11 março 2009

Contra os pós-modernos

Escrevi há algumas semanas algumas anotações contra os pós-modernos, no duplo esforço de identificar os principais ramos dessas formas aberrantes de pensamento e suas sociogêneses (como dizia o Norbert Elias). Essas anotações não são finais, mas como tiveram uma certa extensão e não estão totalmente desarticuladas, submeto-as à apreciação pública.

* * *

As críticas feitas à modernidade reúnem uma série de preconceitos, idéias e valores que são extremamente particulares, a despeito das afirmações – literalmente metafísicas – de sua universalidade; além disso, os procedimentos pós-modernos são “revolucionários” conforme entendido por Augusto Comte, isto é, meramente destruidores, incapazes de propor qualquer idéia nova e construtora – e, como se sabe, rejeitando qualquer pretensão a isso. São duas grandes correntes, duas “famílias” intelectuais: ou, sendo mais preciso, são dois grandes ramos da mesma família, toda ela herdeira da filosofia alemã do final do século XIX, com as características intelectuais desse período: romantismo exacerbado, mal-estar fin-de-siècle, irracionalismo, idealismo.

Os dois ramos são: de um lado, a tradição antimoderna alemã, que teve seu grande iniciador em Nietzsche; do outro lado, os pós-modernos e os ultra-relativistas, em particular os franceses, mas também os norte-americanos.

No que se refere ao primeiro ramo, o problema é que atribui à humanidade como um todo os males específicos de seu próprio país, de sua própria civilização em um momento específico: a Alemanha nas décadas imediatamente seguintes à unificação bismarckiana. As enormes e profundas mudanças por que passava a sociedade alemã nesse período influenciaram a intelectualidade, refletindo-se em um mal-estar intelectual e social. Minha hipótese é a seguinte: a Alemanha teve que se modernizar às pressas, no que chamam de “via prussiana”; mas essa modernização foi principalmente material, isto é, econômica, com a industrialização acentuada e as mudanças sociais decorrentes, em particular o arrojado crescimento do proletariado urbano-industrial, do sindicalismo e das formas de pensamento associadas a eles; secundariamente, a modernização material consistiu na criação de um Estado nacional alemão.

Entretanto, do ponto de vista intelectual e social, a Alemanha não saíra da Idade Média e do feudalismo: aliás, a “via prussiana” foi um meio de forçar a evolução alemã para além do feudalismo, no que se refere à economia e à política. Do ponto de vista intelectual, permanecia o forte idealismo alemão, com sua rígida separação entre Kultur (“cultura”, isto é, aquilo do “espírito”) e Zivilitation (“civilização”, isto é, o “material”, o que inclui a tecnologia[1]), a que se somava o romantismo saudosista da Idade Média e dos cavaleiros teutões. Ao contrário do que ocorrera, por exemplo, na França, em que o romantismo medievalista levou a um esforço para atualizar a Idade Média (na verdade, foram esforços para atualizar a Antigüidade Clássica e, até certo ponto, o Antigo Regime), na Alemanha ocorria uma nostalgia retrógrada, que literalmente queria voltar à Idade Média. Esse romantismo, além disso, ao identificar as filosofias “modernas” com as Luzes (isto é, com o Iluminismo) e com o racionalismo negador da Kultur e da “verdadeira alma alemã”, assumia um forte caráter irracionalista.

Do ponto de vista social, ocorriam tensões equivalentes aos problemas intelectuais. À modernização econômico-política não correspondeu a modernização social, conservando-se os antigos hábitos e valores feudais da honra e do orgulho nacional[2]; mas, ao mesmo tempo, a disputa econômico-política entre os países acontecia (basta pensar na partilha da África, em 1885, no Congresso de... Berlim) e a luta de classes fazia-se presente. As antigas classes dominantes alemãs (incluindo aí as classes médias) mantinham seus valores e suas formas de pensar, mas percebiam que novos valores, novas formas de pensar e de agir eram mais adequados aos novos tempos – e não conseguiam lidar com a própria obsolescência.

O resultado disso foi o surgimento do mal-estar fin-de-siècle, em que várias idéias negadoras do Iluminismo, não necessariamente coerentes entre si, desenvolveram-se: a “decadência da cultura”, o ultra-idealismo, o primado da força e da vontade, o irracionalismo puro e simples. Toda uma geração alemã ou de língua alemã padeceu desses males: não apenas Nietzsche (que foi um dos seus grandes promotores, na verdade), mas também Max Weber, G. Luckács, Franz Kafka[3] e até mesmo Robert Musil[4].

Essas características já foram indicadas por vários autores a propósito de outras questões: Norbert Elias, sobre o processo civilizador; Hannah Arendt, sobre o surgimento do nazismo. Entretanto, convém notar que esses elementos mantiveram-se como uma espécie de lastro da filosofia alemã, que se manteve não apenas na primeira metade do século XX – e de que um dos seus principais resultados foi o nazismo – mas ultrapassou 1945, por meio do pensamento de Heidegger, da Escola de Frankfurt (em particular Adorno e Horkheimer) e mesmo de Hannah Arendt e Leo Strauss. O caso de Heidegger é fácil de perceber: sua metafísica do “ser” e do “esquecimento do ser” é uma forma rebuscada de colocar-se contra a modernização; aliás, a partir de uma referência marxista, Adorno e Horkheimer expressaram a mesma revolta contra a modernidade, ao criticarem não apenas as insuficiências como também os “embustes” (“dialéticos”) da Razão iluminista[5]. Por fim, Hannah Arendt e Leo Strauss criaram notabilizaram-se no campo da Teoria Política, entre outros motivos, por terem defendido a existência de uma “tradição” do pensamento ocidental que se degenerou ao longo dos séculos e, em particular, na época do Iluminismo.

