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24 fevereiro 2020

Hernani Gomes da Costa: "Comentários a 'O momento comtiano'"

Comentários a O momento comtiano – República e Política no Pensamento de Augusto Comte, de Gustavo Biscaia de Lacerda

Hernani Gomes da Costa 

Desejo expressar aqui toda a minha satisfação pela recente leitura que fiz d’O momento comtiano, elaborado pelo meu amigo Gustavo Biscaia de Lacerda (e por ele defendido inicialmente como tese de doutorado há uma década) em 2010.



Se algum valor especial deve-se dar aos comentários de quem por cinco anos realizou as conferências dominicais no Templo da Humanidade (e de quem por 14 anos – desde 1986 até 2000 – envolveu-se nas alegrias e sobretudo nos dissabores daqueles que vieram a ser os últimos anos de vida do movimento positivista no Rio de Janeiro) então, não parecerão deslocados os meus esforços para, de novo tentar sorrir em gratidão àquilo que eu só posso chamar de um verdadeiro ACONTECIMENTO.

Com efeito, por tudo quanto me foi dado compreender do ideário político do positivismo, eu penso que seja a partir dessa obra, que o exame de tal programa alcançou enfim – entre nós e no resto do mundo – sua plena maturidade; com toda a liberdade e responsabilidade que tal maturidade encerra.

Ela alcançará, estou certo, um merecido lugar de destaque junto às seletas produções intelectuais que, embora vindas do meio acadêmico e a ele destinadas, obtiveram pela força irresistível de seu encanto, de sua verdade, de sua utilidade – e mesmo de sua incidental beleza – um destino bem maior que o comportável por aquelas estreitas e, por vezes, tão mesquinhas fronteiras.

Eu diria mesmo que tornou-se hoje IMPOSSÍVEL realizar-se um exame vasto e profundo da TOTALIDADE das concepções políticas do fundador da sociologia[1] sem uma longa estadia em suas páginas. Mais do que uma obra de referência ela se firmará, pois, como uma sorte de crivo para discernir – dentre a nova safra de comentadores do positivismo – os honestos e competentes, dos que não o são. E a julgar pela felicidade com que o autor soube esgotar seu tema, eu acrescentaria que ele conseguiu – decerto sem o desejar e disso suspeitar – não só tornar por muito tempo desnecessárias quaisquer outras produções que no mesmo sentido ainda venham a ser tentadas; quanto – ousaria dizê-lo – permitir ao leitor dispensar-se (se assim o desejar) de um contato direto com a grande obra sociológica de Comte, ao menos para tudo quanto refira-se especificamente aos ideais políticos do positivismo.

Até aqui, os comentários sobre as idéias de Comte padeceram sob o jugo de dois graves estorvos: considerando-se que sua obra capital (A Política Positiva) ainda não existe em português, os pretendentes a comentadores que não dominam seu idioma original (mas que ainda assim insistem em tomar o positivismo como alvo de suas especulações) acabarão cedo ou tarde frente a um dilema. Ou eles necessitarão buscar como fontes primárias, textos que por sua ortodoxia estejam a salvo de qualquer suspeita quanto a não espelharem o mais fielmente os reais pontos de vista de Comte – e então NÃO HAVERÁ ALTERNATIVA senão destilarem – das mais de quinhentas publicações do Apostolado Positivista do Brasil – a quintessência da doutrina; ou, então – se renunciarem a isto – precisarão adentrar, sem muito critério e mesmo sem maiores escrúpulos, num verdadeiro dédalo (por vezes sedutor, diga-se) de sinopses superficiais, condenatórias e truncadas, vindas das mais variadas linhas de pensamento, e de autores que estiveram bem longe de VIVER tudo quanto pretenderam criticar. Perdidos nesse labirinto e embriagados pelos muitos brilhos, matizes e contrastes de tais obras, os estudiosos não disporão de outro meio de se situar, senão guiando seu caminho por entre aquelas ditas “mais consagradas” o que, na verdade, seria o pior que poderiam fazer: longe de constituírem-se no que há de mais seguro sobre a vida e os escritos de Comte, elas costumam representar apenas um farto e desconexo lote de preconceitos e de mal entendidos a partir dos quais seus autores lançam-se a arrojadas extrapolações tanto mais desembaraçadas quanto mais inconsequentes, o que (além das graças naturais de um estilo brilhante) é tudo quanto basta para erguerem-se mais alto que suas congêneres mais modestas e menos desonestas.

Mas antes que me acusem de “vitimizar” o positivismo frente ao julgamento desses intérpretes oficiais do pensamento universal, apresso-me em dizer que tal situação não se restringe às idéias comtianas. Longe disso, confusões dessa natureza parecem ferir em maior ou menor grau a todos os filósofos, muito particularmente aos criadores de grandes sistemas largamente fundamentados em informações históricas e em fatos colhidos das ciências naturais. Assim, por exemplo (e apenas para citar um antagonista – igualmente sistemático – de Comte) eu estou certo de que a recente edição em cinquenta volumes, da obra completa de Marx haverá de deslindar outras tantas distorções semelhantes às ocorridas com o positivismo; distorções que não raro determinaram o pesado fardo de adesões a este (e ao materialismo dialético) por motivos opostos aos de tudo quanto uma e outra destas duas doutrinas sempre se propuseram como mais fundamental; e tendo como implicação direta disto a aproximação maciça a elas, de pessoas que apenas vieram desmentir na prática seus princípios em nome deles, e tanto mais, quanto mais prontificaram-se em louvá-los, justificá-los e aplicá-los à vida. Esta me parece, sobretudo hoje, uma dificuldade grave e generalizada; que inclusive ameaça abalar a estrutura do próprio ensino da filosofia, da história, da sociologia e da psicologia como um todo; dificuldade que tanto mais se aprofunda quanto mais fácil torna-se em aparência a comunicação humana, mediante os recursos que a internet quase nos obriga a utilizar.

Acrescente-se que a opção por comentar uma obra tomando-se por matéria-prima outros comentários (ao invés dos textos do próprio autor) não se deve apenas àqueles inconvenientes citados, mas a certos hábitos intelectuais que, por assim dizer, imperam no mundo acadêmico os quais persistiriam mesmo se todas as facilidades ao acesso dos textos originais lhes fossem oferecidas[2].

