04 janeiro 2007

Positivismo, de Noel Rosa

Positivismo
Noel Rosa e Orestes Barbosa (1933)

A verdade, meu amor, mora num poço
É Pilatos, já na bíblia, quem nos diz,
E também faleceu por ter pescoço
O autor da guilhotina de Paris.

Vai, orgulhosa querida,
Mas aceita esta lição:
No câmbio incerto da vida
A libra é sempre o coração.

O amor por princípio, a ordem por base,
O progresso é que deve vir por fim,
Desprezaste esta lei de Augusto Comte
E foste ser feliz longe de mim.

Vai, coração que não vibra,
Com teu jeito exorbitante,
Transformas mais outra libra
Em dívida flutuante.

Programa de incentivo ao uso da língua portuguesa

Programa de incentivo ao uso da língua portuguesa

Eis aqui um programa de cinco anos para resolver o problema da falta de autoconfiança do brasileiro na sua capacidade gramatical e ortográfica. Em vez de melhorar o ensino, vamos facilitar as coisas, afinal, o português é difícil demais mesmo. Para não assustar os poucos que sabem escrever, nem deixar mais confusos os que ainda tentam acertar, faremos tudo de forma gradual.

No primeiro ano, o “Ç” vai substituir o “S” e o “C” sibilantes, e o “Z” o “S” suave. Peçoas que açeçam a internet com freqüênçia vão adorar, prinçipalmente os adoleçentes. O “C” duro e o “QU” em que o “U” não é pronunçiado çerão trokados pelo “K”, já ke o çom é ekivalente. Iço deve akabar kom a konfuzão, e os teklados de komputador terão uma tekla a menos, olha çó ke koiza prátika e ekonômika.

Haverá um aumento do entuziasmo por parte do públiko no çegundo ano, kuando o problemátiko “H” mudo e todos os acentos, inkluzive o til, seraum eliminados. O “CH” çera çimplifikado para “X” e o “LH” pra “LI” ke da no mesmo e e mais façil. Iço fara kom ke palavras como “onra” fikem 20% mais kurtas e akabara kom o problema de çaber komo çe eskreve xuxu, xa e xatiçe.

Da mesma forma, o “G” ço çera uzado kuando o çom for komo em “gordo”, e çem o “U” porke naum çera preçizo, ja ke kuando o çom for igual ao de “G” em “tigela”, uza-çe o “J” pra façilitar ainda mais a vida da jente.

No terçeiro ano, a açeitaçaum publika da nova ortografia devera atinjir o estajio em ke mudanças mais komplikadas serão poçiveis. O governo vai enkorajar a remoçaum de letras dobradas que alem de desneçeçarias çempre foraum um problema terivel para as peçoas, que akabam fikando kom teror de soletrar. Alem diço, todos konkordaum ke os çinais de pontuaçaum komo virgulas dois pontos aspas e traveçaum tambem çaum difíçeis de uzar e preçizam kair e olia falando çerio já vaum tarde.

No kuarto ano todas as peçoas já çeraum reçeptivas a koizas komo a eliminaçaum do plural nos adjetivo e nos substantivo e a unificaçaum do U nas palavra toda ke termina kom L como fuziu xakau ou kriminau ja ke afinau a jente fala tudo iguau e açim fika mais faciu. Os karioka talvez naum gostem de akabar com os plurau porke eles gosta de eskrever xxx nos finau das palavra mas vaum akabar entendendo. Os paulista vaum adorar. Os goiano vaum kerer aproveitar pra akabar com o D nos jerundio mas ai tambem ja e eskuliambaçaum.

No kinto ano akaba a ipokrizia de çe kolokar R no finau dakelas palavra no infinitivo ja ke ningem fala mesmo e tambem U ou I no meio das palavra ke ningem pronunçia komo por exemplo roba toca e enjenhero e de uzar O ou E em palavra ke todo mundo pronunçia como U ou I, i ai im vez di çi iskreve pur ezemplu kem ker falar kom ele vamu iskreve kem ke fala kum eli ki e muito milio çertu ? os çinau di interogaçaum i di isklamaçaum kontinuam pra jente çabe kuandu algem ta fazendu uma pergunta ou ta isclamandu ou gritandu kom a jenti e o pontu pra jenti sabe kuandu a fraze akabo.

