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06 outubro 2016

Livro "Curso Livre de Teoria Política: Normatividade e Empiria"

Está à venda o livro "Curso Livre de Teoria Oolítica: Normatividade e Empiria". É uma coletânea organizada por mim, por Renato Perissinotto e por José Leon Szwako e publicada pela editora Appris.

Entre os vários capítulos, há a minha contribuição específica, intitulada "Política e violência no Positivismo de Augusto Comte".

O livro é um pequeno manual de Teoria Política, permitindo reflexões e oferecendo sugestões para pesquisas teóricas e empíricas.


12 agosto 2015

Teoria política: governo antes do "parlamento"

Afirma-se habitualmente que, como a Presidência da República no Brasil tem a iniciativa da maioria das leis que são aprovadas e tem exclusividade na iniciativa de inúmeras questões (como administração pública e orçamento), o Presidente estaria "usurpando" as prerrogativas do parlamento.

Essa visão parece-me profundamente errada, ingênua e romântica. Ela parte do princípio de que caberia ao parlamento "fazer as leis" e ao governo, "executar as leis". O problema é que o governo não é um "executor de leis": a função do governo é... governar. E, precisamente na medida em que tem que e que efetivamente governa, é absolutamente natural, e mais do que isso, é necessário que a ele caibam prerrogativas de iniciativa legislativa.

A idéia de que o parlamento é um órgão legisferante, portanto, não faz sentido, exceto se lembrarmos que o parlamento historicamente foi um órgão de oposição ao governo - particularmente, mas de modo algum exclusivamente, às monarquias absolutas. A Inglaterra, no seu tumultuado século XVII (Cromwell e, depois, a chamada "Revolução Gloriosa"), mas também na sublevação feudal dos barões contra o rei João Sem Terra, no século XIII, é o grande exemplo disso. Na França, esses movimentos políticos dos barões foram adequadamente chamados, em meados do século XVIII, de "reação feudal".

O parlamento é o órgão de representação da população, seja da pluralidade da sociedade civil - no caso da Câmara dos Deputados, no Brasil -, seja das relações federativas - no caso do Senado Federal, no Brasil. O exame que ele realiza das propostas legislativas provenientes do chamado "poder Executivo" corresponde ao correto princípio ampliado que os estadunidenses puseram em prática no século XVIII: "no taxation without representation" ("nenhuma taxação sem representação"). Esse princípio pode e deve ser ampliado para "no legislation without representation" ("nenhuma legislação sem representação").

Todavia, é necessário notar que a "representação", embora evidentemente tenha no parlamento um de seus órgãos e mecanismos mais importantes, de maneira alguma esgota-se no parlamento: a própria "sociedade civil" pode e deve representar-se a si mesma. Esgotar a "representação" no parlamento não apenas não faz sentido como, aí sim, trata-se de uma "usurpação".

A teoria política exposta acima tem uma origem ao mesmo tempo histórica e sociológica e afasta-se do juridicismo de origem tardo-feudal que atribui a primazia ao parlamento em detrimento do governo. Adicionalmente, pode-se dizer que essa teoria prevê a idéia de "freios e contrapesos" ("checks and balances").

A teoria acima parte do governo e não da "representação"; todavia, essa teoria não nega nem camufla a necessidade de representação, ao passo que a teoria que dá primazia ao parlamento esconde e até nega a necessidade do governo. Por fim, deve-se notar que, nos termos contemporâneos - que são definidos indevidamente pelas categorias da primazia do parlamento -, esta teoria seria "presidencialista"; mas, seguindo a nossa proposta, é o parlamentarismo que não apenas camufla a existência do governo em nome da "representação", como também potencialmente cria tiranias (afinal, o governo pode ser todo-poderoso, ao originar-se do parlamento) e impede a existência dos "freios e contrapesos" (ao misturar e camuflar governo e "representação").

Não deixa de ser notável a quantidade de cientistas políticos que, mesmo afirmando a necessidade de deixar-se de lado o juridicismo próprio às teorias tardo-feudais e modernas, aceitam as formulações próprias às reações feudais dos séculos XVII e XVIII e que rejeitam as teorias mais claras, mais históricas e, acima de tudo, mais sociológicas, que partem da existência e da necessidade do governo. Em outras palavras, é notável a quantidade de cientistas políticos que aderem ao parlamentarismo, em vez de buscarem aperfeiçoar o "presidencialismo".

07 julho 2015

Gazeta do Povo: "O renovado perigo do parlamentarismo"

Artigo de minha autoria, publicado na Gazeta do Povo em 7.7.2015, a respeito do perigo do parlamentarismo.

O original pode ser lido aqui.

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O RENOVADO PERIGO DO PARLAMENTARISMO

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Texto publicado na edição impressa de 07 de julho de 2015