Chegamos até a pensar que não se deseja nunca aí, a que nós leitores fiquemos em igualdade de condições com os comentadores; e que, bem ao contrário, eles fazem de tudo para deixar claro o quanto julgam-se dispensados de nos fornecer os mais amplos trechos de suas vítimas, em abono ao que contra elas nos mostram como peças de acusação. E tudo quanto, na falta disso, nos oferecem por magra indenização é apenas uma fastidiosa bibliografia (que a rigor poderia desdobrar-se indefinidamente não nos dando, aliás, segurança alguma de haver sido lida) na qual as obras do autor apenas mereceram, quando muito, o duvidoso privilégio de aí constarem à parte e em primeiro lugar. Eis como é que a leitura de um comentário acadêmico vem se tornando cada vez mais o exercício de uma fé tão ingênua quanto mal investida.

E se completarmos esse quadro com o fato de que a tendência aí é a de só depositar confiança, e a de só creditar imparcialidade a opiniões oferecidas sob uma ótica desfavorável, teremos compreendido como foi que tantos trabalhos sem o menor valor teórico puderam impunemente ganhar fama e mesmo um número maior de edições que a própria obra original que souberam explorar, conquanto apresentassem críticas que um mero cotejo com estas tê-las-ia inutilizado. Tal é (para citar um exemplo típico disso que entre nós se tornou quase um gênero de literatura filosófica) um dos mais detestáveis livrecos já escritos sobre (?) as doutrinas comtianas e que consta de nada menos de dez edições: o volume 72 da coleção Primeiros Passos O que é o Positivismo, de João Ribeiro Jr.

Ora, da mesma forma como procedemos quando nos vemos acusados injustamente (quando então de pronto cobramos pelas devidas comprovações do que nos está sendo imputado) deveríamos também agir requerendo e mesmo EXIGINDO de um comentarista filosófico as provas cabais do que afirma; sob pena de cairmos vítimas (ou de nos entretermos) com calúnias. E que outra evidência maior poderia haver, nesse sentido, que uma boa coleção de trechos do próprio autor cujo pensamento se intenta apresentar? E como não ver como incompleto (para dizer o mínimo) um exame sem o próprio objeto do que é examinado?

No entanto, parece que a lógica torna-se bem outra quando o caso não nos toca diretamente e quando aquelas afirmações gratuitas são de uma natureza mais intelectual que moral: desde que não nos sejam oferecidas no calor das discussões (mas sob a distante e respeitável forma de livros, teses e comentários) e desde que os autores já tenham há muito falecido (como é o caso da maioria daqueles sobre os quais a crítica acadêmica recai) não podendo reivindicar direito algum de resposta, mesmo judicial; então não há limites à covardia, tudo torna-se válido e o crime perfeito. Descortina-se o campo da boataria inteiramente livre e desimpedido como em nenhum outro setor[3].

Eu devi insistir tanto sobre esse único ponto, tendo em vista que uma das diferenças mais flagrantes a quem apenas folheie O momento comtiano é o grande número de citações que o autor faz ao filósofo[4] fora e dentro do texto. Não há praticamente uma só página onde, para nosso conforto e segurança, não sejamos brindados com elas. Ora, se APENAS nesse único bom exemplo – se apenas nessa única lição – pudesse residir todo o legado desta obra, somente isso bastaria para muito elevar-se o nível geral dos textos acadêmicos no Brasil.

Aliás, com a exceção de um trabalho de natureza introdutória – A república positivista– do meu amigo Arthur Virmond de Lacerda; O momento comtiano, insisto, oferece COMO NENHUMA OUTRA obra sobre o ideário político de Comte essa preciosa garantia teórica: a de não haver JAMAIS resvalado em concluir algo que já não estivesse contido na generosa coleção de passagens do filósofo, num constante e tocante escrúpulo a que ambos os autores ativeram-se, a fim de não trair o pensamento de seu mestre comum, aplicando – já à elaboração mesma dos textos – a máxima positivista de que “todo progresso é o desenvolvimento da ordem correspondente”. Ora, são estas constantes citações que revestem – tanto O momento comtiano quanto (o que acabou por se tornar o seu natural prelúdio) A república positivista – dessa autoridade única; impossível, aliás, sob quaisquer outras circunstâncias.

Mas eu não devo limitar-me apenas ao impacto d’O momento comtiano junto ao mundo letrado. Se como exposição geral e teórica ele já se faz oportuno; são, por outro lado, esses nossos tempos nada comtianos que o tornaram, por assim dizer, indispensável. E se a exigência dos espíritos preocupados com os destinos humanos deve incliná-los a uma especial atenção aos grandes quadros de referência concebidos para o entendimento dos fenômenos sociais (e se é, inclusive, por conta dessas angústias, que devemos a invasão por vezes irritante às prateleiras das livrarias, de uma avalanche de todo tipo de obras de discussão político-ideológica) O momento comtiano oferecerá para além daqueles quadros teóricos mais difundidos – mas sempre como consequência da consistente adoção de UM deles – e para além daquelas apreensões e daquele caos de opiniões desencontradas; uma singular, enérgica e otimista resposta frente a urgências práticas de toda sorte.

Com estas páginas, o Brasil acha-se, enfim, munido de um instrumento (quase ia dizendo de uma arma) com a qual tornamo-nos capazes de entrar na arena desses confusos debates, confiantes do sucesso junto à tarefa tornada imperiosa de apresentar o positivismo pelo que ele verdadeiramente é; e COM ISSO desnudar todo o cinismo de um governo que profana as cores e a divisa da bandeira nacional até pervertê-las no seu exato inverso, invocando-as como se estas pudessem representar – ou ter alguma vez representado – uma espécie de subliminar convite à tirania.

Ora, se como eu espero, O momento comtiano alcançar a tempo todo o sucesso que merece (o que dependerá apenas de uma boa difusão) isso determinará inclusive a que esses fascistas vejam-se forçados doravante a combater o positivismo comtiano com uma ferocidade igual – senão maior – àquela com a qual dedicam-se a combater o que confusamente denominam “comunismo”, para maior honra de ambos os sistemas. Nós veremos então, como é que estes mesmos fascistas que tão camaleonicamente travestem-se de verde-e-amarelo e cujos discursos estão sempre tão transbordantes de “ordem e progresso” ver-se-ão forçados – tão logo sintam-se seguros de sua ALIANÇA PELO BRASIL – a arrancar da bandeira aquele lema, em prol de algum malsoante dístico teológico de última hora, ou mesmo de algum versículo bíblico ostensivamente teocrático; coisa que (eu não duvidaria) talvez já conste de um dos secretos itens da pauta desse “novo” partido.

