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02 dezembro 2019

Gazeta do Povo: Quais tradições dos conservadores?

O artigo abaixo foi publicado na Gazeta do Povo em 28.11.2019. O original pode ser lido aqui.

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Quais tradições os conservadores querem conservar no Brasil hoje?

Não é segredo para ninguém que os conservadores têm o poder no Brasil, hoje; esses conservadores identificam-se como tais, especialmente no que se refere aos “costumes” e, acima de tudo, em sua oposição à “esquerda”, no “antipetismo”. Mas, além da autoidentificação – isto é, de um certo rótulo autoimpingido – e da negação de uma perspectiva sociopolítica, o que é que define, de maneira afirmativa e substantiva, esses conservadores no Brasil?

Essa não é uma pergunta secundária ou desprezível; ela exige que se apresente de maneira clara os princípios que constituem uma determinada visão de mundo e a partir da qual se realiza uma atividade política. Mais do que isso, vale notar que um rótulo por si só não quer dizer muita coisa; no limite, é apenas uma casca para um conteúdo a ser determinado. Além disso, por si só, a oposição a algum grupo intelectual e sociopolítico não evidencia muita coisa, pois limita-se a negar e não a afirmar e, de qualquer maneira, essa mera oposição pode juntar grupos que, de outra forma, estariam em campos muito, muito diferentes.

Uma primeira resposta é esta: os conservadores valorizam a tradição. Mas qual tradição? No caso específico do Brasil, a resposta mais fácil é: a tradição católica. Isso ainda não resolve o problema; deixando de lado a distinção entre a “igreja conservadora” e a “igreja progressista”, o fato é que existe um catolicismo do alto clero e outro do baixo clero, sem contar as inúmeras clivagens representadas pelas ordens – os jesuítas são diferentes dos franciscanos, que são diferentes dos carmelitas, que são diferentes dos mais recentes carismáticos etc. Também há diferentes possíveis “aplicações” da religião, no sentido de que alguns católicos, como católicos, são mais favoráveis à ação política, outros buscam constituir um corpo de laicato, outros preferem ações “de base”, outros são mais litúrgicos e assim por diante.

No conservadorismo brasileiro atual há uma dificuldade adicional da maior importância quando se define o conservadorismo pela tradição católica: o fato simples e direto de que uma parcela minoritária, mas numericamente crescente e politicamente agressiva, não é católica, mas evangélica. Embora católicos e evangélicos definam-se genericamente como “cristãos”, os elementos que os separam são muito mais numerosos que os que os unem. Para começar, excetuando-se talvez a Assembleia de Deus, os demais evangélicos que despontam na política e que mobilizam o atual conservadorismo brasileiro – gozando em particular da simpatia da família Bolsonaro e de alguns ministros de Estado – são igrejas relativamente novas, ou seja, são qualquer coisa menos “tradicionais”. Em segundo lugar, enquanto o catolicismo brasileiro desde sempre é fortemente influenciado pelas determinações da Santa Sé e tem um caráter transnacional, os evangélicos brasileiros têm uma origem associada a pregadores norte-americanos e não manifestam o esforço católico de “unidade na diversidade”. Existem diversos outros elementos, é certo; mas o que vale notar aqui é que católicos e evangélicos, tão heterogêneos entre si, unem-se apenas graças à afirmação de um vago “cristianismo” – que esvazia as doutrinas e as igrejas de seus conteúdos específicos – e, de modo mais importante, no antipetismo e na oposição à “esquerda”.

As diferentes origens de católicos e evangélicos levam-nos também a refletir sobre quais seriam as tradições brasileiras a que eles fazem referência. Afinal, o que seria uma “tradição”? Podemos entendê-la como hábitos persistentes, existentes desde há muito tempo; ora, o conservadorismo brasileiro afirma que seria necessário “retomar as tradições”, do que se depreende que determinados hábitos longevos foram suspensos; em tal suspensão, o peso moral e histórico das tradições diminui, não há dúvida. Mas isso nos leva a refletir sobre quais seriam os hábitos longevos próprios ao Brasil. Sendo bastante polêmico, aqui a escravidão durou bem mais de 350 anos, enquanto a liberdade de todos os cidadãos tem pouco mais de 130; enquanto vigeu, sem dúvida a escravidão foi “tradicional”. O apoio-controle do Estado sobre a Igreja Católica, específico do padroado, durou também vários séculos, enquanto a laicidade do Estado não tem nem 130 anos. No caso particular da laicidade, vale notar que enquanto o catolicismo foi a religião oficial de Estado, não havia liberdade religiosa (no Brasil Colônia) e apenas os luteranos, os calvinistas e, no fim do II Império, os positivistas eram tolerados – entre muitos outros, os evangélicos eram desprezados e rejeitados.

Não duvido de que os exemplos acima são polêmicos para o público conservador, mas eles não são anedóticos. Vinculando-se à liberdade de crença e ao fim da escravidão estão a República e a igualdade perante a lei, bem como o direito ao voto: a República tem 130 anos e a isonomia e o voto têm sido ampliados aos poucos desde 1889, com o fim do voto censitário em 1890, a instituição do voto feminino em 1934 e do voto de analfabetos em 1988. O que devemos considerar como tradicional aí, para ser valorizado pelo conservadorismo? A sociedade de castas monárquica (350 anos) ou a isonomia republicana (130 anos)? A liberdade de expressão foi afirmada em 1889 e durou até 1937; depois voltou em 1946 para ser restringida (duramente) em 1964 e, ainda mais, em 1968, voltando apenas após 1979, para que se transformasse em “cláusula pétrea” em 1988. Durante a República, a liberdade de expressão durou bem mais que a censura e a repressão; ainda assim, temos que perguntar: o que seria “tradição” nesse caso?

Do ponto de vista econômico e de política internacional, a variedade de “tradições” não é menos importante. A República – novamente ela! – proclamou a fraternidade universal, o fim das guerras como ideal e a busca do arbitramento para solução de controvérsias; durante a I República afirmava-se o liberalismo econômico mas o Estado constantemente protegia a indústria, com vistas ao desenvolvimento, e após 1930 o desenvolvimento econômico, social e político tornou-se política pública, com a inclusão e a proteção dos trabalhadores. Aliás, a proteção aos trabalhadores como policy é uma preocupação que se iniciou em 1930 e que está de acordo com o catolicismo, mas que se distancia radicalmente do individualismo evangélico. Até há pouco tempo, a noção de “Ocidente” era encarada no Brasil como sinônima de “universalismo”; da mesma forma, as negociações internacionais e o multilateralismo tornaram-se parte da tradição nacional em política e comércio internacional. Rejeitar o multilateralismo e a arbitragem, estimular conflitos internacionais, incentivar o individualismo e largar os trabalhadores e os pobres ao deus-dará – isso integra alguma tradição brasileira?

As indagações e os comentários acima não visam a denegrir conservadores, católicos ou evangélicos. Bem ao contrário, são um esforço – um pedido, na verdade – para que os conservadores brasileiros atuais deixem de lado sua agenda negativa (antipetismo, rejeição à esquerda) e passem a definir de maneira afirmativa uma agenda; que deixem de dizer o que não querem e passem a indicar o que desejam, em particular o que desejam conservar. Não se trata aqui de atribuir “tradições” à direita ou à esquerda, a católicos, a evangélicos, a comunistas, a militaristas, a pacifistas: em meio a uma pluralidade de tradições brasileiras, trata-se de definir o que deve ser preservado – e, portanto, o que deve ser deixado de lado.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política (UFSC).

07 novembro 2019

Novo livro: "O momento comtiano"

A Editora da UFPR está lançando o livro O momento comtiano: república e política no pensamento de Augusto Comte, de minha autoria.

É a mais completa obra em português abordando o pensamento político de Augusto Comte, sendo, portanto, referência obrigatória em todo e qualquer curso de teoria política, filosofia política, ciências sociais, história das idéias.

Muito mais do que uma obra acadêmica, esse livro faz-nos refletir sobre a nossa época, em que a ordem e o progresso insistem em digladiar-se, para prejuízo mútuo. Em face disso, o livro consiste em uma contribuição inestimável e fundamental para os nossos debates contemporâneos, ao examinar e aprofundar a proposta comtiana, ou positivista, de união radical e da superação da oposição entre a ordem e o progresso.

O livro pode ser adquirido aqui.

