17 outubro 2016

Brasil atual: má concepção de ordem impede o progresso

Eu evito usar o meu blogue para comentar problemas estritamente atuais, com exceção daqueles relacionados à laicidade do Estado. Adoto essa medida para evitar uma polarização que não me interessa e também para não me enredar nas disputas políticas cotidianas, que com freqüência descambam para dicotomias políticas e intelectuais superficiais e equívocas - em suma, por serem contrárias ao espírito do Positivismo.

Todavia, no presente caso quebrarei essa regra. A situação política, social e econômica do Brasil é extremamente grave; mas - devido às disputas políticas a que me referi acima, a que se juntam as campanhas eleitorais para as prefeituras municipais do país - as medidas propostas pelo governo legítimo para sanear o Estado e permitir que o país volte a andar nos trilhos têm sido combatidas pelas "esquerdas", o que é o cúmulo da hipocrisia, da irresponsabilidade e da demagogia.

Assim, os comentários abaixo servem para múltiplos propósitos: (1) para expressar minha opinião; (2) para combater a irresponsabilidade política e econômica das esquerdas, que daqui a vários anos será cobrada por mais esse desserviço ao país; (3) para evidenciar que o Positivismo é uma teoria política e social adequada à orientação prática.


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O mais irritante nos "debates" atuais é ter que ouvir a "esquerda" dizer-se "progressista".

A "esquerda" simplesmente não define o que é o progresso e/ou simplesmente assume que o progresso equivale a "socialismo". Isso degrada pelas duas vias a idéia de progresso, para prejuízo de todos.

Augusto Comte definiu o progresso como a consolidação e o desenvolvimento da ordem; assim, para que haja progresso, é necessário que as condições mínimas da ordem sejam garantidas. Ou, dito de outra maneira: permitir que as condições da ordem ocorram é progresso.

A "esquerda" é em sua quase totalidade marxista, mas também é anarquista e, nas últimas décadas, também pós-moderna. Todos esses grupos sempre tiveram uma imensa imaginação e profunda má-fé para interpretarem a definição clara de Augusto Comte do "progresso como desenvolvimento da ordem" como sendo "progresso capitalista" e "desenvolvimento e consolidação do status quo". (Basta ler-se quase qualquer manual de história, de Sociologia ou de Filosofia para encontrarem-se essas idiotices, escritas principalmente entre os anos 1960 a 1980, mas ainda hoje repetidas.)

Mais uma vez: isso é e sempre foi uma profunda imaginação marcada por má-fé, isto é, por mau-caratismo. Bastaria que esses "esquerdistas" lessem a obra de Augusto Comte, dos positivistas e examinassem com um pouco de... honestidade a ação dos positivistas. Mas nada disso seria possível, como (ainda) não é, na medida em que a esquerda assume as concepções leninistas e/ou gramscianas de luta de classes teórica e ideológica. Assim, o que não é "esquerda" ou "proletário" é necessariamente "burguês", portanto, "antiesquerda" e "antiproletário" - e, assim, tem que ser combatido, por quaisquer meios. (A moralidade, a honestidade, a correção - tudo isso é "preconceito burguês".) Basta ler Lênin, Gramsci ou seus discípulos brasileiros, de qualquer tempo - incluindo aí os seus discípulos contemporâneos, acadêmicos e/ou partidários.

Na situação atual do Brasil, a ordem social, política e econômica está em... desordem. O Estado em profunda crise fiscal, a inflação mais uma vez subindo, o desemprego mais uma vez subindo. A "esquerda", dizendo-se "progressista", combate as medidas políticas e econômicas necessárias para reverter esse quadro calamitoso, afirmando tratar-se esse combate de manutenção de "conquistas". Quais conquistas? Violento desequilíbrio orçamentário, inflação, desemprego gigantesco? Aparelhamento do Estado, descrédito da política, degradação das empresas públicas?

Para piorar, importa lembrar que foi essa mesma "esquerda" que:

(1) a despeito do apoio tardio e mais ou menos conveniente, combateu as medidas que, décadas atrás, corrigiram os problemas do país (com o Plano Real e com a Lei da Responsabilidade Fiscal e para não falar da eleição de Tancredo Neves (que não era grande coisa, mas, enfim, era o possível), da Constituição de 1988 e do governo de Itamar Franco) e

(2) aparelhou o Estado brasileiro, quebrou a Petrobrás, escangalhou o orçamento federal, praticou as pedaladas fiscais e o "orçamento criativo" e implantou a desastrada "nova matriz econômica".

Em suma: que é do "progresso social", nesse quadro? Como é possível qualquer progresso, com essa desordem causada pela "esquerda"? O único "progresso" que a "esquerda" consegue conceber, aí - e que é o único progresso por que ela interessa-se de fato - é o progresso das sua instrumentalização do Estado e da sociedade, "contra o capitalismo" e "a favor do socialismo".

Nesse quadro, aliás, não é nada espantoso que a população fique cansada e desiludida e que a "direita" ressurja - a direita raivosa, truculenta, favorável à ação dos coturnos (sejam dos militares, sejam dos neonazistas); a direita reacionária, que freqüenta cultos teológicos e que gostaria de que voltássemos à Idade Média católica ou ao consistório genebrino (de que se orgulhava Rousseau, aliás); a direita neoliberal, que prega o "Estado mínimo".

Mais uma vez, é o que Augusto Comte dizia: enquanto não se conjugar de fato a ordem com o progresso; enquanto não se entender a ordem como as condições para o progresso e o progresso como o desenvolvimento da ordem, o que haverá é o vaivém entre uma ordem reacionária e um progresso anárquico.