Mas se uma obra tão inocente como O momento comtiano (inocente no sentido de não haver sido concebida para fins de polêmica) pode nos servir de modo tão eficaz como meio de luta, isso é algo a que devemos atribuir antes de tudo à sua natural universalidade. De fato, dentre seus muitos méritos paralelos, está o de nos oferecer a mais completa relação dos erros até hoje já alinhados contra o positivismo. Ora, são exatamente esses erros que, uma vez trazidos à luz e destruídos, desfazem de vez qualquer tentativa ignorante ou malévola de ressuscitar a falsa afinidade e o falso vínculo que se forjou entre o golpe de 1964 e o positivismo. Decerto O momento comtiano haverá de complicar bastante o ofício de todos que ainda imputam ao ideário comtiano o desastre político em que chafurdamos, o qual segundo nos querem fazer crer, não passaria de um híbrido teratológico entre o oportunismo evangélico da criatura que hoje habita o Palácio do Planalto – última dejeção gestada por aquele golpe – com o positivismo, representado iconograficamente pelas cores e pelo lema sociológico inscrito na bandeira nacional.

Assim, O momento comtiano é essa obra por excelência que nos ajudará como povo, a arrancar o véu verde-e-amarelo desse tenebroso personagem e de seu séquito, a fim de revelar quais são as suas verdadeiras cores, que aliás ninguém – talvez, no fundo, nem eles mesmos – saibam.

O momento comtiano auxiliará pois, não só a aprofundarem-se as opiniões dos simpatizantes da doutrina positivista (e dos que desejam estuda-la a sério) como a robustecer os ideais de todos que, fora dela, prezam a justiça histórica, a liberdade de ensino, as liberdades civis e de expressão, a laicidade do estado, a transparência da administração da coisa pública, a defesa das tradições, crenças, cultura e territórios indígenas, o internacionalismo, a fraternidade inter-racial, o congraçamento universal de todas as pátrias em torno da Humanidade (ao invés do “Brasil Acima de Tudo”, simples transposição do Deutschland Über Alles) a igualdade de oportunidades, a condenação do trabalho infantil e juvenil; dentre tantas outras grandes causas – todas, diga-se, tornadas em tempo real, tema de intervenção dos apóstolos positivistas Miguel Lemos e Teixeira Mendes – e todas, agora, sistematicamente afrontadas e ameaçadas pelo atual governo fascista.

Tendo sido vista a importância teórica e prática d’O momento comtiano, cumpre ainda uma última observação antes de comentarmos O momento comtiano capítulo a capítulo.

Será preciso agora tentar compreender as razões e o significado de não haver disposto o Brasil, até aqui, de textos dessa envergadura, embora a carência por algo assim já devesse ter sido sentida há muito. De fato, como entender essa lacuna, decerto involuntária, que acabou por se tornar desde a morte de Teixeira Mendes em 1927, um longo mutismo?

Penso que seria preciso ir buscar as raízes de tal fenômeno no próprio perfil psicológico de uma organização religiosa, e nas dificuldades especiais que estas encontram diante do NOVO, ou mesmo do simplesmente DIFERENTE.

Lembremo-nos que nem Miguel Lemos nem Teixeira Mendes desejaram realizar nada além de simples comentários episódicos sobre a doutrina que professavam. Tudo quanto propuseram-se a oferecer por escrito, resumiu-se a tentativas de aplicá-la (sem criticá-la ou mesmo aperfeiçoá-la) como articulistas atentos que eram da realidade nacional; ilustrando-a com fatos de seu próprio tempo e lugar considerados como de maior peso e repercussão social e política.

Outrossim, o que eles desejaram ACIMA DE TUDO com isso, foi estimular a que seus leitores voltassem suas atenções PARA A OBRA DE COMTE; obra que então, diga-se, ainda conseguia corresponder a algo mais legível do que hoje, quer devido às peculiaridades do estilo do filósofo (tornado cada vez mais distante daquele que acabou prevalecendo) quer à então maior popularidade da língua francesa entre nós.

Foi assim que – bem ou mal a propósito – os apóstolos decidiram-se POR PRINCÍPIO a evitar audaciosas expedições teóricas, na forma de longas TESES ou TRATADOS; coisa que seria, segundo criam, a usurpação de um trabalho genuinamente reservado aos efetivos críticos e aperfeiçoadores da doutrina (os sacerdotes da Humanidade). Duas únicas exceções a isso foram a Filosofia Química e as Últimas Concepções de Augusto Comte, ambas de autoria de Teixeira Mendes, correspondendo às duas únicas ocasiões em que optou-se por aquilo que, tornado frequente, teria de fato correspondido a uma verdadeira “tentação” a ser religiosamente evitada... Tentação a qual o meu amigo Gustavo teve o bom senso de sucumbir...

Assim quando os apóstolos faleceram, tudo quanto restou à Igreja além do vazio pela perda de dois dedicadíssimos propagadores, foi de um lado, uma tentativa canhestra de manter aquela tradição em apenas compor pequenos folhetos de ocasião e, de outro, uma espécie de preconceito contra quem sonhasse mais alto: “se NEM MESMO os apóstolos julgaram-se capazes de escrever tratados sociológicos... que diremos nós”...

Mas apesar de todo o virulento contágio com o qual aqueles limites auto impostos por Lemos e Mendes acabaram por involuntariamente paralisar a produção teórica de todo o grêmio da igreja, pode-se dizer que há mais aparência que verdade na afirmação de que jamais houve um tratado sociológico positivista entre nós: de fato, se rastrearmos com paciência o conjunto daquela vasta coleção apostólica decerto reaveremos (e mesmo recomporemos) a totalidade das teorias políticas do positivismo, representadas de pleno, e em seu mais puro estado; coisa que, porém, não se obterá jamais a não ser como o prêmio de contínuos, complicados e demorados esforços; aqueles mesmos, diga-se, que o PRIMEIRO TRATADO BRASILEIRO DE SOCIOLOCIA POSITIVA, o nosso MO(NU)MENTO COMTIANO vem hoje (afinal!) tornar inúteis...

Isto posto, passemos agora ao exame detido de cada um de seus capítulos.

(Continua.)



[1] Há uma crítica renitente, injusta e no fundo tola segundo a qual Comte não teria fundado a Sociologia porque não teria feito pesquisas sociológicas... evidentemente, para nós, isso é tolo, mas o que está subjacente é que Comte não teria feito pesquisa “com pranchetinha”, surveys. Ora, bastaria que se lesse os volumes 4 a 6 do Sistema de filosofia positiva ou 2 e 3 do Sistema de política positiva para saber-se o quanto isso é tolo; mas, ainda assim, esse preconceito existe e é largamente difundido. Uma caracterização (sem maiores esclarecimentos) de Comte como o criador de um sistema “abstrato” subrepticiamente pareceria apoiar essa tolice.