Há alguns dias, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), afirmou que está pessoalmente empenhado em aprovar mais uma emenda à Constituição Federal, desta vez em favor do parlamentarismo. Essa proposta surge em um momento em que o governo federal encontra-se imobilizado e extremamente mal avaliado pela população brasileira; evidentemente, Eduardo Cunha apresentou-a com vistas a beneficiar-se ele mesmo da medida. Como o presidente da Câmara já demonstrou repetidas vezes que é um articulador político excepcional, em particular para avançar sua própria agenda política – ainda que nem sempre com êxito –, convém prestar muita atenção a mais essa sua proposta.
Que se deixe a tarefa de governar a quem é de direito, ou seja, ao presidente da República
O Brasil teve duas experiências parlamentaristas: durante o Segundo Império (1840-1889) e no período 1961-1963. Na primeira vez, o sistema baseou-se no voto censitário cada vez mais restrito e legitimou o poder de uma pequena elite que apoiava os privilégios aristocráticos, a escravidão e o imperialismo brasileiro na América do Sul; no segundo período, o parlamentarismo serviu como um golpe camuflado para impedir que João Goulart assumisse a Presidência da República, após a renúncia de Jânio Quadros – mas, dois anos depois, em plebiscito nacional, o presidencialismo retornou. Na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 o parlamentarismo quase voltou ao Brasil, articulado em particular pelo então deputado federal Mário Covas (PMDB-SP); derrotada essa proposta, tentou-se em seguida, mais uma vez, aprová-la por meio do plebiscito realizado em 1993, em que se decidiria entre república ou monarquia e entre presidencialismo ou parlamentarismo: como se sabe, venceu a república presidencialista.
No parlamentarismo, como o chefe de governo provém do parlamento, ele tem de se submeter a esse órgão; assim, para adotar suas propostas políticas, o chefe de governo tem de negociar com cada um dos parlamentares, em arranjos que tendem a fazer-se a portas fechadas. Ao mesmo tempo, a figura do presidente da República tende a ser meramente decorativa, gerando um gasto público desnecessário e, portanto, injustificável.
Do ponto de vista histórico, o parlamentarismo surgiu na Inglaterra da Idade Moderna com dois objetivos: minar o poder do rei como soberano e impor a vontade do localismo dos barões à vontade central do rei. Certamente nem estamos na Inglaterra nem temos mais monarquia, mas o fato é que esses dois objetivos do parlamentarismo são daninhos ao Brasil: o poder central é responsável (crescentemente) por um sem-número de políticas públicas importantes para o desenvolvimento e a justiça social; além disso, está claro que essas políticas públicas não podem ser dominadas nem minadas pelos localismos.
Por outro lado, não se pode dizer que no Brasil o “poder central” (o governo) é monolítico e impermeável aos clamores sociais, pois os presidentes têm de negociar com os partidos políticos as suas propostas, no que se chama de “presidencialismo de coalizão”. Aliás, como se sabe, uma das críticas ao presidencialismo seria precisamente a necessidade dessas negociações, que têm se mostrado daninhas ao interesse público: não se sabe como – e principalmente se – o parlamentarismo resolveria esse problema.
O parlamento deve atuar como porta-voz da sociedade e como fiscal do governo: que se deixe a tarefa de governar a quem é de direito, ou seja, ao presidente da República. Em outras palavras, é importante que se evite, mais uma vez, o perigo do parlamentarismo.
Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.

23 fevereiro 2015

Artigo "Problemas de ensino e pesquisa de métodos e teorias: reflexões sobre três oposições"

A revista Ius Gentium, do grupo Uninter (Curitiba), publicou um texto de minha autoria, intitulado "Problemas de ensino e pesquisa de métodos e teorias: reflexões sobre três oposições".

Embora trate de questões mais acadêmicas, ele é evidentemente inspirado pelo Positivismo e pela obra de Augusto Comte.

O texto pode ser lido aqui.

O resumo do artigo é este:

A presente comunicação pretende refletir a respeito do ensino e da pesquisa de métodos e teorias em Ciência Política e RI (Relações Internacionais), a partir de nossa experiência pessoal em tais áreas. Para isso, o texto organiza-se em função de três oposições usuais: (1) Ciência Política versus Relações Internacionais; (2) métodos qualitativos versus métodos quantitativos; (3) teoria "empírica" versus teoria "normativa". A comunicação não será um "relato de caso", mas a discussão de alguns problemas de ensino e pesquisa de métodos e teorias recorrentes. No que se refere à primeira oposição, afirmamos a autonomia de cada área mas consideramos que RI é uma especialização teórico-metodológica da Ciência Política. Sobre a segunda oposição, entendemos que deve ocorrer um pluralismo metodológico, com vistas à complementaridade entre as metodologias, em vez da separação entre elas, resultando em "duas culturas" diferentes. Sobre a terceira oposição, vamos na direção contrária das críticas correntes a alguns desenvolvimentos do comportamentalismo e defendemos que a teoria política "empírica" deve ser levada tão a sério quanto a teoria "normativa".

Palavras-chave: Ensino de Ciência Política; Ensino de RI; Métodos de pesquisa; Métodos qualitativos; Métodos quantitativos; Teoria Política empírica; Teoria Política normativa.

14 outubro 2014

Sobre a política brasileira em 2014

Eu lembro-me de que, em 2002, eu comentava com alguns amigos e colegas do mestrado que Lula e o PT tinham que passar pelo governo para deixarem de ser principistas e quiméricos; na ocasião, virtualmente todos os meus colegas eram petistas.

Importa reconhecer que a mudança operada então, do PSDB para o PT na Presidência da República, foi necessária; o PDSB já não conseguiria satisfazer as ambições nacionais; mas, mesmo assim, o PT não correspondia exatamente a esses anseios, haja vista que, ao contrário do que aconteceu com FHC nas suas duas eleições, nem Lula nem o PT jamais ganharam a Presidência no primeiro turno.

Comparando o apoio maciço e idealista dos meus colegas, amigos, conhecidos e intelectuais em geral em favor do PT, de 2002, com a profunda desilusão, com o cinismo e até com a profunda rejeição que esse partido sofre hoje, não deixa de ser chocante o resultado. Se em 2002 eu esperava um choque de realidade para o PT, hoje eu observo que esse choque foi bem mais intenso do que eu esperava.