06 outubro 2016

Livro "Curso Livre de Teoria Política: Normatividade e Empiria"

Está à venda o livro "Curso Livre de Teoria Oolítica: Normatividade e Empiria". É uma coletânea organizada por mim, por Renato Perissinotto e por José Leon Szwako e publicada pela editora Appris.

Entre os vários capítulos, há a minha contribuição específica, intitulada "Política e violência no Positivismo de Augusto Comte".

O livro é um pequeno manual de Teoria Política, permitindo reflexões e oferecendo sugestões para pesquisas teóricas e empíricas.


Livro "Laicidade na I República Brasileira: Os Positivistas Ortodoxos"

Está à venda o livro "Laicidade na I República Brasileira: Os Positivistas Ortodoxos", de minha autoria e publicado pela editora Appris.

O livro aborda a atuação dos positivistas ortodoxos brasileiros - Raimundo Teixeira Mendes em particular - em favor da separação entre igreja e Estado no Brasil, ou seja, em favor da laicidade.

Modestamente, é uma das mais importantes contribuições para a história da laicidade e para a história do Positivismo no Brasil.


Raimundo Teixeira Mendes

República de Portugal - busto comemorativo

A bela imagem abaixo representa a República de Portugal, implantada em 5 de outubro de 1910. A imagem tradicional da República - na forma de u'a mulher com cabelos soltos e longos e um colo um pouco exposto - é chamada, desde a Revolução Francesa (1789) e a I República Francesa (1792) de Marianne, ou Mariana.

Infelizmente, não tenho informações sobre o autor desse busto nem sobre a data de sua composição. De qualquer maneira, a imagem foi obtida por intermédio de Ricardo Alves e Luís M. Mateus, da Associação República e Laicidade, de Portugal, cujo nome é extremamente simpático e autoexplicativo.




05 setembro 2016

Painel Internacional para o Progresso Social

Reproduzo aqui uma postagem inicialmente publicada no blogue de Simon Schwartzman em 3 de setembro de 2016 (o original pode ser lido aqui).

O tema - o progresso social - evidentemente apresenta relações íntimas com o Positivismo, com as idéias de Augusto e com as práticas de todos os positivistas, ainda que o Painel em si não tenha sido iniciativa dos positivistas, mas do economista indiano Amartya Sen. Daí a reprodução da sua chamada neste blogue.