[2] Entre esses hábitos temos o excessivo espírito de detalhe e a cisão entre “científico” e “empírico”, de um lado, e o “filosófico” e “abstrato”, de outro. Ora, em Comte científico e empírico andam de mãos dadas com o filosófico e o abstrato, sem que seu sistema recaia em um desprezível “empiricismo”. Essa é, aliás, uma das suas principais características que o distanciam do academicismo e o tornam tão estranho aos hábitos acadêmicos. Quanto ao excessivo espírito de detalhe, vale notar que a Sociologia de Comte é a ciência geral da sociedade; as divisões acadêmicas atuais, tão sofregamente buscadas, entre Sociologia da Religião, da Política, Política, da Linguagem, histórica, institucional etc. etc. etc., além da Antropologia (vista como ciência à parte da Sociologia!) e da Ciência Política (vista como se tivesse existência autônoma em relação à Sociologia!) – todas essas divisões são vistas exatamente como divisões, em que o espírito analítico desenvolve-se sem freios e em que o caráter ao mesmo tempo social e histórico do ser humano perde-se radicalmente. A falta de eficácia social da Sociologia, entendida como ciência geral da sociedade, deve-se, aliás, em larga medida à sua fragmentação, à ciosa divisão acadêmica em dezenas de especializações. Desenvolvida por esse mesmo espírito analítico encontra-se também a Ciência Política cindida em “Ciência Política”, destinada à política interna, e “Relações Internacionais”, dedicada à política internacional. Aí é necessário criar modelos que consigam restabelecer a unidade da política e da sociedade, entre os âmbitos interno e externo. Ora, isso foi exatamente essa cisão o que Comte procurou evitar.

[3] Começamos mesmo a ver hoje, no cenário das discussões políticas, o reflexo direto de tal situação. Na prática a boataria filosófica e seus verdadeiros institutos para a produção e desenvolvimento de fofocas oficiais tornaram-se hoje um problema insolúvel. O contra-ataque a essas forças tão rápidas e numerosas exigiria não só um contingente semelhante de defensores, como o uso de estratégias eticamente questionáveis. À era dos falsos argumentos, representados pelos antigos sofistas, sucede-se hoje a era ainda mais odiosa e estúpida dos falsos fatos representados por robôs replicantes de Fake News.

[4] Embora em diversos momentos desses comentários eu devesse observar que Comte foi um filósofo, e que sua obra é filosófica, isso EM ABSOLUTO deve ser interpretado como uma forma de diminuir ou obscurecer o caráter sociológico e político de suas contribuições teóricas. Aliás, a universalidade do conhecimento teve em Comte o seu último verdadeiro cultor. E embora em sua época a separação entre “cientistas” e “filósofos” já estivesse bastante consagrada (não à toa Miguel Lemos criou em português a palavra “cientista”, na tradução do Apelo aos Conservadores), Comte faz considerações filosóficas sobre afirmações científicas tanto quanto, inversamente, considera do ponto de vista científico afirmações filosóficas. 

29 junho 2018

Burrice acadêmica e materiais didáticos de Ciência Política


Para ver-se como o sistema de avaliação da produção científica brasileira pode ser profundamente BURRO:

Nos últimos anos eu tive a honra e a felicidade de redigir dois livros didáticos (para a editora Intersaberes):

- um deles, Introdução à Sociologia Política, é um volume enorme, com 412 páginas e o mais completo manual de introdução à Sociologia Política existente em língua portuguesa;

- o outro, Pensamento Social e Político Brasileiro, é um manual de introdução à teoria política elaborada no Brasil, organizando-a em três grandes “famílias” intelectuais (de acordo com a relação que os autores estudados indicam entre o Estado e a sociedade).

Tenho muito orgulho desses livros, não somente porque são realizações intelectuais importantes por si sós, mas porque são livros que sistematizam temas e discussões que, no Brasil, costumam ser muito dispersos. Assim, são convites, portas de entrada e guias para todos os interessados - e por “todos os interessados” quero dizer exatamente isso: público em geral, estudantes de graduação, estudantes de especialização, estudantes de mestrado, estudantes de doutorado, professores, gente de outras áreas.

Pois bem. A avaliação científica no Brasil ocorre sob a coordenação da Capes, que é um órgão vinculado ao MEC. A Capes tem em seu interior inúmeros comitês de área: Medicina tem pelo menos três comitês (devido à quantidade de especializações), as Engenharias têm também pelo menos três comitês e assim por diante.

Gozando de uma necessária e correta autonomia intelectual, cada comitê elabora e aplica os próprios critérios para avaliação da produção científica. Esses critérios referem-se a classificações gerais elaboradas pela Capes para avaliar revistas científicas e também livros. No caso dos livros, a hierarquia vai de L1 (livros ruins) até L4 (livros de excelência).

Entre os vários comitês, há o de Ciência Política e Relações Internacionais. Esse comitê decidiu que os livros didáticos de Ciência Política e Relações Internacionais, bem como os de áreas vinculadas, como Sociologia Política e Pensamento Político Brasileiro, devem todos eles ter notas L1 e L2.

O que isso quer dizer? Quer dizer que, para o comitê da área de Ciência Política e Relações Internacionais que avalia a produção nacional de Ciência Política e Relações Internacionais (e campos relacionados), a produção de material didático não é importante.

Em outras palavras, para o dito comitê, produzir livros que visem a educar a população brasileira, que visem a sistematizar o conhecimento da área (extremamente disperso e fragmentado, diga-se de passagem), que visem a auxiliar o grosso da população a entender um pouco o que é a política brasileira; enfim, produzir livros que tenham uma certa utilidade social mais ampla não é importante nem é relevante. Sendo mais direto: para o dito comitê, produzir livros didáticos é perda de tempo.

Para mim, isso é escandaloso. E, claro, mostra o quanto a avaliação da produção científica pode ser burra - mesmo a avaliação da produção científica daqueles que querem palpitar sobre as políticas públicas, incluindo aí as políticas (alheias) de produção científica.

No exterior (Estados Unidos e Europa), a produção de livros didáticos é imensa - mesmo que sob a forma de “enciclopédias” e de “manuais”: todas as principais editoras (comerciais e universitárias) têm suas próprias enciclopédias e seus manuais das mais diversas áreas do conhecimento.

