a atividades culturais e políticas promovidas pela Igreja Positivista de Porto Alegre; ele mesmo não é positivista, mas, sem dúvida alguma, se ele recusasse o Positivismo ou, no caso, se considerasse o Positivismo alguma coisa próxima ao fascismo, com certeza não iria a tais eventos.
Agora, infelizmente, na história das idéias, intelectuais e grupos políticos apropriam-se de elementos de pensadores do jeito que bem entendem. Assim, na França, o líder do movimento de direita Action Française, Charles Maurras, afirmava que extraía de Comte alguns elementos de seu pensamento político para seu movimento de extrema direita; mais exatamente, a definição de ordem, a valorização dos sentimentos e da Idade Média. A Action Française foi antidreyfusista e era xenófoba e monarquista, o que, por si só, evidencia o quanto ela era distante do Positivismo. Mas as afirmações de Maurras acabaram infelizmente vinculando Comte a essa direita.
Por outro lado, felizmente, ao mesmo tempo – embora seja bem menos conhecido -, outros intelectuais de esquerda e/ou dreyfusistas baseavam-se em Comte: o exemplo mais notório e importante é Alain (seu nome era Émile-Auguste Chartier, mas era conhecido apenas pelo pseudônimo “Alain”). Da mesma forma, a III República francesa – que sofreu a oposição de Maurras e da Action Française – foi obra de políticos fortemente inspirados pelo Positivismo ou claramente positivistas, como nos casos de Jules Ferry, Émile Littré e Léon Gambetta.

O que o senhor (ou o positivismo) diria, se o pudesse fazer, a todos os brasileiros nesse momento conturbado de nossa história? Seria algo como: “Não se deixe levar pelas paixões” ou “Administre bem suas paixões”? Ou algo diferente, e o que seria?

É uma boa questão. Ou melhor, é uma excelente questão. Parece-me que vivemos em um período que combina crise institucional com crise de valores (ou seja, de “cultura política”); ambos os problemas estão estreitamente relacionados, embora tenham, cada qual, sua dinâmica própria.
O mais profundo é a crise de valores, que acaba refletindo-se na crise institucional. Sente-se que há uma desvinculação entre a sociedade e os governantes (em que se deve incluir aqui não apenas o poder Executivo, mas também o Legislativo, o Judiciário e o Ministério Público). Para além do problema de “representação” – em que, supostamente, a sociedade não se vê “representada” nos governantes –, há uma desmoralização geral com a atividade política.
Não me parece correto dizer que a “representação” é tão falha quanto dizem: a quantidade de grupos mobilizados na sociedade civil brasileira é enorme e esses grupos elegem os seus representantes. Há “bancadas” legislativas para tudo: teológicos, mulheres, homossexuais, professores, servidores públicos, grandes empresários, produtores rurais etc. Esses deputados cobram do Executivo políticas específicas; da mesma forma, inúmeras políticas públicas são definidas a partir de parâmetros específicos elaborados em comitês, comissões, pareceres etc.
A sensação de distanciamento entre a sociedade civil e o Estado, assim, deve-se à sensação generalizada de que o Estado está a serviço não da coletividade, mas de particularismos – sem dúvida alguma a começar pelos particularismos dos agentes do próprio Estado (juízes, promotores, parlamentares), mas também os particularismos dos grupos sociais organizados (ruralistas, evangélicos, católicos, homossexuais, feministas etc.).
Nesses termos, há uma pujança da sociedade civil, que não se vê refletida no Estado; mas, por outro lado, a própria sociedade civil adota valores contrários ao espírito público. “Espírito público”: essa expressão lembra “república” – e, daí, lembra “deveres”. Em última análise, a pujança social – não apenas no Brasil, mas no Ocidente como um todo e, a partir daí, para o resto do mundo – baseia-se na concepção de “direitos”, ou seja, de prerrogativas específicas e particularistas, que são cobradas em favor de indivíduos ou grupos sobre o resto da sociedade. Falta espírito público, falta a concepção de “deveres”, isto é, de responsabilidades compartilhadas, de responsabilidades de cada indivíduo e de cada grupo em benefício dos demais.
Há alguns anos eu li um artigo de introdução às políticas públicas, redigido em uma universidade pública federal; a definição básica das políticas públicas era justamente esta: “ampliação e cobrança dos direitos”. Assim, para concluir a resposta à questão: se fosse para eu aconselhar os brasileiros, eu diria isto: “preocupem-se menos com os seus direitos, que representam particularismos, e cumpram e cobrem os deveres, compartilhados e relativos ao conjunto da sociedade”.
Além disso, de modo mais prático, é importante refrear as paixões, adotar o espírito positivo (real, útil, relativo, histórico, simpático) e rejeitar completamente os meios violentos (brigas, confrontos, golpes etc.).