Os autores que teorizam a “modernidade” adotam como referências intelectuais esse conjunto de pensadores alemães do final do século XIX e da primeira metade do século XX. O diagnóstico que apresentam para a modernidade é o mesmo que o de seus inspiradores: irracionalismo, mal-estar social e intelectual (e também moral ou “espiritual”), crise de valores; acima de tudo, há a desconfiança radical a respeito da racionalidade humana (mesmo que parcial, “localizada”) e dos resultados da aplicação técnica dos conhecimentos humanos sobre a realidade[6].

Essa forma de pensar é altamente equivocada. Pode-se argumentar que ela oferece a interessante perspectiva de duvidar da ciência, de modo a buscar controlá-la, humanizá-la e cuidar com cuidado e atenção da aplicação prática de seus princípios, seja em termos tecnológicos, seja em termos estritamente políticos. De fato, essas são posições intelectuais e políticas importantes, mas o fato é que a crítica à modernidade visa a negar a modernidade e qualquer papel positivo que ela porventura tenha. Assim, mais que a controlar a ciência, a crítica à modernidade visa a negar e a combater a ciência – propondo em seu lugar, como vimos, seja uma rebuscada metafísica do “ser”, seja o claro retorno à teologia, seja, ainda, o voluntarismo beligerante da “vontade do poder”. Também se mantém, mesmo que de maneira subterrânea, a oposição antinômica entre Kultur e Zivilitation, de tal sorte que não é possível nenhuma síntese em que a civilização incorpore em si os desenvolvimentos do espírito. O resultado disso é uma negatividade permanente e profundamente daninha para o ser humano, que se vê condenado a uma divisão moral e espiritual eterna.

O contraste das Alemanhas guilhermina, de Weimer e nazista com a França da III República é altamente instrutivo. Em primeiro lugar, o conceito francês de civilisation engloba tanto aspectos “espirituais” quanto “materiais”; os antropólogos poderiam perfeitamente afirmar que um sinônimo para ele é “cultura”. O desenvolvimento da civilisation engloba tanto questões materiais (econômicas e políticas) quanto intelectuais e morais (filosóficas, artísticas e científicas). Assim, embora possa haver descompassos entre os seus vários elementos, não há uma verdadeira e profunda oposição entre eles.

Enquanto os antimodernistas alemães exercitavam retóricas pessimistas, racistas, beligerantes[7], a França procurava realizar uma República laica e propícia à cidadania, com desenvolvimento econômico e social. Em particular, em 1885 a França instituiu o ensino primário laico obrigatório e, em 1905, realizou a completa separação entre Igreja e Estado. Após as comoções da Comuna de Paris, em 1871, o período mais conturbado politicamente da III República foi o do affaire Dreyfus, entre 1895 e 1905, que opôs a intelectualidade ao Exército, tendo como causa específica de disputa o nacionalismo xenófobo (antigermânico) e o anti-semitismo – exatamente os elementos que, cerca de 30 anos depois, alimentariam na Alemanha o nazismo. Todavia, ao contrário do fim da República de Weimar, de golpes de Estado à direita e à esquerda e da eclosão de uma guerra total mundial, o resultado na França foi o da republicanização do Exército, o que equivale ao fortalecimento da República. É importante insistir: a República na França era considerada um projeto a um só tempo político, econômico e social – mas também, e sobretudo, intelectual e moral. Em outras palavras, não é adequado atribuir à modernidade francesa a mesma negatividade radical que se atribui à modernidade alemã – e, portanto, não é adequado atribuir essa negatividade radical à modernidade tout court. Como, entretanto, Nietzsche, Heidegger, Adorno, Horkheimer, Leo Strauss e Hannah Arendt (bem como seus êmulos) compartilham dessa negatividade, o resultado é que eles não são autores adequados a uma avaliação responsável da “modernidade”[8].

O segundo ramo antimoderno é antimoderno afirmando ser posterior à modernidade: são os “pós-modernos”. Evidentemente, há sérios problemas a respeito da caracterização teórica e mesmo empírica desse caráter posterior à modernidade, mas isso não interessa tanto agora, importando mais a forma como os pós-modernos negam a “modernidade”. Embora sua caracterização inicial da modernidade seja devida aos antimodernos alemães, essa corrente não assume um negativismo radical, preferindo rir a deprimir-se. Por quê “rir”? Porque o procedimento-padrão (preconizado ou realizado) é a ironia, é o deboche. A isso se somam o irracionalismo e o hiper-relativismo; o relativismo, em particular, é assumido não como um procedimento metodológico para permitir comparações entre sociedades ou traços culturais e generalizações, mas como um valor substantivo, em que qualquer graduação de sociedades ou de traços culturais é recusada. Nesse ramo há duas vertentes: a francesa e a norte-americana.

A vertente francesa busca a “desconstrução” das “categorias modernas”: em vez de propor novas categorias analíticas ou sintéticas; em vez de propor novas teorias capazes de refinar a compreensão das realidades cósmica e humana, o que se busca é a fragmentação cada vez maior, cada vez mais acentuada das descrições, que são permitidas a partir de perspectivas cada vez mais díspares (e “descentradas”, isto é, dando voz e vez aos não-ocidentais, aos não-homens, aos não-brancos e assim por diante – e nominalmente aos “não-científicos”). Ao mesmo tempo, as descrições habituais são substituídas por outras, em que sobressai, por saltar aos olhos, a característica da verborragia e do abuso das metáforas com ou do linguajar das Ciências Naturais. Derrida, Deleuze e Lacan são exemplos acabados dessa vertente.