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O IPSP é uma ambiciosa iniciativa um grande número de cientistas sociais de todas as disciplinas, coordenados por um Conselho Consultivo internacional presidido por Amartya Sen, de pensar os grandes problemas sociais do século XXI e propor soluções e caminhos, baseados das contribuições das ciências sociais.  As informações sobre o painel, organizadores e participantes dos 22 grupos de trabalho constituídos para discutir os diversos temas estão disponíveis no site do painel neste link. Reproduzo abaixa versão em português do manifesto de lançamento do IPSP, publicado no Le Monde em junho de 2016.   A versão preliminar do documento que está sendo produzido pelo IPSP está sendo aberta na internet para discussão e pode ser vista neste link, e todos estarão convidados a participar e opinar.
Manifesto Pelo Progresso Social
O mundo contemporâneo está sob tensão. Enfrentamos uma rápida aceleração de crises na economia, sociedade, política, cultura, ambiente, assim como nos padrões morais das pessoas. Estamos diante de um mundo que é instável, imprevisível e, assim cheio de ansiedade – uma ansiedade que ameaça a paz e a coesão social. Isto é alimentado pela falta de perspectivas e oportunidades para grandes segmentos da população, tais como os trabalhadores pouco qualificados, os jovens sem emprego, os migrantes e refugiados.
A precariedade e a insegurança real ou percebida, o aumento das desigualdades estruturais que por sua vez geram uma forte redução da mobilidade social intergeracional, afetam hoje uma grande maioria da população mundial.
Frente a esses desafios, o que vemos? Os partidos políticos tradicionais não oferecem nenhuma perspectiva atraente e se concentram na gestão das restrições financeiras existentes, escondendo sua impotência em um discurso focado em questões morais ou questões sociais de menor importância (ou seja, o aborto, o véu muçulmano, etc).
As incertezas e disfunções na condução das políticas públicas nacionais são agravadas pela cooperação cada vez menor nos organismos internacionais (por exemplo, a Organização Mundial do Comércio ou da União Europeia). No pior dos cenários, isso pode resultar na volta ou surgimento de formas alternativas, autoritárias ou populistas, de governo. A ausência de uma visão positiva de longo prazo leva a políticas inadequadas. Os movimentos de protesto que abalam as elites nos países desenvolvidos ( “occupy”, Indignados, Nuit Debout) ou que derrubaram ditaduras nos países emergentes (Primavera Árabe) têm dificuldade em encontrar idéias que motivem e unam as pessoas e formem estruturas organizadas em torno de programas consistentes.
Há uma escassez de alternativas, e políticos que se aproveitam da ira popular para explorar a instabilidade sem oferecer perspectivas sérias. Para enfrentar coletivamente estes muitos desafios, ativistas e formuladores de políticas precisam ter ferramentas para compreender a evolução das economias e sociedades, os obstáculos que impedem a identificação e / ou a implementação de soluções duradouras e que ameaçam o bem comum, e as possibilidades de transformação, com a riscos associados.
Somos mais de 300 pesquisadores em ciências humanas e sociais em todo o mundo, que tomaram a iniciativa de responder a esta necessidade oferecendo uma contribuição colegiada singular no coração dos debates públicos. Nos reunimos no Painel Internacional sobre o Progresso Social (www.ipsp.org) para produzir coletivamente um relatório sobre as iniciativas que podem conduzir as instituições e e tomadores de decisão na direção de sociedades mais justas nas próximas décadas.
Todas as disciplinas estão incluídas: história, economia, sociologia, ciência política, direito, antropologia, o estudo da ciência e tecnologia, filosofia. Nos últimos vinte anos, vários painéis internacionais de especialistas foram criados para avaliar o conhecimento científico disponível sobre vários temas de interesse para o futuro de nosso planeta: alterações climáticas, biodiversidade, poluição química, segurança alimentar, ou a proliferação nuclear. Nós somos o primeiro painel a assumir o desafio de progresso social.
Por que um painel tão grande? Desenvolvimentos consideráveis em ciências sociais e humanas ocorreram nos últimos trinta anos, e resultaram em uma melhor compreensão do que o progresso social pode servir e, mais criticamente, como alcançá-lo. Estes desenvolvimentos importantes coincidiram com uma especialização crescente do conhecimento dentro e entre as disciplinas, e uma diversificação das perspectivas culturais regionais em um mundo onde as instituições, os níveis de desenvolvimento e as dinâmicas de crescimento estão mudando rapidamente. Tornou-se impossível para um pesquisador individual, ou um pequeno grupo de especialistas, sintetizar o conhecimento acumulado por diferentes disciplinas. Produzir uma síntese desse conhecimento que seja acessível aos agentes políticos e sociais locais, nacionais e transnacionais, requer um grande esforço como o que estamos desenvolvendo, reunindo as análises de um grupo transnacional de especialistas representativos de disciplinas, gêneros e culturas.
Na primeira parte do relatório, vamos considerar as transformações socioeconômicas, explorando as perspectivas de crescimento e restrições ambientais, as desigualdades, o futuro do trabalho, a urbanização, mercados, empresas e do estado de bem-estar. A segunda parte vai considerar os principais desenvolvimentos das políticas públicas, questionando o futuro das instituições democráticas, o Estado de direito, organizações transnacionais, governança global, os conflitos e a gestão de crises e da violência, e o papel dos meios de comunicação e formas de comunicação. Finalmente, a terceira parte será dedicada às transformações de culturas e valores, religiões, famílias, saúde e a manipulação da vida e da morte, bem como as transformações em identidades e relações sociais. A grande escopo do relatório nos permitirá propor uma perspectiva sistêmica da evolução das sociedades nas diferentes partes do mundo.
A principal mensagem a sair deste trabalho será positiva e pró-ativa. Existem oportunidades consideráveis que podem melhorar a condição humana, em quase todo o mundo. É possível erradicar a pobreza preservando o meio ambiente, viabilizar o estado de bem-estar social atacando as desigualdades de renda originárias dos mercados, liberar as políticas públicas das pressões financeiras e democratizar as decisões econômicas que determinam o destino das populações. No entanto, para alcançar essas oportunidades, temos de encontrar caminhos e superar obstáculos e resistências consideráveis. Acreditamos que uma visão dessas oportunidades, abraçada pelos cidadãos e agentes de mudança, pode contribuir para o surgimento de uma dinâmica de progresso social.
Pode um grupo diversificado produzir uma mensagem forte? Muitas vezes ouvimos que as ciências humanas e sociais discordam entre si todo tempo. Para evitar essa armadilha, nosso painel apresentará com honestidade pontos de concordância e controvérsia. Nsso painel é, em si mesmo, um experimento sobre a capacidade das ciências humanas e sociais de desempenhar um papel central na promoção concreta do progresso social. Além disso, durante o processo, ofereceremos uma plataforma com a finalidade de gerar comentários e debates públicos. Os especialistas dos governos, ONGs, think tanks, os representantes da sociedade civil e todos os cidadãos interessados são convidados a reagir à primeira versão do relatório que será colocada on-line e acessível a todos, de julho a dezembro de 2016, em www.ipsp.org. Essa interação nos permitirá permanecer tão conectados quanto possível aos grandes debates de nosso tempo.
Pode nosso painel pretender, com legitimidade, aconselhar a sociedade? A ciência moderna foi construída com a promessa de contribuir para a melhoria da espécie humana e o progresso das sociedades. Muitas esperanças foram cumpridas, mas outras permanecem cruelmente à espera de sua realização. No início do século XXI, as sociedades ainda estão sujeitas a guerras, violência, o terrorismo; desigualdades consideráveis, antigas e novas, corroem os vínculos sociais; desafios à manutenção do nosso ambiente sustentável atingem uma escala sem precedentes. A ambição do nosso painel, composto por cientistas reconhecidos, não é impor uma contribuição especializada e unilateral, mas para ajudar a estimular e nutrir um grande debate sobre o futuro das sociedades humanas e reavivar a dinâmica do progresso social.

03 setembro 2016

Gazeta do Povo: "Burquíni, liberdade de costumes e liberdades políticas"

Artigo de minha autoria, publicado na Gazeta do Povo em 3 de setembro de 2016. O original pode ser lido aqui.

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Burquíni, liberdade de costumes e liberdades políticas



À primeira vista, pode ser estranho discutir no Brasil o uso, a proibição e a liberação do “burquíni” na França, pois seria esse um problema francês e não brasileiro. Mas esse problema envolve questões que também dizem respeito, direta e indiretamente, ao Brasil: convém refletir a respeito do tema para, na medida do possível, evitarmos as dificuldades d’além-mar.

Criou-se o burquíni para permitir que as muçulmanas de mais estrita obediência frequentem a praia, com liberdade de movimento. O nome é uma combinação de “burca” com “biquíni”; rigorosamente não se trata da burca, que cobre o corpo inteiro, mas do xador, que cobre o corpo com exceção da face. Burca, xador e outras peças da indumentária feminina islâmica seguem o hijab, o código de vestimentas; ele visa a garantir a modéstia das mulheres no trajar, que varia segundo a interpretação específica do Islã e o país. Note-se que o burquíni deixa mãos e pés à mostra e muitas mulheres arregaçam as mangas, evidenciando o antebraço.