Ainda falta “Amor” na bandeira do Brasil, ou precisamos antes cuidar do que está lá?

Não é que falte o “Amor” na bandeira nacional brasileira: o “Ordem e Progresso” corresponde a uma fórmula política por si só, ao afirmar a necessidade de constituir uma política que una de maneira radical a ordem e o progresso, sem antagonizar essas duas aspirações. Aliás, essa fórmula deveria ser implantada em todas as bandeiras do mundo, a começar pelas ocidentais.
O “Amor” deve ser inserido na frase completa – “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim” – quando o conjunto da sociedade (brasileira, no caso) tornar-se positivo e positivista.
No início de 2013 publiquei um pequeno artigo na Gazeta do Povo, em que comento a suposta ausência do “Amor” em nossa bandeira nacional; reproduzo-o abaixo.
Ordem e progresso – e o amor?[2]
Recentemente, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) manifestou apoio à proposta do deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ) de incluir a palavra “amor” na frase “Ordem e progresso”, da bandeira nacional. Essa proposta é simpática, ao afirmar a importância do “amor”, mas apresenta vários equívocos.
As justificativas para a mudança, em poucas palavras, são as seguintes: o “amor” integra a frase do filósofo positivista francês Augusto Comte (1798-1857) “o amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”; entretanto, o autor do símbolo, Raimundo Teixeira Mendes, teria simplesmente deixado de lado o “amor”. Com isso, para Alencar as propostas de Comte teriam sido deformadas. Já Suplicy afirma que a influência do militar Benjamin Constant Botelho de Magalhães teria sido a responsável por essa ausência e que, no século 21, um “novo paradigma” se impõe, valorizando a solidariedade e combatendo-se as violências.
Mas nem Benjamin Constant nem Teixeira Mendes tiraram nenhuma palavra da frase original; ambos seguiram a sugestão de Comte. A frase completa sintetiza uma densa filosofia moral, política, histórica e religiosa; já “Ordem e progresso” é um programa político, com dois ideais mais ou menos compartilhados por todos os cidadãos.
O senso comum opõe a ordem ao progresso, mas Comte propunha a união e a superação dos dois termos, considerando que “a ordem é a base do progresso” e o “progresso é o desenvolvimento da ordem”: as condições sociais básicas de educação, moradia, respeito, inclusão etc. (“ordem”) devem ser satisfeitas para que a sociedade avance (“progresso”). Mais: o progresso deve ser entendido em vários sentidos: material, físico, intelectual – e sobretudo moral e afetivo, como o desenvolvimento do altruísmo, da fraternidade, do respeito, da paz universal.
O amor, para Comte, era pressuposto da ordem e resultado do progresso; mas, enquanto “ordem” e “progresso” opõem-se e disputam a primazia em detrimento um do outro, não há nem ordem nem progresso – que se dirá amor.
Essas ideias foram defendidas no século 19, como projeto político para o Brasil. Tinham validade em 1889 (na Proclamação da República) e têm agora, em 2013. Quais as propostas que Benjamin Constant e Teixeira Mendes defendiam? A paz universal, o respeito aos trabalhadores, a dignidade do trabalho, a laicidade do Estado, as liberdades individuais e coletivas. Tais ideias foram promovidas com grande intensidade entre 1881 e 1927 (quando Teixeira Mendes morreu); mas de 1930 em diante Getúlio Vargas rejeitou-as todas, com sua tirania civil apoiada pela Igreja Católica.
Assim, “Ordem e progresso” não é uma deturpação da proposta de Comte, nem foi desvirtuada por obra de militares. As ideias subjacentes a ela não são um “novo paradigma” a ser criado, mas um “paradigma antigo” a ser resgatado. A despeito dos desvios autoritários e/ou revolucionários que o Brasil viveu no século 20, oscilando entre “ordem” e “progresso”, parece que neste início do século 21 volta-se às propostas de Comte, honrando-se, mesmo que sem o saber e cometendo-se equívocos, as memórias de Benjamin Constant e Teixeira Mendes.