A vertente norte-americana é menos irônica e muito mais sisuda; aceita vigorosamente o hiper-relativismo; recusa o eurocentrismo branco, macho, burguês e cientificista afirma a hiperpolitização da realidade e percebe apenas “interpretações” “interessadas” – o que dá azo à afirmação de que as realidades cósmica e social são “textos” a serem lidos. Entram nessa vertente todos os Cultural Studies, que aproximam fortemente a Sociologia, a Antropologia, a História, a Filosofia da Literatura – sem que se saiba o que é uma e o que é outra, sem que sejam nem Sociologia, nem Antropologia, nem História, nem Filosofia nem Literatura. Como disse Marshal Sahlins, os estudos feministas, identitários, da hegemonia e assim por diante entram nessa categoria. O que importa neles é afirmar o caráter dominador (“hegemônico”) das perspectivas totalizantes – necessariamente eurocêntricas, brancas, “machas”, burguesas e, claro, cientificistas – e, por outro lado, afirmar também a validade política, epistemológica e teórica das perspectivas fragmentárias, contra-hegemônicas e locais, que dão voz aos subalternos e dominados (e que não se caracterizam pelas características das perspectivas hegemônicas)[9].

Os resultados de ambos os ramos pós-modernos são variados. Poderíamos citar, todavia, os seguintes: anti-racionalismo; hiperpolitização da realidade (afinal, tudo é o conflito entre a hegemonia e a contra-hegemonia); fragmentação radical da realidade. Em particular, convém notar sérios problemas intelectuais e morais decorrentes da negação dos “discursos totalizantes”: quando menos para viver em sociedade, o ser humano carece de uma descrição do conjunto das realidades cósmica e social; a partir disso, é possível ter a coerência individual para cada um identificar-se como uma pessoa. Entretanto, “discursos totalizantes” são sintéticas, generalizantes e abstratas: os discursos pós-modernos aceitam apenas descrições altamente fragmentárias, localizadas e, por definição, empíricas; cada vez menos há “(todos) nós” e cada vez mais há “eu” e “nosso grupo específico”. Cada vez menos há concordância e ação conjunta, que vise a (alguma) harmonia social e cada vez mais há disputas e conflitos entre grupos e indivíduos hegemônicos e contra-hegemônicos; cada vez menos há confiança e respeito e cada vez mais há “denúncias” e enfrentamentos.

Faltou tratar da “sociogenêse” desse ramo antimoderno. Um problema evidente é que ele é relativamente jovem: possui no máximo 40 anos, por ter-se originado em meados dos anos 1960, o que dificulta a determinação de suas raízes. Mas, por outro lado, a literatura crítica a ele também é diminuta e de modo geral concentra-se em criticar as suas posições intelectuais (cf. SOKAL & BRICMONT, 2001; SAHLINS, 2004), sem aplicar a ele mesmo a Sociologia do Conhecimento que tão vorazmente aplicam aos demais, “modernos”.

No que se refere aos franceses – Deleuze e Derrida; até certo ponto, também Foucault – o irracionalismo parece-me ter a ver com um certo esgotamento intelectual do estruturalismo dos anos 1950 e 1960, a que se soma pura e simplesmente o fim do sentimento de urgência social das elaborações intelectuais. Mas, além disso, as revoltas de 1968 parece terem criado raízes intelectuais; as críticas que tais movimentos dirigiam aos “poderes constituídos” foram encaradas como devendo ser contra o racionalismo e a racionalidade; a crítica social que então se fazia passou para a Filosofia (e, daí, para as Ciências Humanas), sem outras preocupações além de serem “críticas” (o que, incidentalmente, revela com clareza o seu caráter metafísico, isto é, destruidor, no sentido comtiano)[10]. Mas é muito provável que nos próximos anos outros elementos surjam para explicar essas formas de pensamento (embora o respeito quase sagrado que 1968 tenha para grande parte da intelectualidade dificulte sobremaneira essa tarefa).

No que se refere à vertente norte-americana, talvez a explicação seja um pouco mais simples e mais rasteira. Em primeiro lugar, os norte-americanos são reconhecidamente “empíricos”, isto é, avessos às grandes generalizações e às grandes abstrações (como os franceses ou os alemães). Esse empirismo até meados do século XX foi canalizado pelo racionalismo, em que se buscavam explicações para a realidade social: a obra de Franz Boas é um bom exemplo disso. Entretanto, a partir da década de 1950 um mal-estar social e moral começou a difundir-se pelos Estados Unidos, desenvolvendo-se nos anos 1960 e resultando em fortes conflitos políticos, sociais e morais no final dessa década e no início da seguinte. Assim como na França – e até mesmo mais que lá –, a contracultura norte-americana também buscava pôr-se contra os “poderes estabelecidos”; mas enquanto na França isso se devia a um mal-estar difuso, a um radicalismo de esquerda no meio universitário e a anseios por mudanças no sistema de Ensino Superior francês, nos Estados Unidos a pauta política era mais específica, inobstante a idêntica presença de um mal-estar difuso entre a juventude: a Guerra do Vietnã, a campanha pelos direitos civis e contra a segregação racial, a evolução do movimento beatnik em movimento hippie.

Além disso, no caso específico dos Estados Unidos, houve dois outros fatores. Em primeiro lugar, nos anos 1950 a 1970 ocorreu o processo de descolonização da Ásia e da África: embora essas antigas colônias não fossem norte-americanas mas européias, a afirmação das perspectivas “pós-coloniais” foram rapidamente absorvidas pela academia estadunidense, especialmente devido ao caráter de refúgio dessa academia e também porque os Estados Unidos eram – como ainda são – a principal potência mundial. (Em si mesmas, as demandas pelas vozes pós-coloniais não negam a racionalidade e a “modernidade”, mas elas forneceram um elemento a mais na crítica ao “modo ocidental” de pensar.) Em segundo lugar, a geração baby boomer não compartilhava dos compromissos morais e políticos de seus pais e avós, o que equivale a dizer que os jovens dos anos 1960 e 1970 não aceitavam – pelo menos não com tanta facilidade – o compromisso de levar adiante a Guerra Fria e, mais especificamente, não estavam dispostos a arcar com os custos materiais e morais de tal compromisso[11].