Na França, muitas cidades costeiras proibiram o uso do burquíni; logo após as proibições, essas municipalidades voltaram atrás e permitiram esse traje. As proibições foram adotadas devido ao temor de que o burquíni conduzisse à – ou se constituísse na – afirmação do extremismo religioso muçulmano. Para isso, valeram-se de leis nacionais, como a de 2010 que proíbe o uso da burca e a de 2004 que proíbe o uso ostensivo de símbolos religiosos em espaços especificamente públicos. Em todo caso, é necessário lembrar que a França tem sido alvo de atentados de radicais islâmicos: desde o massacre do Charlie Hebdo até o caminhão de Nice, passando pelos ataques de novembro de 2013 em Paris.

Primeira questão: a proibição do burquíni foi correta? Como as praias são espaços de lazer e quem as frequenta o faz em caráter particular e ainda, no caso do burquíni, mostrando o rosto, não é sustentável afirmar nem a segurança pública nem a laicidade para proibir. Assim, parece-nos que proibir o burquíni foi errado e suspender a proibição foi acertado.

Segunda questão: como entender o uso do burquíni? Ele foi criado para as muçulmanas aproveitarem um espaço de lazer; deixando à mostra mãos, pés e até antebraços, e sendo uma roupa colada ao corpo, pode ser visto como uma feliz concessão de certas seitas islâmicas para o Ocidente. Inversamente, o burquíni é um item estranho aos hábitos ocidentais, motivado por instituições e valores contrários aos ocidentais: seria uma islamização da Europa? Aí está o problema com o burquíni. As opções acima não são excludentes e, no momento, não há como decidir qual é a correta historicamente: o que fazer?

Não tenho a menor simpatia pelo burquíni e desagradam-me as instituições e correntes muçulmanas que reafirmam o caráter teocrático do Islã. Se o diálogo intercivilizacional é importante e necessário, que seja para aumentar a liberdade, não para diminuí-la. A filósofa Catherine Kintzler observa que o burquíni pertence ao âmbito privado (logo, não se trata de laicidade), mas refere-se à liberdade das mulheres e aos valores políticos compartilhados: o burquíni indicaria a submissão das mulheres e o seu afastamento da esfera pública; em última análise, ele é sinal de um tipo específico de Islã, o totalitário. É uma questão cultural, não jurídica: tem de ser combatido, não proibido. Isso dá o que pensar.


Gustavo Biscaia de Lacerda é pós-doutor em Teoria Política e sociólogo da UFPR.

29 agosto 2016

Opúsculos da Igreja Positivista disponíveis na internet

A Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Unesp - tem uma biblioteca digital. No acervo dessa biblioteca há diversas publicações da Igreja Positivista do Brasil, que indico abaixo, juntamente com os vínculos para acesso aos documentos.

Essa relação apresenta livros de Augusto Comte e também de Raimundo Teixeira Mendes; além deles, há uma obra de Condorcet ("Meios de aprender a contar") e de Clotilde de Vaux (correspondência e obra literária).

Entre os livros de Comte, estão o "Sistema de filosofia positiva" (indicado abaixo como "Cours de philosophie positive"), o "Discurso sobre o conjunto do Positivismo" e o "Discurso sobre o espírito positivo".

Já entre as obras de Teixeira Mendes estão disponíveis os dois volumes da imponente e importante biografia de Benjamin Constant Botelho de Magalhães, fundador da República brasileira.

Comte, Augusto & Vaux, Clotilde. 1916. Clotilde de Vaux, née Marie, et Auguste Comte. Le positivisme, esquisse d'un tableau de la fondation de la religion de l'humanité. Rio de Janeiro: Temple de l'Humanité. Disponível aqui.

Comte, Augusto & Vaux, Clotilde. 1916. Clotilde et Comte, très saints fondateurs de la religion de l'Humanité. Rio de Janeiro: Temple de l'Humanité. Disponível aqui.

Comte, Augusto. 1877. Cours de Philosophie Positive. Paris: J.-R. Baillière. Disponível aqui.

Comte, Augusto. 1896. Testament d’Auguste Comte. Paris: Fonds Typographique. Disponível aqui.

Comte, Augusto. 1907. Discours sur l’ensemble du positivisme. Paris: Société Positiviste Internationale. Disponível aqui.

Comte, Augusto. 1923. Discours sur l'esprit positif. Paris: Société Positiviste Internationale. Disponível aqui.

Condorcet, Jean-Antoine-Nicolas de Caritat. 1903. Moyens d'apprendre à compter sûrement et avec facilité. Rio de Janeiro: Apostolat Positiviste du Brésil. Disponível aqui.

Teixeira Mendes, Raimundo. 1894. Benjamin Constant: esboço de uma apreciação sintetica da vida e da obra do fundador da República Brasileira. V. 1. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil. Disponível aqui.

Teixeira Mendes, Raimundo. 1899. Uma visitas aos lugares santos do positivismo. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil. Disponível aqui.

Teixeira Mendes, Raimundo. 1903. O culto católico. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil. Disponível aqui.

Teixeira Mendes, Raimundo. 1907. Christianisme, théisme et positivisme. Rio de Janeiro: Église Positiviste du Brésil. Disponível aqui.

Teixeira Mendes, Raimundo. 1907. L'Esprit et la lettre chez Auguste Comte. Rio de Janeiro: Église Positiviste du Brésil. Disponível aqui.

Teixeira Mendes, Raimundo. 1913. Benjamin Constant: esboço de uma apreciação sintetica da vida e da obra do fundador da República Brasileira. V. 2. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil. Disponível aqui.

Teixeira Mendes, Raimundo. 1913. Évolution originale d'Auguste Comte. Rio de Janeiro: Apostolat Positiviste du Brésil. Disponível aqui.