Fonte: https://www.editora.ufpr.br/produto/405/momento-comtiano,-o--republica-e-politica-no-pensamento-de-augusto-comte

26 outubro 2019

Gazeta do Povo: "Conservadores brasileiros rumo ao desastre"

O artigo abaixo foi publicado em 24.10.2019 no jornal curitibano Gazeta do Povo. A versão eletrônica do texto está disponível aqui.

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Os conservadores brasileiros rumo ao desastre

Os conservadores brasileiros estão à deriva: eu fiz essa observação em 1º de abril de 2018 e, desde então, os problemas apenas se acentuaram. Na verdade, a deriva diminuiu, mas a direção seguida pelos conservadores nacionais não poderia ser pior e mais desastrosa. Senão, vejamos.

Antes de mais nada, o conservadorismo não é necessariamente contra o “progresso”, embora seja ambíguo a respeito. O que o conservador deseja é o respeito às tradições e as mudanças temperadas pela cautela; as mudanças devem ser graduais, para que seus efeitos positivos e negativos sejam avaliados e, conforme for, sejam feitas alterações institucionais. As tradições, nesse sentido, são vistas como o fruto da sabedoria acumulada ao longo dos séculos: modificá-las é possível, mas não necessariamente desejável.

Ora, essa concepção de conservadorismo é inglesa, refletindo sem dúvida o desejo de manter o status quo, particularmente a vitória dos barões feudais sobre a monarquia centralizada, na forma do parlamentarismo, em 1688. Essa vitória foi em si mesma uma alteração profunda (não por acaso foi chamada de “Revolução Gloriosa”) e pôs termo a um século de crises políticas e sociais, em um país cuja história foi marcada por golpes, guerras civis, guerras externas, colonialismo etc., conforme Shakespeare exemplifica à farta para o período entre o final da Idade Média e o início da Idade Moderna.

O que importa notar do que se vê acima é que o conservadorismo britânico não é estranho às mudanças sociopolíticas, embora seja-lhe arisco. A Inglaterra modificou-se – e bastante – desde 1688, com a inclusão política de inúmeros grupos que não participavam da vida política na época da ascensão de Guilherme III: os trabalhadores, as mulheres, os católicos (!); um gigantesco império ultramarino foi criado, mantido e desfeito nesses mais de 300 anos. Aliás, chega a ser notável o fato de que mesmo o conservadorismo britânico não se opôs, nem desmontou, a estrutura do Welfare State criada após 1945, a despeito da virulenta retórica ultraliberal de M. Tatcher. Ao mesmo tempo, assim como pautas “esquerdistas” foram incorporadas à agenda política britânica, um traço aristocrático difundiu-se pela sociedade: o respeito às diferenças filosóficas, religiosas e intelectuais, bem como o respeito às divergências políticas, consubstanciado na fórmula “agree to disagree”. Juntamente com a desconfiança em relação às mudanças (em particular as planejadas), os conservadores mantêm uma desconfiança a respeito das posturas “ideológicas”.

O conservadorismo brasileiro, claro, não tem obrigação nenhuma de ser como o britânico; mas, no presente caso, o que poderia ser a manifestação da autonomia nacional prenuncia uma situação terrível, um verdadeiro desastre. Comparando o atual conservadorismo brasileiro – que, aliás, ocupa o poder em nível nacional – com o conservadorismo britânico, o que se evidencia é que o único traço comum é a valorização das “tradições”; fora isso, os conservadores brasileiros são intensamente “ideológicos”, fazem questão de realizar uma “revolução” sociopolítica (à direita), não se preocupam em preservar legados, não percebem a história brasileira como o esforço coletivo das gerações precedentes para o benefício coletivo – e, acima de tudo, são intolerantes e consideram que discordar deles é sinal de má-fé ou de problemas mentais.

Em meados de outubro ocorreu em São Paulo a versão brasileira da CPAC (Conservative Political Action Conference), de origem estadunidense. Ao contrário dos conservadores britânicos, os estadunidenses inspiram os brasileiros nesses péssimos traços indicados acima. Talvez devido ao peso que a teologia tem nos Estados Unidos, talvez como reflexo do ranço racista existente lá, o fato é que os conservadores brasileiros reunidos na CPAC – aliás, por que os conservadores brasileiros mantiveram o título em inglês, se estamos no Brasil? – esforçaram-se para espelhar a virulência que os conservadores estadunidenses apresentam atualmente. Três ministros de Estado fizeram questão de participar do evento organizado ostensivamente pelo terceiro filho do atual Presidente da República; esses ministros foram bastante ambíguos em suas atuações, revelando qualquer coisa menos respeito ao bem público, ao republicanismo, quando se valeram de suas posições institucionais como ministros de Estado – agentes responsáveis pelo bem comum de todo o país – mas manifestaram-se como integrantes e defensores de uma parcela específica da população brasileira. Em outras palavras, esses ministros foram literalmente partidários; ou, considerando que eles valorizam a teologia cristã, eles foram especialmente sectários.

Elementos básicos da tradição ocidental foram negados com veemência, até mesmo com raiva: o racionalismo, o empirismo, o naturalismo próprios ao Iluminismo foram considerados desprezíveis pelo Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo; aliás, ele também considerou de somenos importância o fim da sociedade de castas realizado pela Revolução Francesa. A Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, deu continuidade à divulgação de boatos, desinformações e fake news, sugerindo que em ambientes não conservadores há o consumo em regra de maconha e a introdução sistemática de crucifixos nas vaginas (!). Mas em um tal festival de disparates semioficiais, o maior veio logo do Ministro da Educação, Abraham Weintraub: ele disse que a esquerda é uma “doença”, aliás similar à sida/aids: ora, as doenças têm que ser exterminadas e, de qualquer modo, elas correspondem à anormalidade dos organismos; no caso específico da sida/aids, é uma doença fatal. Na fala do Ministro da Educação, não há nada de tolerância, de respeito, de “agree to desagree”, mas violência, incitação à agressividade, a sugestão de que quem é não conservador, isto é, quem é de “esquerda”, é doente, ou melhor, é a própria doença.

Fala-se muito na necessidade de constituir-se um partido de “direita” no Brasil, em oposição à “esquerda”; nesse caso, a “direita” é tomada como sinônima de “conservadorismo”. A relação entre “direita” e conservadorismo é algo a ser discutido, mas a proposta em si pode ser bastante interessante e pode vir a satisfazer uma necessidade sociopolítica nacional. Entretanto, esse novo e atual conservadorismo, constituído como está, defendendo idéias como as indicadas há pouco, será desastroso para o país: são idéias retrógradas (não por acaso, identifica-se como “conservador” e participou do CPAC um deputado federal que é descendente de d. Pedro II e que já defendeu na Câmara dos Deputados nada menos que a escravidão no Brasil), são boatos e desinformações, são incitações à violência de cidadãos contra cidadãos. Esse conservadorismo altamente ideológico e raivoso não tem como dar certo; não é mais um conservadorismo à deriva: ele aponta com clareza para o abismo.


Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política e Sociólogo da UFPR.

22 julho 2019

Esclarecimento sobre a ausência de publicações em 231 (2019)

Caros leitores: 

Como o ano de 231 (2019) já se encontra avançado e até o momento a quantidade de publicações neste blogue Filosofia Social e Positivismo tem sido bastante reduzida, um pequeno esclarecimento faz-se necessário.

Em primeiro lugar, devemos notar que uma série de compromissos profissionais exigiram de nós uma atenção concentrada no primeiro semestre do ano, obrigando-nos a, lamentavelmente, deixar em segundo plano considerações mais amplas de caráter social.

Mas, em segundo lugar, desde a campanha eleitoral para Presidente da República no Brasil que teve curso em 2018 e a subseqüente eleição de Jair Bolsonaro para ocupar esse cargo, o país vem passando por um maremoto de notícias, concepções e mudanças de políticas públicas que conduzem a nação para a retrogradação. Estímulos ao militarismo, ao irracionalismo, à intolerância, ao servilismo internacional, à manipulação de estatísticas públicas, além de muitos outros problemas têm sido constantes desde outubro de 2018 e, ainda mais, a partir de janeiro de 2019. Isso gerou em nós um sobressalto constante, que virtualmente não teve fim desde o início do ano e que, portanto, dificulta sobremaneira a reflexão mais calma sobre a realidade nacional - que é, em última análise, um dos objetivos deste blogue.