Absolutamente TODAS as práticas que o PT condenava, por vezes de maneira histérica e cansativa, foram aplicadas. Para piorar, quando essas práticas eram, e são, praticadas pelos outros partidos, ou melhor, pelos partidos com quem o PT disputa cargos, essas práticas são criticadas como sendo "fisiológicas", "privatistas", "antidemocráticas", "preconceituosas" etc.; quando é o PT e/ou seus partidos de apoio que as praticam, são "necessidades", é "sabedoria política", é "habilidade política".

Longe de mim justificar o injustificável e afirmar que o PT está certo e que os outros estão errados, ou vice-versa, isto é, que os outros estão certos e o PT, errado: todos estão errados - e esse é um dos maiores descalabros da política brasileira em 2014. 

O "choque de realidade" do PT e seus efeitos sobre a (moral) política nacional possivelmente é um dos grandes motivos das manifestações de 2013, juntamente com uma versão brasileira da "revolução silenciosa" (proposta em 1972 por R. Inglehart).

André Singer definiu o principismo petista como o "espírito de Sion" e o pragmatismo petista como o "espírito de Anhembi". Indiscutivelmente foi bom para o país que o PT abandonasse o "espírito de Sion", isto é, todas as quimeras socialistas que ele acalentava em virtude da união dos intelectuais e dos católicos esquerdistas (ditos, ou autonomeados, "progressistas"). Mas ao jogar a água do banho, levou com ela o bebê: um certo espírito republicano nas práticas políticas foi embora também. Os programas sociais aumentados desde 2004 (excluo o histrionismo do "Fome Zero") são a parte aproveitável desse "espírito de Sion", embora esses mesmos programas sejam programaticamente incoerentes, na medida em que são focalistas e particularistas e não universalistas, ou seja, seguem o "neoliberalismo" e ampliam as políticas criadas desde os governos de FHC e que o PT então chamava de "esmolas".

(A assinatura da criminosa Concordata com o Vaticano, em 2008, e o apoio à Igreja Universal NÃO são traições ao "espírito de Sion": integram o rol de práticas e idéias do PT desde sempre.)

Por fim, deixando de lado os puros militantes, sejam eles teóricos, sejam eles práticos, que constituem parcela de apoio cada vez menor do PT, espanta-me que haja intelectuais que simplesmente negam os deslizes, os erros, as malversações, as incoerências e até os crimes do PT. Uma coisa é haver intelectuais que reconhecem tudo isso mas que, em nome da continuidade dos programas (ou melhor, de alguns programas) defendem o PT e a reeleição de Dilma Rousseff; outra coisa são os "intelectuais" que fazem malabarismos teóricos para justificar o injustificável, lançando mão dos mais variados sofismas políticos ou lógicos. 

Nesse sentido, esses intelectuais especificamente petistas correspondem à negação prática do "poder Espiritual" proposto por Augusto Comte. Deixando de lado a terminologia estranha para os dias de hoje, Comte defendia que o "poder Espiritual" deveria ser autônomo em relação ao governo e ao Estado, a fim de manter sua capacidade crítica; não "crítica" no sentido de aporrinhar e de negar o que o partido rival faz, mas crítica no sentido de ser o órgão, o intérprete, o guia da opinião pública, ou seja, o conjunto de indivíduos que, submetendo-se à autoridade material do Estado, estabeleciam as condições de legitimidade das políticas públicas, do governo, do Estado, do regime político. Em vez de serem membros da opinião pública, esses intelectuais fazem questão de serem "intelectuais orgânicos", ou seja, profissionais da justificação teórica das atitudes práticas do partido político a que estão ligados.

Por que a referência específica aos intelectuais petistas? Porque, como observei no início desta postagem, em 2002 a quase totalidade dos intelectuais que eu conhecia eram petistas. Os danos que esse partido fez ao ambiente intelectual brasileiro são enormes. Mas, bem vistas as coisas, o PT não fez o que fez apenas devido à "lógica política": fez o que fez porque os indivíduos que o comandam assim o desejaram e porque, em um nível mais profundo, as idéias que os orientam conduzem a isso: não desenvolvimento nacional, integração social e humanismo, mas lutas de classes, "maquiavelismo" político e cinismo teológico-metafísico.

01 dezembro 2013

Livro sobre teoria política de Augusto Comte

Para os interessados, está à venda um livro eletrônico de minha autoria, reunindo artigos sobre a teoria política de Augusto Comte: "Teoria Política positivista: pensando com Augusto Comte" (Poiseis editoria):

http://www.poiesiseditora.com.br/publicacoes/teoria-política-positivista-pensando-augusto-comte





08 janeiro 2013

Conseqüências lógicas, sociais, políticas e morais da Astronomia


Na passagem abaixo Comte indica que a Astronomia fornece a primeira base para a disciplina moral, ao apresentar espetáculos exteriores com uma ordem regular e permanente. Entretanto, por si só a Astronomia conduz ao fatalismo, o que deve ser evitado e combatido. Ainda assim, a ordem astronômica permite que se combata o orgulho e as divagações da razão “pura”, de caráter metafísico: afinal, a ordem é imutável e ninguém pode furtar-se à sua influência, por mais imperfeita que ela seja. Comte indica que a ausência de leis, ou seja, de ordem, é um delírio metafísico; caso pudéssemos construir toda a ordem, não nos submeteríamos a ordem alguma: essa é base da vontade absoluta, cujas derivações políticas consistem nas concepções de que a realidade social é infinitamente plástica e infinitamente sujeita à manipulação humana movida pela pura “vontade” (individual ou coletiva).
Assim, o trecho abaixo evidencia que a Sociologia nomotética de Comte não afasta, de maneira alguma, uma abordagem “compreensiva”, conforme estreitamente defendido por Weber. Da mesma forma, Comte indica os fatores sociais que levaram ao desenvolvimento histórico da ciência (no caso, da Astronomia) e, inversamente, quais as conseqüências que tal desenvolvimento acarretou para a sociedade. (Convém notar que essa importância histórica e social é um dos motivos por que Comte apresenta a Astronomia como uma ciência à parte; outro motivo é a fundação da observação sistemática, com a conseqüência da fundação da indução e da elaboração de hipóteses e de teorias.)
Indo além, Comte indica da mesma forma as conseqüências morais que o desenvolvimento da Astronomia (ou, por outra, o desenvolvimento da observação celeste) têm para a moralidade humana: ela institui a noção de regularidade externa que se impõe a todos. Como indicado acima, essa noção, caso levada muito adiante, conduz ao fatalismo, isto é, à noção de que não há possibilidade alguma de modificação e/ou de intervenção humana: no caso da Astronomia isso é verdade, mas não o é para as demais ciências.