O racionalismo e a “modernidade”, bem como a ciência de um modo geral, foram vistos como integrantes do “sistema” e como tais deveriam ser combatidos. Ao racionalismo, opor-se-ia o irracionalismo; ao autocontrole intelectual, um laxismo teórico e também moral; à ciência, as diversas formas “alternativas” de conhecimento; ao “sistema”[12], os discursos e as práticas “contra-hegemônicas”; às “narrativas totalizantes”, os “discursos fragmentários e locais”. O resultado foi que as análises sociais anteriores foram substituídas por “discursos” eminentemente “críticos”, que visam à “libertação” dos “povos e dos grupos oprimidos”, ao afirmarem que em caráter eterno há apenas lutas e disputas. Novamente, assim como no antimodernismo alemão, os resultados foram a fragmentação radical do discurso, a ininteligibilidade cósmica e social, a negação da simples racionalidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARON, R. 1999. As etapas do pensamento sociológico. Lisboa: Dom Quixote.

BREDIN, J.-D. 1995. O caso Dreyfus. São Paulo: Scritta.

BRUSEKE, F. J. 2001. A técnica e os riscos da modernidade. Florianópolis: UFSC.

DOMINGUES, J. M. 2002. Reinterpretando a modernidade. Imaginário e instituições. Rio de Janeiro: FGV.

ELIAS, N. 1994. O processo civilizador. V. I. Rio de Janeiro: J. Zahar.

SAHLINS, M. 2004. Esperando Foucault, ainda. São Paulo: Cosac Naify.

SANTNER, E. L. 1997. A Alemanha de Schreber. Rio de Janeiro: J. Zahar.

SOKAL, A. & BRICMONT, J. 2001. Imposturas intelectuais. O abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos. Rio de Janeiro: Record.



[1] A ciência teria um papel ambíguo, aí: as “Ciências do Espírito” (Sociologia, História, Letras, Filosofia, Direito etc.) entrariam na Kultur e as “Ciências Naturais” (Matemática, Física, Química, Biologia), na Zivilitation; como a tecnologia é mais facilmente desenvolvida a partir das Ciências Naturais, ela entraria na Zivilitation. As tentativas de desenvolver-se tecnologias a partir das “Ciências do Espírito” seriam, assim, degradações da sua idealidade e de sua nobreza.

[2] Claro que, nesse caso, na medida em que podia ser “nacional”, identificando-se com a Kultur em oposição à Zivilitation à la francesa ou às culturas “inferiores” dos povos da Europa Centro-Oriental, como os poloneses.

[3] Uma questão sociológica que merece investigação é a seguinte: Kafka era tcheco (na verdade, austríaco, naquela época) e não alemão. Como o seu mal-estar é muito semelhante ao dos autores alemães, seria interessante investigar até que ponto a “civilização germanófona” no seu conjunto atravessava uma crise. A mesma coisa pode ser dita de Musil, que era vienense.

[4] Esses são pensadores “respeitáveis”, mas se analisarmos com um pouco de atenção as biografias de Adolf Hitler, de Joseph Goebbels e de vários outros líderes nazistas, perceberemos os mesmos traços intelectuais e morais (alguns diriam “espirituais”): receberam com grande júbilo guerreiro e “vital” a I Guerra Mundial (vista como forma de fazer valer a “força da cultura alemã” no exterior), sofreram grandes abalos morais com a derrota no conflito e ficaram vagando por diversos anos, de emprego em emprego, à busca de satisfação para seus problemas existenciais e de solução – via bodes expiatórios – para os problemas econômico-sociais da Alemanha.

[5] Aliás, Adorno é ainda mais exemplar desse irracionalismo antimoderno, pois no final da vida deixou de lado a metafísica de origem marxista para assumir uma clara teologia (de inspiração provavelmente protestante).

[6] Em outras palavras, é a velha desconfiança em relação à Zivilitation.

[7] É bom insistir: retóricas cujas desastrosas conseqüências entre 1914 e 1945 são por todos conhecidos.

[8] Aliás, o caráter especificamente alemão dessa negatividade antimoderna é confirmado por toda a literatura que trata da “modernidade” e de seus “males”. Não apenas os principais de seus autores, como vimos, foram alemães, como também toda a literatura crítica da “modernidade” nessa tradição negativista refere-se à Alemanha, ao pensamento alemão e ao mundo alemão (cf., por exemplo, SANTNER, 1997; BRUSEKE, 2001; DOMINGUES, 2002) – mas sem se referir, por exemplo, à França ou à Inglaterra no mesmo período, embora estendam a avaliação crítica a esses países, cujas características sociais e morais eram profundamente diversas. Nessa litania antimoderna e negativista, o mais espantoso é que não tenha havido comentários contrários a ela no sentido indicado aqui: assim, a discussão de modo geral concorda com o “diagnóstico” da “modernidade” proposto por diversos daqueles que prenunciaram e até mesmo colaboraram especificamente com os horrores dessa modernidade – o que, por si só, já é revelador de que há alguma coisa errada nos diagnósticos sociológicos e exige, por sua vez, análise específica.

[9] Embora eu não tenha citado explicitamente nesse grupo – que, por óbvio, inclui feministas, estudiosos das identidades, das “tradições” etc. ­–, é importante incluir aí Richard Rorty e todos os seus pragmatistas, “antifundacionalistas” e que-tais.

[10] Sahlins, de um modo um tanto sarcástico, afirma que um dos motivos para o surgimento e o desenvolvimento dessas correntes nos Estados Unidos – mas a que poderíamos muito bem ajuntar na França – é simplesmente o tédio intelectual, isto é, pura e simplesmente o modismo.

[11] É claro que é outra questão saber se esses custos eram de fato aceitáveis: como se sabe, a Guerra do Vietnã ultrapassou largamente as expectativas iniciais de mortes e seu resultado foi bastante diverso do inicialmente esperado. Ainda assim, o contraste entre as perspectivas da juventude norte-americana face à II Guerra Mundial e à Guerra da Coréia, por um lado, e à Guerra do Vietnã, por outro lado, é revelador da mudança de sensibilidade política e intelectual que estamos sublinhando.