Qual seria o maior desafio de um primeiro-ministro positivista se eleito para um eventual, mesmo que remoto, retorno da monarquia?

Decretar a república presidencialista, com conteúdo social.

III – Sobre pseudociência


A ignorância aparentemente injustificada, que abraça a pseudociência (tanto na internet quanto nas universidades), seria um comportamento instintivo das massas (que assim como as mulheres), estimularia o surgimento de respostas mais coerentes?

A despeito dos discursos pós-modernos, que elogiam o ultra-relativismo, o fragmentário e as incoerências, o fato é que o ser humano busca, sim, concepções (1) gerais e (2) coerentes da realidade; nesse sentido, as pessoas buscam concepções sintéticas. A difusão das pseudociências revela ao mesmo tempo o prestígio que a ciência possui e a busca dessas concepções sintéticas; mas, por outro lado, os cientistas não fazem muita questão de estimularem concepções sintéticas, nem de fazerem divulgação científica de verdade. Também é necessário ver que, desde fins do século XIX, as concepções científicas tornaram-se cada vez mais exotéricas, de difícil compreensão pelos vulgos. Ao mesmo tempo, muitas concepções científicas têm suas próprias exigências intelectuais, ou seja, exigem um preparo teórico e filosófico que não é simples: basta ver as milhares de concepções “quânticas”, que são uma forma disfarçada (ou até escancarada) de misticismo.
Em suma: as pseudociências em si indicam um traço da natureza humana que exige satisfação; tal satisfação tem que ser fornecida pelo espírito positivo (altruísta, relativo, histórico, sintético) em um processo pedagógico contínuo. (Perceba que a educação, para o Positivismo, não é somente a instrução intelectual: a educação é a cultura moral, prática e intelectual, no sentido do altruísmo, do relativismo, do espírito positivo.)

Vemos nas redes sociais coisas como:
Defesa cega de teorias anticientíficas (Terra plana, ETs que nos deram a tecnologia do micro-chip e construiram as pirâmides), ou o desejo de uma terceira guerra mundial (onde inclusive já se escolhe de forma entusiasmada os atores do conflito por quem irão torcer). E mais recentemente, cresce um desejo do que parece já ser o plano de base para algo “novo” que deva substituir o velho sistema (atual) republicano: o retorno da monarquia.
Sabemos que a humanidade esqueceu mais de uma vez que a Terra é redonda, ou deixou-se perder grandes períodos de progresso (muitas vezes por superstições primitivas demais para seu estágios de evolução, ou decisões injustificadas como a queima da frota chinesa que desbravava o mundo a muitos séculos). Ainda hoje não se sabe como Filippo Brunelleschi construiu seu Duomo da cúpula de uma igreja em Florença, e isso foi apenas em 1290 d.C (mas ninguém ainda teve coragem de atribuir a ETs. Quem sabe Illuminati e coisa do tipo um dia...), mas ETs projetaram as pirâmides de uma sociedade que acabou. Sempre o cinema se diverte destruindo cidades e tudo o mais que a civilização produziu de mais moderno, e nos sentimos bem com isso. Igrejas lotam em épocas de milenarismos, etc. Jovens que não encontram nada mais empolgante ou desafiador se aventuram no Estado Islâmico buscando atividades de homens, e uma valorização que a sociedade não lhe de (temos aí um componente bem biológico de demonstração de vigor reprodutivo).
O socialismo falhou várias vezes por não permitir o surgimento de ideias mais individuais, sufocou a criatividade em nome do controle do Estado, enquanto o positivismo vê o mérito e é cauteloso quando se trata de mexer na ordem social, defendendo, porém, sempre o direito à educação e qualificação de todos (fornecendo assim potencial para o surgimento da evolução por mérito individual). Ainda assim nunca conheci um jovem empolgado com o positivismo.