Um exemplo banal da importância dos livros didáticos de Ciência Política, para além das salas de aula: a utilidade de livros didáticos sobre Sociologia Política, História Política, Idéias Políticas etc. em uma época que se caracteriza pelas fake news está, ou deveria estar, fora de questão.

Por fim, mas não menos importante, convém notar que, supostamente, ninguém deseja que a Sociologia saia do currículo do Ensino Médio nem, por extensão, dos vestibulares. Mas, ainda assim, a produção dos recursos didáticos adequados a esse ensino e que, de qualquer maneira, sistematize a fragmentação e a dispersão das Ciências Sociais - isso é visto como perda de tempo. Não é necessário ter o título de doutor para perceber que há alguma coisa muito errada aí.

Outros comitês de área avaliam a produção de materiais didáticos de outras formas. Felizmente há quem leve a sério a educação, a qualidade dos debates públicos e o futuro do país.

03 fevereiro 2017

Livro à venda: "Introdução à Sociologia Política"



Finalmente está disponível para venda o livro Introdução à Sociologia Política

Publicado pela Editora Intersaberes, ele pode ser comprado aqui.

Essa obra destina-se ao público em geral, a estudantes de graduação, de especialização, de mestrado e de doutorado das mais variadas áreas do conhecimento!
É uma obra que apresenta os principais conceitos, as discussões fundamentais e a história da Sociologia Política. É o livro mais completo de introdução à Sociologia Política no Brasil.
Além das discussões históricas e teóricas, cada capítulo tem uma sessão didático-pedagógica e extensas indicações de leitura adicional.
Para ter-se uma idéia do conteúdo - e da qualidade! - do livro, o seu sumário é este:


1. INTRODUÇÃO

2. O CONTEXTO HISTÓRICO: COMO FOI POSSÍVEL SURGIR A SOCIOLOGIA POLÍTICA?

2.1. Alguns precursores intelectuais
2.1.1. Aristóteles
2.1.2. Tucídides
2.1.3. Nicolau Maquiavel
2.1.4. Thomas Hobbes
2.1.5. Montesquieu
2.2. Três revoluções
2.2.1. A Revolução Científica
2.2.2. A Revolução Industrial
2.2.3. A Revolução Francesa
2.3. A fundação da Sociologia: Augusto Comte
2.4. Dois autores básicos da Sociologia Política
2.4.1. Karl Marx
2.4.2. Max Weber
Exercícios do capítulo 2
Questões de auto-avaliação
Questões para reflexão

3. OBJETO E MÉTODO DA SOCIOLOGIA POLÍTICA: QUAL SUA IDENTIDADE?

3.1. Definindo o objeto
3.1.1. Ciência, “religião”, filosofia
3.1.2. Ciência Política, Filosofia Política, política prática
3.1.3. Ciência Política, Sociologia Política, Sociologia da Política
3.1.4. Ciência Política e Relações Internacionais
3.2. Definindo o método
3.2.1. A querela Ciências Naturais vs. “Ciências do Espírito”
3.2.2. Métodos quantitativos e métodos qualitativos; a lógica da inferência
3.2.3. Teorias “empíricas” vs. teorias normativas
Exercícios do capítulo 3
Questões de auto-avaliação
Questões para reflexão

4. ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAIS

4.1. Poder
4.1.1. Características básicas
4.1.2. Concepções subjetivistas do poder
4.1.3. Concepções objetivistas do poder
4.1.4. Concepções do poder nas Relações Internacionais
4.1.5. Outras abordagens: Michel Foucault
4.1.6. Outras abordagens: Hannah Arendt
4.1.7. Outras abordagens: Augusto Comte
4.1.8. Alguns métodos de pesquisa: posicional, decisional e reputacional
4.2. Estado
4.2.1. Definição básica
4.2.2. Algumas características da burocracia
4.2.3. Legitimidade, dominação e autoridade
4.2.4. Evolução histórica do Estado: da Antigüidade à globalização
4.3. Governo
4.3.1. República vs. monarquia
4.3.2. Presidencialismo vs. parlamentarismo
4.4. Regimes políticos
4.4.1. Democracia
4.4.2. Totalitarismo
4.4.2. Autoritarismo
4.5. Partidos políticos
4.5.1. "Partidos" na história e funções dos partidos políticos
4.5.2. Condições sociais dos partidos políticos
Exercícios do capítulo 4
Questões de auto-avaliação
Questões para reflexão

5. PALAVRAS FINAIS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIBLIOGRAFIA COMENTADA

RESPOSTAS DOS EXERCÍCIOS

Capítulo 2 – O contexto histórico
Questões de auto-avaliação
Questões para reflexão
Capítulo 3 – Objeto e método da Sociologia Política
Questões de auto-avaliação
Questões para reflexão
Capítulo 4 – Alguns conceitos fundamentais
Questões de auto-avaliação
Questões para reflexão

NOTA SOBRE O AUTOR

26 julho 2016

Pequeno exercício de Sociologia Política: "O Sul é o meu país"

Uma república pujante exige a proximidade física e política entre governantes e governados; assim, pátrias pequenas tendem a ser melhores que pátrias grandes ou gigantes (como é o caso do Brasil). Essa foi uma das grandes lições da Sociologia Política, pelo menos desde o século XVIII, com as reflexões de Montesquieu e dos founding fathers dos EUA (Thomas Jefferson à frente).
Dito isso, concretamente, é necessário fazermos algumas reflexões sobre a proposta de separação do "Sul é o meu país", especialmente no que se refere à situação do Paraná e à sua relação com o Rio Grande do Sul:
  • um traço detestável dessa proposta é a xenofobia e o forte preconceito contra o resto dos brasileiros, algo muito próximo ao que o comum dos ingleses manifestou no "brexit" em relação aos "europeus" (como se a Inglaterra não fosse integrante da Europa!);
  • no caso de o Sul virar um novo país, os gaúchos seriam a nova potência política para assombrar profundamente catarinenses e, acima de tudo, paranaenses;
  • o Paraná antigo (Litoral, 1º, 2º e 3º planaltos) tem mais vínculos com São Paulo e Rio de Janeiro;
  • os gaúchos têm um "nacionalismo" todo próprio, com o qual o Paraná simplesmente não comunga e ao qual é literal e figuradamente estrangeiro. Ademais, o Rio Grande do Sul acaba tendo uma profunda ligação com Uruguai e Argentina, ao contrário do resto do Brasil (incluindo aí, no caso, o Paraná);
  • o Norte de Santa Catarina (Joinville) aproximar-se-ia de Curitiba, ao passo que o Sudoeste do Paraná preferiria ficar muito mais próximo do Rio Grande do Sul;
  • não sei como é que o Norte novo do Paraná, ou seja, Londrina e Maringá, comportar-se-ia, mas, de qualquer maneira, eles estão mais próximos de São Paulo que de Curitiba e, portanto, que do Rio Grande do Sul;
  • tenho a impressão de que o Oeste de Santa Catarina ficaria ou com autonomia ou aproximar-se-ia mais do Rio Grande do Sul;
  • assim, o Rio Grande do Sul desenvolveria uma ação centrípeta em relação ao Paraná e a Santa Catarina - ação que seria profundamente daninha e estranha ao Paraná.
Em suma: embora seja possível indicar um aspecto positivo na proposta de emancipação do Sul, os aspectos negativos são mais amplos e em maior quantidade.