Teixeira Mendes, Raimundo. 1914. Pour l'humanité! Rio de Janeiro: Temple de l'Humanité. Disponível aqui.


Teixeira Mendes, Raimundo. 1916. Le positivisme: esquisse d'un tableau de la fondation de la religion de l'humanité. Rio de Janeiro: Église Positiviste du Brésil. Disponível aqui.

29 julho 2016

Itamarati considera acabar com passaporte teológico

Ficam duas perguntas:

(1) Por que é que o Itamarati está apenas "pensando" em tomar essa medida, em vez de simplesmente a aplicar, respeitando a Constituição Federal, a República e a laicidade do Estado?

(2) Será que desde o Império a Igreja Católica beneficiou-se desse aberrante privilégio, nos últimos anos estendido às igrejas evangélicas neopentecostais? Em outras palavras, será que na I República não houve uma interrupção nisso?

De qualquer forma, é realmente uma ótima notícia essa "reflexão" do Itamarati, especialmente porque ele é liderado por José Serra - o mesmo político que, na campanha presidencial de 2010, fez questão de sabotar a laicidade do Estado, ao buscar desavergonhadamente o apoio político dos evangélicos.

O original da matéria encontra-se disponível aqui, publicado pela Folha de S. Paulo.

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Itamaraty estuda acabar com passaporte diplomático para religiosos
DE BRASÍLIA

29/07/2016  14h44

O Itamaraty deverá acabar em breve com a concessão de passaportes diplomáticos para líderes religiosos do país. A decisão ainda não foi oficializada mas deverá seguir o entendimento de que o Brasil é um Estado laico e, por isso, os religiosos não representam os interesses do país no exterior. A informação foi revelada pelo jornal "O Globo" nesta sexta-feira (29).

O ministério fez uma consulta à Advocacia-Geral da União sobre a prática, que é adotada desde o período do Império, no século 19, quando a religião oficial era o catolicismo. O órgão encaminhou um parecer pelo fim do benefício justamente porque o Estado brasileiro hoje é laico.

A decisão preocupa a cúpula do governo interino, que teme que a mudança possa melindrar aliados no Congresso em um momento em que Michel Temer precisa aprovar duras medidas econômicas e que o impeachment da presidente afastada, Dilma Rousseff, ainda não foi concluído.

Até meados dos anos 2000, apenas representantes da Igreja Católica tinham acesso ao benefício, mas a partir de 2006, o Itamaraty passou a conceder o documento para até dois representantes de cada religião, para seguir o princípio da isonomia.

O decreto que regula a concessão de passaportes diplomáticos não prevê o benefício para líderes religiosos, mas permite sua concessão para aqueles que "devam portá-lo em função do interesse do País."

A portaria que atualmente regula a emissão desses passaportes foi criada em janeiro de 2011 -duas semanas depois da revelação de que filhos e netos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva haviam sido irregularmente contemplados com os documentos dois dias antes do fim de seu mandato.

O passaporte diplomático dá direito à isenção de visto de entrada em alguns países que têm acordo firmado com o Brasil, além de filas exclusivas em diversos aeroportos. Diferentemente do comum, ele é gratuito.

No início do mês, a Justiça Federal de São Paulo suspendeu por decisão liminar os passaportes diplomáticos que o Itamaraty havia concedido em junho ao pastor R.R. Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus, e a sua mulher, Maria Magdalena Bezerra Ribeiro Soares.


A decisão do juiz da 7ª Vara Federal Cível Tiago Bologna Dias foi uma resposta à ação popular movida pelo advogado Ricardo Amin Abrahão Nacle, que alegou desvio de finalidade na concessão do benefício.

26 julho 2016

Pequeno exercício de Sociologia Política: "O Sul é o meu país"

Uma república pujante exige a proximidade física e política entre governantes e governados; assim, pátrias pequenas tendem a ser melhores que pátrias grandes ou gigantes (como é o caso do Brasil). Essa foi uma das grandes lições da Sociologia Política, pelo menos desde o século XVIII, com as reflexões de Montesquieu e dos founding fathers dos EUA (Thomas Jefferson à frente).
Dito isso, concretamente, é necessário fazermos algumas reflexões sobre a proposta de separação do "Sul é o meu país", especialmente no que se refere à situação do Paraná e à sua relação com o Rio Grande do Sul:
  • um traço detestável dessa proposta é a xenofobia e o forte preconceito contra o resto dos brasileiros, algo muito próximo ao que o comum dos ingleses manifestou no "brexit" em relação aos "europeus" (como se a Inglaterra não fosse integrante da Europa!);
  • no caso de o Sul virar um novo país, os gaúchos seriam a nova potência política para assombrar profundamente catarinenses e, acima de tudo, paranaenses;
  • o Paraná antigo (Litoral, 1º, 2º e 3º planaltos) tem mais vínculos com São Paulo e Rio de Janeiro;
  • os gaúchos têm um "nacionalismo" todo próprio, com o qual o Paraná simplesmente não comunga e ao qual é literal e figuradamente estrangeiro. Ademais, o Rio Grande do Sul acaba tendo uma profunda ligação com Uruguai e Argentina, ao contrário do resto do Brasil (incluindo aí, no caso, o Paraná);
  • o Norte de Santa Catarina (Joinville) aproximar-se-ia de Curitiba, ao passo que o Sudoeste do Paraná preferiria ficar muito mais próximo do Rio Grande do Sul;
  • não sei como é que o Norte novo do Paraná, ou seja, Londrina e Maringá, comportar-se-ia, mas, de qualquer maneira, eles estão mais próximos de São Paulo que de Curitiba e, portanto, que do Rio Grande do Sul;
  • tenho a impressão de que o Oeste de Santa Catarina ficaria ou com autonomia ou aproximar-se-ia mais do Rio Grande do Sul;
  • assim, o Rio Grande do Sul desenvolveria uma ação centrípeta em relação ao Paraná e a Santa Catarina - ação que seria profundamente daninha e estranha ao Paraná.
Em suma: embora seja possível indicar um aspecto positivo na proposta de emancipação do Sul, os aspectos negativos são mais amplos e em maior quantidade.