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“L’immuabilité d’un tel ordre constitue la première base systématique de la religion finale, pour régler et rallier, non-seulement nos opinions et nos actions, mais aussi nos affections elles-mêmes. Sans méconnaître sés imperfections réelles, c’est par lui que nous commencerons toujours à sentir le besoin d’une nécessité extérieure, comme condition fondamentale de toute discipline humaine. Ce premier apprentissage de la soumission offre pourtant un grave danger, tant qu’il se borne aux phénomènes immodifiables, où la résignation dégénère en fatalisme. Mais cette tendance initiale, qui troubla beaucoup l’évolution originale, devient aisément évitable dans une éducation systématique, qui subordonne toutes les études préliminaires à des vues d’ensemble sur leur nature et leur destination. Un tel inconvénient n’altérera point, même au début, la salutaire influence, autant morale que mentale, propre au sentiment continu de cette inflexibilité extérieure, sans laquelle rien ne pourrait contenir les discordances de notre orgueil et les divagations de notre raison.

On doit quelquefois regretter que cet ordre immodifiable soit si imparfait. Mais aucun homme sage ne saurait souhaiter d’en être affranchi ; puisque notre conduite manquerait aussitôt de but comme de règle. Le vœu de cette vagabonde indépendance résulta toujours du délire de l’orgueil métaphysique. Nos propres imperfections de tous genres ne nous destinent qu’à modifier, dans ses dispositions secondaires, un ordre éxterieur dont les lois essentielles sont inaccessibles à notre intervention quelconque. Là même où nous pouvons le plus, l’initiative ne nous appartient jamais, et nos efforts ne deviennent efficaces qu’en s’adaptant à cette nécessité inflexible, qu’il faut d’abord connaître pour la respecter toujours. S’il nous était donné de construire librement l’ordre total, nous deviendrions aussitôt incapables d’aucune vraie discipline, personelle ou sociale.

Mais, quelle que soit l’intime réalité d’une telle appréciation, elle est trop contraire à nos tendances primitives pour avoir jamais pu surgir assez, si tous les phénomènes, quoique réglés, eussent été vraiment modifiables. On sent aujourd’hui cette impossibilité par les grandes difficultés qu’éprouve l’admission des lois naturelles envers les événements, surtout sociaux, que leur complication nous permet de modifier beaucoup. Leur vraie notion ne peut prévaloir qu’en y appliquant convenablement la conviction préalable résultée des lois, plus simples et moins flexibles, relatives aux phénomènes plus généraux. Cette succession conduit, de proche en proche, à fonder le sentiment de l’ordre réel sur l’étude des événements qui ne comportent aucune modification volontaire. L’astronomie fournira donc toujours la première base objective de notre sagesse systématique” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 504-505).

21 agosto 2011

Sobre o estilo de Maquiavel e a Teoria Política moderna

Ao estudarmos a obra de Maquiavel, muitas vezes lemos que ele foi inovador e que, rompendo com uma tradição prévia – geralmente associada ao pensamento moral católico –, teria fundado a “Ciência Política moderna”.


Especificamente, o livrinho O príncipe, que é a obra mais famosa de Maquiavel, refletiria essas inovações, ao apresentar algumas observações teóricas com uma série de exemplos: mas as observações não são sistemáticas (por vezes resumem-se a algumas poucas linhas) e os exemplos freqüentemente têm várias páginas, de maneira que parecem desmesurados. Esse estilo de expor e raciocinar torna a compreensão do livro um tanto difícil – não porque o raciocínio seja complicado, mas porque com grande facilidade perdemos os fios da meada em meio aos exemplos.


O que muitos autores argumentam, ou sugerem[1], é que essa forma assistemática de argumentar seria devida ao ineditismo maquiaveliano. O raciocínio subjacente é o seguinte: ao romper com uma tradição “moralista” anterior, mais preocupada com o aconselhamento moral (em particular, a tradição dos “espelhos do príncipe”) que com a compreensão da realidade política prática, Maquiavel teria tido dificuldades para elaborar o seu pensamento – daí a assistematicidade combinada com a curiosa profusão de exemplos.


Ora, essa forma de raciocinar, embora à primeira vista seja tentadora, é errada. Antes de mais nada, porque se baseia em uma ilusão histórica, mais precisamente, em um anacronismo. O Ocidente não valoriza a Idade Média; por diversos motivos, considera-se que não se produziu intelectualmente nada nesse longo período. Todavia, isso é incorreto, pois considera-se que a fase medieval foi homogênea, isto é, como se não tivessem havido vários momentos social e intelectualmente diferentes entre si durante cerca de mil anos. Nesse sentido, os séculos finais da Idade Média caracterizaram-se pela decadência que se seguiu ao apogeu do domínio católico e da ordem feudal. Embora sempre tenha fortes havido disputas em toda a Idade Média, os seus séculos finais caracterizaram-se por inúmeras elaborações teóricas, que ao mesmo tempo procuravam justificar as contendas e dar um tratamento teórico às novas conjunturas políticas específicas.