09 abril 2016

Entrevista sobre a crise política II

Mais uma entrevista que concedi a respeito da crise política por que passa o Brasil.

Ela foi publicada no jornal carioca Monitor Mercantil; o original pode ser lido aqui.

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Impeachment seria ambíguo para o PT

 “A aceitação do pedido de impeachment por Eduardo Cunha ocorreu devido a motivos mesquinhos e estritamente pessoais da sua parte; mas o fato é que há um clima social amplamente favorável.” A declaração é do sociólogo da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Gustavo Biscaia de Lacerda, doutor em Sociologia Política e pós-doutor em Teoria Política também pela Federal de Santa Catarina (UFSC). Para ele, entretanto, se Dilma não sair, PT e governo terão forças para administrar isso no Congresso. Além disso, Gustavo diz que PSDB e DEM não terão grande ganho com pensam com destituição de Dilma: “Se há algum partido político realmente beneficiado com o impedimento de Dilma Rousseff, esse partido será o PMDB.”

Gustavo Biscaia diz ainda que “uma guerra civil está longe do nosso horizonte, mas não dá para descartar totalmente”. Em entrevista exclusiva ao MONITOR MERCANTIL, o sociólogo comenta vários assuntos referentes ao cenário político atual, como, por exemplo, a imagem do Lula, o Bolsa Família, as “elites reacionárias” e, é claro, o impedimento de Dilma.


Com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, como fica a divisão de forças em Brasília?

– Desde já se percebe uma polarização muito marcada no Brasil como um todo; nesse sentido, Brasília simplesmente reproduz, em escala menor mas mais acentuada, o que se passa no resto do Brasil. Embora esteja longe de ser algo banal (devido aos efeitos que pode acarretar para o país), o pedido de impedimento de um presidente, por si só, não apresenta grande novidade: nos anos 90 o PT pediu várias vezes o impeachment de FHC. O que há de específico no presente caso é que o presidente da Câmara dos Deputados aceitou considerar o pedido contra Dilma; é verdade que Eduardo Cunha (PMDB-RJ) tomou essa decisão devido a motivos muito particulares (e mesquinhos), mas, por outro lado, convém notar que no final de 2014 a própria eleição de Cunha para presidente da Câmara já revelava uma divisão de forças em Brasília – divisão aliás desfavorável para Dilma, causada especificamente pela própria presidente. O impeachment acentuará alguns traços atuais da política brasileira, no sentido de que vários setores ficarão mais e mais polarizados – especificamente o PT e grupos ligados a ele. Por outro lado, o novo governo fará um grande esforço para aparecer como de união nacional, o que implica que tentará não ser radical nem polarizar.

O PT vai sentir os reflexos na próxima eleição presidencial?

– Sem dúvida alguma, mas, no fundo, o impedimento de Dilma, caso tenha êxito, será ambíguo para o PT, já a partir das eleições deste ano: por um lado, permitirá que o partido adote a retórica do “golpe”, das “elites reacionárias”, do “capitalismo internacional”, do “neoliberalismo”, ou seja, permitirá ao PT retomar a sua tradicional retórica oposicionista, a que se somará a partir deste ano a figura do “golpe”. Os movimentos sociais que sempre deram apoio ao PT foram sistematicamente cooptados pelo partido ao longo dos últimos 15 anos, por meio de generosos auxílios, além da participação direta na estrutura do Estado; tais grupos continuarão a apoiar o PT, seja devido a seus interesses corporativistas, seja devido a afinidades ideológicas, seja devido à confusão entre os dois fatores; mas, por outro lado, o fato é que a própria ocorrência do impedimento evidencia um desgaste muito grande do partido, isto é, da imagem que o PT possui junto aos vários segmentos da sociedade. Historicamente a taxa de rejeição ao PT sempre foi relativamente alta, em torno de 30%; Lula ganhou sua primeira eleição em 2001 porque, naquele momento, ele abandonou a sua tradicional retórica radical e, ao mesmo tempo, a taxa de rejeição ao PSDB e à imagem que esse partido possui aumentou muito. Mas desde 2013 a rejeição ao PT, ao governo de modo geral e a Dilma aumentaram muito, especialmente depois das eleições de 2014, em que a polarização aumentou e que o governo praticou um estelionato eleitoral (ao praticar exatamente as mesmas políticas que condenara nos seus adversários e que jurara que jamais faria). A crise econômica e as investigações da Lava Jato aumentam ainda mais essa insatisfação.

Em sua opinião, como fica o nome do ex-presidente Lula na história do país?

– Depende de quem pronuncia o seu nome. Indiscutivelmente ele foi um dos maiores líderes do país e suas eleições para presidente indicam um forte desejo da população brasileira de mudar alguns rumos do país, no sentido de promover a inclusão social. Sem embargo do seu caráter de grande líder, à medida que o tempo passa, isto é, à medida que se adota uma perspectiva histórica, de longo prazo, percebe-se que Lula falhou, quando não fracassou, em uma série de aspectos da vida nacional. A política econômica que seguiu teve efeitos positivos imediatos, mas também se beneficiou de um ambiente internacional extremamente favorável (alta do preço das commodities, taxas internacionais de juros reduzidas): ainda assim, a despeito dos vários anos de crescimento econômico, não ocorreram investimentos efetivos na infraestrutura econômica do país (limitados à “privatização” de determinados setores, na forma de concessão, como alguns aeroportos, rodovias etc.), nem se reverteu a desindustrialização nacional (bem ao contrário: investimos maciçamente nos setores primários e exportadores, transferindo a dependência em relação aos EUA para a China). Com Lula investiu-se em novas parcerias internacionais, mas, no final, essa multilateralização consistiu muito mais em trocar os antigos parceiros comerciais por outros que em ampliar o nosso leque. De passagem, convém notar que na década de 2000 tornamo-nos um dos principais propulsores da “globalização”. O Mercosul, nesse período, ficou travado em suas negociações comerciais, preso às restrições que o bloco impõe, aceitando as reiteradas violações comerciais praticadas pela Argentina e ainda nos sujeitando às diatribes da Venezuela de Hugo Chávez. Enquanto isso, o acordo comercial com a União Europeia não saiu do papel, mas outros países (Chile, México) avançaram muito em termos de comércio internacional. No que se refere à política internacional, embora tenha mantido relações amigáveis com os EUA, o fato é que o Brasil preferiu apoiar a aventura do bolivarianismo e vangloriou-se de celebrar um duvidoso e desnecessário acordo nuclear com o Irã.