Naum vai te mais problema ningem vai te mais eça barera pra çua açençaum çoçiau e çegurança pçikolojika todu mundu vai iskreve sempri çertu i çi intende muitu melio i di forma mais façiu e finaumenti todu mundu no Braziu vai çabe iskreve direitu ate us jornalista us publiçitario us blogeru us adivogado us iskrito i ate us pulitiko i u prezidenti olia ço ki maravilia.

Para que serve a Teoria Política?

“Liberdade, abre as asas sobre nós...” – I

Para o tema desta coluna, aproveitaremos o calendário para discutirmos um assunto fundamental da filosofia política – e da prática política –: a liberdade. Todavia, como esse tema constitui-se, de fato, em um dos fundamentos da reflexão política, dedicaremos uma série de artigos a ele.

No período que se estende da segunda metade de abril até a primeira metade de maio, comemoramos no Brasil três feriados nacionais: Tiradentes (21 de abril), o Dia do Trabalho (1º de maio) e a Comunhão das Raças (13 de maio)[1].

É claro que esses três feriados sugerem inúmeros temas para reflexão: por que esses dias e não outros; por que esses motivos e não outros; qual a utilidade de haver sistemas públicos de comemoração cívica por meio de datas. Na verdade, à exceção da pergunta relativa à escolha das datas específicas para cada feriado (“por que comemoramos o Dia de Tiradentes em 21 de abril?” etc.), as outras indagações não são nem sequer formuladas em nosso cotidiano e costuma-se considerar os feriados apenas como bons motivos para não trabalhar (ou estudar), para irmos à praia ou, simplesmente, para ficar em casa. É claro que isso não faz muito sentido e tem seus reflexos sobre a vida em comum, sobre a nossa res publica; todavia, esse assunto é tema para outras colunas[2].

O tema desta coluna é outro: o que poderia unir as três comemorações indicadas acima? Forçando um pouco as coisas, podemos dizer que é a liberdade: o Brasil como país livre da opressão externa; o trabalho e os trabalhadores dignificados e respeitados como uma forma de expressão e realização do ser humano e, por fim, o fim da opressão de um grupo sobre outro, no seio da sociedade brasileira. Todos os três referem-se a grupos, a coletividades, ou seja, apenas na medida em que têm um significado coletivo – e para o conjunto dos brasileiros – é que são comemorados, mas não é difícil perceber que a forma como cada um realiza a liberdade é diferente. Um refere-se ao fim de limitações que a sociedade sofre de fora; outro refere-se a limitações institucionalizadas que um grupo específico da sociedade sofre no interior dessa mesma sociedade; outro, ainda, considera a forma básica como a riqueza é produzida e em que a maior parte da sociedade está envolvida diariamente.

A figura dos grilhões, das correntes, é muito representativa do tipo de liberdade de Tiradentes e da Confraternização das Raças; já o Dia do Trabalho não é tão facilmente identificável com “grilhões”: mas será, também, “liberdade”? Aliás, há apenas uma liberdade?

Como definir a liberdade? Cecília Meireles, em seu Romanceiro da Inconfidência, afirmou poeticamente que todos conhecem o seu sentido mas ninguém consegue defini-la; todavia, talvez seja possível uma primeira aproximação: liberdade pode ser a possibilidade de fazermos o que desejamos, sem restrições.

Antes de iniciarmos a discussão mais específica – que, aliás, ficará apenas para as próximas colunas –, apresentaremos algumas outras situações, diversas das anteriores, em que se busca realizar a liberdade. O que há de liberdade em cada uma delas? Haverá apenas uma única forma de liberdade?

- A possibilidade de adquirir os produtos que quiser, em meio a uma variedade de opções para cada produto.
- A possibilidade de decidir, individualmente, o próprio destino.
- A possibilidade de deslocar-se para onde desejar, no território da coletividade de que participa.
- A possibilidade de escolher a própria religião.
- A possibilidade de exprimir seus próprios valores e opiniões.
- A possibilidade de submeter-se às regras elaboradas pelo grupo, com a participação de si mesmo.
- A possibilidade de submeter-se individualmente às regras elaboradas por si mesmo.
- A possibilidade de viver como bem entender, sem sofrer perseguição de espécie alguma, de indivíduos ou do Estado.