[12] A expressão é literal e, por mais espantoso que pareça, fez grande fortuna: Lyotard usou a palavra “sistema” como uma categoria sociológica e Habermas, ao defender o “mundo da vida”, faz pouco mais que isso.

17 fevereiro 2009

Questionamento necessário

O artigo abaixo foi publicado no jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, em 17.2.2009. Está disponível no seguinte endereço: http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=858582&tit=Questionamento-necessario.

(Infelizmente, o jornal adota o acordo ortográfico, de modo que algumas palavras estão escritas incorretamente.)

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“O pensamento humano é primeiro teológico, em seguida metafísico e por fim positivo” (A. Comte)
A recente campanha deflagrada na Europa pela Associação Humanista Britânica, tendo à frente o biólogo Richard Dawkins, mais que uma provocação, é um convite simpático para as pessoas refletirem a respeito de suas vidas e de seus valores, individuais e coletivos. Essa campanha, que ocorrerá ainda na Espanha, na Itália e talvez na França (mas também no Brasil), dá-se em um momento em que se vê um retorno da teologia – que dura já quase 20 anos – e em que os humanistas, ateus e agnósticos procuram não apenas defender a laicidade e o secularismo, mas também a validade política e filosófica de suas posições e perspectivas.
Há duas ou três questões envolvidas na “polêmica” dos anúncios veiculados nos ônibus: 1) as escolhas individuais sobre crenças e valores; 2) a pseudodiscussão sobre a imoralidade de quem não crê em deus; 3) a importância pública (política) da religião. Apesar de a campanha britânica tratar apenas da primeira questão, as polêmicas que surgiram ao seu redor envolvem as três – sendo, no final das contas, esse o objetivo de Dawkins, dos ateus, dos agnósticos e dos humanistas de modo geral – mas também dos religiosos. Vamos nos ater a duas outras questões, em que a análise sociológica e filosófica é inseparável da afirmação moral.
A primeira refere-se ao avanço da teologia na vida pública e privada, no mundo inteiro e no Ocidente em particular. As marchas concomitantes da laicização e da secularização no Ocidente (mesmo no mundo) foram fatores de progresso social, moral e intelectual, com a atenção dos seres humanos voltando-se para o próprio ser humano e para sua realidade cósmica, social e individual. Isso inclui não apenas (por exemplo) o desenvolvimento da Medicina, das telecomunicações, da Sociologia, da Psicologia, do Welfare State e das preocupações ambientais, mas, acima de tudo, permitiu o desenvolvimento de um ambiente social e político favorável à livre expressão das ideias, mesmo aquelas mais contrárias aos “poderes dominantes”. Em outras palavras, foi o afastamento da religião que permitiu ao ser humano conhecer-se melhor e à sua realidade, além de ter-lhe criado as condições intelectuais e políticas necessárias para manter-se livre e combater crimes e excessos.
Assim, sem rodeios, o retorno da teologia é um retrocesso nessa marcha, com a afirmação de obscurantismos e “vontades” absolutas e arbitrárias como justificativa tanto para regimes sociopolíticos dominadores quanto para decisões individuais e coletivas daninhas para o ser humano e para o planeta Terra. Além de problemas facilmente perceptíveis como os excessos muçulmanos do Talibã ou cristãos de G. W. Bush, há derivações mais sutis: por exemplo, a afirmação do presidente francês Nicolas Sarkozy de que em uma república a crença na transcendência é um pré-requisito: essa é uma forma velada de dizer que um bom cidadão deve ser um fiel, deve acreditar em deus (mas qual deus? Aquele que o Estado defende?).
A segunda questão refere-se à necessidade de moral humana. Diversos pensadores de origem religiosa afirmam que, sem a crença em deus (mas qual deus?), o ser humano é imoral e criminoso. Ora, tal afirmação é um duplo erro: crer em deus não garante a moralidade nem descrer significa imoralidade. Os exemplos novamente são fáceis e variados: a quantidade de criminosos tementes a deus é enorme (na verdade, quase a totalidade deles), assim como a quantidade de humanistas e beneméritos ateus, agnósticos é também enorme – e, em particular, em uma porcentagem muito maior daqueles que creem em deus.
Essas são questões polêmicas, que suscitam fortes paixões. Para tratar delas, é necessário cuidado intelectual, respeito pela posição alheia e compromisso com as liberdades públicas. Respeitadas essas condições, todos temos a ganhar, agora que o debate está aberto.

04 fevereiro 2009

A soberba de Cláudio Lembo

Recentemente o ex-Governador de São Paulo, Cláudio Lembo, publicou um artigo no portal Terra (ver aqui) acusando quem não crê em deus de ser anti-ético e antissocial. Uma afirmação dessas é terrível, é detestável e não pode passar incólume. Assim, enviei ao ex-Governador a carta abaixo.

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Prezado Professor Lembo:


Li em um artigo publicado no portal Terra que, para o senhor, a recente campanha atéia é uma "explosão de soberba"; além disso, atribui aos "ateus" e "agnósticos" a atual crise financeira mundial.


Suas opiniões são fantasticamente imaginativas.


Para começar, repete o bordão de que é necessário acreditar em divindades para ser ético e ter um comportamento moralmente orientado e aceitável. Isso é mentira e é um duplo erro: seja porque atribui à crença em deus o comportamente ético, seja porque atribui à descrença em deus o comportamento anti-ético. Senão, vejamos.


Os maiores fascínoras do mundo eram TODOS crentes ou saídos de seminários, estando à frente, é claro, a trinca Stálin, Hitler e Mussolini - mas não nos esqueçamos de todos os criminosos comuns de todos os países do mundo, que aparecem na televisão e nos jornais rezando e pedindo clemência a deus; também não se esqueça dos criminosos políticos e de colarinho branco, que fazem as mesmas coisas. Também não nos esqueçamos dos criminosos políticos brasileiros, a começar pelos militares que torturaram e mataram (aliás: durante os seus mandatos parlamentares e executivos): todos eles formados nas tradições dos anos 1920 e 1930, todos eles bons devotos.