Tal situação calamitosa confirma, a nosso ver, as profundas análises elaboradas por Augusto Comte no século XIX a respeito da dinâmica sociopolítica ocidental desde a Revolução Francesa e que foram sintetizadas na seguinte formulação: "enquanto o progresso for anárquico, a ordem será retrógrada". Os governos do PT, à frente dos autointitulados "progressistas", basearam-se em princípios equivocados, como as políticas identitárias, que consagram o mais brutal egoísmo grupal, corporativo e "étnico"; da mesma forma, foram incapazes de implementar um novo ciclo de desenvolvimento econômico e social; também não se pode esquecer do saque sistemático de empresas públicas e da política também sistemática de divisão do país (na estratégia do "nós contra eles" e do "nunca antes neste país"), além do revanchismo político, do elogio a autoritarismos e totalitarismos de esquerda (que, por isso mesmo, seriam "progressistas") etc. 

Face a isso, os grupos "à direita" (isto é, conservadores, retrógrados, reacionários) obtiveram notável sucesso em campanhas de desinformação e de manipulação da opinião pública, baseando-se em mitos e nas mais baixas paixões políticos, nos mais odiosos preconceitos sociopolíticos. Deixando-se levar intelectualmente pelo ex-astrólogo cultor da desinformação Olavo de Carvalho (o que, por si só, já indica a indigência intelectual do atual governo) e baseando-se socialmente em seitas evangélicas ultraindividualistas, retrógradas e intolerantes; em grupos militaristas; em empresários contrários às garantias mínimas para populações desamparadas, o incompleto desenvolvimento intelectual (conforme ele mesmo admitiu) do atual Presidente da República dá livres asas à desorganização nacional.

Em outras palavras, aqueles que se denominam "progressistas" pautaram-se por princípios incapazes de levar adiante o efetivo progresso do país; contra isso, organizou-se com grande sucesso uma violenta reação que prega um conceito de ordem que, basicamente, é apenas o retorno a um passado mítico, intolerante, irracionalista e individualista.

Essas vistas de Augusto Comte foram expostas com grande clareza em sua obra política Apelo aos conservadores, de 1856. Nesse livro, o fundador do Positivismo evidencia e explica como é necessária e como é possível uma política que una de maneira profunda e duradoura a ordem ao progresso. Em outras palavas, é necessário unir esses dois termos, para transcender cada um deles tomados individualmente: trata-se de ordem E progresso, não apenas da ordem às custas do progresso, como querem os retrógrados (a "direita"), nem apenas do progresso contra qualquer ordem, como querem os ditos progressistas (a "esquerda").

Há uma tradução brasileira do Apelo, de 1899; ela é extremamente fiel à letra e ao espírito de Comte, mas, como é antiga, é de difícil acesso. Por outro lado, é possível ler em minha tese de doutorado ("O momento comtiano", defendida em 2010 e disponível aqui) uma exposição detalhada dos argumentos de Augusto Comte.

01 abril 2018

Gazeta do Povo: "Conservadores à deriva no Brasil"

Artigo publicado em 1º de abril de 2018 na Gazeta do Povo, de Curitiba. O original pode ser lido aqui.

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Conservadores à deriva no Brasil

Os conservadores brasileiros estão à deriva, ou assim parece; a falta de rumo que eles apresentam é tão grande que em muitos casos eles não deveriam ser chamados de “conservadores”, porém, sim, de “reacionários” ou de “retrógrados”. Cada vez mais se ouvem notícias ao mesmo tempo chocantes e tristes de pessoas que comemoram aniversários de adolescentes valorizando as relações sociais características da escravidão negra extinta em 1888; ou que chicoteiam manifestantes que expõem idéias contrárias; ou que se rejubilam com o assassinato de políticos esquerdistas... o ápice dessa perspectiva consiste em apoiar um Capitão reformado do Exército que, embora afirme apoiar as ações das Forças Armadas, começou sua carreira política na década de 1980 por meio de motins e da instalação de uma bomba em um quartel – e que, desde então, pauta suas atividades parlamentares pelo radicalismo, pela violência, pelo combate às liberdades públicas e pela negligência em relação aos temas vinculados às Forças Armadas.

Entrementes, deixarei para comentar esse militar demagogo mais adiante; neste momento é necessário concentrar-me no conservadorismo em geral e no conservadorismo brasileiro em particular.

Historicamente, os conservadores começaram a definir-se dessa forma no final do século XVIII, na Inglaterra, em reação à Revolução Francesa. O expoente inicial do conservadorismo foi o político e pensador irlandês Edmund Burke, que, no livro Reflexões sobre a revolução em França (1790), rejeitou as mudanças rápidas e violentas introduzidas na França, propondo, ao contrário, o respeito pelo passado e mudanças incrementais nas instituições. Dessa forma, a concepção histórica de Burke não era estática, reconhecendo que as sociedades e as instituições mudam ao longo do tempo; em sua concepção, as instituições são frágeis e, de qualquer maneira, são cristalizações da experiência histórica, de modo que convém respeitá-las e fazer modificações pequenas, ao longo do tempo, a fim de testar a eficácia das alterações propostas. Além disso, para Burke e para a tradição conservadora que ele iniciou, as instituições devem ser respeitadas não apenas devido a um respeito quase místico pelo “passado” – o que é o mero tradicionalismo –, mas também porque se considera que elas asseguram as liberdades públicas e as garantias jurídicas dessas liberdades (habeas corpus, devido processo legal, direito à ampla defesa; liberdades de pensamento, expressão e associação etc.).

Como se vê, o conservadorismo filosófico combina a resistência às mudanças sociais – em particular, às mudanças provocadas, conscientes – com a aceitação de que as coisas mudam. Não há dúvida de que essa fórmula varia de autor para autor, no sentido de que alguns concentram-se mais na resistência que na aceitação, ou vice-versa; assim, em geral, embora o conservadorismo não tenha uma concepção estática da história, para ele a história tem um ritmo bastante lento; por outro lado, de modo geral essa forma de pensar (ou esse “temperamento”) vincula-se à defesa das liberdades. Evidentemente, refiro-me aqui a algo chamado “conservadorismo político-filosófico”, em sua vertente inglesa, ou seja, a uma tradição intelectual que surgiu em conjunto com e mesmo em reação à modernidade ocidental, após 1789. Um comentário desse tipo é importante para enfatizar a deriva em que se encontra o “conservadorismo” brasileiro – que, como indicado acima, tem dado mostras de que não “resiste” aos avanços, mas que os rejeita, e que não defende as liberdades e a solução pacífica de disputas, mas celebra a violência, a truculência, a opressão e – o que, sem dúvida, é o mais chocante, também a escravidão.

De qualquer maneira, a relação com os movimentos da história (rejeição ou aceitação) e o sentido aplicado a essa relação (proteção da liberdade ou estímulo ao progresso) permite caracterizar também a chamada “esquerda”, para além dos conservadores. Cabe notar que é de propósito que não estou assumindo como equivalentes “conservadores” e “direita”, por um lado, e “progressistas” e “esquerda”, por outro lado. Em um livro dos anos 1990 que se tornou famoso (Direita e esquerda – razões e significados de uma distinção política), o italiano Norberto Bobbio estabeleceu que o conteúdo específico da “direita” seria a defesa da liberdade, ao passo que o conteúdo da “esquerda” seria a promoção da igualdade. Bobbio reconhecia que essa proposta seria polêmica e sujeita a uma infinidade de objeções; da minha parte, considero que, embora seja extremamente didático e simpático, de fato esse livro difunde um sério equívoco político. Qual equívoco? Associar a “esquerda” à “igualdade” não é em si problemático (nem, da mesma forma, associar a “direita” à “liberdade”): o problema surge quando se vincula a esquerda ao progresso, isto é, à concepção de que a história (1) tem uma direção, considerando o conjunto dos séculos, e (2) que é possível acelerar a marcha histórica para que se percorra mais rapidamente esse caminho. Ora, nos termos de Bobbio, se a esquerda é o campo do progresso, esse progresso está vinculado à igualdade; inversamente, a direita seria o campo do “não progresso”, isto é, o campo da “ordem” e/ou do “conservadorismo” e/ou do reacionarismo.