[1] Poderíamos incluir nessa pequena relação outra data comemorativa – o 19 de abril, Dia do Índio –, mas nem ele é um feriado nacional nem faria muito sentido, para a discussão desta coluna, sua inclusão no mesmo grupo que as datas indicadas acima.
[2] Em todo caso, para quem tiver interesse, leituras interessantíssimas a respeito do sistema de feriados podem ser encontrados nos escritos dos positivistas brasileiros, em particular Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes, que no início da República, em 1889-1890, bateram-se por um sistema de comemorações públicas que fosse capaz de constituir uma identidade brasileira. Além das obras de Lemos e Teixeira Mendes, pode-se consultar com proveito o livro do historiador José Murilo de Carvalho, A formação das almas.

Palavras na Festa da Humanidade

Festa da Humanidade

(1º de Moisés – 1º de janeiro)

“Nós cansamo-nos de agir e até de pensar, mas jamais nos cansamos de amar” (Augusto Comte).

O dia 1º de Moisés no calendário positivista concreto, a que corresponde o dia 1º de janeiro no calendário júlio-gregoriano, é a data da festa maior do Positivismo; é quando se comemora a festa da Humanidade.

A Humanidade é o símbolo do Positivismo, é nosso Ser Supremo, é a síntese de nossas aspirações. Esse Ser Supremo, embora seja abstrato, é real; como sabemos, ele é composto pelo conjunto dos seres humanos convergentes do passado, do futuro e do presente. Ou melhor: do passado e do futuro, pois os seres do presente, aqueles que vivem – nós – podemos apenas aspirar a sermos incorporados à Humanidade.

Todos somos servidores da Humanidade: todos contribuímos de alguma forma com o bem-estar moral, intelectual ou material do conjunto da sociedade. Sem dúvida que há diversos indivíduos que vivem apenas para si ou que vivem sem se preocupar com seus irmãos, seus semelhantes; além disso, há aqueles que, ao invés de procurarem melhorar a vida, procuram piorar as coisas, aumentando a miséria, o sofrimento, a dor: nem os primeiros nem os segundos integrarão a Humanidade.

O ser humano tem uma natureza mista, ao mesmo tempo boa e má, ou melhor, egoísta e altruísta. Diferentemente do que dizia São Paulo, o ser humano não é mal por natureza e bom apenas pela graça divina; na verdade, séculos de observação atenta indicaram e demonstraram que o ser humano possui pendores egoístas e pendores altruístas: todos temos que comer, todos temos nossos projetos pessoais e a maior parte das pessoas quer constituir famílias: esses são alguns dos pendores egoístas. Eles são mais ou menos disciplináveis, são mais ou menos passíveis de servirem a objetivos altruístas, mas nem por isso deixam de ser egoístas. O que ocorre é que isso não esgota as potencialidades do ser humano e não nos impede de sermos altruístas, ou seja, de realizarmos ações boas pelo desejo de sermos gentis, educados ou, simplesmente, generosos. A palavra “egoísmo” vem de outra, “ego”, que significa “eu”: egoísmo é preocupar-se consigo mesmo. “Altruísmo” vem de “alter”, “outro”: o altruísmo é preocupar-se com os outros. É claro que não é possível alguém não se preocupar consigo mesmo, pois todos temos que viver, mas isso não quer dizer que nossas vidas esgotem-se em si mesmas, que devamos preocuparmo-nos apenas conosco, em desconsideração com os demais.

Viver é agir, é realizar; mesmo quando não fazemos nada realizamos alguma coisa. Viver em sociedade exige esforços ativos e contínuos; as ações, para realizarem-se, exigem o conhecimento da realidade, o conhecimento de como as coisas são e de como elas podem vir a ser. Devemos sempre sonhar, devemos ter metas e projetos – mas esses projetos, para realizarem-se, devem ser, antes de tudo, possíveis: conhecer a realidade é uma exigência, não um luxo. Da mesma forma, a ação e o conhecimento nunca se dão gratuitamente, pois que são sempre motivados pelos nossos pendores, nossos sonhos, nossos desejos. Daí a importância de desenvolvermos o altruísmo ao máximo e disciplinarmos o egoísmo. Como diz a sabedoria popular, “o amor é a única coisa que aumenta quando é dividida”.