Por outro lado, grandes beneméritos da Humanidade são ateus, agnósticos ou humanistas. Fiquemos apenas no Brasil: Benjamin Constant e Rondon (para citar dois que já morreram e cujos valores ninguém - nem o senhor - discutem) e Dráuzio Varela. Mas também o Gal. Pery Bevilácqua que, sem acreditar em deus, combateu o despotismo do regime de 1964 no Supremo Tribunal Militar.


Se o senhor parasse para refletir e deixasse seus preconceitos cristãos de lado, perceberia que é exatamente a crença em deus que permite que os crentes ajam de maneira anti-ética, imoral e completamente antissocial: afinal de contas, prestam contas a uma "autoridade maior". A preocupação com esta vida e o respeito ao ser humano é o que leva os descrentes no deus a adotarem um comportamento ético e respeitoso aos seus semelhantes: afinal de contas, vivem em sociedade, vivem apenas nesta vida e têm responsabilidades afetivas, práticas, intelectuais e - por que não? - jurídicas com os seres humanos.


Dessa forma, o senhor consegue a proeza de repetir o sofisma segundo o qual "acreditar em algo" é sinônimo de "acreditar em deus". Eu não acredito em deus: isso equivale a não acreditar em nada? Eu acredito no ser humano, eu acredito que há leis naturais no mundo, eu acredito que estou vivo, eu acredito (por mais difícil que seja) que o senhor falou as bobagens acima e, por fim, eu acredito que as idéias que o senhor expôs são todas elas preconceituosas, mistificadoras e intolerantes.


Mas o senhor também afirma que a atual crise econômico-financeira é devida à "falta de valores" dos "ateus". Pois bem: se não se baseasse em preconceitos e parasse para pensar e observar o que de fato ocorre à sua volta, perceberia que a crise surgiu nos Estados Unidos, onde a população é fortemente cristã e, de qualquer forma, crente em deus; exatamente porque crêem em deus é que se sentem autorizados a agirem de maneira irresponsável. Duvida disso? Pois bem: faça uma pesquisa sobre crenças religiosas nos Estados Unidos. Ah, lembrei: ela já existe e, não sendo apenas uma mas várias, comprovam elas o que disse.


Além disso, as crenças nos deuses não garantem um comportamento ético por si: o crente, quando é "ético", de modo geral não o é porque entende a importância e os próprios conceitos de "ética" e de "moralidade". Os crentes são "éticos" porque, literalmente, têm medo do inferno: basta o senhor sair às ruas de São Paulo para ver as pichações nos muros; ou, talvez, vá ao Rio de Janeiro ler esse "raciocínio" exposto em quantidade assustadoramente maior. Ou, ainda, fique insone uma noite e assista à programação dos pequenos canais abertos da televisão.


É necessário também corrigir uma imprecisão conceitual: o agnosticismo não é um ficar em cima do muro, uma indecisão sobre a existência ou não do deus por debilidade de caráter; é uma tomada firme de posição no mundo e a favor do ser humano, em que o problema de deus é deixado de lado como insolúvel e inútil. Mas o senhor deve saber disso: para o senhor, é melhor o ateísmo, que põe em questão o seu deus, que o agnosticismo, que simplesmente o deixa de lado.


Last but not the least, é importante notar que o senhor, sendo fiel ao seu pensamento e crente em deus, é profundamente intolerante com aqueles que não acreditam naquilo em que o senhor acredita. Mas isso não lhe faz diferença, não é mesmo? Afinal de contas, o senhor responde a uma autoridade maior, não se importando com os seres humanos.


Humanamente,


Gustavo Biscaia de Lacerda

Sociólogo e Cientista Político

28 janeiro 2009

Ele é meu e não abro!

Mudando um pouco o foco do blogue, publico trechos de um artigo escrito pela socióloga carioca Vânia Leal Cintra contra a reforma ortográfica que passou a valer em 1° de janeiro de 2009. Como ela, parece-me injustificável e inaceitável essa mudança.