Assim, o problema que Bobbio não quis perceber, ou reconhecer, ou enfrentar, é que o progresso exige a liberdade e, na medida em que ele consiste no desenvolvimento das capacidades humanas, o progresso estimula a diferenciação social e individual, ou seja, atua na direção contrária à igualdade; inversamente, face ao progresso, a igualdade só pode ser promovida por meio da limitação das habilidades humanas, via compressão das liberdades. Em suma: o progresso exige a liberdade e estimula as diferenças (ou as desigualdades), ao passo que a igualdade exige a restrição ou a supressão das liberdades: isso é sabido pelo menos desde o início do século XIX.

A concepção de que a esquerda seria “boa” porque seria “progressista” reside, portanto, em um profundo mal-entendido sobre em que consiste o progresso; a chancela moral positiva vinculada ao progressivismo conduziu a esquerda a erros monumentais por todo o mundo desde o início do século XX, incluindo aí o Brasil: a intentona comunista de 1935, os arroubos populistas nos anos 1950 e 1960, as guerrilhas urbanas e rurais durante o regime militar – e, mais recentemente, o ódio social promovido por Lula em seus mandatos e a falência econômica do Brasil nos mandatos de Dilma Rousseff. Não há necessidade de estender-me sobre as mancadas práticas da esquerda (no Brasil ou no mundo), nem sobre os seus defeitos intelectuais – tudo isso é público e notório.

O problema que se verifica no Brasil, entretanto, é que a reação recente à esquerda consiste tão-somente nisso: em uma reação. São idéias e atos que se definem apenas pela negação do outro, não pela proposição de idéias alternativas que visem a melhorar a sociedade e as instituições. Por certo que há exceções a esse diagnóstico, mas elas consistem em exceções, não na regra. O que os “conservadores” brasileiros fazem frente à esquerda e ao seu igualitarismo? Afirmam a liberdade e o mérito; todavia, tanto a liberdade quanto o mérito afirmados são abstratos – e abstratos demais –; no que se refere à fórmula da Revolução Francesa “Igualdade, liberdade, fraternidade”, afirmam apenas a liberdade, rejeitam totalmente a igualdade e desprezam a fraternidade.

Se a liberdade é a condição para o progresso social e se o progresso desenvolve as potencialidades humanas, tanto a liberdade quanto o progresso caminham na direção oposta da igualdade. Todavia, ao longo do século XX evidenciou-se que há alguns tipos de “igualdade” que precisam ser valorizadas, especialmente em termos “formais”, ou institucionais; essas modalidades constituem alguns dos fundamentos das sociedades livres contemporâneas: a isonomia (a igualdade de todos perante a lei), a igualdade de educação (como fundamento intelectual, cívico e técnico do progresso) e condições mínimas de vida para todos, a fim de acabar com a miséria e garantir a dignidade humana. Esses elementos são as condições do progresso social e, nesse sentido, constituem elementos da “ordem social”; mas, além disso, eles exigem que à liberdade seja adicionada um aspecto central, a fraternidade – ou a generosidade, o altruísmo. Deixando de lado os termos ariscos, polêmicos e problemáticos que são “direita” e “esquerda”, as relações sociológicas, políticas e morais entre ordem e progresso foram estabelecidas no século XIX por Augusto Comte: “O progresso é o desenvolvimento da ordem; a ordem são as condições do progresso” e “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”.

Em nome da igualdade social, a esquerda sacrifica a liberdade mas, ainda que nominalmente, aceita a fraternidade; já a direita, ou os conservadores, supostamente celebra a liberdade, mas ignora elementos da igualdade “formal” e despreza a fraternidade. Tanto em um caso como no outro, o que há são simulacros de progresso e de ordem: é um progresso que não desenvolve as potencialidades humanas e uma ordem que não permite esse desenvolvimento. Novamente Augusto Comte tem a palavra: ordem sem progresso e progresso sem ordem resultam em oscilação terrível entre uma ordem autoritária e um progresso anárquico.

Voltemos ao tema do conservadorismo. Como vimos, os conservadores – pelo menos aqueles influenciados pela tradição britânica – em princípio aceitam o progresso, ainda que a contragosto; eles também valorizam as liberdades e respeitam a experiência histórica: esses fatores permitem que esses conservadores possam dar uma contribuição efetiva para a sociedade. O que os assim chamados “conservadores” brasileiros têm feito afasta-se desse programa, em particular no sentido de rejeitarem a experiência histórica e de desvalorizarem as liberdades e o sistema de garantias institucionais das liberdades. O elogio da escravidão – encoberto por festas de aniversário de crianças (!!!) ou pelo chicotear manifestantes –; a afirmação do racismo; o desprezo pelas mulheres e por suas contribuições à sociedade; o elogio desbragado do autoritarismo militar, da “solução” violenta de conflitos e das torturas: nada disso corresponde a um programa de liberdades, não se aproxima do conservadorismo britânico e, por fim, é contrário tanto ao progresso quanto à ordem. As corretas e necessárias noções de “mérito” e “meritocracia”, por exemplo, são pegas no fogo cruzado desses vários conceitos equivocados.

Dito isso, desde 2013, uma estranha nostalgia pelo autoritarismo militar tem-se organizado em corrente política, associada ao “conservadorismo”: isso exige alguns comentários. Devido ao regime militar de 1964, até há poucas décadas costumava-se associar os militares (e a “direita” e os “conservadores”) a autoritarismo, a truculência e a torturas; inversamente, o pacifismo era vinculado à sociedade civil, ao progresso e à esquerda.

Entretanto, essas diversas associações são bastante conjunturais: simplesmente não há motivo para vincular os militares a brucutus acéfalos e violentos. Três exemplos bastam para ilustrar o ponto. No final da década de 1880 o Tenente-Coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães lecionava Matemática na Escola Militar; embora pertencesse profissionalmente às Forças Armadas (tendo mesmo lutado na Guerra do Paraguai (1864-1870)), Benjamin Constant adotava uma abordagem filosófica e histórica em seu ensino, resultando em um viés cívico, civilista e pacifista: os seus alunos de modo geral viam-se antes como cidadãos e depois como soldados; em particular, eles entendiam que o progresso é um ideal a ser perseguido, mas que, para isso, as condições da ordem têm que ser satisfeitas: liberdades, condições dignas de vida, primado da lei. Um dos seus mais ilustres alunos foi Cândido Mariano da Silva Rondon, o “Marechal da Paz”, aquele que dizia – e praticava! – a bela fórmula “morrer se for preciso, matar jamais”.

Em reação ao ensino cívico, civilista e pacifista de Benjamin Constant, procedeu-se nas décadas de 1910 a 1930 diversas alterações no ensino militar, promovidas principalmente pelo futuro General Góes Monteiro: autoritário, esse militar esteve envolvido nas conspirações civil-militares de 1930, 1937, 1945, 1954 e, claro, 1964. Os exemplos de Benjamin Constant e Rondon ilustram que a vinculação entre militares e truculência não é algo necessário: o autoritarismo militar pode ser um projeto político, como no caso de Góes Monteiro. Aliás, convém notar que, apesar desse profundo defeito político (seu autoritarismo), Góes Monteiro era também um intelectual, ou seja, ele estudava e procurava articular racionalmente suas idéias: assim, não há porque vincular militarismo e anti-intelectualismo. Ainda mais: até mesmo o autoritarismo militar pode rejeitar o estilo brucutu, anti-intelectual e demagógico de proceder: as ações cuidadosas e firmes do General Ernesto Geisel, durante seu governo, sugerem que ele seria contra o Deputado Federal que supostamente “representa” os militares. Dessa forma, esse Deputado revela-se apenas um demagogo incoerente, que desconhece a história das Forças Armadas brasileiras e que, portanto, não a honra no que ela teve de melhor.

O resultado das reflexões acima – das quais tive que deixar de lado o crescente papel político do conservadorismo cristão – é que a “direita” brasileira em geral e os chamados “conservadores” em particular estão profundamente desorientados. Essa desorientação não é daninha apenas para eles mesmos, como eventual grupo político ou como defensores de determinados valores culturais e morais: essa desorientação é prejudicial para o Brasil como um todo, ao difundir concepções erradas de ordem e progresso, de igualdade, liberdade e fraternidade, e ao estabelecer uma dinâmica viciada com a esquerda – cujos problemas intelectuais, morais e políticos são sobejamente conhecidos. Em vez de buscarem aliar-se em projetos claros em prol das condições de ordem e progresso, cada vez mais conservadores e esquerdistas alimentam entre si um relacionamento de ódio mútuo e acusações constantes – em que, a despeito de acertos políticos ocasionais e específicos, nenhum dos dois lados está efetivamente na direção correta.