Ainda no que se refere à política internacional, em 2007-2008 Lula apoiou pessoalmente a celebração do acordo do Brasil com o Vaticano – a Concordata – seguida pela aprovação do acordo no Congresso Nacional. A Concordata é uma violação clara e brutal da laicidade do Estado, ao conceder um caráter internacional para os numerosos privilégios que a Igreja Católica possui junto ao Estado brasileiro. Também é importante notar que Dilma Rousseff foi eleita e reeleita graças à indicação e ao apoio pessoais de Lula e sempre se apresentou como fiador político e moral de sua sucessora: nesse sentido, ele tem responsabilidade pelos destinos do país após 2010.

Mesmo em termos de políticas sociais, a atuação de Lula é menor do que ele afirma. Sem dúvida alguma, o Bolsa Família é um projeto importante, que encaminha alguns problemas brasileiros. Mas, por um lado, o Bolsa Família surgiu após o fiasco do Fome Zero e a partir da reunião e ampliação de uma série de políticas existentes pelo menos desde os anos 1990. Por outro lado, o Bolsa Família prevê dois aspectos, um paliativo e outro “prospectivo””: a parte paliativa é a mais visível e a mais criticada (incorreta e injustamente, é importante indicar), que é a do pagamento de valores financeiros para famílias de baixíssima renda; a parte “prospectiva” é a do investimento em infraestrutura e em recursos humanos, para combater a transmissão intergeracional da pobreza. A obrigatoriedade de as mães que recebem o Bolsa Família de mandarem os filhos para as escolas é algo importante, mas a falta de investimentos em infraestrutura e a má gestão econômica minam completamente esse lado da política. Dito tudo isso, é necessário lembrar que desde já há uma disputa sobre qual seria o “legado de Lula”. Essa disputa verifica-se na atual conjuntura de impedimento de Dilma Rousseff, mas é mais claramente visível, por exemplo, em livros escolares de História: muitos desses livros, que têm que passar pela chancela do MEC, são louvaminheiros em relação a Lula e, não por acaso, assumem o discurso político-partidário contra FHC, de maneira dicotômica.

Esse impeachment vai refletir no pleito municipal?

– O efeito imediato – que é o que se sentirá nas eleições municipais – é a radicalização dos discursos políticos, a favor e contra o PT, ou “contra o golpe” e “contra a corrupção”. De qualquer maneira, o PT já se encontra bastante enfraquecido e a tendência é que tenha resultados bastante minguados no final deste ano.

PSDB e DEM vão sair fortalecidos, caso a destituição de Dilma se concretize?

– Não me parece que nenhum desses dois partidos terá um grande ganho com o impedimento de Dilma. Há muitos anos o DEM está enfraquecendo-se paulatinamente, com seus quadros migrando para outros partidos, sejam eles estabelecidos ou novos (PSD, Solidariedade, Partido Novo etc.). Já o PSDB deve ter algum ganho com o impeachment. Por um lado, ele é o principal partido de oposição e é natural que assuma cargos em um eventual governo Michel Temer; por outro, esse mesmo eventual Governo Temer precisará de uma “base de apoio” e, nesse caso, o PSDB será importante. Ainda assim, o PSDB não lucrará tanto quanto se poderia pensar à primeira vista. O PT sofre um enorme desgaste por sua própria conta, mas isso integra um movimento mais amplo de perda geral de legitimidade dos políticos, vistos como corruptos, preocupados apenas com os próprios interesses, despreocupados com o bem-estar da população etc. Além disso, vários nomes de peso do PSDB, a começar por Aécio Neves e Geraldo Alckmin, têm sido ligados a esquemas de corrupção e/ou de comportamento antiético (consumo de cocaína, máfia dos trens de metrô etc.). Assim, se houver algum partido político realmente beneficiado com o impedimento de Dilma Rousseff, esse partido será o PMDB.

Em sua opinião há uma polarização política no país atualmente?

– Isso vem desde o início do Governo Lula, em 2002, por seu estímulo direto, que gostava de falar em “elites brancas”, “nunca antes na história deste país” etc. e que nunca deixou de comparar o seu governo com o de FHC. Mas durante os governos de Lula, essa retórica da divisão permaneceu no âmbito retórico; nas eleições presidenciais de 2010, a polarização apresentou-se de maneira clara, pois o candidato do PT já não era o mítico Lula e, por seu turno, o candidato do PSDB, José Serra, introduziu temas altamente sensíveis, com o objetivo de minar a candidatura de Dilma Rousseff: foram os temas do kit gay, tema sensível para os evangélicos, que, além disso, teve o nefasto efeito de minar a laicidade do Estado. Em 2013, a insatisfação popular com os políticos e com os serviços públicos resultou nas “jornadas de julho”. O governo, por ser governo, foi imediatamente criticado e perdeu apoio popular; a isso se soma a desastrosa reação de inúmeros políticos intelectuais ligados ou próximos ao PT, para quem as “jornadas de julho” eram manifestação de um (re)nascente fascismo brasileiro. Para piorar, no final desse ano divulgou-se a prática de maquiar o orçamento federal, a fim de disfarçar o déficit público.

Em 2014, a fraqueza do PT, de Dilma e até de Lula refletiram-se no fato de que Dilma somente foi reeleita no segundo turno e por uma ínfima diferença de votos. Também convém lembrar que parte da polarização de 2014 deve-se aos quase desesperados esforços de Dilma e do PT para “desconstruir” a candidatura de Marina Silva, que ganhou projeção graças a um acidente fatal e que era vista como uma possibilidade de “renovação na continuidade” da política brasileira. Nos meses seguintes às eleições, PSDB e Aécio propuseram algumas teses que, naquele momento, eram no mínimo discutíveis: impedimento imediato de Dilma Rousseff, novas eleições, cassação da chapa Dilma–Temer. Isso manteve o ambiente tenso. Mas, de qualquer maneira, o estelionato eleitoral de Dilma logo reacendeu as paixões, a que se somaram o avanço das investigações da Operação Lava Jato e os problemas das “pedaladas fiscais”.