Podemos pensar em duas disputas, em particular; essas duas disputas, na verdade, eram duas faces de uma única disputa maior, resultantes do reordenamento político e social da decadência da ordem católico-feudal. Por um lado, a oposição entre os dois poderes “universais” da época: a Igreja Católica, representada pelo Papado, que, a partir de sua supremacia espiritual, tencionava tornar-se politicamente superior a todos os chefes temporais; por outro lado, o Império Romano-Germânico, tornado “sagrado” pelo mesmo Papado que tentava deslegitimá-lo. Essa disputa durou séculos e teve episódios memoráveis dos pontos de vista prático e intelectual: podemos ficar somente na humilhação imposta pelo Papa Gregório VII ao Imperador Henrique IV, durante o inverno alpino na cidade de Canossa; mas o resultado dessa oposição, como sabemos, foi o enfraquecimento mútuo dos dois e o surgimento de condições para a afirmação da lealdade a um novo âmbito político. Esse novo âmbito era intermediário em termos de extensão territorial: nem “universal”, como o Papado e o Império, nem restrito, como os feudos; eram os reinos, que depois seriam chamados de estados nacionais modernos[2]. Entre inúmeros outros autores, podemos citar os famosos Dante e Guilherme de Ockham participando dessas lutas.


Ao mesmo tempo, os séculos finais da Idade Média caracterizaram-se, de uma perspectiva intelectual e artística, pelo Renascimento, ou seja, pela redescoberta européia das tradições gregas e romanas, a partir da sua difusão pelos árabes. O Renascimento, ao mesmo tempo em que forneceu elementos para as reflexões políticas envolvidas nas lutas entre Papado, Império e reis, também inspirou pensadores e políticos para tratarem das suas realidades específicas: pensamos nas “repúblicas renascentistas” sendo justificadas como a reafirmação, ou a continuidade, das antigas cidades-Estado da Grécia e de Roma.

Aliás, mesmo que não houvesse esses antecedentes imediatos, o Renascimento consistiu na retomada dos textos antigos, que continham reflexões extremamente sistemáticas sobre as realidades cósmica, social e moral: Aristóteles é o grande exemplo disso. Ora, Aristóteles não podia ser desconhecido de Maquiavel, pois Tomás de Aquino elaborou sua teologia procurando conjugar Sto. Agostinho com, precisamente, Aristóteles.

Em outras palavras, essas disputas políticas originaram uma grande elaboração intelectual; essa produção é desconsiderada quando se afirma que Maquiavel era radicalmente inédito ao escrever O príncipe.

Dito isso, poder-se-ia argumentar que a forma como O príncipe foi redigida é adequada ao seu objetivo, isto é, que corresponde precisamente a um manual prático para os chefes militares que desejem obter e manter o poder, fundando novas unidades políticas, adequadas à realidade do fim da Idade Média, isto é, adequadas à existência plena dos estados nacionais modernos[3].


Essa linha de argumentação é factível. Todavia, caso leiamos também os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, ou simplesmente Discorsi, veremos que eles apresentam a mesma forma narrativa: algumas observações teóricas mais ou menos pouco sistemáticas seguidas de longos exemplos históricos. Embora os Discorsi tivessem também uma preocupação prática – a (re)organização das repúblicas italianas, em particular Florença –, o fato é que eles têm objetivos muito menos pragmáticos, revestindo-se de um caráter mais normativo.


Retornando ao estilo teórico maquiaveliano: as observações acima sugerem que o tatear da escrita de Maquiavel não era devido à sua novidade, ao ineditismo de sua elaboração, mas consistia especificamente em um traço pessoal. Ele não era inédito nem rompia com uma tradição prévia porque inúmeros outros autores redigiram reflexões políticas agudas, tanto em termos de realismo quanto em termos de utilidade prática. O que ele pode ter feito é ter jogado uma pá de cal nos manuais de aconselhamento do tipo “espelho do príncipe” – próprios, talvez, à Idade Média – e iniciado a tradição de manuais adequados à luta prática – “como obter o poder e manter-se nele”.


Uma reflexão crua sobre os meios necessários e disponíveis para a obtenção do poder têm, evidentemente, uma grande importância prática, além de servir para a reflexão teórica. Mais do que isso: Maquiavel adotou uma forma de raciocinar que, atualmente, é chamada de “Teoria Política historicamente informada”, em que procurava utilizar a experiência histórica não apenas como guia, como fonte de exemplos, como conselheira, mas também como fonte de elementos para uma reflexão mais sistemática[4]. Embora tanto O príncipe quanto os Discorsi tenham elementos de cada uma dessas abordagens, enquanto O príncipe usa mais a história como conselheira, os Discorsi revelam uma abordagem da história como fonte para entender-se os processos sociais subjacentes.


Também convém notar que a obra de Maquiavel originou várias correntes e interpretações teóricas, todas elas riquíssimas e que se mantêm contribuindo para a compreensão que temos da política. Sem ser exaustivo, podemos pensar em Jean-Jacques Rousseau afirmando ser O príncipe um aviso ao povo, contra os poderosos; em Frederico II, escrevendo seu Anti-Maquiavel; em Antônio Gramsci vendo o “príncipe moderno” na figura do partido político; nos teóricos elitistas italianos (Gaetano Mosca, em particular) e, mais recentemente, nas elaborações do neo-republicanismo, a que se ligam Quentin Skinner, John McCormick, Newton Bignotto, Ricardo Silva e inúmeros outros.