25 julho 2016

Falece o sociólogo Evaristo de Morais Filho

Faço aqui minha homenagem a Evaristo de Morais Filho, que faleceu há poucos dias. 

Em sua vida mais que centenária, sua produção intelectual foi gigantesca, como indica a página dedicada a ela no portal da Academia Brasileira de Letras, disponível aqui.

Além de dedicar-se ao Direito do Trabalho, foi um importante autor no âmbito da Sociologia e da História das Idéias. Aliás, sua importância como jurista deve-se, acima de tudo e antes de mais nada, ao seu profundo conhecimento de Sociologia e de Filosofia.

Nesse sentido, foi o responsável por publicar alguns importantes livros sobre o pensamento social e político de Augusto Comte: o volume dedicado ao pai da Sociologia na coleção "Os grandes cientistas sociais" (ver aqui) e o livro intitulado "Augusto Comte e o pensamento sociológico contemporâneo" (ver aqui). Em tais obras, Evaristo de Morais Filho revelou conhecimento do Positivismo e, a partir disso, grande simpatia por esse sistema filosófico, político e religioso.

A Religião da Humanidade, no Brasil, deve-lhe bastante: por esse motivo, lamento aqui a suprema fatalidade.

Fonte: http://oglobo.globo.com/rio/morre-jurista-evaristo-de-moraes-filho-19771776?utm_source=Twitter&utm_medium=Social&utm_campaign=compartilhar

O original da matéria encontra-se disponível aqui.

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Morre jurista Evaristo de Moraes Filho
Referência de justiça social no país, especialista em direito trabalhista também foi sociólogo e, com cerca de 70 livros publicados, ocupava a cadeira número 40 da Academia Brasileira de Letras
  
POR O GLOBO 22/07/2016 23:07

Moraes Filho morreu aos 102 anos - Reprodução
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RIO - Quinto ocupante da cadeira nº 40 da Academia Brasileira de Letras (ABL), o jurista, sociólogo e acadêmico Evaristo de Moraes Filho se tornou um dos mais famosos advogados trabalhistas do Brasil. Eleito para a instituição em 15 de março de 1984, na sucessão de Alceu Amoroso Lima, ele completou 102 anos no último dia 5.

Considerado um intelectual humanista, Moraes Filho era aberto ao debate e comprometido com mudanças sociais. Apoiado no domínio do conhecimento em sociologia e direito, tornou-se, nas palavras de seus colegas da ABL, “um mestre inesquecível”, “um pesquisador sensível” e “um autor fundamental”.

Moraes Filho publicou cerca de 70 livros. Entre suas obras estão “Oração de paraninfo” (1958), “O ensino da filosofia no Brasil” (1959), “O problema de uma sociologia de direito” (1996), “Criminalidade violenta — Aspectos socioeconômicos” (1980), “Trabalho a domicílio e contrato de trabalho” (1998) e “Justiça social e direito do trabalho” (1982). Ele escreveu ainda quase 300 artigos sobre diversos temas, passando por áreas como sociologia, direito do trabalho, psicologia, filosofia e música.

Nascido no Rio, na época em que a cidade era a capital federal, Moraes Filho ingressou na Faculdade de Direito da UFRJ em 1933, onde chegou a chefiar a seção de filosofia da revista oficial do corpo discente. Seis anos depois, ingressou na Faculdade Nacional de Filosofia. Tornou-se doutor em direito e ciências sociais em 1953 e 1955, respectivamente.

Em 1996, foi nomeado membro da Comissão Permanente de Filosofia do Direito do Instituto dos Advogados Brasileiros. Décadas antes, foi procurador regional da Justiça do Trabalho, em Salvador. Em 1983, recebeu o título de professor emérito da UFRJ. Vinte anos mais tarde, outro título: professor honoris causa da UFF. Aposentou-se voluntariamente em 1966 do cargo de procurador da Justiça do Trabalho.

CONSELHO PARA PROCURADORES

Em 2004, à Revista da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho, Moraes Filho falou sobre o papel dos procuradores da Justiça do Trabalho, a quem chamava de “magistrados de pé”.

— Magistrados de pé, como denominam os franceses, seu papel é de velar pelo fiel cumprimento da legislação do trabalho, não se deixando ficar inerte diante dos fatos concretos da vida social. Representam os fracos e hipossuficientes, embora sem cometer injustiça. Seu papel é progressista, renovador e ativo, não se limitando a opinar passivamente nos autos.

O escritor imortal virou uma referência para aqueles que defendem relações de trabalho mais justas e democráticas. Em sua atuação no Ministério do Trabalho e no Ministério Público do Trabalho, construiu um direito trabalhista mais comprometido com a democracia e a humanização.

Em 2014, o jurista recebeu homenagens pelo seu centenário. Naquele ano, concedeu uma entrevista para a revista “Anamatra”, especializada em direito trabalhista:

— Cito uma frase de Lutero que diz: “Quem é simplesmente um jurista é uma pobre coisa”. O direito não vive perdido no espaço social, ele regula o espaço social e está no meio de todos os fenômenos sociais, da economia, da religião, antropologia, tudo isso. Quem não tem uma visão de conjunto da vida social, de modo global, torna-se simplesmente um formalista, um positivista, no sentido de reduzir todo o direito a normas jurídicas.