Gustavo Biscaia de Lacerda é Sociólogo da UFPR e Doutor em Sociologia Política pela UFSC.

31 agosto 2015

Ordem retrógrada vs. progresso anárquico

"A ordem permanecerá retrógrada enquanto o progresso permanecer anárquico" 

(Augusto Comte, "Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo", in: Sistema de política positiva, v. I, 1851, p.73).

20 abril 2015

Teoria do progresso como necessária à fundação da Sociologia

No trecho abaixo, Augusto Comte observa que somente as teorias da ordem social são insuficientes para a Sociologia: ou, por outra, que a teoria do progresso é necessária para que haja, de fato, a Sociologia. Nesse sentido, aliás, a Revolução Francesa forneceu ao mesmo tempo o impulso político e importantes elementos teóricos.

Sans la théorie du progrès, celle de l'ordre resterait insuffisante, même quand on la supposerait possible, pour fonder la sociologie, qui ne peut résulter que de leur intime combinaison. Par cela même que le progrès ne constitue, à tous égards, que le développement de l'ordre, seul il en offre aussi la manifestation décisive. On conçoit ainsi donc comment la philosophie positive devait directement émaner de la révolution française [...].

("Sem a teoria do progresso, a da ordem permaneceria insuficiente, mesmo quando se a supusesse possível, para fundar a Sociologia, que não poderia resultar senão se sua íntima combinação. Pelo motivo mesmo de o progresso não constituir, a todos os respeitos, senão o desenvolvimento da ordem, somente ele oferece também a manifestação decisiva da ordem. Concebe-se assim então como a filosofia positiva deveria diretamente emanar da Revolução Francesa [...]".)

(Auguste Comte, "Discours préliminaire – première partie: esprit fondamental du Positivisme", inSystème de politique positive, v. 1, 1851, p. 63. É possível contextualizar esse trecho no conjunto do livro consultando-os aqui.)

27 maio 2009

Augusto Comte "no cotidiano”



O livro Os clássicos no cotidiano, de Fernanda Henrique Cupertino Alcântara (ALCÂNTARA, 2008) é um manual de introdução à Sociologia, por meio da apresentação das principais idéias de alguns dos clássicos da disciplina[1]. Entretanto, em vez de limitar-se ao trio Marx, Weber e Durkheim, a autora incluiu também Augusto Comte e Alexis de Tocqueville (repetindo com felicidade, ainda que em parte, o procedimento de Aron (1999)). Como a autora comenta na “Introdução”, seu interesse era escrever uma obra que permitisse a compreensão sociológica do cotidiano a partir dos autores discutidos e que mantivesse o caráter de um livro didático, isto é, acessível. Nesse sentido, o intento da autora foi coroado de êxito, pois que o texto é interessante, despertando a atenção e a curiosidade do leitor. Da mesma forma, para o que nos interessa aqui – a apresentação das idéias de Comte (ALCÂNTARA, 2008, cap. 1) – a autora apresenta diversos elementos importantes do pensamento comtiano – elementos que costumam não aparecer em livros didáticos de ambições iguais ou superiores.

Dito isso, o fato é que várias informações que a autora apresentou a respeito de Comte estão simplesmente erradas ou enviesadas. Por um lado, a quantidade desses erros e sua gravidade são tão grandes que exigem uma discussão pormenorizada; por outro lado, embora evidentemente haja inúmeras e às vezes acerbas discussões sobre o pensamento dos outros clássicos da Sociologia, o fato é que há um efetivo conhecimento sobre o que esses outros autores pensaram – o que, como veremos, não é a situação de Comte, em particular no Brasil. Por esses motivos, em vez de tratarmos do livro como um todo, concentrar-nos-emos apenas no capítulo 1, dedicado ao fundador da Sociologia.

Antes de mais nada, face à afirmação de que há inúmeros problemas no texto, em correspondência particular a autora perguntou: “como não ser enviesado?” (ALCÂNTARA, 2009). Não adianta dizer que o tudo que temos à mão são interpretações, pois isso não resolve nada e serve apenas para um ultrarrelativismo quietista e politicamente inconseqüente. Não há mistérios teóricos ou metodológicos nessa questão: se é para apresentarmos um autor, é importante ler de fato esse autor e fazer um esforço efetivo para entender o que ele disse e o que quis dizer. É dessa forma que se controlam os vieses e obtêm-se “interpretações” mais ou menos autorizadas dos pensadores.

As referências básicas a respeito de Comte (ALCÂNTARA, 2008, p. 44) são Donald Levine (1997) e Anthony Giddens (1998); além disso, a autora indica Lelita Benoit (1999) e R. Aron (1999). Deixando de lado o fato de que isso é pouco e ignora importantes obras de referência[2], o livro de Aron é um clássico da história da Sociologia e, no que se refere a Comte, é bastante competente; o mesmo pode-se dizer a respeito de Levine, que sem dúvida alguma é uma das melhores obras de mapeamento da Sociologia. Já o artigo de Giddens é entre fraco e ruim: o conhecimento que ele tem de Comte é péssimo, é pouco; para Giddens, Comte é apenas um prenunciador do Círculo de Viena (opinião que a autora sutilmente repete e, portanto, compartilha[3]). Ao apresentar essa opinião, Giddens evidencia suas fortes limitações no que se refere a Comte. Por fim, o livro de Lelita Benoit apresenta igualmente sérios problemas. Décio Saes, marxista como Benoit, fez uma resenha favorável do livro (SAES, 1999); mas Arthur Lacerda, profundo conhecedor da obra de Comte, fez uma resenha extremamente crítica e desfavorável desse livro (LACERDA NETO, 2003b) – aliás, merecidamente, pois que ela adota o sofisma do espantalho, apresentando Comte de maneira a ele ser o arqui-inimigo burguês do marxismo. Na verdade, muito dos erros que a autora de Os clássicos no cotidiano cometeu devem-se às falhas de Giddens e de outros “críticos”.

A autora afirma que o Positivismo comtiano “influenciou os militares no Brasil” (ALCÂNTARA, 2008, p. 31). Mas quais militares? Definir quais militares foram “influenciados pelo Positivismo” não é uma questão secundária; em todo caso, como a autora não esclareceu essa questão, infere-se que sejam os de 1964 (mas, aliás, quais militares de 1964? Os linhas-duras, os sorbonistas ou as várias outras subclivagens?). De qualquer forma, os militares que foram influenciados pelo Positivismo foram os que proclamaram a República, em 1889, e cuja influência fez-se sentir de maneira mais ou menos intensa até 1930 e, de maneira mais fraca, até 1964. A separação entre “militares de 1889” e “militares de 1964” pode ser estabelecida com clareza no processo de mudança curricular por que, na década de 1920, passaram as academias militares, no sentido de os militares profissionalizarem-se (cf. CARVALHO, 2005, cap. 1). O que significava a profissionalização? Mudar a orientação humanista, civilista e pacifista prevalecente até então. Essa orientação pacifista, humanista e civilista era a dos positivistas, em particular Benjamin Constant, e foi em reação a ela que se constituíram os novos currículos militares. Esses novos currículos eram particularmente influenciados pelas doutrinas alemãs, o que aproximou os militares brasileiros da Alemanha, afastando-os da França. Pois bem: os militares que deram o golpe de 1964 (ou, mais precisamente, os golpes de 1930 em diante) foram os formados na nova tradição, de origem alemã e que, não por acaso, foram próximos ao nazismo e ao fascismo, como Góes Monteiro e Olympio Mourão Filho, jurados inimigos dos militares positivistas. Em suma: a autora claramente dá a entender que o Positivismo serviu de lastro ideológico para os golpistas de 1964, o que é simplesmente falso.

A autora também afirma, por exemplo, que “Comte criticou os socialistas, chamando-os equivocadamente de comunistas” (ALCÂNTARA, 2008, p. 42). Por que “equivocadamente”? Isso é um completo anacronismo! Surge a questão: o que é um “anacronismo”? É a atribuição de valores contemporâneos a situações passadas, sem considerar os contextos específicos do passado. Dessa forma, Comte estava corretíssimo em falar em “comunistas”, pois essa era a terminologia da época, que ele simplesmente seguiu[4]. Apenas após a atuação política de Marx e Engels e, em particular, após a Revolução Russa de 1917 é que a expressão “comunista” tornou-se mais ou menos sinônima de “marxista”. Esse erro é o mesmo que afirmar que não se pode falar em “hereditariedade” antes da divulgação das pesquisas de Mendel, pois teria sido Mendel o primeiro a definir as leis da hereditariedade: mas falava-se, sim, em hereditariedade pelo menos desde o final do século XVIII, com Lamarck – e é precisamente esse o uso que Augusto Comte fazia dessa expressão.