Como o positivismo veria esse desejo instintivo de que algo oculto nos controla, e que algo ou alguma “verdade” está lá fora? Ou mesmo que algo que conhecemos bem (como o Estado) nos controle?

Essas teorias que atribuem o desenvolvimento da humanidade a extraterrestres, a civilizações subterrâneas etc. revelam ao mesmo tempo ignorância e a mistura de tendência mística com uma certa forma de egoísmo intelectual, de orgulho e vaidade: o pertencimento a grupos exclusivos, que detêm “a” “Verdade” é sempre motivo de profunda vaidade e uma sensação disfarçada de poder (ou potência). Também há ignorância nisso – e, mais uma vez, orgulho: é mais fácil acreditar nas teorias da conspiração que entender a dinâmica social (que, por si só, é extremamente e cada vez mais complexa). Solução para isso? Mais uma vez: espírito positivo e educação durante toda a vida.
No que se refere à mudança da ordem social, à “timidez” positivista etc., isso é outro mito político-acadêmico. É muito bom que os marxistas e os “revolucionários” de diferentes tons difundam esse gênero de idéia; assim, eles reservam para si todo o progressivismo. No final das contas, é uma forma de desinformação, praticada desde o século XIX por Marx e do século XX por Lênin (e seus continuadores) contra todos os seus inimigos. Em vez de argumentar com os outros e disputar idéias e valores no mesmo âmbito, o mais fácil é desqualificar o adversário – aliás, antes disso, deve-se transformar o adversário em inimigo.
O Positivismo não é tímido quanto a mudanças sociais; mas, por outro lado, é contra as “revoluções”, ou o mito marxista da revoluções, seja porque elas implicam violência, seja porque mudanças profundas não são nunca mudanças rápidas, seja porque a sociedade não é plástica no grau e no sentido pretendido pelos marxistas. Infelizmente, o mito da revolução associou-se tanto à idéia de “progresso”, ao longo do século XX, e opôs-se tanto e com tanto sucesso à idéia de “ordem”, que é virtualmente impossível hoje em dia falar em “progresso” sem se pensar no marxismo e em revolução. Todos saímos perdendo com isso.
No que se refere aos méritos individuais, isso enseja toda uma outra reflexão. As sociedades modernas não são sociedades de castas; logo, o lugar de cada um na sociedade não é dado pelo nascimento: esse é um dos motivos por que as monarquias são relíquias que devem ser extintas. Se não há mais castas, como organizar as atividades sociais? Por meio da seleção de capacidades individuais – o que, em termos contemporâneos, corresponde à meritocracia. Repito: em termos históricos, a alternativa à meritocracia é a definição de atribuições e oportunidades pelo berço, sejam quais forem os nomes e os parâmetros que se dê ao berço (“sangue”, “raça”, casta, ordem social etc.).
Evidentemente, o “mérito” individual varia segundo uma infinidade de fatores: país, família, classe social etc. Augusto Comte era o primeiro a reconhecer esses fatores e a lamentá-los, tendo clareza de que com freqüência esses fatores não conduzem os melhores talentos aos cargos que ocupam. Isso gera problemas da gestão dos recursos coletivos (pois muitas vezes os cargos – públicos ou privados – são ocupados por indivíduos incapazes) e também problemas individuais (pois as pessoas capazes veem-se preteridas). Não há solução simples para isso; o que se deve fazer é qualificar os servidores e manter um sistema permanente de seleção e valorização dos servidores (públicos e privados; “civis” e “políticos”); ao mesmo tempo, é necessário que também se respeite os ocupantes dos órgãos (afinal, um ocupante pode ser medíocre e as reclamações contra ele podem ser justas; mas o ocupante também pode – e deve ser – competente, correto etc. e, nesse caso, as reclamações servem apenas para incomodar).