Quando alguém nasce, surge em um mundo que lhe dá tudo: a própria vida, amor, carinho, cultura, língua. É certo que lhe dá também dor, sofrimento, dificuldades de toda ordem: mas o fato é que sozinho não tem nada e qualquer coisa que deseje conseguirá apenas com o apoio dos demais. De modo geral, até a maioridade somos dependentes de nossos pais; a partir dos 18 anos – antes eram 21 – somos responsáveis por nós mesmos e, a partir de certo ponto, por nossas famílias. Ora: até os 18 anos continuamos consumindo, sem repor nada – embora as alegrias domésticas sejam muito grandes! Depois dos 18 anos passamos a retribuir tudo aquilo que recebemos – mas será que em algum momento conseguimos devolver, de verdade, o que recebemos? É difícil. São de fato poucos os que conseguem devolver alguma para os demais. Essa situação de “dívida objetiva” – para com nossos antepassados e também para com nossos contemporâneos – implica que o dedicar nossas vidas para melhorar a vida das outras pessoas, o “viver para outrem” é tanto uma necessidade social como uma regra moral.

Será possível sermos obrigados a sermos altruístas? Será “bom”? Uma escritora francesa do século XIX, cuja vida foi muito dura, dizia que “nada excede aos prazeres da dedicação” e que “não existe nada de real exceto amar”: curiosamente, a ação altruísta traz uma satisfação pessoal que nenhuma ação egoísta produz!

A Humanidade é a nossa verdadeira providência, pois ela dá-nos tudo de que precisamos: afeto, conhecimentos, alimentos. Mas dar tudo não significa fazer qualquer coisa, não significa não obedecer a regras: a Humanidade não é um ser caprichoso e voluntarioso; não é um ser que “escreve certo por linhas tortas”. A Humanidade é um ser verdadeiro, real, que se realiza por meio da ação de seus filhos, dos seres humanos reais; como dizia um poeta do renascimento, “ela é filha de seu próprio filho”. Assim, enquanto existirem seres humanos, existirá a Humanidade, mas cessada a vida humana, a Humanidade deixará também cessará. Sua existência submete-se às leis naturais – da Astronomia, da Física, da Química, da Biologia, da Sociologia, da Moral – como qualquer ser vivo, apenas com a diferença de que a Humanidade mantém-se ao longo do tempo, com os seres humanos.

O mundo – aí incluído, sem dúvida, o Brasil – passa por problemas enormes, cujas dificuldades aumentaram em virtude da chamada “globalização”; o fanatismo, a ignorância, a irresponsabilidade têm aumentado ao extremo nos últimos anos, a serviço de interesses egoístas e mesquinhos, além de seres fantasioso; apenas ações claramente humanas, altruístas e esclarecidas, por meio da ação conjunta, sinérgica, das diversas forças das sociedades, poderão resolvê-los.

Em outras palavras, o ideal supremo é amar, conhecer e servir a Humanidade. Feliz festa da Humanidade!

Teorias sociais, violência e integração

Teorias sociais, violência e integração
Gustavo Biscaia de Lacerda[1]