A autora afirma que “o poder Temporal é autoritário e hierárquico” (ALCÂNTARA, 2008, p. 39). Que o Estado é “autoritário” e hierárquico qualquer sociólogo ou politólogo reconhece: o problema é que a autora dá a entender que para Comte o Estado tem que ser “autoritário”, isto é, alguma coisa próxima a “despótico”. Ora, Marx, Weber, Durkheim concordavam que o Estado baseia-se, em última instância, na força física, embora não seja esse o seu meio básico nem preferencial de ação: só porque Comte diz a mesma coisa fazendo referência a Hobbes ele é “autoritário”? Isso é tolice, quando não ingenuidade: como o próprio Comte afirmava (COMTE, 1890, t. II, cap. II), por acaso desejar-se-ia que o Estado baseasse-se na fraqueza? Por outro lado, mesmo o grande teórico moderno da democracia, Rousseau, afirmava que há uma separação entre o governo e os governados, que seria possível “ultrapassar” por meio do artifício – altamente retórico, diga-se de passagem – da “soberania popular”. Por outro lado, considerando que há uma separação entre governantes e governados, em que, weberianamente, aqueles detêm o monopólio do uso legítimo da violência física, é claro que a relação entre uns e outros é hierárquica! Novamente, há no mínimo ingenuidade ao imputar a Comte um “Estado hierárquico”. Mas vamos ao argumento do próprio Comte: ele sempre foi muito explícito ao afirmar que deve haver a separação entre os poderes Temporal e Espiritual (cf., por ex., COMTE, 1890, t. II, cap. IV), o que, em termos correntes, é o mesmo que afirmar a separação entre a Igreja e o Estado. Isso quer dizer que o Estado não deve ter doutrina oficial, não deve doutrinar seus cidadãos, limitando-se a manter a ordem civil, ao mesmo tempo que resguardando a mais completa e total liberdade de pensamento e de expressão. O Estado deve ser forte para ser capaz de fazer frente às necessidades sociais, entre as quais citamos nominalmente a inclusão social do proletariado: é o mesmíssimo discurso que vemos (e que apoiamos) hoje a respeito da reforma do Estado! Por outro lado, se o poder Espiritual é separado do Temporal, ele é livre para criticar e (des)legitimar o poder Temporal. Esse relacionamento entre os dois poderes não se encaixa em qualquer definição que se tem de “autoritarismo”[5].

A autora também afirma que Comte era o sociólogo da unidade humana, em contraposição à diversidade (ALCÂNTARA, 2008, p. 29). A autora está correta no que se refere à unidade humana, mas está errada no que se refere à diversidade. Se ele contra a proposta de uma “igualdade social” (em moldes rousseuanianos), como seria contrário à diversidade? Ele sempre foi muito claro ao afirmar que um dos índices de desenvolvimento social é a divisão social do trabalho, o que equivale à diversidade. Ele era radicalmente favorável à diversidade (bem como ao que chamaríamos hoje de “eqüidade” ou de “justiça social”), mas era contrário às tendências puramente centrífugas e antissociais. Mas isso ainda é insuficiente, pois não esclarece o que significa isso. Mais precisamente, Comte era contrário àqueles que, em nome da “crítica” ou da “criticidade”, destruíam tudo que podiam, sem sugerir nada no lugar e, principalmente, sem ter a menor preocupação, explícita ou implícita, nesse sentido[6]. Assim, essa unidade, que afirma e confirma a diversidade, deve ocorrer por meio dos esforços em comum para o melhoramento da Humanidade, de que o poder Espiritual seria principalmente a consciência.

Mas isso ainda é insuficiente. A autora reiteradas vezes enfatizou a busca comtiana do consenso (ALCÂNTARA, 2008, p. 32 et passim). Ora, o que significa isso? Para Comte, o consenso é o compartilhamento de opiniões, valores e idéias, não a unanimidade. Se cada ser humano é ativo e deve ser convencido, cada qual pensa com sua própria cabeça. As diferenças de opiniões, valores e idéias não dependem da situação abstrata de cada um, mas variam de acordo com a família, com a classe social, com o país e até mesmo com a “ideologia” (ou religião, ou filosofia). Cada uma dessas situações específicas gera perspectivas específicas que devem ser harmonizadas para o benefício comum. Os conflitos de classe são exemplares nesse sentido: trabalhadores e patrões desempenham suas funções particulares para o benefício comum, mas a posição de classe deles tende a fazê-los naturalmente entrar em conflito. Esses conflitos têm que ser resolvidos, por todos os meios disponíveis: via arbitramento, via negociação coletiva, via legislação social e assim por diante. Mas se, por exemplo, os proletários virem-se em condições injustas, podem e devem até mesmo realizar greves (pacíficas). Não é difícil de perceber que, para conciliar as diversas perspectivas específicas, são necessários valores, idéias e opiniões em comum, a fim de permitir que haja um terreno comum sobre o qual negociar ou para o qual apelar. Além disso, o momento histórico (“contexto”) de Comte não se caracterizava por um liberalismo triunfante (ALCÂNTARA, 2008, p. 41ss.), mas pela anarquia moral e política da França posterior à Revolução Francesa e à Restauração, em que não havia nenhum terreno moral e filosófico comum capaz de servir de base para os conflitos sociais e, mais do que isso, para a constituição de um “projeto de sociedade” socialmente legítimo e legitimado.

Há ainda mais a comentar a respeito desse tema. O consenso em si não é a idéia fundamental, mas a convergência de propósitos. Esses propósitos não são quaisquer uns, mas são propósitos muito claros, muito precisos: é a constituição de uma sociedade pacífica, justa, esclarecida, irmanada por todos os povos do mundo o que almeja Comte. Assim, uma sociedade cujo Estado seja autoritário, embora force um “consenso”, é uma sociedade ruim, isto é, não é uma “sociedade positivista” . Da mesma forma, para que uma pessoa desenvolva um talento, uma habilidade, freqüentemente apresentará um comportamento antissocial, pois será obrigada a desenvolver suas próprias idéias, suas próprias habilidades: isso é o que diz literalmente Pierre Laffitte (1876), o principal discípulo de Comte e conselheiro do Presidente da França, Jules Ferry, que foi quem implantou a lei do ensino público, gratuito, universal e laico na França[7].

Aliás, correlatamente à idéia de consenso, a autora reiterou a de reforma (ALCÂNTARA, 2008, p. 28). A “reforma” comtiana, segundo a autora, seria oposta à revolução marxista, em uma reedição da dicotomia que a esquerda forçava nos anos 1960; essas reformas seriam “lentas, graduais e seguras”, de acordo com as leis naturais e não poderiam violar ou violentar as sociedades. Dessa forma, segundo a sua exposição, Comte seria o próprio ideólogo do status quo, de preferência burguês, a favor do capitalismo. Como já disse, isso é a aplicação do sofisma do espantalho, que não corresponde de maneira alguma à letra e ao espírito de Comte. Sem dúvida alguma que Comte opunha-se às revoluções, mas ele era contrário a elas como mudanças sociais violentas: por isso sua ênfase nas mudanças morais, no sentido de legitimar sociedades pacíficas, generosas, justas e esclarecidas. Mas isso não é o mesmo que afirmar, como a autora fez, que Comte era pela passividade ou pela omissão. O ser humano é ativo, isto é, deve agir: uma coisa é valorizar a paz e o entendimento, outra é ser burro de carga, humilhado ou enganado – ou viver em regimes ilegítimos, corruptos e/ou anacrônicos. Assim, por exemplo, em 1848 Comte estava completamente a favor do proletariado que se revoltava em Paris, assim como foi um dos primeiros, talvez um dos únicos, pensadores que glorificou a revolta dos escravos haitianos que no final do século XVIII e início do século XIX massacrou os senhores de engenhos franceses, em particular na figura de seu líder, Toussaint Louverture. O médico particular de Comte e seu discípulo direto, Robinet, foi um dos grandes defensores dos communards de 1871, tendo feito por eles muito mais do que Marx, que apenas disse que a comuna era o exemplo do comunismo futuro. Por fim, mas longe de esgotar os exemplos possíveis, no Brasil os positivistas foram a favor da abolição da escravatura imediata, sem transições ou compensações econômicas, muito antes de 1888[8], defendendo ainda que o Estado imperial criasse as condições sociais para que os negros alforriados fossem integrados de verdade à sociedade brasileira, denunciando o processo que hoje chamamos de “favelização”.