O que o positivismo diria a um professor com doutorado em alguma grande universidade do Brasil, que divulga a ideia pseudocientífica da Terra plana?

Ter diploma universitário, doutorado e ser professor não são garantias nem de conhecimento nem de integridade intelectual. Além disso, convém notar que alguém pode ter diploma em, digamos, Direito e arrogar-se a capacidade de discutir, digamos, Física Quântica, propondo, por exemplo, coisas como “Direito Quântico”. (Evidentemente, esse exemplo não é gratuito.)
Da mesma forma, há áreas universitárias menos especializadas que outras, há áreas que fornecem um treinamento intelectual mais cuidadoso que outras e assim por diante. Finalmente, convém notar que não são raros os casos em que as pessoas passam pelos bancos universitários, mesmo de cursos que exigem raciocínios técnicos rigorosos, mas que não tiram as consequências filosóficas dos conhecimentos hauridos, preferindo entendê-los mais como meras técnicas que como descrições da realidade. Assim, há pessoas que acreditam piamente nas intervenções divinas, mesmo tendo estudado metodologia científica e filosofia das ciências: isso é mais comum nas Ciências Humanas, nas Artes e nas “Ciências Sociais aplicadas” (Direito, Administração, Contabilidade), mas também se vê nas Ciências Naturais.
Por outro lado, é necessário notar que o Brasil é um país laico e que, aos trancos e barrancos, não temos doutrina oficial de Estado (ou não deveríamos ter). Nesses termos, cada um pode acreditar no que quiser.
Dito isso, professores doutores universitários que acreditam na Terra plana são uma combinação de problemas, pois misturam ignorância, teorias da conspiração (“a alunissagem em 1969 foi uma filmagem da CIA”), falsa criticidade e apego a teologias. No caso do apego às teologias, é notável que a Terra plana seja defendida, neste início de 2017, tanto por alguns católicos (seguidores do astrólogo Olavo de Carvalho) quanto pelos muçulmanos fundamentalistas da Arábia Saudita: é uma criticidade tola e dirigida contra a ciência moderna, que desde o século XV e cada vez mais ganha terreno sobre a teologia. (No caso saudita, ou melhor, muçulmano, há também o elemento de “crítica ‘decolonial’” ou “pós-colonial” ou antiocidentalista – mesmo que os muçulmanos, até mais ou menos o século X da nossa era, também tenham contribuído poderosamente para a ciência.)

E o que o Positivismo diria aos espectadores desses divulgadores?

Se fosse possível aconselhar algo, com um espírito de concórdia, eu diria o seguinte: “Abandonem o radicalismo político e o absolutismo filosófico; entendam a realidade cósmica da Terra em termos de sua situação universal e não em termos das disputas políticas em que uma determinada cosmologia possa ser empregada contra outras ‘cosmologias políticas’. Da mesma forma, adotem o relativismo filosófico próprio ao humanismo, em que o bem-estar de todos é o objetivo coletivo, buscando a ordem e o progresso, tendo por base o amor”.
Mas também deveria dizer aos cientistas e aos professores universitários: “Façam divulgação científica de boa qualidade, abandonando as várias metafísicas pseudo e para-científicas (no caso das Ciências Humanas, com os pós-modernismos e as “revoluções comunistas”) e os linguajares abstrusos; façam uma divulgação científica com caráter filosófico e de instrução popular. Mais importante que difundir as teorias científicas (e elas são importantes, não há dúvida), é disseminar os traços do espírito positivo, como definido por Augusto Comte: realidade, utilidade, relativismo, historicidade, organicidade, simpatia”.




[1] Esclarecimento feito pelo correligionário gaúcho Érlon Jacques: “no rito “francês” ou “moderno” basta o indivíduo aceitar um “princípio criador”, como o big bang por exemplo. Não necessita a crença em um “deus”. O rito francês sofreu grande influência do Positivismo de Augusto Comte”.
[2] Publicado na Gazeta do Povo (Curitiba), em 15.1.2013. Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/ordem-e-progresso--e-o-amor-66ux6i0vfzzt3sywxws6bjkob. Acesso em: 19.9.2017.