Há alguns dias o meu amigo Elias Marcos Gonçalves fez-me uma pergunta bastante interessante. Infelizmente, como sói acontecer com as perguntas interessantes, essa não tinha uma resposta simples ou direta, exigindo considerações um pouco mais amplas. O curioso é que essa pergunta, em virtude dos acontecimentos recentes em São Paulo e em outras unidades da federação, tem uma atualidade dramática: quais teorias sociais insistem na violência, quais insistem na integração dos indivíduos?
Como se verá, este artigo não comporta nenhuma conclusão; ele consiste mais em uma longa exposição feita para um amigo, que julguei útil pôr à disposição de um público mais amplo. É claro que é limitado – mas é apenas uma introdução sumaríssima em duas páginas e meia.
Uma primeira resposta sobre o tema da violência é: todas abordam-no. A violência, percebida como algo positivo, negativo ou simplesmente um fato da vida, é algo presente em todas as sociedades e, portanto, todas as teorias têm que se haver com esse fato. O que muda, portanto, é o juízo de valor, ou, por outra, a maneira de lidar com ela – e aí as perspectivas são as mais diversas possíveis. Em todo caso, é interessante notar que a posição a respeito da violência tem uma certa simetria em relação à integração social, no sentido de que quanto maior a ênfase na integração, menor a na violência.
Além disso, é necessário um comentário talvez epistemológico: as teorias podem ou não pretender ser aplicadas mais ou menos imediatamente na prática. Assim, elas podem ser apenas o conhecimento do que os seres humanos fazem, importando apenas e tão-somente esse conhecimento, ou elas podem ser também um instrumento prévio para uma ação prática posterior. O grau de politização daí decorrente, ou seja, o grau de comprometimento com propostas político-partidárias variam.
O francês Augusto Comte, fundador da Sociologia, tinha uma perspectiva histórica da violência, especialmente no que se refere à evolução do Ocidente. Assim, na Antigüidade e na Idade Média a prática política e econômica fundava-se na violência mais ou menos sistematizada, mas na modernidade as relações tendem a ser pacíficas, com a violência sendo cada vez mais abominada (e abolida). Todavia, é importante notar que, para Comte, enquanto o Estado mantém a ordem civil (em última análise por meio da violência), a sociedade deve organizar-se autonomamente, de acordo com sua dinâmica própria, havendo um amplo espaço para o poder da opinião pública; a opinião pública, na verdade, é um outro poder, que se contrapõe ao Estado, complementando-o, por meio da legitimidade. Sendo os seres humanos ao mesmo tempo egoístas e altruístas, a integração social dos indivíduos dá-se em vários níveis: na economia, na vida cívica, na família, nas igrejas e escolas.
O alemão Carlos Marx talvez seja mais famoso (embora não necessariamente o mais conhecido). Suas opiniões teóricas a respeito da violência e da integração eram bastante ambíguas, se bem que suas opiniões práticas não o fossem. Para ele, a sociedade, capitalista, é uma violência institucionalizada: a burguesia explora economicamente o proletariado, alienando-o dos resultados de seu trabalho e do que o faz um ser humano. A violência a que é submetido o proletariado é ruim, mas para acabar com ela apenas mais violência, por meio da revolta coletiva, da classe proletária contra a classe burguesa, por meio da revolução social. O sentido da “revolução”, nesse caso, não tem nada de metafórico: Marx tinha em mente a Revolução Francesa, de 1798, e, depois, a Comuna de Paris (1871), quando usava essa palavra, pensando em uma violência apocalíptica e, messianicamente, redentora. A integração no capitalismo é um embuste; para criar uma verdadeira integração, apenas com o fim do capitalismo, que será também o fim das classes e da violência. Em suma: a violência é ruim, mas já que existe...
O francês Emílio Durkheim elaborou sua teoria sociológica observando os tipos de integração que cada sociedade apresenta, chegando a dois tipos extremos: a solidariedade mecânica e a orgânica. Enquanto a primeira caracteriza-se pela pouca diferenciação entre os indivíduos, a outra consiste na grande diferenciação entre cada qual, sendo que cada um tem uma grande consciência de si. Na solidariedade orgânica, os indivíduos são integrados à sociedade pela íntima dependência funcional que todos apresentam em relação a todos; além da divisão do trabalho, a consciência de que participam de um empreendimento comum é importante para essa integração. Ora, quando há integração, não há violência e vice-versa: são necessárias, portanto, instituições que permitam a cada um integrar-se econômica e “psicologicamente”.