Ainda assim, embora a abordagem de Maquiavel seja útil e interessante – particularmente, esposamos a concepção de que a Teoria Política deve ser “historicamente informada”, a fim de ser mais realista – e ele tenha originado ou contribuído com inúmeras correntes teóricas importantes, a reflexão sobre o estilo de escrita maquiaveliano não é muito favorável a ele. “Não ser favorável” não significa que ele não tenha escrito coisas que mereçam a leitura e a reflexão, mas que seu ineditismo não é tão marcante nem sua contribuição tão fundamental. Na verdade, como vimos, pode-se argumentar seriamente contra o seu ineditismo (deixando de lado a obviedade de que, em princípio, todo autor que escreve é inédito): essa concepção vincula-se à falta de consciência histórica. Da mesma forma, a falta de sistematicidade de seu pensamento leva a pôr seriamente em dúvida suas contribuições. 

O resultado disso é que somos levados a concordar com Augusto Comte em sua avaliação de Maquiavel[5]

“Avant de quitter cette second phase, je dois signaler Hobbes et Bossuet comme ayant déjà préparé alors la rénovation de la philosophie politique. Machiavel, avant eux, avait fait quelques heureuses tentatives partielles pour rattacher l’explication de certains phénomènes politiques à des causes purement naturelles, quoiqu’il ait deparé son ouvrage par une appréciation tout à fait vicieuse de la sociabilité moderne, qu’il ne put jamais suffisamment distinguer de l’ancienne. La célèbre conception de Hobbes sur l’état de guerre primordial et le prétendu règne de la force, a presque toujours été méconnue ; mais, considérée d’une manière impartiale, on sentira qu’elle a constitué un puissant aperçu primordial, statique et dynamique, de la prépondérance des influences temporelles dans l’ensemble permanent des conditions sociales ; et, aussi, de l’état nécessairement militaire des sociétés primitives. C’est la une vue saine introduite au milieu des hypothèses fantastiques sur l’état de nature et le contrat social, et elle a, par conséquent, une éminent valeur. La participation de Bossuet à cette préparation est plus évidente et moins disputée. J’ai déjà signalé la valeur de son élaboration historique, où, pour la première fois, les phenomènes politiques sont envisagés comme assujettis à des lois invariables que permettent de les déterminer les uns par les autres. Quoique le principe théologique qui dominait cette lumineuse conception dût l’altérer profondément, il ne pouvait dissimuler tout à fait sa valeur, ni empêcher son heureuse influence sur les études historiques de la période suivante. On sente, du reste, qu’elle ne pouvait naître alors qu’au sein du catholicisme, dont elle constitue la dernière inspiration capitale, puisque l’instinct négatif empêchait ailleurs toute juste appréciation quelconque de l’évolution humaine. La nature de grande service qu’a rendu Bossuet ressort de sa destination, qui était de représenter l’histoire systématique comme la base nécessaire de l’éducation politique”[6].




[1] Não penso em nenhum autor em particular neste momento; os comentários que faço são de fato genéricos e “impressionistas”, baseados nas leituras que fiz na época de estudante de graduação e de mestrado – antes, portanto, de estudar com atenção a História das Idéias. De qualquer forma, para o presente argumento, como se verá, a ausência de algum nome específico que tenha proposto o senso comum que comento não é tão problemática.

[2] Uma ótima exposição dessas lutas é o livro de Raquel Kritsch, Soberania – a construção de um conceito (São Paulo: Humanitas, 2002).

[3] A realidade vivida por Maquiavel era da incapacidade das cidades-Estado italianas manterem-se mais ou menos estáveis ao longo do tempo. Essa dificuldade foi aumentada bastante a partir das guerras da Itália, ou seja, a partir do momento em que dois novos estados nacionais – França e Espanha, particularmente a primeira – decidiram atuar na península.

[4] Uma exposição dos “estilos” das teorizações na Teoria Política pode ser lida no artigo de Ricardo Silva, “Identidades da teoria política: entre a ciência, a normatividade e a história” (Pensamento Plural, Pelotas, v. 3, p. 9-21, jul.-dez.2008. Disponível em: http://www.ufpel.edu.br/isp/ppgcs/pensamento-plural/edicoes/03/01.pdf. Acesso em: 26.maio.2011). A abordagem do uso sistemático da história para teorizar na política corresponderia, no texto de Ricardo Silva, à parceria mantida na última década e meia por Quentin Skinner com Phillip Pettit.

[5] Fonte da citação: Auguste Comte, La philosophie positive d’Auguste Comte, condensée par Miss Harriet Martineau (T. II. Paris: Louis Bahl, 1895, p. 491-492).

[6] “Antes de concluir essa segunda fase, devo indicar Hobbes e Bossuet como já tendo então preparado a renovação da filosofia política. Maquiavel, antes deles, fez algumas felizes tentativas parciais para vincular a explicação de certos fenômenos políticos a causas puramente naturais, embora tenha desfigurado sua obra por uma apreciação em todos os sentidos viciosa da sociabilidade moderna, que ele não pôde jamais distinguir suficientemente da antiga. A célebre concepção de Hobbes sobre o estado de guerra primordial e o pretendido reino da força foram quase sempre mal conhecidos, mas, considerada de uma forma imparcial, sentimos que ela constituiu uma poderosa percepção primordial, estática e dinâmica, da preponderância das influências temporais no conjunto permanente das condições sociais e, assim, do estado necessariamente militar das sociedades primitivas. Essa é uma sã visão introduzida no meio das hipóteses fantásticas sobre o estado de natureza e o contrato social e ela tem, em conseqüência, um valor eminente. A participação de Bossuet nessa preparação é mais evidente e menos disputada. Já assinalei o valor de sua elaboração histórica, em que, pela primeira vez, os fenômenos políticos foram percebidos como sujeitos a leis invariáveis que permitem determiná-las umas pelas outras. Embora o princípio teológico que dominou essa luminosa concepção devesse alterá-la profundamente, ele não pôde dissimular de todo seu valor, nem impedir sua feliz influência sobre os estudos históricos do período seguinte. Sentimos, quanto ao resto, que ela não podia nascer em outro lugar que não no seio do catolicismo, em que ela constitui a última inspiração capital, desde que o instinto negativo impediu alhures toda e qualquer justa apreciação da evolução humana. A natureza do grande serviço que rendeu Bossuet evidencia sua destinação, que foi a de representar a história sistemática como a base necessária da educação política” (tradução minha).