Em seu discurso de posse na ABL, em 4 de outubro de 1984, data em que se comemora o Dia de São Francisco de Assis, Moraes Filho lembrou o santo:

— Por escolha ocasional, vejo que não poderia ter sido mais feliz ao marcar a data desta minha posse na vaga deixada pelo maior de todos nós — a quem simplesmente sucedo, mas que não o substituo. No ensaio que escreveu sobre o santo quando do sétimo centenário de sua morte, retomado na última década de sua vida, mostra Alceu que os dias de hoje assemelham-se aos do século XIII, nos quais viveu Francesco Bernardone, pelo luxo e pela violência. Se por milagre voltasse à vida, teria de recomeçar a mesma luta pela simplicidade das coisas, contra o desenfreado espírito de ganho, pela paz e pela fraternidade, contra as rígidas hierarquias, pela justiça e pela igualdade. Só a fé de uma criança, como a sua, poderia renovar a alma do mundo moderno, como renovou a do seu tempo.

Casado com Hileda Flores de Moraes, o acadêmico teve dois filhos, seis netos e dois bisnetos. Possuía uma memória privilegiada, e vivia cercado pela família e por amigos. Moraes Filho morreu ontem à noite de infarto, em sua casa. Ele será velado hoje no Salão dos Poetas Românticos da ABL. O enterro será realizado no Mausoléu dos Acadêmicos, às 16h.


Laicidade: garantia-dique para as liberdades públicas

Ilustração que representa de maneira brilhante a importância da laicidade do Estado - ainda que essa gravura tenha um evidente caráter anticlerical, com o qual, a princípio, discordamos.

As fraturas do dique sugerem os problemas crescentes que a laicidade enfrenta nos dias atuais. Aliás, entre esses desafios, estão os novos nomes que os inimigos da laicidade impingem-lhe: "laicismo", "laicidade positiva" etc. Esses novos nomes são formas de distorcer o conceito da laicidade e, portanto, a sua prática.

Por outro lado, seguindo as corretíssimas observações de Augusto Comte, convém notar que a laicidade do Estado não garante apenas as liberdades públicas contra os abusos das religiões, mas, inversamente, garante às próprias religiões as liberdades para exercerem-se e a impossibilidade de serem instrumentalizadas e conspurcadas pelo Estado para doutrinação pública. Em outras palavras, a laicidade é garantia de Estado republicano e de religiões dignificadas.



Fonte: https://ciclistasemdeus.wordpress.com/

Turquia caminha com rapidez para a teocracia

Aquela que é possivelmente a única república laica do Oriente Médio caminha para ser mais uma das inúmeras "repúblicas" teocráticas. Nesse sentido, reverte a progressista ação desenvolvida desde a década de 1920, a partir da obra de Kemal Ataturk (o "pai da pátria turca") e garantida, sim, pelos militares turcos contra os clérigos.

Fonte: https://global.britannica.com/biography/Kemal-Ataturk

Dois comentários preliminares, de menor envergadura: 
(1) ao contrário do que o autor usa logo no início do artigo, no Brasil, corretamente, não se fala "NATO", mas "OTAN" (Organização do Tratado do Atlântico Norte); 
(2) o regime que se desenha na Turquia não é "inspirado na teocracia", mas é uma teocracia que se implanta aos poucos e cada vez mais.
O original do texto encontra-se disponível aqui.