Por fim, o alemão Max Weber tinha uma perspectiva mais limitada em relação a esses temas. Para ele, a violência era um fato da vida; nos limites do território nacional, o Estado é que controla exclusivamente seu uso legítimo mas, entre as nações, não há essa exclusividade e, se for necessário, que seja utilizada (Weber era um defensor do imperialismo alemão prévio à I Guerra Mundial, embora fosse admirador de Bismarck e, portanto, prudente). Weber não pretendia que sua teoria sociológica fosse “utilizada” – pelo menos, não além da compreensão das motivações humanas em seus atos.
É interessante notar que, mais recentemente, dois autores franceses, sem serem marxistas – aliás, bem longe disso! – adotaram perspectivas semelhantes à marxista no que se refere à violência na sociedade. Pedro Bourdieu e Miguel Foucault afirmaram, a respeito de diferentes objetos, que a violência é constitutiva da sociedade: para Bourdieu, além da violência física de que o Estado é o detentor em regime monopolístico, existe a violência simbólica, que, grosso modo, a classe dominante exerce sobre a classe dominada. Para Foucault, além da “grande violência” controlada pelo Estado, há uma série de “microviolências” que perpassam toda a sociedade, com vistas ao controle e à manipulação dos corpos individuais: a escola, o hospital, a prisão.
Já o norte-americano Talcott Parsons retomou, de maneira bastante idiossincrática, a perspectiva durkheimiana, enfatizando a integração dos indivíduos na sociedade e a irrupção da violência como sinal de falha nessa integração.
Os autores acima foram teóricos sociais, mas é importante não deixar de lado a teoria política. Mais que na teoria social, na teoria política a violência é um tema central e as relações violência-política delimitam duas grandes linhas teóricas: as que as percebem como antinômicas e as que as percebem como estreitamente vinculadas.
Aristóteles é o grande autor que apresenta a primeira corrente. Segundo ele, a violência pertence aos âmbitos doméstico e “internacional”: ela é possível “apenas” com a família, com os escravos e com as outras cidades, mas na deliberação pública dos rumos a seguir, entre indivíduos livres e iguais que buscam o bem comum, ela não é possível. Em outras palavras, a violência é pré-política, infrapolítica e extrapolítica – jamais verdadeiramente política. Essa concepção foi esposada pelos teóricos da Idade Média – Tomás de Aquino, por exemplo – e, após um longo interregno, foi retomada pela alemã Hannah Arendt, no século XX, que afirmava a centralidade do diálogo racional e tolerante para a vida política. O também alemão Jürgen Habermas tem uma concepção semelhante, com sua “teoria do agir comunicativo”. É claro que a violência, para esses autores, representa o fracasso da integração e a impossibilidade de uma coletividade.
A segunda corrente surgiu, historicamente, da negação da primeira, e é mais “moderna”, isto é, mais próxima de nossa realidade. Entre seus grandes autores podemos indicar o inglês Tomás Hobbes e o italiano Nicolau Maquiavel. Ambos consideravam que o ser humano é naturalmente violento, sendo necessário determinar os meios de controlar e/ou usar essa violência com fins legítimos. Para Hobbes, o potencial de violência é tão grande que apenas um poder absoluto, obtido pela cessação da liberdade de todos os indivíduos menos um, pode impor a paz. Maquiavel considerava que a violência é um meio entre outros de que dispõem os homens para a consecução de seus objetivos: a questão é saber se ela é adequada, não se ela é “legítima”. Exceção feita a H. Arendt e a Habermas, as teorias políticas contemporâneas adotam variações ou derivações das de Hobbes e Maquiavel.
Por fim, uma última teoria política que vale a pena citar, neste contexto, é a do alemão Carlos Schmidt. Mais ou menos variação da anterior, sua concepção é interessante porque afirma que a “essência” da política é a oposição amigo-inimigo: a partir do momento em que distinguimos entre “nós” e “eles”, por um motivo qualquer, estamos na política. Os motivos e os meios que opõem os “amigos” dos “inimigos” podem ser os mais variados possíveis – e a violência é um instrumento evidente.
Nessa segunda tradição de teoria política não se pode falar propriamente de “integração” (embora na primeira também não se possa); com Max Weber, é melhor falar em “legitimação”. A dissensão está sempre presente, às vezes à espreita; o que cumpre fazer é civilizar esses impulsos, mudando os hábitos e os costumes e criando instituições capazes de receber demandas de divergência, processá-las e dar respostas adequadas.