08 setembro 2010

Tese de doutorado sobre Augusto Comte: "O momento comtiano"

Está disponível na rede minha tese de doutorado em Sociologia Política sobre o projeto sociopolítico de A. Comte, intitulada "O momento comtiano: república e política no pensamento de Augusto Comte". Ela foi defendida em 29 de março de 2010, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UFSC, e tive a satisfação de ter como orientador o Prof. Ricardo V. Silva.

Em 2019 essa tese deverá ser publicada como livro pela Editora da UFPR.

http://www.tede.ufsc.br/teses/PSOP0369-T.pdf


O resumo da tese é este.


A pesquisa visa a expor e a explicar os principais traços da teoria política de Augusto Comte, considerando em particular seu projeto de república. Para isso, é necessário compreender o caráter sistêmico de tal pensamento, que implica que o todo precede as partes e que cada aspecto é ligado a todos os demais; assim, aplicando essa regra ao que Augusto Comte chama de “natureza humana” e à própria história humana, o que podemos chamar de “teoria política comtiana” é somente um aspecto de um pensamento englobante que abarca a inteireza da realidade humana.

Isso nos conduz a um novo princípio para compreendermos as idéias de Comte: o “englobamento de contrários”, conforme definido por Louis Dumont. Tal princípio consiste em que os valores sociais estabelecem ordens englobantes, que indicam a importância relativa de cada elemento face ao conjunto da sociedade; se o valor principal modificar-se ou alterar-se, a ordem dele derivada também se modifica. Assim, o Positivismo estabelece um princípio geral: o mais nobre modifica o mais grosseiro ao submeter-se a este; esse princípio é de caráter epistemológico, social e político e é completado por um par conceitual: “objetivo” e “subjetivo”. A combinação desses elementos resulta que o mais geral precede lógica, teórica e politicamente o mais específico, seja em termos humanos (subjetivos), seja em termos cosmológicos (objetivos); a essas oposições, especialmente na ordem humana, acrescenta-se outra: masculino-feminino, que pode ser convertida para intelectual/prático-moral/afetivo. Esses pares de oposições geram duas ordens gerais e englobantes de classificação: uma “oficial”, baseada em aspectos materiais, presentes e objetivos (políticos e econômicos), e outra “subjetiva”, baseada em aspectos espirituais e passados e futuros (intelectuais e morais).

Em termos metodológicos, como nos propomos a levar em consideração a lógica interna do pensamento comtiano, baseamo-nos nos conceitos elaborados por Mark Bevir: “tradições”, “dilemas” e “agência humana”. Grosso modo, eles referem-se respectivamente às correntes de pensamento que informam as idéias de alguém; as diferentes idéias que resultam em dificuldades que cada qual tem para confrontar ou para acomodar às suas próprias idéias na vida adulta; as capacidades e a liberdade individuais para criar novas formas de pensar e de organizar as idéias. Aplicando essas categorias analíticas a Comte, o resultado é o seguinte: as tradições que o informaram foram, de acordo com suas próprias observações, a dos “reacionários” (com Joseph de Maistre), a dos “revolucionários” (com o Marquês de Condorcet) e uma terceira, chamada genericamente de “positiva”, relacionada aos “enciclopedistas” (com Denis Diderot); seus dilemas eram os diálogos que realizou entre essas tradições a partir da terceira delas e, de maneira mais específica, a respeito dos problemas políticos, sociais e filosóficos com que se defrontou a França após a Revolução Francesa e, depois, com que o próprio Comte defrontou-se durante a década de 1840, particularmente durante a II República francesa (1848-1851).

Antes e durante a apresentação das idéias políticas comtianas, tratamos do ponto de vista teórico de alguns conceitos-chave tanto para a Teoria Política contemporânea quanto para a de Comte: “política”, “liberdade”, “igualdade”, “direitos e deveres”, “república”, “autoritarismo”, “ditadura” e, last but not the least, “democracia”. Após isso, apresentamos o projeto político positivista – nomeado em referência à realidade social, isto é, como “sociocracia” –; em termos gerais, esse projeto afirma que não há sociedade sem governo (nem vice-versa: não há governo sem sociedade); o governo, por seu turno, pode ser de dois tipos: espiritual ou temporal. A partir do “princípio de Aristóteles” – que estabelece que a sociedade consiste na separação dos ofícios e na convergência dos esforços –, o objetivo do governo é buscar a convergência dos esforços parciais: o poder Temporal no âmbito material, prático, e o poder Espiritual no que se refere às questões de idéias, valores e crenças. Além disso, enquanto o poder Temporal é responsável pelas pátrias (“cidades”, “cités”), o poder Espiritual atua no âmbito da educação, unindo entre si os cidadãos de cada cidade e as repúblicas do mundo inteiro.