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Só os que se recusam a calcular a dimensão das conseqüências dos atos insanos do atual Governo me dirão que estou errada!
Senhores e Senhoras, estou lhes pedindo a atenção, a consciência e uma conduta coerente.
Alguém poderia nos dizer de repente que a pauta musical, as claves ou as colcheias são desnecessárias para que se escreva e se leia música e, por isso, por decreto, poderia pretender eliminá-las em determinada região do mundo? Por certo que não. Pois como alfabetizar em português desprezando-se a correspondência entre um som e seu símbolo gráfico?
O texto que repasso abaixo “brinca” com o banimento do trema. Mas demonstra sobejamente o absurdo da atitude de submissão absoluta às conjunturas assumida pelos membros da ABL, que aprovaram e incentivaram a "reforma" ortográfica; e reafirma a imbecilidade absoluta do Governo brasileiro, mais uma vez comprovando-se que ele é composto por semi-alfabetizados que tocam de ouvido, a começar pelo Presidente [...].
No que depender de mim, ninguém nos mata ou rouba o trema. Ele é patrimônio intelectual nacional, é parte de nossa língua escrita e falada. Hei de usá-lo e defendê-lo até a morte! Mas quem sou eu para ser garante de algo, ainda mais agindo sozinha? Defender esse patrimônio não só é um direito meu e é meu dever, como é um direito e um dever nossos, dos brasileiros todos, um direito inalienável, um dever impostergável.
Se o trema é imprescindível à nossa língua, o K, o W e o Y são signos que puderam ser inteligentemente banidos de nosso alfabeto por serem desnecessários. Uma das razões que exigem novamente a sua incorporação é a grafia, agora tornada “oficial”, dos nomes de tribos [...]. E, assim, concordamos com ressuscitar o que morto e enterrado já estava, e falta nenhuma nos fazia, para que essa gente possa, além de nos impor seus “direitos” duvidosos, impor-nos sua linguagem curta e rudimentar, artificialmente remontada para que pudesse ser reconhecida como “tradicional” em seus grupos, em nossos mapas, que passam a mostrar territórios com nomes “internacionais”, e em nossos livros escolares.
Há, no entanto, uma outra razão ainda, bastante pragmática e maldosa, para que o K, o W e o Y tenham sido recuperados. O raciocínio e também as reações são estimulados por sensações, portanto, são estimulados por palavras que possam ser ouvidas e por imagens que possam ser vistas. Do Natal sob a neve ao peru devorado em ação de graças, do automóvel em impecáveis auto-estradas aos personagens de filmes e livros de ficção ou pseudo-história real, do alimento infantil ao sabonete, das placas de descontos e promoções às de entrega em domicílio, tudo vem sendo empurrado goela abaixo do brasileiro como se ele nunca pudesse ter falado desde sempre o português ou ter vivido desde sempre no Brasil. Observamos ainda que as marcas comerciais de produtos que consumimos são, em sua maioria, estrangeiras, que muitos deles são importados, e que, na propaganda que deles se faz, dos insumos, das técnicas e dos processos de sua fabricação, tudo goza do livre direito de ser grafado em inglês e a pronúncia original se mantém.
Vivemos como se nós fôssemos a ficção e a propaganda fosse a realidade. Cada vez mais sentimos a necessidade de “ler no original”... o que cada vez mais nos entorpece a capacidade de criar e de criticar. Os nomes dos produtos e dos responsáveis por eles, cheios de Ks, Ws e Ys, que nenhum glamour possuem na língua original, mas sim, nela, têm significado objetivo e são plenos de sentido, transformam-se em palavras mágicas, de sentido misterioso e, por isso, sejam materiais ou intelectuais, por piores que sejam, esses produtos fascinam o consumidor nacional. Os sons que os anunciam são ininteligíveis à maioria da população. Os ambientes em que são apresentados são irreconhecíveis. Mas o efeito desse conjunto é irresistível. Que benefício isso nos traz? Nenhum. A nada isso atende senão aos interesses comerciais e laborais estrangeiros. Facilitando, inclusive, que as embalagens e as mesmas propagandas sejam também importadas, ou seja, facilitando que haja cada vez menos postos de trabalho no País. Não há perguntas, não há mais dúvidas. Não há necessidade de argumentos, de explicações ou de comprovações. E cada vez menos são requeridas palavras para convencer. O que cada vez mais desestimula o raciocínio lógico, e escancara o caminho a que nunca sejam ponderados os motivos que justificam o avanço de toda gente estrangeira, a quem sempre nos submetemos, sobre nós, e que todos esses motivos, por mais fúteis ou mais sórdidos, sejam aceitos sem questionamento. As imagens nos bastam, são “bonitas” e, portanto, a “essência” delas nos deve “fazer bem”.
Que língua, afinal, nossas crianças estarão aprendendo a ler, a escrever e a falar? Que língua ampara seu crescimento intelectual? Em que ambiente estão sendo treinadas a sobreviver? Que valores estão sendo induzidas a adotar?
Nesse ponto se inaugura o processo que nos leva a encontrar a submissão como um fato natural.
Da mesma forma que deveríamos defender o trema com unhas e dentes, ninguém nos deveria obrigar a utilizar um K em lugar de QU, ou, muito menos, um W em palavras em que seu som seja um U ou aceitar um Y intrometido em nossas palavras. Meu próprio nome poderia ter sido registrado com W inicial, tal como muitas Wanias têm os seus. Mesmo tendo muita simpatia pelas questões e pelos "direitos" das chamadas “minorias” ou tendo muito fascínio pela excelência da produção dos povos ditos mais desenvolvidos, ninguém será capaz de chamá-las de Uania por isso. Quando os pais de uma criança resolvem registrá-la com nomes estranhos ou quando o escrivão encarregado do registro de nascimento de alguém resolve inventar e “enfeitar” um nome próprio, com um ph, por exemplo, reconhecemos esse ato como uma invenção tola ou como pernosticismo. Mas isso não afeta o conjunto da Nação, pois estará restrito a um âmbito individual. O que não tem qualquer cabimento é aceitarmos que um signo único assuma dois sons diferentes numa mesma língua ou que um sinal inútil venha a competir com outros sinais já existentes e que se mostram suficientes, competição que apenas provoca mais confusão e cada vez menos saber.
O que hoje nos estão impondo com a “reforma” ortográfica não significa qualquer evolução, é apenas um retrocesso. E é um atentado contra nossa integridade. Em pouco tempo estaremos aceitando ler e escrever utilizando os símbolos do alfabeto fonético internacional. E nos comunicando apenas por monossílabos.
A linguagem é um valor nacional estrutural. Em vez de macular nossa grafia, de permitir que nossa linguagem seja sobrepujada por outra qualquer ou de aceitar que ela possa ser desnecessária a certos grupos étnicos ou insuficiente a certos grupos profissionais, deveríamos tratar de fortalecê-la, não permitindo que retrocedesse às condições do séc. XVI. Amanhã ou depois poderemos estar incorporando um Ñ facultativo ao abecedário porque alguns o consideram mais elegante, mais econômico ou mais “correto” ao dialeto das fronteiras. E por certo veremos ser eliminada a cedilha do C. Corremos, assim, o risco de colaborar com transformar o rico idioma de Camões, que tanto ajudamos a se desenvolver e a se impor no mundo, em um dialeto afro-indo-ibérico, um linguajar de “tribo”, absolutamente desestruturado, que nos diminuirá e nos desestruturará como Nação, impedindo, para júbilo daqueles que acreditam que os recursos do mundo existem para que sejam partilhados entre os poucos que demonstrem possuir e exercer mais poder, que defendamos o que a nossa história permitiu que fosse nosso e assim nosso deverá permanecer.
Senhores e Senhoras, estou lhes pedindo a atenção, a consciência e uma conduta coerente.
Não podemos permitir que tantas tolices que são verdadeiros crimes contra o patrimônio nacional se façam com nossa conivência, apostando nos resultados de nossa inércia.
É preciso que nos organizemos e entremos urgentemente com uma ação coletiva na Justiça contra essa "reforma" ortográfica estúpida.
Talvez caiba um Mandado de Segurança, não sei, não sou do ramo.
Mas quem puder que ajude, com seu saber e sua habilitação profissional, de alguma forma, o nosso País e todos nós, brasileiros, a nos manter de pé — em vez de apenas lamentar os prejuízos que vamos acumulando momento a momento, acreditando que a responsabilidade por eles não lhe cabe ou que, individualmente, estará a salvo deles. Não podemos mais permanecer assistindo coisas estúpidas acontecendo, conforme a vontade pretensamente “soberana” das autoridades governamentais, e a nos considerar impotentes sem que tenhamos ao menos tentado evitá-las ou revertê-las.
Só os que se recusam a enxergar a dimensão das conseqüências dessa "reforma" sobre a expectativa de manutenção e afirmação de nossa unidade e dos valores e recursos nacionais poderão me dizer que estou errada!
Ou aqueles a quem nada disso importaria.
Vania