Os exercícios que a autora propôs, de análise de filmes e de situações concretas (ALCÂNTARA, 2008, p. 44-49), ao enfatizar situações degradantes e de exclusão social – sutilmente sugerindo que o Positivismo comtiano é favorável a tais degradações e exclusões – são totalmente enviesados, orientados claramente para que se conclua que o consenso de Comte é a mesma coisa que o autoritarismo social, o obscurantismo ou uma odiosa uniformidade de valores e opiniões – exatamente o contrário do que Comte afirmava e defendia. Aliás, diga-se de passagem, a uniformidade, autoritária, de opiniões e valores foi defendida convictamente por Rousseau e aplicada por Robespierre, não por Augusto Comte e seus discípulos.

Mas o ponto principal, para a autora, é a suposta “desresponsabilização” dos indivíduos que as idéias de Comte proporiam, o que estaria vinculado ao “determinismo” das leis sociológicas naturais defendidas pelo sistema comtiano (ALCÂNTARA, 2008, p. 35 et passim). Não deve ser difícil perceber, a partir dos comentários acima, que isso simplesmente não procede e que é um erro difundido por quem não conhece nem a letra nem o espírito da obra de Comte. Mas é importante ir diretamente à questão. Pois bem: a autora mesma indicou que, para Comte, o ser humano é sentimental, intelectual e ativo. Se é ativo, deve agir, deve fazer coisas. A autora também comentou, repetindo Giddens, que a Sociologia de Comte constituiu-se como conseqüência direta de sua concepção de ciência. Giddens fala isso apenas para dizer que Comte prenunciou o Círculo de Viena – o que significa pouco ou nada para quem conhece Comte e o Círculo de Viena, mas que impressiona quem não conhece nem um nem outro. A concepção de ciência para Comte era de um sistema de conhecimento que fosse relativo (isto é, anti-absolutista, em termos filosóficos), capaz de prever os acontecimentos. Para que prever os acontecimentos? Para agir em benefício da sociedade, isto é, dos seres humanos. A ciência é um sistema de conhecimentos que o ser humano elabora para benefício do próprio ser humano: isso inclui não apenas a satisfação de necessidades materiais, mas também e principalmente as necessidades intelectuais e morais. Dessa forma, embora a ciência ocorra por meio da objetivação, é para satisfação da subjetividade que ela deve desenvolver- se; se ela não satisfizer essa subjetividade, ela é inútil. Isso é o que significa a “síntese subjetiva”: o conhecimento é coordenado pelo ser humano para benefício do ser humano.

A idéia, ou acusação, de “determinismo” vincula-se intimamente ao problema anterior e igualmente improcede. De acordo com ela (ou melhor, de acordo com a interpretação usual dos seus críticos), os seres humanos seriam marionetes das forças históricas, sem qualquer capacidade autônoma da ação. Sem possibilidade de ação e de decisão, a política não existiria nem seriam possíveis mudanças sociais devidas a alterações nas idéias, nos valores e nas opiniões (ALCÂNTARA, 2008, p. 34). Já vimos que é incorreta a afirmação de que as idéias e os valores são desimportantes politicamente para Comte, mas é recorrente a sugestão de que os seres humanos são joguetes das forças históricas. Ora, a escala enciclopédica de Comte engloba sete ciências fundamentais: Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia e Moral. Os critérios de organização dessa escala são dois: teórico e histórico. O histórico é o mais simples, pois corresponde à ordem em que essas ciências constituíram-se ao longo do tempo. O critério teórico é mais importante e, inclusivamente, explica o critério histórico: da Matemática à Moral, as ciências tornam-se menos simples e menos gerais, o que é a mesma coisa que afirmar que se tornam mais complexas e mais específicas. Além disso, à medida que se avança na escala, os fenômenos subseqüentes subordinam-se aos anteriores, no sentido de que, por exemplo, as leis da vida dependem das leis gerais da matéria, em termos físicos e químicos. Dessa forma, nessa escala ascendente, as ciências que ocupam os degraus mais altos tratam de fenômenos em que as variáveis intervenientes são em maior número, o que é a mesma coisa que afirmar que a possibilidade de sua modificação é maior. Maior possibilidade de modificação significa, muito simplesmente, maior capacidade humana de intervenção intencional na realidade.

No que se refere aos fenômenos humanos, em particular os sociais e os “psicológicos” (de que trataremos na seqüência), as possibilidades de modificação são muito maiores. Mas afirmar que existem mais possibilidades de modificação não é a mesma coisa que afirmar que essas modificações são infinitas ou que ocorrem ao bel-prazer dos seres humanos: não apenas porque as sociedades (como cada um dos seres humanos) não são plásticas, ou seja, modificáveis como é, por exemplo, uma argila, como porque toda sociedade apresenta necessariamente alguns elementos: é o que Augusto Comte chamava de Sociologia Estática, composta por cinco instituições (família, linguagem, governo, propriedade e religião).

O problema que se apresenta, portanto, é conjugar as possibilidades de modificação da sociedade com os limites históricos e sociológicos que tais modificações necessariamente enfrentam. Convém notar que essa conjugação é tanto teórica quanto prática, mas aqui nos ateremos à parte teórica. Comte rejeitava explicitamente a idéia de “determinismo”, em particular no que se referia aos fenômenos humanos (sociais e psicológicos); em seu lugar propunha a expressão “fatalidades modificáveis”, procurando com ela realizar a conjugação entre as leis naturais e a liberdade humana de ação e de decisão. Isso não é uma incoerência no sistema, mas importante observação teórica necessária à constituição das “ciências humanas”. Aliás, o já citado discípulo de Comte, Pierre Laffitte, em uma obra de epistemologia baseada no Positivismo comtiano, disse com todas as letras que, embora a idéia de lei natural seja e deva ser aplicável a todas as ciências da escala enciclopédica, é evidente que o seu rigor diminui à medida que se afasta da Matemática e que se aproxima da Moral (LAFFITTE, 1928)[9].

Há mais, muito mais. Comte (1899) afirmava que, para completar as leis, são necessárias vontades. O que isso quer dizer? Que devemos querer agir para que as coisas aconteçam. Disse acima que o ideal de ciência comtiano era o de saber para prever, a fim de prover. O que a ciência ensina, antes de mais nada, é que o ser humano é frágil e que a natureza é imperfeita; que a vida é dura e que o desenvolvimento das sociedades permite que desenvolvamos o altruísmo. A ciência, dessa forma, é o grande e, no final das contas, o único instrumento de que dispomos para intervir na realidade e melhorá-la. Como dissemos, esse melhoramento é material, intelectual e moral. Em termos intelectuais, o que importa é termos uma visão de conjunto, homogênea e coerente, capaz de satisfazer nossas necessidades psicológicas e de ação. Em termos materiais, é a ação humana no mundo, englobando a “natureza” (isto é, as plantas, os animais e até o espaço... a hipótese Gaia, de James Lovelock, bem como a teoria do xamanismo, de Lévi-Strauss, são imensamente próximas a Comte), para a constituição de sociedades pacíficas e justas. Em termos morais, o aperfeiçoamento humano é a compressão do egoísmo e o desenvolvimento do altruísmo, no processo que chamamos de educação. Para tudo isso é necessário que o ser humano queira, isto é, que aja de maneira ativa e responsável.

A ação, por outro lado, é sempre individual. Embora haja um único verdadeiro ser – a Humanidade –, ela age e existe por meio de órgãos individuais. Esses órgãos individuais, os indivíduos, as pessoas, têm responsabilidades proporcionais aos poderes de que dispõem, mas, de qualquer forma, todos são responsáveis pelas suas condutas, de todo para com todos. A rejeição da idéia metafísica e altamente egoísta de “direitos” e a defesa dos “deveres” não tem outro fundamento: todos somos responsáveis por todos (embora a responsabilidade de alguns seja maior que a de outros) e somos e seremos todos avaliados e julgados pela nossa atuação para o benefício comum.