As principais características das sociedades modernas, republicanas, são estas: pacifismo, altruísmo, generalidade de vistas; acima e antes de tudo, a estrita separação dos dois poderes (Temporal e Espiritual), conjugando a liberdade espiritual (isto é, as liberdades de pensamento e de expressão) com a ordem material (isto é, civil); ao mesmo tempo, deve ocorrer a consolidação dos poderes sociais (ou seja, políticos e econômicos) com afirmação das suas responsabilidades sociais, sob vigilância constante da opinião pública. A partir de tais valores e medidas práticas, segue-se uma detalhada e arrazoada relação de medidas específicas: transformação das grandes Forças Armadas em gendarmarias; fragmentação livre e pacífica dos grandes estados em pequenas unidades políticas; fim dos orçamentos teóricos (teológicos, metafísicos e científicos); estabelecimento da “hereditariedade sociocrática”; concentração do governo em um governante, seguida de um triumvirato, com a redução do parlamento a funções apenas e estritamente orçamentárias.


Palavras-chave: Teoria Política; englobamento de contrários; república; Augusto Comte; sociocracia; poder Espiritual; poder Temporal; liberdade.

04 janeiro 2007

Para que serve a Teoria Política?

“Liberdade, abre as asas sobre nós...” – I

Para o tema desta coluna, aproveitaremos o calendário para discutirmos um assunto fundamental da filosofia política – e da prática política –: a liberdade. Todavia, como esse tema constitui-se, de fato, em um dos fundamentos da reflexão política, dedicaremos uma série de artigos a ele.

No período que se estende da segunda metade de abril até a primeira metade de maio, comemoramos no Brasil três feriados nacionais: Tiradentes (21 de abril), o Dia do Trabalho (1º de maio) e a Comunhão das Raças (13 de maio)[1].

É claro que esses três feriados sugerem inúmeros temas para reflexão: por que esses dias e não outros; por que esses motivos e não outros; qual a utilidade de haver sistemas públicos de comemoração cívica por meio de datas. Na verdade, à exceção da pergunta relativa à escolha das datas específicas para cada feriado (“por que comemoramos o Dia de Tiradentes em 21 de abril?” etc.), as outras indagações não são nem sequer formuladas em nosso cotidiano e costuma-se considerar os feriados apenas como bons motivos para não trabalhar (ou estudar), para irmos à praia ou, simplesmente, para ficar em casa. É claro que isso não faz muito sentido e tem seus reflexos sobre a vida em comum, sobre a nossa res publica; todavia, esse assunto é tema para outras colunas[2].

O tema desta coluna é outro: o que poderia unir as três comemorações indicadas acima? Forçando um pouco as coisas, podemos dizer que é a liberdade: o Brasil como país livre da opressão externa; o trabalho e os trabalhadores dignificados e respeitados como uma forma de expressão e realização do ser humano e, por fim, o fim da opressão de um grupo sobre outro, no seio da sociedade brasileira. Todos os três referem-se a grupos, a coletividades, ou seja, apenas na medida em que têm um significado coletivo – e para o conjunto dos brasileiros – é que são comemorados, mas não é difícil perceber que a forma como cada um realiza a liberdade é diferente. Um refere-se ao fim de limitações que a sociedade sofre de fora; outro refere-se a limitações institucionalizadas que um grupo específico da sociedade sofre no interior dessa mesma sociedade; outro, ainda, considera a forma básica como a riqueza é produzida e em que a maior parte da sociedade está envolvida diariamente.

A figura dos grilhões, das correntes, é muito representativa do tipo de liberdade de Tiradentes e da Confraternização das Raças; já o Dia do Trabalho não é tão facilmente identificável com “grilhões”: mas será, também, “liberdade”? Aliás, há apenas uma liberdade?

Como definir a liberdade? Cecília Meireles, em seu Romanceiro da Inconfidência, afirmou poeticamente que todos conhecem o seu sentido mas ninguém consegue defini-la; todavia, talvez seja possível uma primeira aproximação: liberdade pode ser a possibilidade de fazermos o que desejamos, sem restrições.

Antes de iniciarmos a discussão mais específica – que, aliás, ficará apenas para as próximas colunas –, apresentaremos algumas outras situações, diversas das anteriores, em que se busca realizar a liberdade. O que há de liberdade em cada uma delas? Haverá apenas uma única forma de liberdade?

- A possibilidade de adquirir os produtos que quiser, em meio a uma variedade de opções para cada produto.
- A possibilidade de decidir, individualmente, o próprio destino.
- A possibilidade de deslocar-se para onde desejar, no território da coletividade de que participa.
- A possibilidade de escolher a própria religião.
- A possibilidade de exprimir seus próprios valores e opiniões.
- A possibilidade de submeter-se às regras elaboradas pelo grupo, com a participação de si mesmo.
- A possibilidade de submeter-se individualmente às regras elaboradas por si mesmo.
- A possibilidade de viver como bem entender, sem sofrer perseguição de espécie alguma, de indivíduos ou do Estado.



[1] Poderíamos incluir nessa pequena relação outra data comemorativa – o 19 de abril, Dia do Índio –, mas nem ele é um feriado nacional nem faria muito sentido, para a discussão desta coluna, sua inclusão no mesmo grupo que as datas indicadas acima.
[2] Em todo caso, para quem tiver interesse, leituras interessantíssimas a respeito do sistema de feriados podem ser encontrados nos escritos dos positivistas brasileiros, em particular Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes, que no início da República, em 1889-1890, bateram-se por um sistema de comemorações públicas que fosse capaz de constituir uma identidade brasileira. Além das obras de Lemos e Teixeira Mendes, pode-se consultar com proveito o livro do historiador José Murilo de Carvalho, A formação das almas.