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CONTRAGOLPE DE ESTADO

Governo da Turquia pode criar regime inspirado na teocracia

A Turquia foi o primeiro país com “democracia islâmica” a ingressar na Nato, a aliança militar europeia. Mas democracia, mesmo que islâmica, nunca foi o sonho do presidente da Turquia Recep Tayyip Erdogan, que já declarou: “Democracia é um trem do qual você desce quando chega ao destino”. Aparentemente, Erdogan viu na tentativa frustrada de golpe na Turquia o ponto final da democracia.
A pergunta que se faz em todo o mundo, neste momento, é o que Erdogan quer colocar no lugar da “democracia islâmica”. O professor da Universidade de Zaytouneh, Ibraim Alloush, disse à publicação americanaRT que “a intenção de Erdogan é implantar no país uma teocracia islâmica — mesmo que finamente velada”.
Nisso o presidente tem o apoio de seu governo e de seu partido, o AKP, cuja sigla significa Partido da Justiça e do Desenvolvimento. O AKP, com maioria no Congresso turco e que vem ganhando todas as eleições desde 2002, segundo o The Economist, há tempos concede um poder quase autocrático ao chefe do partido, o presidente Erdogan.
“Erdogan e todos os seus aliados no governo e no congresso compõem uma ramificação da Irmandade Muçulmana, uma organização islâmica que se disseminou em todo o mundo árabe depois de ser fundada no Egito. A plataforma dos partidários de Erdogan não é apenas recriar um estado religioso, mas reencarnar o Império Otomano. Assim, ele está usando a tentativa de golpe para executar o golpe real”, ele disse.
A vontade de Erdogan, particularmente, seria instalar no país uma autocracia islâmica, em vez de uma teocracia. Como uma autocracia, ele já concentraria todo o poder em suas mãos, sem correr o risco de que a teocracia islâmica colocasse o poder nas mãos de uma divindade (e de seus sacerdotes), sob a égide do Alcorão ou de tornar a Xaria a lei oficial do país, diz o site Al Monitor.
Porém, é mais fácil se tornar um governo autocrático com uma base de sustentação religiosa, porque o apoio popular brota naturalmente. Assim, para ter apoio popular, ele precisa usar a religião. Porém, só pode fazer isso até um certo ponto, porque, embora o simbolismo religioso exerça uma forte atração no povo turco, a criação de um estado islâmico, baseado no Alcorão, não tem a mesma força.
Uma pesquisa do Pew Research Center, em 2013, para apurar as inclinações políticas do povo turco, revelou que apenas 21% da população gostaria de tornar a Xaria a lei oficial do país. Em contraste, 84% dos paquistaneses e 74% dos egípcios apoiavam a ideia.
A ideia foi testada em abril, quando o presidente do Congresso turco, Ismail Kahraman, declarou que a nova Constituição da Turquia deveria abster-se de mencionar o “secularismo”, um dos princípios em que se sustenta a separação igreja-Estado. E adotar uma “constituição religiosa”, que fizesse referência a Deus.
A declaração gerou controvérsias, protestos em algumas cidades turcas e pedidos para Kahraman renunciar. Uma das críticas foi a de que o AKP finalmente estava mostrando sua “verdadeira cara” e sua “verdadeira intenção”, que seria a de instalar uma teocracia islâmica no país. Como Kahramn é um dos principais aliados do presidente Erdogan, levantou-se suspeitas de que a proposta era parte de um esquema orquestrado pelo governo.
Enquanto maquina o ponto final da democracia e, finalmente, o advento do poder absoluto, Erdogan precisa eliminar alguns entraves. Um dos maiores entraves seria, certamente, o Judiciário, que precisaria ser enfraquecido — e tornar subserviente o que restar dele. Afinal, o Estado de Direito, preservado pelo Judiciário, não combina com qualquer regime autocrático.
Na quarta-feira (20/7), o número de juízes e promotores afastados chegou a 2.745 e mais de cem membros da Corte Constitucional da Turquia (que equivale ao Supremo Tribunal do Brasil) — entre eles dois ministros que tomaram decisões que desagradaram o governo também foram afastados. Além deles, foram suspensos 262 juízes e promotores da Justiça Militar da Turquia.
Com o Executivo e o Legislativo nas mãos e, quem sabe, o Judiciário e com a oposição no mundo acadêmico sendo devastada por afastamentos, o governo turco poderá instalar um regime que se inspira na autocracia, na teocracia ou no islamismo, mas não é nenhum deles. Seria um “erdoganismo” diz o site Al Monitor.
Nesse suposto regime, o islamismo exerceria papéis importantes, como o de angariar apoio popular e facilitar a imposição de “leis” convenientes, mas não seria o elemento preponderante. Se fosse, colocaria a Turquia no mesmo caminho do Irã, da Arábia Saudita e outras organizações do mundo árabe.
O “erdoganismo” se ergueria a exemplo do “putinismo”, diz o site. O jornalista Fareed Zakaria observou que o “putinismo” consiste de cinco fundamentos: religião, nacionalismo, conservadorismo social, capitalismo estatal e controle da mídia governamental. Está na agenda do “putinismo”, sustentado na Igreja Ortodoxa, “proteger cristãos perseguidos em todo o mundo”. A agenda do “erdoganismo”, sustentado no islamismo, seria “proteger muçulmanos perseguidos em todo o mundo”.
 é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 22 de julho de 2016, 18h35

23 maio 2016

Carlos Esperança: "O Papa Francisco e a laicidade"

Reproduzo abaixo uma postagem feita no blogue Ponte Europa, por Carlos Esperança, no dia 22  de maio de 2016. O título da postagem é O Papa Francisco e a laicidade; sua reprodução deve-se ao fato de ele ser muito, muito interessante e valer tanto a leitura quanto a reflexão.


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Em entrevista ao diário católico francês, La Croix, de 17 de maio, o Papa Francisco acusou a França «de exagerar a laicidade».

Na mesma entrevista, defendeu que um Estado não deve ser confessional, reconhecendo a laicidade, mas afirmando que «há um conflito radical entre as sociedades governadas pela lei de Deus e as que se organizam pela lei dos homens».

Pese embora o carácter dialogante do atual pontífice, que tem a santidade por profissão e estado civil, revela uma animosidade mal disfarçada, a assimilação genética do poder temporal que confunde com uma sociedade organizada pela lei de Deus, lei que, por ser divina, é irrevogável e alheia ao sufrágio. No fundo, a lei divina é a mais totalitária das leis. Nem o próprio Deus a pode revogar nem os que lhe são sujeitos a podem contestar.

Em primeiro lugar, o Papa disfarçou mal a azia que a laicidade lhe provoca, ao defini-la exagerada, como se a neutralidade pudesse ter graus, como se pudesse haver abstenções violentas e abstenções suaves.

A laicidade nunca foi obtida sem a repressão política do clero das diversas religiões e, sem ela, não há democracias, há teocracias, as formas mais violentas de ditaduras que ficam à mercê dos funcionários de Deus.

É evidente a existência de «conflito entre as sociedades governadas pela lei de Deus e as que se organizam pela lei dos homens». Basta comparar a Arábia Saudita com a França ou o Vaticano com a Itália. Deus, criado por homens e explorado por profissionais da fé, jamais fez prova de vida, mas pretende que o poder dos homens, não o das mulheres, seja vitalício e, se possível, hereditário.

É, alias, para submeter sociedades secularizadas à vontade de Deus que a Jihad islâmica sacrifica jovens assassinos, que são premiados com uma assoalhada no Paraíso e à razão de 72 virgens per capita.

Sem laicidade, voltaríamos à origem divina do poder e às monarquias absolutas. O Papa católico tem o dever de recordar o passado da sua Igreja e, se não quiser ver a sua, basta olhar para as outras que dominam os aparelhos de Estado e se confundem com eles.

A laicidade não consente adjetivos e jamais será excessiva ou escassa, é neutra. Sem ela não é possível que os Estados democráticos respeitem todos os crentes, descrentes e anti crentes, com absoluta indiferença sobre o que cada um pensa em matéria religiosa.

Felizmente, vivemos numa sociedade organizada pela lei dos homens e é fácil imaginar o pesadelo de uma outra «governada pela lei de Deus», de que há sinistros exemplos.