Em apoio à sua tese de “desresponsabilização” dos seres humanos (ou, o que dá na mesma, de negação da “agência humana”), a autora repete um erro de Giddens: Giddens afirma que tanto Comte desprezava os “indivíduos” e as capacidades (e responsabilidades) humanas que nem chegou a incluir a Psicologia na sua escala enciclopédica, isto é, que a teria concluído na Sociologia. Isso é um erro devido aos seguintes motivos: 1) como ilustramos acima, Comte afirmava com todas as letras as responsabilidades individuais e as capacidades com que cada qual tem de agir; 2) a escala enciclopédica de Comte não parou na Sociologia, mas avançou mais um degrau; 3) se Comte não incluiu a “Psicologia” na sua escala enciclopédica, foi porque a “Psicologia” de sua época (e, sendo francos, enorme parte do que há ainda hoje) era pura metafísica; em seu lugar, ele incluiu a Moral, que trata precisamente do estudo do ser humano tomado individualmente; 4) Comte desenvolveu a sua sétima ciência, dedicada aos seres humanos tomados individualmente, a Moral, nos volumes finais do seu Sistema de política positiva, publicado entre 1851 e 1854 mas bem pouco conhecido pelo público acadêmico, que se detém no Sistema de filosofia positiva, de 1830 a 1842; 5) a última obra de Comte, chamada de Síntese subjetiva, teria quatro volumes, dos quais os últimos dois tratariam de modo específico do estudo do ser humano individualmente considerado: entretanto, ele morreu após publicar o primeiro desses quatro volumes[10].

Na verdade, não faz sentido que uma filosofia e uma religião que, reconhecidamente, preza fortemente a coerência, e que, segundo a autora (e Giddens et alii), favorece o quietismo, a omissão e a irresponsabilidade, produza um resultado prático tão incoerente quanto um também reconhecidamente fortíssimo ativismo social, político, econômico, intelectual e religioso no mundo inteiro. Das duas, uma: ou o ativismo dos positivistas é uma fantástica excrescência (talvez semelhante ao ativismo de Lênin, face ao marxismo), ou a idéia de “desresponsabilização” é errada. Em termos empíricos (com base em investigações históricas) e lógicos (adotando a navalha de Ockham), não restam dúvidas: o correto é a segunda hipótese.

O que se lê no livro Os clássicos no cotidiano representa muito que se aprende academicamente sobre Augusto Comte, não apenas no Ensino Superior, como também no Ensino Médio; não apenas nos cursos de graduação, como também nos vários níveis de pós-graduação. Dessa forma, ele não é a exceção, mas a regra – ou melhor, um caso exemplar dessa regra. Não deixa de ser irônico que ocorra uma forma extremamente perversa de consenso a respeito do autor a que se imputa a valorização do “consenso”. Como se pôde perceber pelos inúmeros e sérios problemas comentados aqui, as idéias difundidas no Brasil a respeito de Comte estão em claro desacordo com o espírito e a letra de sua obra; o fato de o livro em questão ser didático (ALCÂNTARA, 2008, p. 20-21) – nas palavras da autora, no duplo sentido de “direcionado ao ensino” e “legível pelo grande público (não-especialista)” – é acima de tudo motivo de preocupação com a memória da Sociologia e, assim, com a própria produção sociológica brasileira. Esse tema, entretanto, é questão para outro artigo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALCÂNTARA, F. H. C. 2008. Os clássicos no cotidiano. 3ª ed. São Paulo: Arte e Ciência.
_____. 2009. Mensagem eletrônica enviada a Gustavo Biscaia de Lacerda. Viçosa, 6.abr.
ARANA, H. G. 2007. Positivismo – reabrindo o debate. São Paulo: Autores Associados.
ARON, R. 1999. As etapas do pensamento sociológico. 3ª ed. Lisboa: Dom Quixote.
AYER, A. J. (ed.). 1959. Logical Positivism. New York: Free.
BENOIT, L. 1999. Sociologia comteana. Gênese e devir. São Paulo: Discurso.
BOBBIO, N. 2001. O positivismo jurídico. Lições de Filosofia. São Paulo: Ícone.
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[1] O texto consiste em uma versão modificada de uma carta-resposta circunstanciada à autora (LACERDA, 2009b).
[2] Considerando apenas os livros disponíveis em português, no Brasil, e publicados nos últimos dez anos ou pouco mais, podemos indicar também Arana (2007), Coelho (2005), Cunha (2004), Fédi (2008), Graebin e Leal (1998), Lacerda Neto (2003a; 2004), Lacroix (2003), Ribeiro Jr. (2006), Soares (1999), Tiski (2006) e Trindade (2007), além de vários artigos de minha autoria (Lacerda, 2007; 2008a; 2008b) e o já clássico de Ivan Lins (1967). Essas referências, longe de serem exageros eruditos, são o mínimo que se pode esperar de uma obra didática sobre Comte no Brasil.
[3] Na verdade, não é tão sutil esse compartilhamento, pois que a autora justifica a permanência de Comte pela importância do “Positivismo jurídico” e das discussões “pós-positivistas” nas Ciências Sociais (ALCÂNTARA, 2008, p. 18n1): em ambos os casos ela comete erros grosseiros, pois que o Positivismo jurídico tem em comum com o de Augusto Comte apenas o nome, sendo ele devido a Hans Kelsen e não devendo nada a Comte (cf. BOBBIO, 2001); já o chamado “pós-positivismo” é um conjunto de perspectivas teóricas e metodológicas que superariam não conseqüências do Positivismo de Comte, mas sim do neopositivismo, devido ao Círculo de Viena, cujas ligações com o Positivismo comtiano, a despeito do argumento forçado de Giddens (1998), são poucas ou nenhuma, como se pode verificar na rarefação de citações a ele na coletânea de Ayer (1959) (apenas duas, de caráter histórico, en passant); ou ainda, como dizem literalmente por Pickering (1993, Introduction) ou Fédi (2008), o “pós-positivismo” na verdade recupera elementos do Positivismo comtiano.
[4] Aliás, em diversas ocasiões notamos que, se o uso da palavra “comunista” da parte de Comte refere-se ao que chamamos hoje, em virtude da interpretação de Marx no Manifesto do Partido Comunista, de “socialistas utópicos”, o conteúdo das críticas comtianas aos “seus” comunistas pode ser aplicado sem grandes dificuldades aos “nossos” comunistas (cf. LACERDA, 2003b, p. 84; 2008b; 2009).
[5] É notável o fato de que, embora a autora inclua nas referências bibliográficas um artigo de nossa autoria em que tratamos dessas questões (LACERDA, 2004), ela não o cita no texto nem extrai dele qualquer indicação a respeito da teoria política de Comte.
[6] Os autores pós-modernos – Deleuze, Gattari e colegas à frente –, tão preocupados com as “descontruções”, são os melhores exemplos contemporâneos dessa tendência.
[7] Diferentemente, portanto, da referência que a autora tira de Mucchielli (ALCÂNTARA, 2008, p. 30), segundo a qual a influência do Positivismo diminuiu após a morte de Littré, o “principal discípulo de Comte”.
[8] Aliás, a posse de escravos era motivo suficiente para a expulsão dos grêmios positivistas, como de fato ocorreu no início da década de 1880 (cf. LINS, 1967).
[9] O Cours de philosophie première de Laffitte, em dois volumes (LAFFITTE, 1894 ; 1928), é um excelente tratado de epistemologia e de teoria do conhecimento e deveria ter sido traduzido há muito tempo para o português, mormente no Brasil. Não o ter sido deve-se, por um lado, ao fato de que os seus leitores básicos – os positivistas – são versados no francês, mas, por outro lado, deve-se à simples falta de preocupação presente no Brasil de esclarecer aspectos centrais do pensamento comtiano. Deixando de lado os modismos intelectuais do país – que têm sua importância na obstrução de uma tal tradução –, o fato de serem os livros de Comte e de Laffitte obras mais que centenárias não é motivo para justificar a ausência de traduções, face às versões vernáculas de, por exemplo, Rousseau, Diderot, Hegel e Marx.
[10] Ainda assim, podemos indicar dois livros brasileiros dedicados à “Psicologia” baseada em Comte: Escobar (1979) e Coelho (1982). Além dessas duas obras teóricas, houve toda uma escola de Psicologia clínica baseada em Comte, a partir das pesquisas do médico paulista Aníbal da Silveira.