Segundo alguns deputados da base do governo, caso Dilma seja destituída ou renuncie o PT pode ou não sair do mapa político do país?

– O PT não sairá do mapa político do país, simplesmente porque é um partido legal e legítimo. Ele tem força em várias partes do país e, de qualquer maneira, mantém uma estrutura partidária importante, com governadores, senadores, deputados, vereadores, prefeitos eleitos, com apoio de movimentos sociais e também de intelectuais e estudantes. Isso não equivale a dizer que o PT manterá a mesma importância atual: é um partido que tende a diminuir fortemente, embora isso possa demorar mais ou menos tempo. Da mesma forma, ele atualmente tem um sério problema de identidade (na verdade, sempre teve): não sabe se é governo ou se é socialista, se é renovação ou se é continuidade das práticas político-sociais brasileiras. A crítica que deputados e movimentos sociais ligados ao PT fazem à política econômica de Dilma Rousseff desde as eleições de 2014 – combatendo o necessário ajuste fiscal que o governo do próprio PT teria que implementar – revela o quanto o partido está confuso.

Alguns petistas estão comparando o atual momento político com o que o Jango passou em 1964; já linhas bem mais à esquerda, como o Partidão, não veem semelhança e dizem que a situação é outra. Em sua opinião, há ou não?

– A retórica do golpe é claramente exagero e pura retórica. O problema é que a retórica produz efeitos concretos na política, especialmente em momentos de grande tensão, como atualmente. Mas é necessário reconhecer que a comparação com 1964 – certa ou errada – acaba sendo inevitável: em 1964 a sociedade brasileira dividia-se em termos de direita e esquerda, em termos de anticomunismo e pró-comunismo; a isso se somava o caráter que as Forças Armadas de modo geral, e do Exército em particular, tinham de “Poder Moderador” da República. Nada disso se verifica hoje, a despeito dos rompantes anticapitalistas da extrema esquerda e dos desejos de intervenção militar da recém-surgida extrema direita. As manifestações atualmente são contra o PT, sem dúvida; mas são majoritariamente contra o PT porque se entende que esse partido não entregou o que prometeu em termos de progresso político e social e, ao contrário, produziu crise econômica e gigantescos escândalos políticos. Em suma, as manifestações atuais, em última análise, são mais contra a corrupção e contra um sistema político que se vê fortemente deslegitimado que contra uma proposta mais abstrata de sistema social e político.

Essa crise política pode dividir o país, uma vez que o ex-presidente Lula já deu declaração dizendo que pode convocar o “exército de Stédile” (MST) para proteger o PT e a Dilma?

– As chances de isso ocorrer são um tanto remotas, mas não podem ser desprezadas. Quais as variáveis importantes para evitar uma conflagração geral? Que os extremos políticos sejam controlados e permaneçam sob controle. No caso específico da declaração de Lula, ela foi, no mínimo, irresponsável. É claro que sempre é possível dizer que foi uma frase dita em um momento de arroubo, ou que ela deve(ria) ser entendida de maneira figurada etc. O problema é que Lula é uma pessoa que não faz a menor questão de controlar seus arroubos retóricos, ao mesmo tempo em que esse tipo de afirmação pode ser entendida de maneira literal por muitos grupos, resultando em problemas sociais mais adiante.

Então, essa declaração coloca mais lenha na fogueira ou é só uma figura de retórica?

– O Brasil precisa de apaziguamento, não de aumento das tensões – que, diga-se de passagem, são tensões que não se referem a clivagens profundas da sociedade brasileira, como ocorreu em outros momentos da nossa história.

Há possibilidade de o país viver uma ditadura? Ou sua primeira guerra civil? Ou guerra civil e ditadura no final?

– Antes de mais nada, é necessário notar que o Brasil já viveu guerras civis antes: a Revolução Farroupilha (1835-1845), as Revoltas da Armada e a Revolução Federalista (1892-1894), a Guerra de Canudos (1896-1897) e Revolução Constitucionalista (1932). No que se refere a uma ditadura, parece-me improvável. Como comentei antes, deixando de lado os grupos extremistas à esquerda e, principalmente, à direita, ninguém defende o fim da ordem constitucional vigente nem a interrupção das liberdades públicas; bem ao contrário, as manifestações que se vê baseiam-se nessas liberdades e celebram-nas. Uma guerra civil está longe do nosso horizonte, mas não dá para descartar totalmente. As conclamações ao “exército do Stédile”, as reiteradas afirmações dos apoiadores do PT de que o processo de impedimento é “golpe” e manifestações desse tipo estimulam a polarização política do país; essa polarização, por sua vez, se se mantiver ao longo do tempo, pode cristalizar-se e aumentar ainda mais, resultando em conflitos físicos de grandes proporções entre os grupos opostos.

Se nada disso se concretizar e Dilma não sair do governo, PT e governo terão forças para administrar isso no Congresso?

– Infelizmente, não. É bem verdade que a aceitação do pedido de impedimento pelo presidente da Câmara ocorreu devido a motivos mesquinhos e estritamente pessoais da sua parte; mas o fato é que há um clima social amplamente favorável ao impedimento, Dilma já se mostrou incapaz de dirigir o seu governo e de negociar com o Congresso e uma parte expressiva, para não dizer a maior parte, dos atuais deputados federais já demonstrou uma grande venalidade no trato da coisa pública e do Estado brasileiro. Não que um eventual Governo Temer vá enfrentar uma situação muito diferente, ainda que a saída de Dilma via impedimento (ou renúncia) teria um efeito catártico na maior parte da população brasileira, a que se somaria um esforço de Michel Temer para constituir um governo de união nacional e de transição até 2018.


Marcelo Bernardes

30 março 2016

Entrevista sobre a crise política brasileira

No dia 28 de março de 2016, participei do programa Curitiba & Você, da TV Transamérica. Foi uma entrevista de cerca de 15 minutos, muito tranqüila e agradável, com a jornalista Eliz Porfílio, sobre minha interpretação política e sociológica das sérias crises que o Brasil enfrenta atualmente.

O vídeo está disponível por meio destes vínculos:

- TV Transaméricahttp://transamerica.tv.br/variedade/curitiba-e-voce-crise-politica-brasileira/

- Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=-mpB4rYy0xQ.