"Laicidade positiva"

No ano passado (em 2008) o Presidente francês N. Sarkozy defendeu, em reuniões com o papa Bento XVI, o conceito de "laicidade positiva". No Brasil, como de hábito, não demos muita atenção a isso: afinal de contas, "laicidade", para nós, se tem algum significado, é algo próximo de um xingamento ou algo a evitar-se.

Felizmente os franceses e alguns britânicos não ficaram mudos ao conceito de "laicidade positiva", esquadrinhando os argumentos de Sarkozy e tirando as conseqüências políticas deles.

Em primeiro lugar, se Nicolas Sarkozy - com o apoio do papa - defende uma "laicidade positiva", qual seria a "laicidade negativa"? Seria, evidententemente, a tradicional laicidade francesa, defendida desde o Iluminismo, proclamada por Danton na Revolução Francesa e finalmente transformada em lei em 1905. Ela consiste simplesmente na separação entre Igreja e Estado, em que o Estado não professa nenhuma religião e também não persegue nenhuma: ao contrário do que os sofistas de plantão argumentam, não se trata de um "Estado ateu", mas de um "Estado agnóstico".

Definir o princípio da separação entre a Igreja e o Estado como "negativa" tem um efeito psicológico específico. Não se limita a definir uma laicidade em oposição a outra, mas qualifica uma e outra, de modo que a "negativa" é ruim, fraca, falha. Sarkozy sabe disso e não usou essa expressão por engano.

Se assim é a laicidade negativa, qual o "positivo", qual a vantagem da laicidade positiva de Sarkozy? São várias as vantagens por ele propaladas.

Em primeiro lugar, ela não persegue nenhuma religião (o que já é um sofisma, pois a "outra" laicidade acima de tudo e antes que qualquer outra coisa não o faz).

Além disso, ela permite que os grupos sociais e políticos religiosos exprimam-se qua religiosos e possam influenciar, qua religiosos, a política e o Estado. Diversos críticos da laicidade positiva afirmam que com isso o conceito de universalismo cidadão cai por terra, pois cada grupo poderá defender a sua perspectiva específica contra as demais e assumir uma legislação particularista: o comunitarismo teria como uma de suas conseqüências a criação (ou melhor, a aplicação) de leis ao estilo xaria, como a Inglaterra e o Canadá (talvez não por acaso, dois países que adotam a Common Law, em oposição ao Direito positivo de origem romana) já têm feito.

Uma outra característica da laicidade positiva é que, com ela, pode o chefe de Estado da República Francesa opinar sobre assuntos religiosos e, por extensão, de consciência e de opiniões - em particular, criticando quem não professa nenhuma fé como "monstruosidades morais". Ele faz isso desconsiderando que não cabe ao chefe do governo emitir opiniões sobre as crenças de seus cidadãos, desde que essas crenças não se ponham contra as leis da República... em outras palavras, Sarkozy assume uma posição literalmente retrógrada, que volta no tempo, em que o poder Temporal decide sobre matérias de consciência e dita em que os seus cidadãos podem ou não acreditar. (Penso na Idade Média e também na Idade Moderna dos reis Luíses, mas Sarkozy, que já desprezou publicamente os imigrantes argelinos de Paris, talvez também se lembre da Action Française, do regime de Vichy e do homem forte que, do exterior, apoiava-a...)

Em outras palavras, a "laicidade positiva" é uma mistificação que Nicolas Sarkozy criou para negar, sob todos os aspectos, a laicidade, conforme ela foi elaborada, defendida e institucionalizada na França. Detalhe 1: Sarkozy faz isso sob o olhar atento e aprovador de seu confessor-mor, o papa Bento XVI.
Detalhe 2: ao mesmo tempo em que afirmava esses importantes e desastrosos conceitos políticos, Sarkozy literalmente distraía a atenção pública com seu romance com Carla Bruni.

No Brasil não temos o hábito de refletir sobre o conteúdo dos discursos dos presidentes da República - mesmo porque os nossos presidentes, a começar por Lula, não falam coisa com coisa -, mas é uma questão de tempo até começarmos a sentir as conseqüências do Estado confessional, ops, da "laicidade positiva".

Para os interessados no assunto, informei-me a respeito em diversos blogues - todos eles europeus:

http://www.mezetulle.net/article-25741617.html

http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2008/feb/13/vivelalaicite
http://politique.hautetfort.com/archive/2008/01/16/laicite-positive.html

http://www.gaucherepublicaine.org/lettres/598.htm#goArticle3

http://esquerda-republicana.blogspot.com/2008/09/catherine-kintzler-cest-quoi-la-lacit.html

http://www.revue-republicaine.fr/spip.php?article1564